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EDWARD W. SOJA Geografias Pos-Modernas A REAFIRMACAO DO ESPACO NA TEORIA SOCIAL CRITICA JORGE ZAHAR EDITOR Titulo original: Postmodem Geographies ~ The reassertion of space in critical social theory Tradugio autorizada da segunda edigdo inglesa, publicada em 1990 por Verso/New Left Books, de Londres, Inglaterra Copyright © 1989, Edward W. Soja Copyright © 1993 da edigdo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RI tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodugao nao-autorizada desta publi ), no todo ‘ou em parte, constitui violacdo de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Composigao: TopTextos Edigées Gréficas Lida Impressio; Cromosete Grafica e Editora CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. S Edward W. S66g — Geografias pés-modernas: a reafirmacao do espaco na teoria social / Edward W. Soja; tradugio {da 2*ed. inglesa Vera Ribeiro; revisio técnica, Bertha Becker, Lia Machado. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993 Tradugio de: Postmodem Geographies: the reassertion of space in critical social theory Bibliogr: ISBN: 85-7110-259-7 |. Geografia humana, 1. Titulo CDD ~ 304.2 93-0455 CDU - 911.3 6. Espacializagdes: Uma Critica da Versao Giddensiana 169 6.1 Duplicando a hélice: 0 espago-tempo e Anthony Giddens 169 6.2 A constituigao da sociedade e a reconstituigao da teoria social 177 7. A Geografia Historica da Restruturagao Urbana e Regional _/9/ 7.1 ObservagGes sobre 0 conceito de reestruturagao 193 7.2 As tegiGes no contexto: da “‘Reestruturacao” e da “Questfo Regional” 197 7.3 A reestruturagao e a evolugao da forma urbana 2/0 7.4 Algumas conclusGes e continuidades contemporaneas 222 8 Tudo se Junta em Los Angeles 23] 8.1 O cenario contemporaneo 233 8.3 A reestruturagao espacial de Los Angeles 239 8.4 Encontrar outros espagos? 266 9. Decompondo Los Angeles: Rumo a uma Geografia Péds-moderna 267 9.1 Um giro por Los Angeles 269 9.2 De volta ao centro 28] 9.3 Posfacio 297 Bibliografia 30] ivdivemeniaive 319 PREFACIO E POS-ESCRITO Combinar um Prefacio com um Pés-escrito parece um modo particu- larmente apropriado de introduzir (e concluir) uma coletaénea de ensaios sobre as geografias pés-modernas. Aponta, logo de inicio, para uma intengo de alterar as modalidades familiares do tempo, de sacudir o fluxo normal do texto linear, para permitir que outras conexées, mais “laterais”, sejam estabelecidas. A disciplina imprimida a uma narrativa que se desdobra seqiiencialmente predispée o leitor a pensar em termos histéricos, dificultando a visio do texto como um mapa, uma geografia de relagdes e sentidos simultaneos que se vinculam por uma Idgica espacial, e nao temporal. Meu objetivo é espacializar a narrativa historica, é associar 4 durée' uma geografia humana critica permanente. Cada ensaio deste volume é uma evocacao diferente do mesmo tema central: a reafirmagao de uma perspectiva espacial critica na teoria e na andlise sociais contemporaneas. Pelo menos durante o século passado, o tempo e a histéria ocuparam uma posigao privile- giada na consciéncia pratica e tedrica do marxismo ocidental e da ciéncia social critica. Compreender como a histéria é feita constituiu a fonte primordial de discernimento emancipatério e consciéncia politica pratica, o grande continente mutdvel de uma interpretagado critica da vida e da prdtica sociais. Hoje, porém, talvez seja mais o espago do que o tempo que oculta de nds as conseqiiéncias, mais a “construgdo da geografia” do que a “construgio da histéria” que proporciona o mundo tatico e teérico mais revelador. Sdo essas a premissa e a promessa insistentes das geografias pés-modernas. 1. Duragao, extensdo temporal. Referéncia a0 conceit elaborado pelo historiador francés Fernand Braudel, ¢ difundido pela corrente historiogréfica conhecida como Ecole des Annales (N.R.). 8 Geografias pos-modernas Naturalmente, os ensaios aqui apresentados podem ser lidos numa seqiiéncia, como o desdobramento textual de uma argumentagao essencialmente histérica. Mas, bem no cerne de cada ensaio, ha uma tentativa de desconstruir e recompor a narrativa rigidamente histérica, de escapar do presidio temporal da linguagem e do historicismo similarmente carcerdrio da teoria critica convencional, de modo a abrir espaco para o discernimento de uma geografia humana interpretativa, para uma hermenéutica espacial. Assim, o fluxo seqiiencial é freqiien- temente desviado para levar concomitantemente em conta as simulta- neidades, os mapeamentos laterais que possibilitam entrar na narrativa quase que em qualquer ponto, sem perder de vista o objetivo geral: criar modos mais criticamente reveladores de examinar a combinagdo de tempo e espago, histéria e geografia, periodo ¢ regiao, sucessio e simultancidade. Conjugar um preambulo com um pés-escrito, apre- sentar um prefacio que é também posficio, constitui apenas o primeiro sinal bem-humorado deste ato intencional de reequilibragao. Ja que comegamos por uma revirada da ordem temporal, parece apropriado sugerir que a melhor introdugo as geografias pés-moder- nas € representada pelo Ultimo capitulo, um ensaio livre sobre Los Angeles, que integra e desintegra aquilo que o precedeu. “Decompondo Los Angeles” é uma leitura inquisitiva de uma paisagem decididamente p6s-moderna, uma busca de “outros espagos™ reveladores e de textos geograficos ocultos. O ensaio se inspira na brilhante visdo/localizagao do “Aleph” de Jorge Luis Borges — o tinico lugar da terra onde se acham todos os lugares, um espago ilimitado de simultaneidade e paradoxo, impossivel de descrever numa linguagem menos do que extraordindria. As observagées de Borges cristalizam alguns dos dile- mas que confrontam a interpretacéo das geografias pés-modernas: Entao vi o Aleph. (...) comega aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de simbolos cujo exercicio pressupde um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha timida memoria mal e mal abarca? Mesmo porque o problema central é insohivel: a enumeragdo, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhées de atos agradaveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposigao e sem transpa- réncia. O que os meus olhos viram foi simultaneo; 0 que transcreverei sera sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. 2. Jorge Luis Borges, O Aleph, trad. de Flavio José Cardozo, Rio, Globo, 1986, 6" ed., pp. 132-33. (N.T.) Preficio ¢ pés-escrito 9 Todo exercicio ambicioso de descrigao geogrdfica critica, de traduzir em palavras a espacialidade abrangente e politizada da vida social, provoca um desespero lingiiistico similar. O que se vé ao olhar para as geografias € obstinadamente simultaneo, mas a linguagem dita uma sucessao seqiiencial, um fluxo linear de afirmagées elocutivas, limitadas pela mais espacial das restrig6es terrenas, a impossibilidade de dois objetos (ou palavras) ocuparem exatamente o mesmo lugar (como numa pdgina). Tudo que podemos fazer é re-compor e justapor criativamente, num experimento com afirmagoes e insergdes do espa- cial no veio preponderante do tempo. No fim, a interpretagaéo das geografias pés-modernas nio pode ser mais do que um comego. Dando esteio a esse ensaio experimental, hd um capitulo con- densado que mapeia a economia politica da reestruturagdo urbana, tal como examinada através das paisagens pds-fordistas da Los Angeles contemporanea. Uma geografia regional mais concreta é apresentada para exemplificar 0 advento de um novo regime de acumulagao capitalista “flexivel”, tensamente baseado num “arranjo” espacial restaurador € instavelmente ligado ao tecido cultural pés-moderno. Essa descrigéo sintomatica € seguida/precedida de uma formulagado mais profunda da geografia historica do capitalismo, através de ana- lises da evolugao da forma urbana na cidade capitalista, dos mosaicos mutaveis do desenvolvimento regional desigual dentro do Estado capitalista, e das varias reconfiguragdes de uma divisio espacial internacional do trabalho. Aqui, como em outros pontos do texto, hd um pressuposto subjacente sobre o ritmo espaco-temporal do desenvolvimento capita- lista, uma conjugagdo macrospectiva da periodicidade ¢ da espaciali- zagao, induzida pela sobrevivéncia bem-sucedida das sociedades ca- pitalistas ao longo dos tiltimos duzentos anos. Mais uma vez, 0 objetivo é descortinar e explorar um ponto de vista critico que aflui marcan- temente da vibrante interagio da sucessio temporal com a simultanei- dade espacial. As geografias pés-modernas e pés-fordistas sao defini- das como os produtos mais recentes de uma série de espacialidades que podem ser complexamente correlacionadas com eras sucessivas de desenvolvimento capitalista. Fago uma adaptagéo da teoria das “ondas longas”, da obra de Ernest Mandel, Eric Hobsbawm, David Gordon ¢ outros, como um subtexto espago-temporal revelador me- diante o qual pode-se interpretar a geografia histdrica das cidades, regides, Estados ¢ da economia mundial. As espacializag6es de base mais empirica dos trés ultimos ensaios sao reproduzidas e explicadas de maneira diferente nos dois primeiros capitulos, que situam outras geografias pés-modernas na esteira de 10 Geografias pés-modernas uma profunda reestruturagdo da teoria e do discurso sociais criticos modernos. Apropriando-me de discernimentos de Michel Foucault, John Berger, Fredric Jameson, Emest Mandel e Henri Lefebvre, tento espacializar a narrativa convencional, recompondo a histdria intelec- tual da teoria social critica em torno da dialética evolutiva de espago, tempo e ser social: geografia, histéria e sociedade. No primeiro capitulo, a subordinacao de uma hermenéutica espacial ¢ rastreada até as origens do historicismo no século XIX € ao conseqiiente desenvol- vimento do marxismo ocidental e da ciéncia social critica, uma histéria periodicizada pelas mudangas dramaticas na conceituagio e na vivén- cia da modernidade. O mesmo ritmo que agita a geografia macro-his- térica das cidades e regides capitalistas, induzido pela crise, é visto em seu reflexo na historia da consciéncia tedrico-critica, criando uma seqiiéncia interligada de “regimes” de pensamento critico, que segue aproximadamente os mesmos blocos de meio século que marcaram as fases da cambiante economia politica do capitalismo desde a era da revolugéo — o primeiro de quatro perfodos marcantes de reestrutura- Gao e modernizagao. O periodo de meados do século XIX, articulando-se em torno dos eventos de grande projegao de 1848-51, foi a era cldéssica do capitalismo industrial competitivo. Foi também uma fase em que a historicidade e a espacialidade estiveram em relativo equilibrio como fontes da consciéncia emancipatoria, quer se tragasse 0 pensamento critico através das perspectivas do socialismo francés, quer da econo- mia politica inglesa ou da filosofia idealista alema. A contestagao da geografia especifica do capitalismo industrial, de suas estruturas espaciais e territoriais, foi uma parte vital das criticas radicais e dos movimentos sociais regionais que emergiram durante esse periodo, assim como a reforma dessa geografia tornou-se um importante objetivo instrumental para os novos Estados burgueses entrincheirados da Europa e da América do Norte. Apés a queda da Comuna de Paris, entretanto, as criticas explicitamente espaciais, radicais e liberais, comegaram a recuar em relagéo a afirmagdes eurocéntricas mais poderosas da subjetividade revoluciondria do tempo e da histéria. As ultimas décadas do século XIX, examinadas em retrospectiva, podem ser vistas como uma era de crescente historicismo ¢ de submerséo concomitante do espago no pensamento social critico. A critica socialista consolidou-se em torno do materialismo histérico de Marx, enquanto uma mescla de influéncias comtianas e neokantianas reformulou a filosofia social liberal e provocou a formagao de novas “ciéncias sociais”, igualmente decididas a compreender o desenvolvi- mento do capitalismo como um processo histérico e apenas acidental- Prefiicio e pés-escrito TT mente geogrdfico. Essa ascenséo de um historicismo desespacializante, que s6 agora comega a ser reconhecida e examinada, coincidiu com a segunda modernizagao do capitalismo e com a instauragéo de uma era de oligopdlio imperialista ¢ empresarial. Tamanho foi 0 sucesso com que ela ocluiu, desvalorizou e despolitizou 0 espago como objeto do discurso social critico, que até mesmo a possibilidade de uma praxis espacial emancipatéria desapareceu do horizonte por quase um século. Pouca coisa mudou no tocante 4 primazia teérica da historia em relagéo 4 geografia, durante a terceira modernizagao do capitalismo e a era subsegiiente de fordismo e administragdo estatal burocratica, que se estendeu aproximadamente desde a Revolugio Russa até o fim dos anos sessenta. A obsessdo do século XIX com o tempo e a histéria, como a denominaria Foucault, continuou a enquadrar 0 pensamento critico moderno. O primciro capitulo comega ¢ termina com a obser- vagao sintetizadora de Foucault: “O espago foi tratado como o morto, © fixo, 0 ndo-dialético, o imdvel. O tempo, ao contrario, foi a riqueza, a fecundidade, a vida e a dialética.~ Pequenos remoinhos de vivida imaginagao geografica sobreviveram fora das correntes principais do marxismo-leninismo e da ciéncia social positivista, mas eram dificeis de compreender e permaneceram decididamente periféricos. No fim da década de 1960, entretanto, com a instalagaéo de uma quarta modernizagao induzida pela crise, essa longa tradigdo critica moderna comegou a se alterar. Tanto 0 marxismo ocidental quanto a ciéncia social critica pareceram explodir em fragmentos mais hetero- géneos, perdendo grande parte de suas desconjuntadas coesdes ¢ centralidades. E, ao nos aproximarmos de outro fin de siécle, \ém surgido movimentos alternativos modernos para competir pelo controle dos perigos e das possibilidades emergentes num mundo contempora- neo reestruturado, Embora ainda sejam termos controvertidos e con- fusos, repletos de conotagdes dispares e amitde depreciativas, a pés-modernidade, a pés-modernizagao ¢ 0 pés-modernismo parecem, agora, ser meios apropriados de deserever essa reestruturagao cultural, politica e te6rica contemporanea, bem como de destacar a reafirmagao do espago que csté complexamente entremeada com cla. Inicialmente, desconfiado de uma pressa excessiva na “corrida para o pds”, bringuci por um momento com a idéia de criar um novo periddico, chamado Antipost,*? para combater nao apenas 0 pés-mo- 3. Uma alusao a revista Antipode, periddico dos gedgrafos radicais norte-ameri- canos, da qual o autor tem sido colaborador eventual além de membro do corpo editorial. (N.R.) 12 Geografias pos-modernas derismo, como também a gama multiplicativa de outros “ismos” prefixados por pos, desde o pos-industrialismo até o pés-estruturalis- mo. Agora, como se evidencia por meu compromisso com o titulo, estou mais 4 vontade com 0 rétulo epitético de pés-moderno e com seu anuncio intencional de uma transic4o, possivelmente marcante, no pensamento critico e na vida material. Continuo a encarar o periodo atual primordialmente como outra reestruturagao ampla e profunda da modernidade, e nio como uma ruptura completa ¢ uma substituigao de todo o pensamento progressista pés-Iluminismo, como proclamam alguns que se autodenominam de pés-modemistas (mas a quem melhor seria descrever, provavelmente, como antimodernistas). Também com- preendo o arisco antagonismo da esquerda moderna ao neoconserva- dorismo atualmente predominante ¢ 4 obscurante extravagancia da maioria dos movimentos pés-modernos. Mas estou convencido de que se perde um numero excessivamente grande de oportunidades ao descartar 0 p6s-modernismo como irremediavelmente reaciondrio. O desafio politico da esquerda pos-moderna, tal como 0 vejo, requer, em primeiro lugar, o reconhecimento e a interpretagao convin- cente da drastica ¢ amitide atordoante quarta modernizagao do capi- talismo, que vem ocorrendo na atualidade. Torna-se cada vez mais claro que essa reestruturagdo profunda nao pode ser compreendida, pratica e politicamente, apenas com os instrumentos e o discernimento convencionais do marxismo moderno ou da ciéncia social radical. Isso nao significa que esses instrumentos e esse discernimento precisem ser abandonados, como se apressaram a fazer muitos dos que antes estavam na esquerda moderna. Em vez disso, eles devem ser flexivel e adaptativamente reestruturados, para lidar de maneira mais eficaz com um capitalismo contemporaneo que, por sua vez, vem sendo mais flexivel e adaptativamente reconstituido. A politica reacionaria pés- moderna do reaganismo e do thatcherismo, por exemplo, deve ser diretamente confrontada com uma politica pés-moderna esclarecida de resisténcia e desmistificagio, uma politica que possa rasgar os enganosos véus ideoldgicos que hoje reificam e obscurecem, de novas e diferentes manciras, os instrumentos da exploragdo de classes, da dominagao sexual ¢ racial, da desautorizagao cultural ¢€ pessoal, ¢ da degradagéo do meio ambientc. Os debates sobre os perigos © as possibilidades da pés-modernidade devem receber adesao, € nao ser abandonados, pois o que estd em jogo é a construgao tanto da historia quanto da geografia. Nao proponho elaborar aqui um programa politico pos-moderno radical. Mas quero, efetivamente, certificar-me de que esse projeto, como quer que venha a se configurar, seja conscientemente espacia- Preficio e pés-escrito 1B lizado desde 0 comego. Devemos estar insistentemente cientes de como € possivel fazer com que o espago esconda de nds as conseqiiéncias, de como as relagdes de poder e disciplina se inscrevem na espaciali- dade aparentemente inocente da vida social, e de como as geografias humanas tornam-se repletas de politica e de ideologia. Cada um destes nove ensaios, por conseguinte, pode ser lido como uma tentativa de espacializagéo, como um esforgo posfaciado de compor uma nova geografia humana critica, um materialismo histérico e geografico sintonizado com os desafios politicos e tedricos contemporaneos. A critica direta do historicismo — sem tropegar numa anti-his- téria simplista — é um avango necessirio nessa espacializacio do pensamento critico e da agao politica. Os quatro primeiros ensaios viram pelo avesso a imponente tapegaria do historicismo, de modo a rastrear a submersio ¢ a eventual reafirmagio do espago na teoria critica social, através do encontro crescente entre as disciplinas e os discursos do marxismo moderno e da geografia moderna. A geografia nitidamente marxista que acabou por emergir desse encontro, bem como os marxismos franceses que tdo influentemente moldaram os debates tedricos, recebem uma atengdo especial, pois alimentaram quase que sozinhos um discurso critico em que o espago “teve importancia”, em que a geografia humana nao ficou inteiramente subordinada 4 imaginagao histérica. Nos capftulos 3 ¢ 4, volto os olhos para meus textos anteriores sobre a dialética sécio-espacial, a especificidade teérica do urbano ¢ o papel vital do desenvolvimento geograficamente desigual na sobre- vivéncia do capitalismo. Esses trés temas constituiram trampolins importantes para a reafirmagio do espago na teoria critica social, mediante a espacializagdo de conceitos ¢ modos de andlise marxistas fundamentais. Isoladamente, porém, esses capitulos talvez se afigurem um tanto superficiais, pois dependem quase que inteiramente da persuasao Idgica e da argumentagao tedrica afirmativa, revestidas da linguagem retorica de um marxismo bastante convencional. Os trés Ultimos ensaios tentam dar maior substancia empirica e interpretativa a esses argumentos, enquanto os dois primeiros ajudam a explicar suas origens histdricas e seu desenvolvimento. Nos capitulos 5 e 6, entre- tanto, tomo outro caminho de refor¢go e demonstragao, que aprofunda as “vinculagoes retroalivas” que vao da argumentagao teorica para 0 campo mais abstrato da ontologia. Sob muitos aspectos, esses capitulos intermediarios sao cruciais para toda a coletanea de ensaios. Também eles podem ser lidos em primeiro lugar, pata proporcionar uma introdugao diferente. A reafirmagao do espago e a interpretagdéo das geografias pdés- modernas nao sio apenas um foco de investigacdo empirica, atendendo 14 Geografias pos-modernas a demanda de uma atengao crescente para com a forma espacial na pesquisa social concreta ¢ na pratica politica esclarecida. Tampouco a reafirmagao do espago é simplesmente uma recomposi¢’o metaférica da teoria social, uma espacializagdo lingiiistica superficial que dé 4 geografia uma aparéncia de ter tanta importancia tedrica quanto a histéria. Levar o espago a sério exige uma desconstrugaéo e uma reconstituigao muito mais profundas do pensamento e da andlise criticos, em todos os niveis de abstragao, inclusive a ontologia. Sobretudo a ontologia, talvez, por ser nesse nivel fundamental de discussio existencial que as distorgdes desespacializantes do histori- cismo se ancoram com mais firmeza. O capitulo 5 inicia a desconstrugao ontolégica com algumas observagdes de um Nicos Poulantzas espacialmente redespertado, ecoando Lefebvre e¢ Foucault, acerca das ilus6es de espago ¢ tempo que caracterizaram a historia do marxismo ocidental. De especial importancia € a conceituagdo poulantziana da “matriz” espacial do Estado ¢ da sociedade como sendo, simultaneamente, 0 pressuposto ¢ a encamagao das relagdes de produgéo, um “arcabougo material primordial”, ¢ néo um simples modo de “representagéo™. Levo essas observag6es mais adiante, afirmando que duas ilusdes persistentes dominaram a tal ponto os modos ocidentais de encarar 0 espago, que bloquearam da interrogacao critica uma terceira geografia interpreta- tiva, a que reconhece a espacialidade como sendo, simultaneamente (14 vem essa palavra outra vez), um produto (ou resultado) social ¢ uma forga (ou meio) que modela a vida social: o discernimento crucial tanto para a dialética sdcio-espacial quanto para o materialismo histérico-geografico. A “ilusdo da opacidade” reifica 0 espago, induzindo a uma miopia que enxerga apenas uma materialidade superficial, formas concretizadas que s4o passiveis de pouco mais do que a mensuragéo e a descrigio fenoménica: fixas, mortas e nao-dialéticas — a cartografia cartesiana da ciéncia espacial. Por outro lado, a “ilusdo da transparéncia” desmaterializa o espago em ideagao e represen- tagiio puras, num modo de pensar intuitivo que também nos impede de ver a construgao social das geografias afetivas ¢ a concretizagao das relagdes sociais inserida na espacialidade, numa interpretagao do espago como uma “abstragao concreta”, num hieréglifo social semelhante 4 conceituagdo marxista da forma mercadoria. Os fild- sofos e os gedgrafos ha séculos tém tendido a oscilar entre essas duas ilus6es deformadoras, obscurecendo dualisticamente da visdo a construgao problematica e imbuida de poder das geografias, a espacializagao envolvente e instrumental da sociedade. Prefacio e pds-escrito 15 Romper com esse duplo vinculo implica uma luta ontologica pela restauragao da espacialidade existencial significativa do ser e da consciéncia humana, pela composigao de uma ontologia social em que 0 espago tenha importancia desde o mais remoto come¢o. Empenho-me nessa luta, primeiro, mediante uma reavaliacao critica das ontologias temporalmente distorcidas de Sartre e Heidegger, os dois teorizadores mais influentes do ser no século XX; e depois, no capitulo 6, mediante uma anédlise € uma extenséo da ontologia social reformulada da “estruturagdo espago-temporal” que vem sendo desenvolvida por An- thony Giddens. Tomando Giddens por base, pode-se ver com mais clareza uma topologia espacial existencialmente estruturada e um topos ligado ao ser-no-mundo, uma contextualizagao primordial do ser social numa geografia multiestratificada de regides nodais socialmente cria- das e diferenciadas, alojadas em muitas escalas diferentes em torno dos espagos pessoais mévcis do corpo humano e nos locais comuni- tdrios mais fixos dos assentamentos humanos. Essa espacialidade ontolégica situa o sujeito humano, de uma vez por todas, numa geografia formativa, e provoca a necessidade de uma reconceituagao radical da epistemologia, da construg¢ao teorica e da andlise empirica. Aconstrugdo de uma ontologia espacializada € tanto uma viagem de exploragdo ¢ descoberta geograficas quanto 0 sao os ensaios sobre Los Angeles ou as tentativas de revelar os siléncios criticos do historicismo. Ela ajuda a completar um mapa introdut6rio e indicativo da coletanea de ensaios, definindo seu alcance, mapeando seu campo interpretativo e identificando algumas das vias a serem percorridas. O quadro conjunto ainda estd incompleto, pois ainda resta muito a descobrir e explorar na reafirmagao contemporanea do espaco na teoria social, muito mais a caminhar para que possamos ter certeza do impacto e das implicagGes das Geografias pos-modernas. A despeito do expediente divertido de combinar um pés-escrito com um preficio, quero abster-me de fazer outras reflexdes restritivas e autocriticas sobre o produto final e, em vez disso, encerrar com alguns agradecimentos necessarios. Primeiro, cabe-me expressar mi- nha divida para com aqueles que optei por apresentar como pionciros das geografias pés-modernas: Michel Foucault, John Berger, Ernest Mandel, Fredric Jameson, Marshall Berman, Nicos Poulantzas, An- thony Giddens, David Harvey e, em especial, Henri Lefebvre, cujo insistente e inspirador senso de espacialidade fizeram com que cu me sentisse menos solitério durante a ultima década. Essas personalidades nunca se descreveram como gedgrafos pds-modernos, mas creio que © sdo e procuro explicar porqué, apropriando-me seletivamente de suas descobertas. 16 Geografias pés-modernas Uma vez que todos os nove ensaios se baseiam, em parte, em minha obra ja publicada, devo também agradecer aos editores ¢ organizadores dos seguintes livros e publicagdes, por me permitirem extrair excertos e reescrever livremente: New Models in Geography (org. de R. Peet e N. Thrift), Allen & Unwin (por partes dos capitulos | e 2); Annals of the Association of American Geographers e Antipode (pela maior parte dos capitulos 3 e 4); Social Relations and Spatial Structures (org. de D. Gregory e J. Urry), Macmillan Education Ltd. e St. Martin’s Press (pela primeira metade do capitulo 5); Environment and Planning A (pela primeira metade do capitulo 6); Environment and Planning D: Society and Space (pela metade regional do capitulo 7 © por quase todo o capitulo 9); e Economic Geography ¢ The Capitalist City (org. de M. Smith ¢ J. Feagin), Basil Blackwell (por boa parte do capitulo 8). A integra das referéncias pode ser encontrada na bibliografia. Somente 4 Universidade da Califérnia, em Los Angeles, é que tenho de agradecer o financiamento de minhas pesquisas ¢ meus textos dos tiltimos dez anos — e, mais ainda, a manutengéo de um ambiente académico singularmente estimulante, dentro ¢ em torno da Faculdade de Arquitetura e Planejamento Urbano. Meus colegas e alunos do Programa de Planejamento Urbano foram especialmente incentivado- Tes e tolerantes, arrastando-me de volta 4 realidade pratica todas as vezes que eu me aventurava longe demais pelos campos da abstragao espacial. Costis Hadjimichalis, Rebecca Morales, Goetz Wolff, Allan Heskin, Marco Cenzatti e Allen Scott foram co-autores de alguns dos artigos que recompus seletivamente nesta coletanea de ensaios; e tirei imenso proveito da agudeza editorial, das idéias estimulantes e das palavras de incentivo de Mike Davis e Margaret FitzSimmons. Sou grato a todos por suas contribuigdes. Finalmente, quero agradecer a Maureen, a mais prdtica, insis- tente € constante realista de todos. Ninguém ficou mais satisfeito do que ela com a conclusio deste livro. 1 HISTORIA: GEOGRAFIA: MODERNIDADE Tera comegado com Bergson ou antes? O espago foi tratado como © morto, 0 fixo, 0 nao-dialético, o imével. O tempo, ao contrario, era a riqueza, a fecundidade, a vida e a dialética. (Foucault, 1980, 70.) A grande obsessao do século XIX foi, como sabemos, a histori: com seus temas de desenvolvimento e suspensao, crise e ciclo, temas do passado em eterna acumulagao, com sua grande preponderancia de homens mortos ¢ da ameagadora glaciagéo do mundo. (...) A era atual talvez seja, acima de tudo, a era do espago. Estamos na era da simultancidade: estamos na cra da justaposigao, na cra do perto ¢ do longe, do lado a lado, do disperso. Estamos num momento, creio eu, em que nossa experiéncia do mundo é menos a de uma vida longa, que se desenvolve através do tempo, do que a de uma rede que liga pontos e faz intersecgdes com sua propria trama. Poder-se-ia dizer, talvez, que alguns conflitos ideolégicos que animam a polémica atual opdem os fiéis descendentes do tempo aos decididos habitantes do espago. (Foucault, 1986, 22.) A obsessao do século XIX com a hist6ria, como Foucault a descreveu, nao morreu no fin de siécle. Tampouco foi inteiramente substituida por uma espacializagdo do pensamento e da experiéncia. Uma episte- mologia essencialmente hi a continua a perpassar a consciéncia critica da moderna teoria social. Ela ainda compreende o mundo, primordialmente, através da dinamica decorrente do posicionamento do ser e do devir sociais nos contextos interpretativos do tempo: no que Kant chamava nacheinander', ¢ que Marx definiu, tao transfigu- 1. Sucessdo, seqiienciagao (um atras do outro). (N.T.) 17 18 Geografias pés-modernas rativamente, como a “construgéo da histéria”, contingencialmente limitada. Essa presenga epistemolégica duradoura preservou um lugar privilegiado para a “imaginagao historica” na definigéo da prépria natureza do discernimento e interpretagao criticos. Tao inamovivelmente hegeménico foi esse historicismo da cons- ciéncia teérica, que tendeu a obstruir uma igual sensibilidade critica a espacialidade da vida social, uma consciéncia pratico-teérica que vé 0 mundo vital do ser como algo criativamente localizado, no apenas na construgao da histéria, mas também na construgdo das geografias humanas, na produgio social do espago e na formagao e reformagio irrequietas das paisagens geogrdficas: o ser social ativamente posicio- nado no espago e no tempo, numa contextualizagéo explicitamente histérica e geograéfica. Embora outros tenham se aliado a Foucault para insistir numa reequilibragéo dessa priorizagaéo do tempo em relagao ao espago, ainda nao ocorreu nenhuma mudanga hegem@nica que permita ao olho critico — ou ao eu critico? — enxergar espacial- mente com a mesma aguda profundidade da visdo que provém do foco na durée. A hermenéutica critica ainda est4 envolta numa nartativa- mestra temporal, numa imaginagao historica, mas ainda nado equipa- ravelmente geogrdfica. Assim, o revelador olhar retrospectivo de Foucault para os tltimos duzentos anos continua a ser aplicavel hoje em dia. O espago ainda tende a ser tratado como fixo, morto ¢ nao-dialético, e 0 tempo, como a riqueza, a vida, a dialética e o contexto revelador da teorizagao social critica. A medida que nos acercamos do fim do século XX, entretanto, as observagGes premonitérias de Foucault sobre a emergéncia de uma “era do espago” assumem uma feigfo mais razodvel. Os contextos material e intelectual da moderna teoria critica social comegaram a se modificar drasticamente. Nos anos oitenta, as venerdveis tradigdes do historicismo que vé 0 espago com antolhos vém sendo questiona- das,3 com uma explicitude sem precedentes, pelas demandas conver- gentes por uma ampla espacializagéo da imaginagao critica. Uma geografia humana nitidamente pdés-moderna e critica vem tomando forma, reafirmando impetuosamente a importéncia interpretativa do espago nos confins historicamente privilegiados do pensamento critico contemporanco. A gcografia pode ainda nao ter desalojado a historia no cerne da teoria ¢ da critica contempordneas, mas hd uma nova ¢ 2. Perde-se na tradugio a homofonia do original entre critical eye (olho critico) e critical J (eu critico). (N.T.) 3. Observe-se que o presente livro foi publicado nos E.U.A. em 1989. (N.T.) Historia: geografia: modernidade vy animadora polémica na agenda teorica ¢ politica, uma polémica que anuncia maneiras significativamente diferentes de ver 0 tempo e © espago juntos, a interagdo da historia com a geografia, as dimens6es “verticais” e “horizontais” do ser-no-mundo, livres da imposigéo do privilégio categérico intrinseco. Continua facil demais, mesmo para os melhores dentre os “fiéis descendentes do tempo”, reagir a essas incdmodas intromiss6es pés- modernas com um aceno antidessituacionista de uma méo dominadora ainda confiante, ou com os bocejos presungosos da complacéncia do j4-vi-isso-tudo-antes. Em resposta, os intrusos decididos tendem, mui- tas vezes, a enfatizar demais suas colocagdes, criando uma aura contraproducente de anti-hist6ria e exagerando inflexivelmente o privilégio critico da espacialidade contemporanea, isolada de uma abrangéncia temporal que ¢ cada vez mais silenciada. Desses confron- tos polémicos, no entanto, também vem emergindo algo mais — uma teoria critica mais flexivel e equilibrada, que reenlaga a feitura da histéria com a produgdo social do espago, com a construgdo e a configuragaéo das geografias humanas. Novas possibilidades estao sendo geradas a partir desse entrelagamento criativo, possibilidades de um materialismo simultaneamente histérico e geografico; de uma dialética triplice de espago, tempo e ser social; e de uma reteorizagao transformadora das relagées entre a historia, a geografia e a moder- nidade. Ainda nao estamos sulicientemente seguros dessa espacializagao incipiente da teoria critica para fornecer uma exposigao epistemoldgica abrangente e confiante. No entanto, o desenvolvimento do que chamo geografias pés-modernas progrediu o bastante para mudar significati- vamente a paisagem matcrial do mundo contemporaneo e 0 campo interpretativo da teoria critica. E chegado o momento, portanto, ao menos de uma primeira rodada de avaliagdo receptiva desses dois contextos cambiantes da histéria e da geografia, da modernidade e da pdés-modernidade — um concretamente impresso no tecido empirico da vida contemporanea (a geografia pés-moderna do mundo material), € 0 outro ziguezagueando pelas manciras como damos sentido pratico ¢ politico ao presente, ao passado c ao futuro potencial (a geografia pos-modema da consciéncia social critica). Neste capitulo de abertura, pretendo tragar um percurso recon- figurativo através da historia intelectual da teoria critica social, desde 0 ultimo fin de siécle até o presente, destacando a narrativa oculta que instigou a reafirmagao contemporanea do espago. Minha intengao nao é apagar a hermenéutica historica, mas abrir e recompor o territorio da imaginagao historica através de uma espacializagao critica. Como 20 Geografias pés-modernas se evidenciaré em cada um dos capitulos seguintes essa reafirmagao do espago na teoria critica social é um exercicio de desconstrugao e de reconstituigéo. Nao pode ser executado, simplesmente, em se juntando pontos espaciais realgados a perspectivas criticas herdadas, e depois recostando numa poltrona para observar como eles brilham com convicgao légica. Primeiro, & preciso afrouxar a gravata de um historicismo ainda viciador. A tarefa narrativa ¢ eficazmente descrita por Terry Eagleton em Against the Grain [A contragosto] (1986, 80): “Desconstruir”, portanto, é reinscrever ¢ ressituar as significagdes, os acontecimentos e os objetos em movimento e estruturas mais amplos; é, por assim dizer, virar pelo avesso a tapecaria imponente, para expor em todo o seu confuso emaranhamento, desprovido de qualquer glamour, os fios que compéem a préspera imagem que ela expde ao mundo. LOCALIZANDO AS ORIGENS DAS GEOGRAFIAS POS-MODERNAS As primeiras vozes insistentes da geografia critica humana pos-moderna surgiram no fim dos anos sessenta, porém mal se fizeram ouvir no alarido temporal vigente. Por mais de uma década, 0 projeto espacializante continuou estranhamente emudecido pela reafirmagao tranqiila da primazia da historia sobre a geografia, que abarcava tanto © marxismo ocidental quanto a ciéncia social liberal numa visio praticamente santificada do passado eternamente cumulativo. Um dos quadros mais abrangentes e convincentes dessa contextualizagéo con- tinuamente histérica foi tragado por C. Wright Mills em seu retrato modelar da imaginagao socioldgica (Mills, 1959). O trabalho de Mills oferece um proveitoso ponto de partida para a espacializagio da narrativa historica e a reinterpretagdo do curso da teoria critica social. A espacialidade silenciada do historicismo Mills mapeia uma imaginagao socioldgica profundamente enrai- zada numa racionalidadc histérica — o que Martin Jay (1984) chamaria de “totalizagao longitudinal” — que se aplica igualmente bem 4 ciéncia social critica € as tradigdes criticas do marxismo. Historia: geografia: modernidade 21 {A imaginagao sociolégica] é uma qualidade mental que ajuda [os individuos] a usarem a informacao e desenvolverem 0 raciocinio de modo a chegarem a sumirios hicidos do que esté ocorrendo no mundo e do que pode estar acontecendo dentro deles. (1959, 11.) O primeiro fruto dessa imaginagéo — e as primeiras ligGes da ciéncia social que o incorpora — consistem na idéia de que o individuo sé € capaz de compreender sua propria experiéncia ¢ aferir seu proprio destino ao se situar dentro de seu periodo, de que cle s6 pode conhecer suas proprias oportunidades na vida ao se conscientizar das de todos os individuos em sua situagao. (...) Temos conhecimento de que todo individuo vive, de geragdo em gerago, em alguma sociedade; de que vive uma biografia, e de que a vive dentro de alguma seqiiéncia histérica. Pelo fato de viver ele contribui, da mais infima maneira que seja, para a conformagio dessa sociedade e para 0 curso da histéria, ao mesmo tempo que é feito pela sociedade e por seus avancos e empurrdes histéricos. (12) E ele vai adiante: A imaginagdo socioldgica nos permite apreender a histéria e a biografia e as relagdes entre ambas na sociedade. Essa é sua tarefa e sua promessa. Reconhecer essa tarefa e essa promessa é a marca do analista social classico. (...) Nenhum estudo social que ndo retorne aos problemas da biografia, da histéria e de suas intersecgdes na sociedade completa sua jornada intelectual. (Ibid., grifo nosso.) Recorro 4 descrigéo de Mills do que é essencialmente a imaginagao histérica para ilustrar a Idgica atraente do historicismo, a redugado racional do sentido e da agdo 4 constituigao e 4 experiéncia temporais do ser social. Essa ligacdo entre a imaginagdo histérica e o historicismo requer uma elaboragao adicional. Primeiramente, existe a questao mais simples de determinar por que “sociolégico” transmudou-se em “his- térico”. Como assinala o préprio Mills, “todo sapateiro acha que o couro € tudo”; e, como socidlogo treinado, Mills nomeia seu couro segundo sua prépria especializagéo ¢ socializagéo disciplinares. A escolha nominal especifica pessoalmente 0 que € uma “qualidade mental” muito mais amplamente compartida, que Mills alega que deve permear, ou, a rigor, incorporar toda a teoria ¢ andlise sociais, uma racionalidade emancipatéria fundamentada nas intersecgdes da hist6- ria, da biografia e da sociedade. Sem divida, essas “histérias de vida” tém também uma geogra- fia; tem ambientes, locais imediatos e localizagdes provocativas que afetam o pensamento e a acgdo. A imaginagao histérica nunca é 22 Geografias pés-modernas completamente desprovida de espago, e os historiadores sociais criticos escreveram e continuam a escrever algumas das melhores geografias do passado. Mas séo sempre o tempo e a historia que fornecem os “continentes varidveis” primordiais nessas geografias. Isso parece igualmente claro, quer a orientagao critica seja descrita como socio- Idgica, quer como politica ou antropolégica — ou, a rigor, fenome- noldgica, existencial, hermenéutica ou materialista histérica. As énfa- ses especificas podem diferir, mas a perspectiva geral é compartilhada. Uma geografia jd pronta prepara o cendrio, enquanto a construgao intencional da histéria dita a agdo e define o roteiro. importante frisar que essa imaginacao histérica tem sido particularmente central na teoria social critica, na busca de uma compreenséo prdtica do mundo como meio de emancipagéo, em contraste com a manutengao do status quo. As teorias sociais que meramente racionalizam as condigées existentes ¢, com isso, servem Para promover 0 comportamento repetitivo, a reprodugao continua das praticas sociais aceitas, néo se enquadram na definigfo da teoria critica. Podem nao ser menos precisas no tocante aquilo que descre- vem, mas sua racionalidade (ou irracionalidade, a rigor) tende a ser mecanica, normativa, cientifica ou instrumental, em vez de critica. Foi justamente o valor critico e potencialmente emancipatério da imaginagao historica, de pessoas “que fazem a historia”, em vez de presumi-la como certa, que a tornou téo compulsivamente atraente. A constante reafirmagao de que o mundo pode ser modificado pela agao humana, pela praxis, sempre foi o eixo central da teoria social critica, sejam quais forem sua fonte e sua énfase particularizadas. O desenvolvimento da teoria social critica girou em tomo da afirmacdo de uma hist6ria mutavel, em oposicao a perspectivas ¢ praticas que mistificam a mutabilidade do mundo. O discurso histérico critico se coloca, portanto, contra as universalizagdes abstratas e transhistoricas (inclusive as nogdes de uma “natureza humana” geral, que explica tudo ¢ nada ao mesmo tempo); contra os naturalismos, os empirismos e os positivismos que proclamam as determinagées fisicas da historia, separadas das origens sociais; contra os fatalismos reli- giosos ¢ ideoldégicos que projetam determinagées e teleologias espiri- tuais (mesmo quando sao transmitidos revestindo-se da consciéncia humana); ¢ contra toda ¢ qualquer conceituagaéo do mundo que congele a frangibilidade do tempo, a possibilidade de se “quebrar” ¢ refazer a histéria. Tanto o atraente discernimento critico da imaginagao histérica quanto sua necessidade continua de ser vigorosamente defendida contra as mistificagdes desvirtuadores contribuiram para a sua asser¢ao Historia: geografia: modernidade 23 exagerada como historicismo. O historicismo tem sido convencional- mente definido de muitas maneiras diferentes. Em Keywords [Pala- vras-chave] de Raymond Williams (1983), por exemplo, apresentam-se trés alternativas contemporaneas, que ele descreve como: (1) “neutro” — método de estudo que usa fatos do passado para rastrear os antecedentes dos acontecimentos atuais; (2) “deliberado” — énfase nas condigdes e contextos histéricos varidveis como estrutura privile- giada para a interpretagdo de todos os eventos especificos; e (3) “hostil” — um ataque a todas as interpretagdes e previsGes baseadas em nogées de necessidade histérica ou em leis gerais do desenvolvi- mento histérico. Quero dar um toque adicional a essas opgées, definindo o historicismo como uma contextualizagao histérica hiperdesenvolvida da vida social ¢ da teoria social, que obscurece ¢ periferaliza ativa- mente a imaginagao geogrdfica ou espacial. Essa definigéo nao nega o poder e a importancia extraordindrios da historiografia como moda- lidade de discernimento emancipatério, mas identifica o historicismo com a criagao de um siléncio critico, com uma subordinagao implicita do espago ao tempo, que tolda as interpretagdes geogrdficas da mutabilidade do mundo social e se intromete em todos os niveis do discurso tedrico, desde os mais abstratos conceitos ontolégicos do ser até as explicagdes mais detalhadas dos acontecimentos empiricos. Essa definigdo talvez se afigure muito estranha, quando compa- rada a longa tradigdo de debate acerca do historicismo, que floresceu durante séculos.* A incapacidade desse debate de reconhecer a singular periferalizagao tedrica do espago, que acompanhou até as formas mais neutras do historicismo, entretanto, foi justamente o que comegou a ser descoberto no fim dos anos sessenta, nos titubeantes primérdios do que denominei de geografia humana critica pés-moderna. Jé nessa ocasiao, as correntes principais do pensamento social critico tinham se 4. Ver Popper (1957), Eliade (1959), Lowith (1949), Cohen (1978) e Rorty (1980), para ter uma amostra de abordagens muito diferentes do historicismo. Rorty, em Philosophy and the Mirror of Nature [A filosofia € 0 espelho da natureza] (9), tece interessante comentério de que a filosofia cartesiano-kantiana tradicional foi “uma tentativa de escapar da hist6ria ... para descobrir as condigdes nao-histéricas de qualquer acontecimento histérico possivel”. As figuras centrais da filosofia analitica do século XX adotadas por Rory — Wittgenstein, Dewey e Heidegger — so ent&o apresentadas como revigorantemente historicistas. Rorty acrescenta: “A moral deste livro também € historicista” (10). A geografia humana, como & caracteristico, desaparece quase por completo nesse moderno espelhamento da natureza, a nfo ser como um reflexo arcaico. 24 Geografias pés-modernas tornado tao cegas para o espaco, que as mais vigorosas reafirmagoes do espago em contraposigao ao tempo, da geografia em contraposigao 4 histéria, surtiram pouco efeito. A disciplina académica da geografia moderna, aquela altura, fora imobilizada em termos teéricos e pouco contribuiu para essas primeiras reafirmagdes. E, quando alguns dos mais influentes criticos sociais da época davam uma guinada espacial ousada, isso néo apenas costumava ser visto pelos nao-convertidos como algo inteiramente diferente, mas os préprios executores da virada preferiam, muitas vezes, abafar suas criticas ao historicismo, a fim de serem minimamente compreendidos. Somente algumas vozes particularmente vigorosas ressoaram através do historicismo ainda hegeménico dos ultimos vinte anos, tornando-se pionciras do desenvolvimento da geografia pés-modcema. A mais persistente, insistente ¢ cocrente dessas vozes espacializadoras pertenceu ao filésofo marxista francés Henri Lefebvre. Sua teorizagao critica da produgao social do espago ird entremear-se com todos os capitulos subseqiientes. Aqui, no entanto, pretendo fazer excertos e¢ fornecer uma imagem dos projetos espacializantes de outros dois tedricos criticos, Michel Foucault e John Berger, cujas geografias pos-modernas assertivas foram basicamente ocultadas da visao por sua identificagao mais cémoda ¢ mais conhecida como historiadores. A ambivalente espacialidade de Michel Foucault As contribuigdes de Foucault para o desenvolvimento da geo- grafia humana critica devem ser arqueologicamente desencavadas, pois ele enterrou sua virada espacial precursora em brilhantes volteios de discernimento histérico. Sem diivida, ele resistiria a ser chamado de gedgrafo pds-moderno, mas o foi, malgré lui,’ desde a Histdria da loucura na idade cldssica (1961) até suas ultimas obras sobre a Histdria da sexualidade (1978). Suas observagoes mais explicitas ¢ reveladoras sobre a importancia relativa do espago ¢ do tempo, entretanto, aparecem, nao em suas grandes obras publicadas, mas sim, de maneira quase inécua, em suas palestras c, apds algumas indagagoes persuasivas, em duas entrevistas reveladoras: “Questions on Geogra- phy~ [Perguntas sobre geografia] (Foucault, 1980) e “Space, Know- ledge, and Power” [Espago, saber e poder] (Rabinow, 1984; ver também Wright e Rabinow, 1982). 5. "A despeito de si mesmo”, em francés no original. (N.T.) Hist ja: geografia: modernidade 25 As memordveis observag6es que encabe¢gam este capitulo, por exemplo, foram inicialmente feitas numa palestra de 1967, intitulada “Des espaces autres”. Permaneceram praticamente nao vistas e nao ouvidas por quase vinte anos, até sua publicagao no periddico francés Architecture-Mouvement-Continuité, em 1984, e, traduzidas por Jay Miskowiec como “Of Other Spaces”, em Diacritics (1986). Nessas anotagdes de aula, Foucault destacou sua nogdo de “heterotopias” como sendo os espagos caracteristicos do mundo moderno, substituin- do o hierdrquico “conjunto de lugares” da Idade Média e 0 envolvente “espago de localizagao” inaugurado por Galileu e infinitamente des- dobrado no “espago de extensio” e medida do modemo primitivo. Afastando-se do “espago interno” da brilhante poética de Bachelard (1969) e das descrigées regionais intencionais dos fenomenologistas, Foucault concentrou nossa atengéo numa outra cspacialidade da vida social, num “espago externo” — o espago efetivamente vivido (c socialmente produzido) dos locais e das relagGes entre eles: O espago em que vivemos, que nos retira de nods mesmos, no qual ocorre o desgaste de nossa vida, nossa época e nossa historia, o espago que nos dilacera ¢ corrdi, é também, em si mesmo, um espago heterogéneo. Em outras palavras, nao vivemos numa espécie de vazio dentro do qual possamos situar individuos ¢ coisas. Nio vivemos num vazio passivel de ser colorido por matizes variados de luz, mas num conjunto de relagdes que delineia localizagdes irredutiveis umas as outras e absolutamente nao superponiveis entre si. (1986, 23) Esses espagos heterogéneos de localizagdes e relagdes — as hetero- topias de Foucault — sao constituidos em todas as sociedades, mas assumem formas muito variadas ¢ se modificam ao longo do tempo, 4 medida que “a historia se desdobra” em sua espacialidade inerente. Foucault identifica muitos desses locais: 0 cemitério € a igreja, o teatro € o jardim, o muscu € a biblioteca, a feira ¢ a “cidade das férias”, 0 quartel e a prisdo, 0 hammam mugulmano e€ a sauna escandinava, 0 bordel ¢ a col6nia. Ele contrasta esses “lugares reais” com os “espagos fundamentalmente irreais” das utopias, que apresentam a sociedade numa “forma aperfeigoada” ou “virada de cabega para baixo”: A heterotopia é capaz de superpor num unico lugar real diversos espagos, diversos locais que em si sio incompativeis (...) eles tém uma fun¢gdo em relacao a todo o espaco restante. Essa funcao se 6. “Espagos outros” ou “Espacos diferentes”. (N.T.) 26 Geografias pés-modernas desdobra entre dois pélos extremos. Ou seu papel consiste em criar um espaco de iluséo que expde todos os espagos reais, todos os lugares em que se divide a vida humana, como ainda mais ilusérios (...) Ou entao, ao contrario, seu papel consiste em criar um espa¢o outro, um outro espaco real, to perfeito, meticuloso e bem disposto quanto o nosso é desarrumado, mal construido e confuso. Este tltimo tipo seria a heterotopia, nao da ilusao, mas da compensagao, e me pergunto se algumas colénias nao terao funcionado um pouco dessa mancira. (1986, 25, 27) Com esses comentérios, Foucault expés muitos dos instigantes rumos que iria tomar no trabalho de sua vida inteira €, indiretamente, levantou um poderoso argumento contra o historicismo — e contra as aborda- gens vigentes do espago nas ciéncias humanas. O espaco heterogéneo e relacional das heterotopias de Foucault nao € nem um vazio despro- vido de substancia, a ser preenchido pela intui¢éo cognitiva, nem um repositério de formas fisicas a ser fenomenologicamente descrito em toda a sua resplandecente variabilidade. Trata-se de um espago outro, daquilo que Lefebvre descreveria como |espace vécu, a espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada, simultaneamente concreta e abstrata, a contextura das praticas sociais. E um espago raramente visto, pois tem sido obscurecido por uma visio bifocal que, tradicio- nalmente, encara 0 espago como um constructo mental ou como uma forma fisica — uma ilusdo dual que discuto mais detalhadamente no capitulo 5. Para ilustrar sua interpretagdo inovadora do espago e do tempo ¢ para esclarecer algumas das polémicas, amitide confusas, que vinham surgindo em torno dela, Foucault se voltou para os debates ento corriqueiros sobre o estruturalismo, uma das mais importantes vias do século XX para a reafirmagéo do espago na teoria social critica. Foucault insistiu vigorosamente em que ele préprio nao era (apenas?) um estruturalista, mas reconhecia, no desenvolvimento do estrutura- lismo, uma visdo diferente e instigante da historia e da geografia, uma reorientagao critica que estava vinculando 0 espago e o tempo de maneiras novas e reveladoras. O estruturalismo, ou, pelo menos, aquilo que se reine sob essa denominagao um tanto genética demais, é 0 esforco de estabelecer, entre elementos que poderiam ligar-se num eixo temporal, um conjunto de relagdes que faz com que eles aparegam justapostos, contrabalangados uns com os outros, em suma, como uma espécie de configuragéo. Na verdade, o estruturalismo nao implica uma Histéria: geografia: modernidade 27 negagao do tempo; implica uma certa maneira de lidar com 0 que chamamos tempo e com o que chamamos histéria. (1986, 22) Essa “configuragao” sincronica € a espacializagao da historia, a feitura da historia entremeada com a produgdo social do espago, a estruturagao de uma geografia historica.’ Foucault se recusou a projetar sua espacializagéo como uma anti-historia, mas sua historia foi provocadoramente espacializada desde o comego. Isso nao constituiu uma simples mudanga de prefe- réncia metaférica, como freqiientemente parecia acontecer com Althusser e outros, que estavam mais 4 vontade com o rétulo de estruturalistas do que Foucault. Tratou-se da abertura da histéria para uma geografia interpretativa. No intuito de enfatizar o cardter central do espago para o olhar critico, especialmente no tocante ao momento contemporaneo, Foucault tornou-se sumamente explicito: Seja como for, creio que a angistia de nossa era esta fundamental- mente relacionada com o espago, sem divida muito mais do que com o tempo. Provavelmente, 0 tempo se nos afigura como sendo apenas uma das vérias operagées distributivas possivets dos elemen- tos dispostos no espago. (Ibid., 23) Ele nunca voltaria a ser tao explicito. A espacializagéo de Foucault assumiu uma postura mais demonstrativa do que declaratoria, talvez confiando em que ao menos os franceses compreendessem a inten- gao e a importancia de sua historiografia admiravelmente espacia- lizada. Numa entrevista realizada pouco antes de sua morte (Rabinow, 1984), Foucault rememorou sua exploragéo “Dos espagos outros”® e as reagdes enfurecidas que ela provocou naqueles que ele certa vez identificara como os “fiéis descendentes do tempo”. Ao Ihe indagarem se 0 espago era central para a andlise do poder, respondeu: 7. A suposta “negacio” da histéria no estruturalismo desencadeou um ataque quase manfaco contra seus principais proponentes, por parte dos que estavam mais rigidamente imbuidos de um historicismo emancipatério. O que Foucault sugere, entretanto, € que o estruturalismo néo consiste numa.anti-histria, mas numa tentativa de lidar com a historia de mancira diferente, como uma configuragao espago-temporal, simultanea ¢ interativamente sincrénica e discrénica (para usar- mos a oposic¢ao categdrica convencional). 8. O autor utiliza aqui o titulo da tradugdo em inglés do trabalho de Foucault. (N.T.) 28 Geografias pés-modernas Sim. O espago é fundamental em qualquer forma de vida comu- nitdria; o espago é fundamental em qualquer exercicio do poder. Fazendo uma observagao entre parénteses, lembro-me de ter sido convidado por um grupo de arquitetos, em 1966, para fazer um estudo do espago, de algo que, na época, eu chamava de “heteroto- pias”, esses espagos singulares encontrados em determinados espagos sociais, cujas fungdes sao diferentes ou até opostas a outras. Os arquitetos trabalharam nisso ¢, ao final do cstudo, ergueu-se uma voz — de um psicélogo sartreano — que me bombardeou, dizendo que 0 espago eta reacionario e capitalista, mas a histéria e 0 devir eram revoluciondrios, Esse discurso absurdo nao era nada inco- mum nessa ocasido. Hoje em dia, todos se contorceriam em gargalhadas diante de um pronunciamento desses, mas nado naquela época. Em meio as gargalhadas atuais — ainda nao tao difundidas e convul- sivas quanto Foucault presumiu que seriam —, é possivel olhar para turds e ver que Foucault explorou persistentemente aquilo a que chamou “intersecgdo fatal entre o tempo e o espago”, do primeiro ao ultimo de seus textos. E 0 fez, como sé agora comegamos a perceber, imbuido da perspectiva emergente de uma geografia humana critica pés-histo- ricista ¢ pés-moderna. Poucos conseguiram enxergar a geografia de Foucault, entretan- to, uma vez que ele nunca deixou de ser historiador, nunca rompeu seu compromisso com a identidade mestra do moderno pensamento critico. Ser rotulado de gedgrafo era uma maldigao intelectual, uma associacdo aviltante com uma disciplina académica tao distanciada das grandes matrizes da teoria social e da filosofia modernas, que se afigurava fora do ambito da importancia critica. Foucault teve de ser persuadido a reconhecer sua vinculagao formativa com a perspectiva espacial do gedgrafo, a admitir que a geografia sempre estivera no cerne de suas preocupagées. Esse reconhecimento retrospectivo surgiu numa entrevista com os editores do periddico francés de geografia radical intitulado Herodote, c foi publicado em inglés como “Perguntas sobre Geografia", em Power/Knowledge (Foucault, 1980). Nessa entrevista, Foucault se estendeu sobre as observagGes. que fizera em 1967, mas sé depois de ser impelido a fazé-lo pelos entrevis- tadores. A principio, Foucault ficou surpreso — e irritado — quando seus entrevistadores Ihe perguntaram por que havia silenciado tanto sobre a importancia da geografia e da espacialidade em suas obras, a despeito da utilizagaéo profusa de metdforas geogrdficas e espaciais. Os entre- vistadores Ihe sugeriram: Historia: geografia: modernidade 29 Se a geografia fica invisivel ou nado apreendida na 4rea de suas exploragdes e escavagoes, talvez isso se deva a abordagem delibe- radamente histérica ou arqueoldgica, que privilegia o fator tempo. Assim, encontra-se em sua obra uma preocupagdo rigorosa com a periodizagao, que contrasta com o cardter vago de suas demarcagGes espaciais. Foucault reagiu imediatamente através do desvio e¢ da inversao, devolvendo a seus entrevistadores a responsabilidade pela geografia (embora recordasse os criticos que 0 censuravam por sua “obsessao metaf6rica” com o espago). Apos mais algumas perguntas, entretanto, admitiu (outra vez?) que o espago fora desvalorizado durante gerag6es pelos filésofos e pelos criticos sociais, reafirmou a espacialidade intrinseca do poder/saber, e terminou com uma meia-volta: Gostei dessa discussio com vocés por ter mudado de idéia desde que comegamos. Devo admitir que achei que vocés estavam exigindo um lugar para a geografia, como os professores que protestam, quando se propée uma reforma educacional, por haver um corte no numero de horas para as ciéncias naturais ou a musica. (...) Agora, percebo que os problemas que vocés me estéo formulando sobre a geografia sdo problemas cruciais para mim. A geografia funcionou como 0 esteio, a condigaéo de possibilidade da passagem entre uma série de fatores que tentei relacionar. No que concerne 4 geografia em si, deixei a questéo em suspenso, ou estabeleci uma série de ligagGes arbitrarias. (...) A geografia deve estar, realmente, no cerne de meus interesses. (Foucault, 1980, 77) Aqui, a argumentagao de Foucault toma um novo rumo, indo de um simples olhar para “outros espagos” ao questionamento das origens “dessa desvalorizagio do espago que tem prevalecido por geragdes™. E nesse ponto que ele tece o comentirio anteriormente citado sobre a abordagem pos-bergsoniana do espago como passivo e sem vida, € do tempo como riqueza, fecundidade e dialética. Ai estavam, portanto, os ingredientes inquisitivos para um ataque direto ao historicismo como fonte da desvalorizagéo do espago, mas Foucault tinha outras coisas em mente. Num aparte revelador, ele rumou por uma via integradora, e nao desconstrutiva, atendo-se a sua histéria mas acrescentando-lhe o nexo crucial que perpassaria toda a sua obra: 0 elo entre o espaco, o saber e 0 poder: Para todos os que confundem a histéria com os antigos esquemas da evolucao, da continuidade da vida, do desenvolvimento organico, do progresso da consciéncia ou do projeto existencial, o emprego 30 Geografias pés-modernas de termos espaciais parece ter um ar de anti-histéria. Se alguém comegava a falar em termos de espago, isso significava que era hostil ao tempo. Significava, como dizem os tolos, que ele “negava a historia”, que era um “tecnocrata™. Eles néo entendiam que recons- tiuir as formas de implantagio, delimitagio e demarcagao dos objetos, os modos de classificagéo, a organizagdo dos dominios, equivalia a por em relevo os processos — histéricos, é desnecessirio dizer — do poder. A descrigao espacializante das realidades discur- sivas se abre para a anilise dos efeitos correlatos do poder. (Ibid.) Em “The Eye of Power” [O olho do poder], publicado como prefécio a Jeremy Bentham, La Panoptique (1977) ¢ reproduzido em Po- wer/Knowledge (Foucault, 1980, org. de Gordon, 149), ele reafirma seu projeto ecuménico: Resta escrever toda uma historia dos espagos — que seria, ao mesmo tempo, a historia dos poderes (os dois termos no plural) —, desde as grandes estratégias da geopolitica até as pequenas titicas do habitat. Assim, Foucault adia uma critica direta ao historicismo com uma aguda olhadela lateral, ao mesmo tempo mantendo seu projeto espa- cializante, mas preservando sua postura historica. “A historia ha de nos proteger do historicismo”, conclui ele, otimisticamente (Rabinow, 1984, 250). Voltarei 4 provocante espacializagéo foucaultiana do poder em capitulos posteriores. Por enquanto, utilizo sua obra para ilustrar uma carreira quase invisivel, mas mesmo assim formativa, na geografia humana critica pos-modema, uma carreira subtraida ao reconhecimen- to explicito como geogrdfica pela persistente hegemonia do histori- cismo. Outra geografia (histérica) similarmente oculta pode ser en- contrada nos textos de John Berger, um dos mais influentes e inova- dores criticos de arte que atualmente escrevem em inglés. Contemplando o espaco pelos olhos de John Berger Tal como Foucault, John Berger repisa a intersecgdo entre tempo e€ espago em praticamente todos os seus textos. Dentre suas obras mais recentes encontra-se uma pega intitulada A Question of Geography (Uma questéo de geografia] e um volume personalizado de poesia e prosa que concebe o amor visualmente, com o titulo And our faces, my heart, as brief as photos [E nossos rostos, meu cora¢ao, breves Historia: geografia: modernidade 31 como fotos] (Berger, 1984). Simbolizando seu insistente balango entre historia e geografia, linhagem e paisagem, periodo e¢ regiao, Berger inicia esse pequeno volume com a afirmagao: “A Parte I é sobre 0 Tempo. A Parte II, sobre o Espago.” Os temas inclusivos seguem-se em consonancia com isso: a primeira parte, rotulada de “Um dia”, ¢ a segunda, de “Aqui” — nenhuma intrinsecamente privilegiada, ambas necessariamente lapidadas em conjunto. Mas Berger realmente faz uma op¢ao explicita, em pelo menos um de seus textos anteriores, ¢ é sobre essa escolha afirmativa que desejo concentrar a atencao. No que ainda hoje permanece, talvez, como a declaragao mais direta do fim do historicismo, esse que ¢ o mais espacialmente visiondrio dos historiadores da arte — ousariamos chamé-lo gedgrafo da arte? — conclama abertamente a uma espacializagéo do pensamcnto critico. No seguinte trecho, extraido de The Look of Things [A aparéncia das coisas] (1974, 40), Berger condensa a esséncia das geografias pés-modernas numa estética espacialmente politizada: Ouve-se muita coisa sobre a crise do romance moderno. O que isso envolve, fundamentalmente, é uma mudanca no modo de narragdo. Ja € quase impossivel contar uma historia direta que se desdobre seqiiencialmente no tempo. E isso se deve a estarmos por demais cientes daquilo que esté o tempo todo a perpassar colateralmente o fio da narrativa. Em outras palavras, cm vez de estarmos cénscios de um ponto como uma parte infinitamente pequena de uma reta, estamos cénscios dele como uma parte infinitamente pequena de um numero infinito de linhas, como o centro de uma estrela de linhas. Essa consciéncia resulta de sermos constantemente forgados a levar em conta a simultaneidade e a extensao dos acontecimentos e das possibilidades. Ha inumeras raz6es para isso: a amplitude dos modernos meios de comunicagao; a escala do poder moderno; o grau de responsabi- lidade politica pessoal a ser aceita por eventos ocorridos no mundo inteiro; o fato de o mundo ter-se tornado indivisivel; a desigualdade do desenvolvimento econémico nesse mundo; e a escala da explo- racdo. Todos eles desempenham um certo papel. A profecia, agora, implica uma proje¢ao mais geogrdfica do que histérica; é 0 espago, e ndo o tempo, que nos oculta as conseqiiéncias. Hoje em dia, para profetizar, é necessdtio apenas conhecer os homens [e as mulheres] tal como sao no mundo inteiro, em toda a sua desigualdade. Qualquer narrativa contemporanea que ignore a urgéncia dessa dimensao é¢ incompleta e adquire o cardter supersimplificado de uma fabula. (Grifos e colchetes meus.) Essa passagem arguta salta de um ensaio sobre a moderna pintura de retratos, no qual Berger tenta explicar por que a importancia

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