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Lefebvre, Henri Espago politica / Henri Lefebvre; Tradusio Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins, ~ Belo Horizonte: Editora UEMG, 2008. 192 p. il (Humanitas Pocket) Inclui bibliografia, ISBN: 978-85-7041-687-2 ‘Tradugio de; Le droit la ville: suivi de Rspace et politique. 1. Filosofia. 2. Ciéncias sociais. 3, Economia, 4. Urbanizagio. I, Andrade, Margarida Maria de. IL. Martins, Sérgio. Il. Thulo. IV, Série, TaasdPm cop: 1 CDU: 100 CIO Blaborada pela CCQC-Central de Controle de Qualidade da Catalogagao da ‘Biblioteca Universtiria da UFMG Este livro contou com apoio financeiro do CNPq. Editoracao de textos: Maria do Carmo Leite Ribeiro Revisio de texto e normalizacio: Marcia Romano Projeto grifico: Céssio Ribeiro Revisio de provas: Alexandre Vasconcelos de Melo Produgdo griflea: Warren Marilac Formatagio e montagem de capa: Diego Oliveira Imagem de capa: Detalhe da fotografia Bulls and bears, de Orla Schantz, fotografia Ciclico, de Camila Pereira M. ditora UEMG A AntOnio Carlos, 6627 ~ Ala direita da Biblioteca Central - Térreo (Campus Pamputha ~ CEP 31270-901 ~ Belo Horizonte/MG ‘Tel: +55 (31) 3409-4650 Fax: + 55 (31) 3409-4768 wormeditor.uimgbr ——editora@ufmgbr SACI A TRADUCAO BRASILEIRA ;ODUCAO, © ESPACO, REFLEXOES SOBRE A POLITICA DO ESPACO ‘A CIDADE © URBANO ENGELS E A UTOPIA AS INSTITUIGOES DA SOCIEDADE “POS-TECNOLOGICA’ A BURGUESIA E © ESPACO. A CLASSE OPERARIA E © ESPACO NOTAS, SUMARIO 06 7 36 58 719 89 106 146 164 178 ; ___PREFACIO A TRADUGAO BRASILEIRA Espago ¢ politica,’ originalmente publicado em 1972, no se resume a um conjunto de textos reunidos por Henri Lefebvre a respeito das pesquisas sobre a cidade e o urbano nas quais se debrugava mais detidamente desde fins dos anos 1960. Nas suas préprias palavras, “este pequeno livro, € os que o acompanham ou o sucedem, nao anula os precedentes, senao de forma dialética: ele os retoma tentando situd-los num nivel mais elevado”. O que ele anunciou nesse livro foi a elaboragio de uma teoria sobre a problematica do espaco. Segundo Lefebvre, essa teoria (que viria a desenvolver plenamente em obra posterior)? exige abordar o espaco de maneira diferente da efetuada pelas ciéncias existentes, que o recortam, o fragmentam, 0 analisam, mas nao chegam a atingir uma sintese superior, dialética, pois deixam na sombra a reprodugiio das relagées sociais de produgao. Pior que isso: segundo 0 fildsofo, as cigncias, enquanto estiverem fortemente embebidas pela ideologia do produtivismo, “do crescimento ilimitado no quadro sociopolitico do capitalismo’, nao apenas se fragmentagdes como as reforcam. Este aspecto lo” pela propria reflexao epistemoldgica, ou seja, 10 cega das ciéncias a reprodugao das relagdes deve ser enfrentado pela critica radical. “Aqui contra a grande idéia de Marx: 0 conhecimento da sociedade existente coincide com a critica sociedade, com a refutacao de suas ideologias, com se coerente de suas contradigées” isso, é fundamental considerar a produgao numa ‘io mais ampla erica quea habitual, restrita a fabricago sas. Naquele inicio dos anos 1970, dizia Lefebvre, era uuficiente definir o espaco a partir de sua vinculagao \dugao em sentido estrito, abord4-lo tio-somente como uma condi¢ao ou instrumento para a produgao, a troca e ‘0 consumo e/ou como um objeto ou colecao de objetos. ‘Nao basta considerar a projecdo, no terreno, das relacdes referentes & producao e ao consumo das coisas com a conseqiiente constitui¢ao de lugares diferenciados pelas fungées que neles se exercem. ‘A cidade tradicional tinha, entre outras, essa funcio de consumo, complementar & produgao. Mas a situagao mudou: 0 modo de produgio capitalista deve se defen- der num front muito mais amplo, mais diversificado ¢ mais complexo, a saber: a re-produgio das relacdes de produgio [que] nao coincide mais com a reprodugao dos meios de producio; ela se efetua através da cotidianidade, através dos lazeres e da cultura, através da escola e da universidade, através das extensdes ¢ proliferagoes da cidade antiga, ou seja, através do espaco inteiro, Em suma, “passa-se da produgao das coisas no espaco a produgao do espaco planetario. Esta envolvendo, supondo aquela. Passa-se da consideracao clissica dos lugares de implantagao industrial ao espaco inteiro.” Ora, produgao significa também e sobretudo criagio, Criagao de obras (tempos e espacos inclufdos) pelos e para os homens nas ¢ pelas quais possam realizar e reconhecer a trajet6ria de formago do humano. Mas a efetivacio da riqueza da capacidade criadora dos homens, a objetivagio da vida humana em sua universalidade, realiza-se sob um modo histérico particular. Nas sociedades em que a riqueza se configura como uma imensa acumulacao de mercadorias (Marx), nos marcos das relages sociais que as consubstanciam, “o espaco tornou-se instrumental. Lugar e meio onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam, o espago deixou de ser neutro, geogrifica ¢ geometricamente, ha muito tempo. Portanto, ele nada tem de inocentee inofensivo, Tem sido instrumentalizado para varios fins: dispersar a classe operéria, reparti-la nos lugares prescri- tos, organizar 0s luxos diversos subordinandlo-os a regras institucionais; subordinar, por conseguinte, o espago ao poder; controlar o espago € reger, tecnocraticamente, a sociedade inteira, conservando as relagdes de producéo capitalistas. Oespago, assinala Lefebvre, envolve o tempo. No mundo das mercadorias, 0 consumidor nao compra apenas um espago mais ou menos povoado com signos de prestigio e hierarquia social. Ble “também adquire uma distancia, a que vincula sua habitacao aos lugares: os centros (de comércio, de lazeres, de cultura, de trabalho, de decisio) [...] Compra-se um emprego do tempo” Ao tempo, recortado jentos (tempo de trabalho, de consumo, de lazer, ‘urso etc.), vinculam-se espagos com os atributos icas correspondentes. Mas apesar de despedacados jespedacantes, os espagos-tempos encontram-se \cialmente ligados reproduc das relagbes sociais de dugao, Para compreender essa caracteristica essencial da ria reprodugao social ~ “conjunta-disjunta, dissociada ndo uma unidade, a do poder, na fragmentagio” ‘Lefebvre oferece a ajuda de um exemplo: os “lugares de lazeres” Através dos lazeres foram conquistadosomar,smontanhas, e até os desertos. A indiistria dos lazeres se conjuga com a da construgio para prolongar as cidades e a urbanizagao 0 longo das costas e nas regides montanhosas. Esses espacos separados da produgio, como se fosse possivel ai ignorar o trabalho produtivo, sao os lugares da recuperagao. Tais lugares, aos quais se procura dar um ar de liberdade e de festa, que se povoa de signos que no tém a produsio € o trabalho por significados, estéo estreitamente ligados ao trabalho produtivo. [...] Sao precisamente lugares nos quais se reproduzem as relagdes de producao, o que nao exclui, mas inclui, a reprodugao pura e simples da forca de trabalho. Decididamente mobilizado pela valorizagao capitalista, 6 espaco passou a integrar as novas raridades. Se outrora © pio, os meios de subsisténcia, eram raros, “agora, nao em todos os paises, mas virtualmente a escala planetaria, hd uma produgao abundante desses bens; nio obstante, as novas raridades, em torno das quais ha luta intensa, emergem: a agua, 0 ar, a luz, 0 espaco”. Nas sociedades em que 0 econdmico predomina, em que a reprodugio da riqueza abstrata é tomada como fim em si, os termos da troca, as relagdes de propriedade que lhes sao inerentes expandem-se, submetendo crescentemente em seu favor © que era passivel de apropriagao pelo uso. Transformada em campo de atuacdo para a reprodugao de determinados capitais, a tal ponto que os circuitos (industrial e financeiro incluidos) assim constituidos deixam de ser secundarios para adquirirem importancia crucial nos mecanismos gerais da reprodugao ampliada do capital, a produgao do espaco nao se faz, contudo, sem contradicées. As contradigdes do espaco, que abrangem e elevam a um grau superior as contradigdes no espaco, envolvem desde a ja mencionada capacidade técnica e cientifica de uma produgio do espaco social em escala planetéria (em contraposi¢ao ao seu “loteamento” tedrico ¢ pratico), até a luta dos capitais nela envolvidos contra a obsolescéncia demasiadamente lenta dos produtos, contra a rotagao lenta do capital, os riscos do crédito imobilirio etc., conduzindo as construgées ¢ destruicdes intiteis. Sem esquecer a dialética dos centrose das centralidades, a. constituicao dos “centros de decisio, de riqueza, de poder, de informacao, de conhe- cimento” provocando o deslocamento da centralidade, essa forma do encontro eda reuniao, essa qualidade constitutiva do espaco urbano, essencial as praticas urbanas. Nesse processo, uma certa “racionalidade” segrega- dora, invocada para ordenar 0 espaco, acaba ratificando a expulsao dos considerados incémodos, inconvenientes, ‘ou mesmo ameacadores, enfim, os esbulhados de sempre ara as periferias desurbanizadas. A partir de observacées especialmente referidas & Franca do pés-Segunda Guerra Mundial, o autor chega a consideragdes importantes para 10 nder, guardadas as distancias, as contradigées Av urbanizagao acelerada experimentada também icledade brasileira. No curso do proceso acelerado de urbanizagao [...] uma grande parte dos trabalhadores e das classes médias foi, portanto, alojada de uma maneira relativamente aceité- ‘vel, mas sem invencio arquiteténica ou urbanistica. Ao contrario, essa expansio das cidades é acompanhada de uma degradacéo da arquitetura edo quadro urbanistico. As pessoas, sobretudo os trabalhadores, sfo dispersadas, distanciadas dos centros urbanos. O que dominou essa extensdo das cidades ¢ a segregacao econdmica, social, cultural. O crescimento quantitativo da economia e das, forcas produtivas nao provocou um desenvolvimento so- cial, mas, ao contrario, uma deterioracao da vida social. O direito & cidade vem a tona, anunciando-se como movimento orientado para confrontar e superar os descompassos do real em relagao ao possivel, as contradigGes entre sociedade e civilizagao (as amplas possibilidades desta sendo frustradas, nao se realizando, ou se realizando empobrecidamente, através daquela). “Excluir do urbano grupos, classes, individuos implica também exclui-los da civilizagao, até mesmo da sociedade. O direito 4 cidade legitima a recusa de se deixar afastar da realidade urbana por uma organizagao discriminatéria, segregadora” Nos dias atuais torna-se nitido que o direito & cidade nao se resume & difusio, importante, mas insuficiente, das conquistas materiais da sociedade, Nos lugares absoluta- mente saturados pela opuléncia dos produtos da “socie- dade burocrética de consumo dirigido”, em contrapartida u Aqueles onde reina a dura aspereza material, os diferentes niveis e momentos da vida encontram-se profundamente colonizados pela passividade nutrida pelo consumo, o que reduz enormemente as possibilidades de realizagio das atividades criadoras de obras. Diria que é sobretudo aqui € nao nas periferias urbanas que o “carter desértico” das préticas urbanas se exibe em seu horrendo esplendor. Ao fim e ao cabo, a negacio do urbano é, de modo desigual, Para todos, pois é sempre oportuno salientar que, para Lefebvre, a cidade é também e sobretudo uma obra, ¢ a andlise das relagdes entre o homem e as obras nas e pelas quais realiza sua natureza (trata-se, portanto, do homem considerado concretamente, isto é, a partir da praxis, social e historicamente determinada) revela que essas obras tendema lhe escapar, a se voltarem contra ele, tornando-se ameagadoras, implicando assim num empobrecimento da realizagao do humano. A rigor, o pensamento lefebvriano sobre a urbaniza¢ao ¢ orientado pela questao crucial definida anteriormente por Marx: trata-se de possibilitar ao homem dominar suas préprias obras (nas e pelas quais se realiza e se “perde’, se aliena), apropriar-se plena- mente delas, O direito a cidade, sua realizagao, supde portanto a reapropriacao dos tempos-espacos da vida tragados pelo vértice do mundo das mercadorias em favor da (ir)racio- nalidade que governa a industrializacao. O que significa reorienté-la, pois a industrializacio nao guarda em si mesma seu sentido e finalidade. Decerto que o estonteante crescimento da riqueza alcangado pela industrializacao nao pode ser negligenciado, Porém, entregue aos propdsitos da acumulagao do capital, a industrializagdo nao se orienta 12 necessidades da sociedade urbana. “Sabemos. ito insistentemente) que o desenvolvimento e o jento nao coincide, que 0 crescimento nao conduz \iticamente ao desenvolyimento.” se trata de um modelo a ser tomado para dirigir do proletariado, ou entio para acusé-lo de reduzi-lo yr no 0 compreender. Em sua plenitude, o direito & le um movimento em direcdo & constituicao de uma ocracia concreta,’ que implica “a constitui¢ao ou ‘reconstituigao de uma unidade espago-temporal”, Portanto, niio se trata de um direito contratual, que se inscreve e se imobiliza no ¢ pelo Estado, perdendo-se na alienagao poli- tica (“Quanto a politica como tal, ela constituiu e manteve tio-somente relagdes politicas, e nao relagdes sociais; essa 6a esséncia da critica marxista da filosofia hegeliana do Estado e da tese hegeliana sobre a classe politica.”). Tal concepgao permite também considerar sob outra perspectiva as questées afeitas ao poder. Quem tem o poder? E para fazer o que? [...] Trata-se apenas de levar a luta de classes a termo, pela e com a classe operaria? De acordo, certamente, mas e depois? ‘Vai-se tio-somente aumentara produgio, repartir melhor 0s “rendimentos’, como se diz, planificar a producio em relagio ao consumo? “Assim formulado, 0 direito a cidade implica e aplica um conhecimento que nao se define como ‘ciéncia do espago’ [...] mas como conhecimento de uma produgao, a do espaco,” Para o conhecimento da produgao do espaco, conforme proposto por Lefebvre, é imprescindivel 0 conhecimento da vida cotidiana, na qual “se situa o nticleo 13 racional, o centro real da praxis’! “Marx substituiuo estudo das coisas pela andlise critica da atividade produtora dag coisas. [...] Uma démarche anéloga se impoe atualmente ‘NO que concerne ao espago,” Desse modo, se é certo que o espaco é instrumentali- zado pela “racionalidade” que se pretende ordenadora do mundo, o mesmo esta longe de ser uma folha em branco, O espaco nao é uma forma pura eé por isso que “o método para abordar os problemas do espaco nao pode consistir unicamente num método formal, légica ou logistica; analisando as contradigdes do espago na sociedade e na pratica social, ele deve e pode ser, também, um método dialético”. Do alto de seus coturnos intelectuais, os guardiies do “pensamento” marxista (que existiam, e no eram poucos, na ocasido da publicagdo deste pequeno livro) ha tempos tinham Henri Lefebvre na conta dos heréticos, ja queem seus textos ele nio entoava aquela cantilena bocejante que repetia mecanica e dogmaticamente um “pensamento” totemizado e incapaz, de explicar uma virgula das novas contradi¢ées que continuam a movimentar 0 mundo. Aqui o filésofo propés um “retorno” & economia politica orientada pela critica dialética desenvolyida por Marx. Colocando o acento nas contradigées da produgio do espaco, o autor chegou a apontar a necessidade de retomare desenvolver conceitos (como, por exemplo, 0 de composicao organica do capital) construidos por Marx. Mas decerto que sua “insoléncia” nao se circunscrevia & retomada de alguns conceitos, Lefebvre ousou Perguntar se, diante das contradiges do espaco e sua centralidade para a reprodugao capitalista da riqueza, nao seria necessdrio 14 mento tedrico destronar a unidade de produgao, ‘ia propriamente dita, como base da andilise e fun- 0 da reprodugao das relagdes sociais de produgao. que a empresa nao é mais o lugar central onde |, simultaneamente, a riqueza, a mais-valia, as \uito tempo, essa tese” a Liltima observa¢io: os “realistas” prontamente con- am as elabora¢6es lefebvrianas suspeitas de utopia. ‘mbes cientificos foram pronunciados para condené-las. Decerto, dizia, nos limites da sociedade atual, trata-se de utopia. Mas nao de utopia abstrata e va, mas “utopia concreta, possibilidade que esclarece 0 atual e que 0 atual ‘fasta para o impossivel” “A utopia concreta fundamenta-se no movimento de uma realidade cujas possibilidades ela descobre. Dialeticamente, 0 possivel é uma categoria da yealidade, desde que sejam consideradas as tendéncias do real, ao invés de manté-lo no mesmo lugar.” Hoje, mais que nunca, ndo existe pensamento sem uto- pia. Ou entio, se nos contentarmos em constatar, em tatificar © que temos sob os olhos, nao iremos longe, permaneceremos com os olhos fixados no real. Como se diz: seremos realistas. .. mas nao pensaremos! Nao existe pensamento que nao explore uma possibilidade, que nao tente encontrar uma orientacio, + % 4 Este livro foi traduzido no inicio de 2003 em virtude dos estudos desenvolvidos pelo grupo As (im)possibilidades 15 do urbano na metrépole contemporanea, por mim coorde- nado na Universidade Federal de Minas Gerais, Minha companheira de traducéo também utilizou as primeiras versdes do texto com seus estudantes de graduacao e de pés-graduacao na Universidade de Sao Paulo, Baseamo-nos na edicao publicada em 1972 e, de modo ancilar, recor remos a segunda edi¢ao francesa.’ Além das notas de traducio explicativas que consideramos necessdrias para melhor esclarecer o leitor, procuramos indicar as referéncias bibliograficas completas dos livros mencionados e/ou citados por Lefebvre, cujos textos nem sempre se cara terizam por essa preocupagio. Até chegar 4 sua versio definitiva, esta tradugio contou com a preciosa ajuda de Nice Margal Vilela, que por mais de uma vez o leu integral- mente comigo, bem como de Pedro Henrique Denski, um leitor arguto da obra lefebvriana. No final de 2005, quando © texto retornou a pauta do grupo de estudos, jacomo refinamento propiciado pelas varias leituras ¢ releituras e acrescido das notas de tradugao, ainda pude contar com 0 derradeiro auxflio de minha colega Doralice Barros Pereira para sanar algumas imperfeicdes da tradugao que n&o mais conseguia resolver. Sérgio Martins 16 INTRODUGAO Quando um texto pretende ter um alcance tedrico 1 auto-suficiente, o autor faz previamente um recorte- “montagem, atribuindo-se uma parcela de um “campo” que " procura cercar. Operagao de apropriagao privativa muito ‘grosseira, sempre suspeita, ainda que usual e considerada legitima, pois a propriedade privada se estende as idéias a0 saber! Mais de um cientista deveria desculpar-se por cercar seu jardim para cultivé-lo a vontade. Aqui, 0 autor pede desculpas, pois nenhum dos artigos reunidos neste volume pode ser lido sem considerar trabalhos publicados anteriormente sobre a vida cotidiana, sobre 0 espaco, sobre os diversos “direitos” (o direito 4 cidade, o direito a diferenga), sobre a reproducao das relacdes (sociais) de producao etc, As pesquisas referentes & cidade eao urbano remetem as que concernem ao espaco e que serao objeto de uma obra (a ser publicada sob o titulo A produgao do espaco). Essa teoria do espaco social compreende, de um lado, a andlise critica da realidade urbana e, do outro, a da vida cotidiana. De fato, o cotidiano e o urbano, indissoluvelmente ligados, ao mesmo tempo produtos e produgdo, ocupam um espaco social gerado através deles e inversamente. A andlise se re- fere ao conjunto das atividades pritico-sociais, na medida em que elas se imbricam num espaco complexo, urbano e cotidiano, assegurando até certo ponto a reprodugao das relagdes de produgio (relagdes sociais). Através desse espaco atual, de sua critica e de seu conhecimento, alcanga-se o global, a “sintese”. Assim se constréi um conjunto no qual cada “artigo” tem uma especificidade, elevando um certo aspecto ou elemento a um certo nivel. Esse conjunto nada tem de um sistema ou de uma “sintese” no sentido classico, em que pese a conexo de seus elementos e aspectos. Seu sentido? Seu objetivo? Nao é mostrar uma coeréncia ou coesio, mas buscar, tateando, onde se pode situat, no espaco e no tempo, 0 ponto de nao-retorno e de ndo-recurso a escala, nao dos individuos ou dos grupos, mas global. Esse mo- mento nao depende mais do pensamento historizante ou de uma teoria classica das crises; nem por isso ele seri menos crucial: metamorfose ou autodestruicao (uma nao excluindo a outra). Esse seria 0 momento no qual cessaria a reproducéo das relagdes de produgio existentes, seja porque a degradacao e a dissolugo a dominam, seja porque novas relagdes se produzem, deslocam e substituem as antigas. A possibilidade de um tal momento (perspectiva que nao coincide exatamente com a teoria habitual da revolugao) define uma hipétese estratégica. Nao se trata de uma certeza definitiva, positivamente estabelecida. Ela nao exclui outras possibilidades (a destruigao do planeta, por exemplo), Atormentados por esse momento, muitos se ocupam em protelé-lo, descarté-lo, exorcizar, pela magia ideol6gica, as imagens evocadas. Concilios se retinem para dissertar 18 gravemente e manter as representagdes (ideoldgicas) que mascaram os verdadeiros momentos decisivos. De fato, a poluicao, 0 meio ambiente, a ecologia e os eco-sistemas, © crescimento e sua finalidade, fragmentam e mascaram os problemas do espago. Outros, ao contrario, clamam com seus votos por um instante fatidico; niilistas movidos pelo que denominam “pulsio de morte” querem apressar o destino agravando-o. Para uma reflexdo que se pretende saber € ato, talvez a melhor escolha consista em nao ceder ao catastrofismo, em determinar um ponto de ataque, limitado mas bastante preciso, introduzindo uma tatica e uma estratégia do pensamento. Aqui tentamos nao dramatizar a situagdo, tampouco desdramatizé-la, esterilizando-a. Talvez 0 momento de ndo-retorno se aproxime de tal modo que seja preciso preparar-se para cle. As forcas de destrui¢do nao sio mais, descritas; elas néo tém mais nome nem rosto, como Jean-Clarence Lambert escreveu no Opus.' Elas sao Sistema, tinico, o da negacio e da morte sob uma aparéncia positiva, que ataca a existéncia em si mesma, até nas suas profundezas. As vezes, na prosperidade quea Franca capi- talista conhece, dé vontade de gritar: “Alerta! Revolugdo ou morte...” O que nao significa: “Morramos pela revolugio’, mas, ao contririo: “Se nao querem que morramos, fagam a revolugao, depressa, totalmente” Essa revolucao mundial e total deveria por fim ao poder, a esse poder que domina os seres humanos¢ o ser do “homem?” sem dominar nenhuma das forcas que saem deles ¢ se voltam contra eles: nem a técnica, nema demografia, nem 0 espago! Sobre quem esse poder se exerce? Sobre os que poderiam se apropriar dessas forgas tornadas estranhas, dessas realidades mortais. Nao existe abuso de poder, pois sempre e onde quer que exista, 19 © poder abusa. A revolugio total deveria por fim a esse poder abstrato que é conhecido por utilizar meios objeti- vando um fim desconhecido, mas que se converteu em seu proprio fim. Essa revolucao lhe poria fim, substituindo-o por poderes, os da apropriagao e da re-apropriacao. A idéia de subversdo completa a de revolugdo. Bla visa & destruigao da politica, pois todo poder estatista é destruidor. Observando detidamente, o primeiro objetivo é, antes de tudo, a limitagdo do poder. Para alcancé-lo,a ameaca de sua total destruigao ¢indispensavel. Assim, somente diante do atefsmo ameagador, e por ele, a Igreja deixou limitar suas ambig6es. O cientificismo, o tecnicismo, nao recuam diante da critica filosdfica, mas diante do ocultismo, da magia. Os “direitos” necessérios, do “habeas corpus” ao direito & cidade, nao bastam. £ preciso também que 0 urbano se faga ameacador. Essa revolugao total e planetéria, econémica, demo- grafica, psiquica, cultural etc., é hoje, por exceléncia, 0 impossivel-possivel (a possibilidade, a necessidade e a impossibilidade!). Nada mais proximo, mais urgente, Nada mais fugidio, mais longinquo. A idéia da revolucao remete do mundial a conjuntura, do total & pratica imediata, ou seja, a existéncia de uma enorme maioria, silenciosa ou nao, de pessoas que aderem ao presente e chegam até a aceitar 0 milenarismo, porque ele remete para mais tarde aeventualidade de uma catéstrofe. Depois de nés, o nada! Assim, as pessoas “concernidas’, como se diz, oscilam entre © tom jovial do otimismo forcado e o niilismo radical, protelando os momentos decisivos. No centro, designado aqui e alhures, encontra-se a re-produgio das relacoes de producio, proceso que se desenrola sob os olhos de cada um, que se realiza em cada 20 atividade social, inclusive naquelas aparentemente mais indiferentes (0s lazeres, a vida cotidiana, o habitar e habitat, a utilizagao do espaco), e que ainda nao foi objeto de um estuclo global. Inerente A pratica social, esse processo nao era percebido como tal. Ele prevalece (até quando?) sobre as razdes e causas de dissolugao. As parcelas recortadas nesse vasto “campo” pelas especialidades ~ economia poli- tica, sociologia, demografia etc. - implicavam 0 global e 0 deixavam na sombra: campo cego. A anilise critica da ¢globalidade assim alcangada (que nao pode ser denominada de “sistema” no sentido habitual) nao se encontra aqui. Nao obstante, 0s artigos desta coletinea nio se referem a aspectos negligenciaveis, embora parciais, do processo global. Eles apresentam etapas da descoberta. Com uma especificidade ja mencionada, eles se inserem, a um certo nivel, no conjunto teérico e na realidade apreendida de maneira critica. O habitar s6 se reduz ao habitat, uma fun determinavel, isolavel ¢ localizavel, em nome de uma pratica, da qual O direito 4 cidade? determinou as razies. Aqui, o leitor reencontraré essas razbes reconsideradas, talvez aprofundadas: a ago da burocracia estatista, 0 ordenamento do espaco segundo as exigéncias do modo de produgao (capitalista), ou seja, da reprodugao das relagoes de produgio. Um aspecto importante, talvez essencial, dessa pratica, aparecerd: a fragmentagao do espaco paraa venda € para a compra (a troca), em contradi¢ao com a capacidade técnica e cientifica de uma produgao do espago social escala planetaria, Em conseqiiéncia, poder-se-4 encontrar aqui a anilise critica de um procedimento corrente e desastroso; faz-se corresponder, pontualmente, (ponto por ponto) as necessidades, as fungées, 0s lugares, os objetos 21 sociais, num espago supostamente neutro, indiferente, objetivo (inocentemente); depois disso estabelecem-se 0s vinculos, Procedimento que tem uma relacao evidente com a fragmentagio do espago social (jamais explicitada como tal), teoria da correspondéncia ponto por ponto entre os termos (fungées, necessidades, objetos, lugares) conduz a Projetos que parecem claros e corretos porque so projecdes visuais sobre o papel e sobre o plano de um espaco desde © inicio postigo. A fragmentacao se traduz numa falsa andlise, nao critica, que se julga precisa, porque visual, dos lugares e localizag6es, Uma anélise mais avangada ¢ sobretudo mais concreta modifica termos que pareciam positivos, “operatérios”; e que o so, num certo “quadro” Essa andlise explicita uma operagao verdadeiramente especifica. Nao se trata de localizar no espaco preexistente ‘uma necessidade ou uma fungao, mas, ao contrario, trata-se de espacializar uma atividade social, ligada a uma pritica no seu conjunto, produzindo um espaco apropriado. © que é, pois, a arquitetura? Discute-se muito, ha muito tempo: desde que o arquiteto existe, portanto, desde a arquitetura como oficio, na divisao do trabalho. Seria uma arte? Essa definicao s6 seduz. os que gostam de desenhar fachadas, que se ocupam obstinadamente de molduras, de meticulosamente repartir materiais e de agradavelmente esculpir volumes. Eles existem. Seria uma técnica? Nesse caso, 0 engenheiro, civil ou de tréfego, suplanta o arquiteto. Seria uma ciéncia? Nessa hipétese, conviria construir uma metodologia, uma epistemologia, um corpus doutrinal. Ora, aesterilidade dessa hipétese é manifesta. Supondo que fosse estabelecido, esse corpus bastaria a si proprio, sem outra eficdcia que sua transmissao. A arquitetura nao pode ser concebida sendo como uma pritica social, figurando 22 com outras (por exemplo, a medicina), no conjunto pra- lico que sustenta e suporta a sociedade atual (0 modo de produgao), ligagao a discernir. O médico recorre a varias ciéncias, talvez a todas, e se serve de miiltiplas técnicas. A medicina nao pode, portanto, constituir uma ciéncia particularizada, especifica, pois ela toma emprestados conhecimentos da fisica, da biologia, da fisiologia, das matemiticas, assim como da semiologia e da sociologia. Ela compreende numerosas especialidades. Estende-se, de um lado, a dietética, a higiene, a0 controle das atividades as mais “normais” (como o esporte), & medicina preventiva. E, do outro, se estende 4 medicina dita mental, 0 que néo simplifica a questio, Conscientemente ou nio, 0 médico utiliza conceitos muito gerais, que dependem da filosofia: ‘© normal eo anormal, a saiide e a doenga, 0 equilibrio e 0 desequilibrio, o sistema (nervoso, glandular etc,). Esses conceitos justificam uma reflexao tedrica e, no entanto, uma epistemologia médica parece dificil e pouco itil. ‘Os médicos oscilam entre o emprego de computadores, para tratar os dados, e 0 “faro” do clinico que conhece pessoalmente seus pacientes; qualquer que seja stia escolha, 0 médico nao reduz-facilmente o saber a uma especialidade estreita, Entretanto, ele se especializa quase sempre e cada ‘vez, mais; se ele recorta seu “campo” de experiéncias e de aplicagdes, torna-se-lhe necesscirio restituir 0 global, o corpo, © organismo, a relago com o “meio’, a unidade viva do ser humano em sociedade. E inversamente. Enfim, quem dird que.a medicina e os médicos nao sofrem a influéncia do capitalismo? Nao ha nenhuma diivida de que ha uma pratica médica capitalista e uma outra, ndo-capitalista, “social” ou “socialista Contudo, enquanto pratica, a mediciria precedeu 0 capitalismo; ela prosseguira depois dele, 23 qualquer que seja seu fim. Nao é certo que as relagées de producao capitalistas estimulem a pesquisa ea eficacia médicas impulsionando-ase as orientando adequadamente; também nao é certo que elas as bloqueiem. Em particular, parece que a biologia ¢ a bioquimica andam a passos de gigantes, ndo sem acrescentar outros riscos, outras inquietagées, outras iminéncias a uma lista de ameagas ja impressionante. Como a medicina pode se libertar dessa influéncia, encontrar melhores formas de pesquisa e de ago? A questo se coloca, com mais ou menos acuidade. A resposta nao ¢ certa, as solugdes nao sio evidentes. Do mesmo modo, a arquitetura e o arquiteto. E ébvio que a pratica arquitetdnica é anterior ao capitalismo. Ela entio se submetia (como o urbanismo, do qual nao se distinguia) as ordens dos déspotas mais ou menos escla- recidos. O arquiteto, tanto artista quanto sabio, aceitava um dado importante: a monumentalidade, a importancia do edificio religioso ou politico e sua prioridade em rela¢ao ao habitar. Com o periodo industrial, a arquitetura se desvencilha mal dessas coacées religiosas e politicas. Ela cai na ideologia: a das fungdes ~ empobrecidas; a das estruturas homogéneas; a das formas congeladas. Hoje, apés as revolucées da era industrial, a arquitetura aborda aera urbana com dificuldades. O arquiteto, também ele, recorre a todas as ciéncias: matematicas, informatica, fisica, quimica, economia politica, até mesmo semiologia, psicologia, sociologia. Como o médico, ele aciona um saber enciclopédico; e, no entanto, sua pritica permanece determinada, limitada de todas as partes, Ele se situa mal entre o engenheiro e o desenhista; ele ndo encontra bem © seu lugar entre os promotores imobiliarios, os usuarios, 0s investidores, as autoridades. Se ele tem uma atividade 24 especifica na divisao do trabalho (social), 0 produto desse trabalho nao fica bem especificado. Também ele dispoe de alguns conceitos muito gerais (zelosamente inventariados: aescala, as proporcées, o “partido” etc.) que justificam uma reflexio préxima da filosofia, mas que nao se bastam, nem bastam para constituir um corpo doutrinal, Finalmente, a arquitetura difere da pintura, da escultura, das artes, na medida em que elas s6 se vinculam a prética social indiretamente e por mediagdes; ao passo que o arquiteto ea arquitetura tém uma relagio imediata com o habitar enquanto ato social, com a construcao enquanto pratica O arquiteto, produtor de espago (mas nunca sozinho), opera num espago especifico. E, de inicio, ele tem diante de si, sob seus olhos, sua prancheta, sua folha em branco. © quadro negro, decerto, nao tem um efeito muito dife- rente. Quem néo considera essa folha em branco como um simples espelho, ¢ como um espelho fiel? Entretanto, todo espelho é enganoso. Além disso, essa folha em branco é mais e outra coisa que um espelho. O arquiteto a utiliza para seus plans, palavra a ser tomada em toda a sua forca: superficie plana, sobre a qual um lépis mais ou menos dgil ¢ habilidoso traga o que o autor considera a re-produgio das coisas, do mundo sensivel, quando, de fato, essa superficie impée uma decodificagao-recodificagio do “real”. O arquiteto nao pode, como eleacredita facilmente, estacheta, nela visualizar as coisas (necessidades, fungées, objetos) projetando-as, Ele confunde projegao e projeto numa idealidade confusa, que considera “real” e, inclusive, rigorosamente concebida, posto que os procedimentos de codificacao-decodificacio pelo desenho sao habituais ¢ tradicionais, que, desde entao, Ihe escapam. A folha soba mao, diante dos olhos do desenhista, é branca, tao branca 25 quanto plana. Ele a considera neutra. Ele considera que esse espaco neutro, que recebe passivamente os tracos de seu lipis, corresponde ao espaco neutro de fora, que recebe as coisas, ponto por ponto, lugar por lugar. Quanto ao “plano’, ele nao permanece inocentemente no papel, No terreno, 0 trator realiza “planos”, E eis como e por que o desenho (¢ por ele é preciso entender também o design) nao é somente uma habilidade, uma técnica, E um modo de representacao, um saber. fazer estipulado, codificado, Portanto, um filtro, seletivo em relagao a conteitdos, eliminando esta ou aquela parte do “real’, preenchendo as lacunas do texto a sua maneira, Circunstncia agravante: essa filtragem vai mais longe que uma especializacao ideolégica ou que a ideologia de uma especialidade, Ela corre o risco de ocultar a demanda social, © que é um cédigo? O que 6 uma codificagao- decodificago? Digamos rapidamente que, excetuando alguns casos grosseiros (0 cédigo rodovidrio), um cédigo nao consiste num sistema de regras pré-fabricadas. Todo cédigo define um espaco centrado, abrindo um horizonte em torno de um texto (mensagem), desenvolvendo-o €, conseqiientemente, delimitando-o, fechando-o. Esse texto pode ser pratico-sensivel e social, portanto, nem sempre, nem forgosamente escrito. As imagens também se codificam e decodificam! A complexidade das operagdes que elas efetuam escapa aos leitores, como a complexidade da linguagem e de sua produgio escapa aos locutores. O “agente” (aqui o desenhista) se cré unicamente na pratica. Ele imagina re-produzir, mas ele produz! Ele salta os intermediarios, indo de um resultado a outro, Toda codificacao é portadora de uma perspectiva e da “producao” de um certo sentido, que substitui o texto dado epode, seja empobrecé-lo, seja valorizé-lo, enriquecendo-o, 26 Dai a ambigiiidade. A codificagiio-decodificagao implica um efeito ou efeitos de miragem, pois a estrutura formal de um cédigo somente aparece no momento em que a produgao declina, em que a apari¢éo do sentido se enfraquece. O cédigo formulado é somente a sombra do sentido! Um cddigo, dizem hoje os semidlogos mais sutis, € uma voz e uma via: a partir do “texto” (da mensagem) varias possibilidades, escolhas, palavras diversas, uma pluralidade, muito mais um tecido que uma linha. Por isso, um certo “trabalho” sobre o texto (mensagem) que produz, sentido partindo de esbogos, de fragmentos, acarreta um movimento complexo: valorizacées e desvalorizacées, avangos chocando-se contra obstaculos, com fading. Cada codifica¢ao seria um esquema proposto, retomado, abandonado, sempre no estado de esbo¢o, que engendra um sentido entre varios outros. A mao procura, o lipi hesita. A mao acredita reproduzir, mas ela substitui. Acreditando apreendé-la, ela obedece a uma voz que fala, que diz a coisa ea interpreta. A voz, a mao, o instrumento, acreditam “exprimir” (reproduzir) quando agem, quando “produzem’, mas o produto desse trabalho nao tem as qualidades e as propriedades que o autor lhe atribui. Ele faz outra coisa do que diz e cré fazer. Mais de um bom desenhista tera dificuldades para se reconhecer nesse irdnico quadro de seu “vivido” profissional, Entretanto, 0 desenho comporta evidentemente um risco, o de uma substituicao, por grafismos, dos objetos @, sobretudo, das pessoas, dos corpos, dos seus gestos ¢ atos, Ele é redutor, mesmo se nao o é para o desenhista no curso de sua acio. Com o design, a forma significa a fungao, ea estrutura nao tem que incorporar essa relagao “significante-significado” sendo numa matéria tratada de 27 maneira rentavel, A distancia entre esses trés termos: a fungao, a forma, a estrutura, que outrora permitiu reuni- las numa unidade organica e nao visivel como tal, essa distancia foi reduzida. Os signos dos objetos dao lugar a signos de signos, a uma visualizagéo cada vez mais vigorosa, em que o limite é alcangado quando entram em cena as inevitaveis figurinhas encarregadas de “animar” © espago. Esses iméveis significantes da mobilidade, da atividade, dizem sua morte simbélica, Eles fazem passar 0 procedimento ~ codificagao e decodificasao —ocultando-o. Eles devem servir para denuncid-lo pondo fim a dois mito. a expressao re-produgao e a criacao maravilhosa. A legibilidade é considerada como uma grande qua- lidade, O que nao € falso, Mas nao se pode esquecer que toda qualidade tem sua contrapartida e seus defeitos, Qualquer que seja a codificagio, a legibilidade se paga por um pre¢o muito elevado: a perda de uma parte da mensa- gem, da informagao ou do contetido. Essa perda é inerente a0 movimento que, do caos dos fatos sensiveis, extrai um sentido, um tinico sentido. A emergéncia desse sentido quebra a rede, freqiientemente muito fina e ricamente desordenada, da qual a elaboragao é parte. Construindo outra coisa, ela acaba apagando-a, Existe, portanto, por toda parte, a cilada da legibilidade, sobretudo quando 0 “autor’, aqui o arquiteto, cré ter diante de si e bem & mio a “coisa” da qual ele partiu, a saber: o habitar. Quando, entio, ele o substitui pelo habitat! A legibilidade visual é ainda mais traigoeira e insidiosa (seria preciso escrever: insidiante) que a legibilidade grifica, a da escrita. Toda legibilidade advém de uma pobreza: da redundancia. A legibilidade nunca acompanha a riqueza do texto e do espago. Nenhuma poesia, nenhuma arte obedece a esse 28 simples critério, No limite, o legivel & 0 branco, o mais pobre dos textos! Insidiosa-insidiante, a legibilidade esconde o que ela omite eque um “leitor” maisatento, analiticoe critico, detecta. A homologia (homogeneidade) de todos os espacos repre- sentados e transcritos nas superficies nao é a mais eficaz das ideologias redutoras? Ideologia muito itil reprodugio das relagdes sociais existentes, transportadas no espaco € na re-produtibilidade dos espacos! Dai que um tal cédigo nao permanega nos limites estreitos do saber-fazer individual. Ele se torna questio de oficio. A esse titulo, ele entra no trabalho social e na divisao social do trabalho. Desse modo, ele é transmitido e ensinado, aperfeigoando-se. Elese transforma em tradicao e em pedagogia. Durante um longo periodo, 0 cédigo visual, pouco ou mal formulado como tal, foi a base do ensino do desenho, das belas artes, da arquitetura, Contestado, ele nao perdeu toda influéncia; ele se perpetua como saber-fazer pedagégico, 0 tinico sélido (nao apenas na Franga, Na Itélia ‘corre 0 mesmo processo ¢, sem diivida, alhures).. © arquiteto nao pode se contentar em desenhar e nao pode deixar de consultar oralmente (pela palavra) os outros agentes dessa produgio, o espaco. E, de inicio, o usuarios mas também o burocrata, 0 politico, o financiador, € assim por diante. A tal ponto queatualmente desponta uma tendéncia que apresenta o arquiteto como um “homem da palavra’” endo mais como um homem do desenho, segundo atradicao, Tese interessante e contestavel, pois ela esquece a problematica geral do espaco (de sua produgao), para somente reter, a partir de uma problemttica particular (a 29 da arquitetura), a preocupagao de legitimar a profissio. Ademais, cada um sabe que, para o usuatio e para 0 arquite- to, nem os “significantes” nem os “significados”, nem seus encadeamentos, coincidem. A problemitica geral do espaco exige que sejam abor- dadas de outro modo as questdes particulares, como, por exemplo, a da profissao, Elaa subordina as questdes gerais. Ela rejeita a separagao entre 0 arquiteto eo urbanista. Se dividem 0 espaco, dividem-no com os outros “agentes”, ai inclusos os proprietérios. Eles o recortam, o retalham, cada um a sua maneira; e desde entao a fragmentacao Parece teoricamente justificada. A cada um seu nivel, sua escala de intervencio. A partir dai, o global escapa e foge. Cada um opera sobre um espaco abstrato, no seu nivel, na Sua escala: 0 arquiteto no micro ¢ 0 urbanista no macro, Quando o problema, atualmente, é 0 de superar essas frag. mentagdes, dados seus deploraveis resultados, o problema € por conseguinte, o de determinar a juncao, a articulacdo desses dois “niveis’, o micro e 0 macto,aordem Proxima e a ordem distante, a vizinhanca e a comunicagao. Nio seria precisamente a essa escala que, hoje em dia, © pensamento pode intervir e a invencdo se situar? No nivel inferior, o do imével, tudo foi dito, redito, triturado, O nivel superior pertence, no momento, aos construtores de auto-estradas, aos engenheiros das redes vidrias. Quanto ao espaco urbano, muito complexo, a exploracao comega; é muito cedo para tornar 0s conceitos operatérios. Muitas pesquisas se perdem no gigantismo, aumentando ou agigantando o imével (Soleri, Aldo Rossi etc.). Hoje, a maioria dos arquitetos célebres nao rompeu com a monumentalidade. Eles tentam um compromisso entre 0 monumento eo edificio. Alguns, ao contrério, dispersam 30 sspago social em unidades efémeras, em dtomos e fluxos habitagdes. No nivel intermediério se situa o que se ile pensar e projetar. Testemunha disso sio os projetose jesquisas de Constant, Ricardo Bofiil, os estudos de Mario " Gaviria na Espanha etc. O nivel inferior é o da aldeia, do bairro. O nivel “macro” é o do urbano, Entre ambos, no ponto de ataque, a populacao, para a qual poder-se-ia tentar atualmente a produgao de um espaco apropriado, que se situaria entre dez ¢ vinte mil habitantes. Para o momento, como etapa! A essa escala, 0 “direito a cidade” pode intervir de maneira operatéria e estimular a pesquisa. Quem pode ainda se admirar com o fato do urbanismo nao ter conseguido se constituir nem como ciéncia, nem como pratica, nem tenha logrado senao “instituir-se”, (tornar-se institui¢4o) difundindo & sua volta espessas inuvens ideolbgicas? O urbanismo s6 poderia se ivrar da ideologia reinante e coatora com um pensamento ctitico particularmente atento. Ora, esse pensamento critico, apés alguns momentos de esperancas logo desfeitas (ha uma quinzena de anos), nao péde senao voltar-se contra o urbanismo. Se é verdade que as palavras e conceitos “cidade”, “urbano’, “espaco” correspondem a uma realidade global (que nao sejam confundidos com nenhum dos niveis definidos mais acima) e nao designam um aspecto menor da realidade social, o direito a cidade se refere a globalidade assim visada, Nao se trata de um direito natural, decerto, nem contratual. Em termos tao “positivos” quanto possivel, © mesmo significa o direito dos cidadaos-citadinos e dos grupos que eles constituem (sobre a base das relagdes sociais) de figurar sobre todas as redes e circuitos de comunicagao, de informagao, de trocas. O que nao 31 depende nem de uma ideologia urbanistica, nem de uma intervengéo arquitetonica, mas de uma qualidade ou propriedade essencial do espaco urbano: a centralidade. Nio existe realidade urbana, afirmamos aqui e alhures, sem ‘um centro, sem uma reuniao de tudoo que pode nascer no espagoe nele ser produzido, sem encontro atual ou possivel de todos os “objetos” e “sujeitos’. Excluir do urbano grupos, classes, individuos, implica também exclui-los da civilizacao, até mesmo da sociedade. O direito a cidade legitima a recusa de se deixar afastar da realidade urbana por uma organizacio discriminatéria, segregadora. Esse direito do cidadao (se se quiser falar assim: do “homem”) anuncia a inevitavel crise dos centros estabelecidos sobre a segregacao e que a estabelecem: centros de decisio, de riqueza, de poder, de informacao, de conhecimento, que langam para os espacos periféricos todos os que nao participam dos privilégios politicos. Do mesmo modo, 0 direito a cidade estipula o direito de encontro e de reunio; lugares e objetos devem responder a certas “necessidades’, em geral mal conhecidas, a certas “fungées” menosprezadas, mas, por outro lado, transfun- cionais: a “necessidade” de vida social e de um centro, a necessidade e a fungo hidicas, a fungo simbélica do espaco (prdximas do que se encontra aquém, como além, das fungdes e necessidades classificadas, daquilo que nio pode se objetivar como tal porque figura do tempo, que enseja a ret6rica e que sé os poetas podem chamar por seu nome: 0 desejo) O direito a cidade significa, portanto, a constituigao ou reconstituicdo de uma unidade espaco-temporal, de uma reunitio, no lugar de uma fragmentacao. Ele nao elimina os confrontos e as lutas, Ao contrario! Essa unidade poderia 32 ser nomeada segundo as ideologias: 0 “sujeito” (individual e coletivo) numa morfologia externa que Ihe permite afirmar sua interioridade ~ a realizagao (de si, do “ser”) — a vida-o par “seguranga-felicidade”, jé definido por Aristételes como finalidade e sentido da “pdlis”. Em todos esses casos, sob todos esses nomes, os fildsofos anunciaram e perceberam de longe a reconstituigao do que foi fragmentado, dis- sociado, disseminado no curso da histéria social. Ainda que tenham definido o sentido, eles mal determinaram suas condigées, das quais umas sao politicas (implicando nesse termo a critica de toda politica) e outras sio morfolégicas, espago-temporais. Assim formulado, o direito a cidade implica eaplica um conhecimento que nao se define como “ciéncia do espago” (ecologia, geopolitica, equistica,* planejamento etc.), mas como conhecimento de uma produgdo, a do espaco. No tempo de Marx, a ciéncia econdmica se perdia na enumeracao, na descri¢ao, na contabilizacao dos objetos produzidos. Marx substituiu o estudo das coisas pela andlise critica da atividade produtora das coisas. Retomando a iniciativa dos grandes economistas (Smith, Ricardo) e a ela acrescentando a anilise critica do modo de produgao (capitalista), ele elevou o conhecimento a um nivel superior. Uma démarche andloga se impée atualmente no que concerne ao espago. Hé anosa ciéncia do espaco procura o seu caminho de maneira va. Ela nao o encontra. Ela se dispersa e se perde em considerag6es variadas sobre o que ha no espago (os objetos, as coisas), ou sobre o espaco abstrato (esvaziado de objetos, geométrico). No melhor dos casos, essa pesquisa descreve fragmentos de espaco, mais ou menos pre- 33 enchidos. Tais descrigdes de fragmentos sao, elas proprias, fragmentarias, segundo os compartimentos das ciéncias especializadas (geografia, historia, demografia, sociologia, antropologia etc.). Uma tal “ciéncia” se dispersa, por conseguinte, em recortes e em representacdes do espaco, sem jamais descobrir um pensamento que reconheca, na massa infinita dos detalhes, os princfpios do entendimento que reina num dominio, como disse Hegel” a propésito da economia politica. alcance e o sentido dessa diferenga entre “ciéncia do espaco” e conhecimento da produgao do espaco serio indicados posteriormente. Dai o necessério recurso a outras obras, como mencionado anteriormente, e novas desculpas ao leitor. direito & cidade, tomado em toda a sua amplitude, aparece hoje como utopiano (para nao dizer pejorativa- mente: utopista). F, entretanto, nao se deve inclui-lo nos imperativos, como se diz, dos planos, projetos, programas? Os custos podem parecer exorbitantes, sobretudo se conta- bilizados nos marcos administrativos e burocraticos atuais, colocando-os, por exemplo, nas contas das “comunidades locais”. E ébvio que sé um grande crescimento da riqueza social, a0 mesmo tempo que profundas modificagdes nas préprias relagées sociais (no modo de produgao), pode permitir a entrada, na pratica, do direito 4 cidade e de alguns outros direitos do cidadéo e do homem. Um tal desenvolvimento supde uma orientagdo do crescimento econémico, que nao mais conteria em si sua “finalidade’, nem visaria mais a acumulagao (exponencial) por si mesma, mas serviria a “fins” superiores. Enquanto se espera pelo melhor, pode-se supor que os 34 custos sociais da negagio do direito a cidade (e de alguns outros), admitindo-se que se possa contabiliza-los, sero muito mais elevados que os de sua realizacdo. Estimar a proclamagao do direito & cidade mais “realista” que seu abandono nao é um paradoxo. £ certo que (implicitamente) este pequeno livro, ¢ os que oacompanham ouo sucedem, nao anula os precedentes, senao de forma dialética: ele os retoma tentando situd-los num nivel mais elevado. Discursos de um certo tipo (ana- litico) se transformam aqui em discursos de um outro tipo, presumidamente superior. Os conceitos, outrora situados nos espacos abstratos, porque mentais, se situam agora nos espagos sociais e relacionados as estratégias que se desenvolvem e se confrontam planetariamente. O mental nao pode se separar do social, e s6 0 foi nas representages (ideolégicas). Na filosofia classica, 0 “sujeito” e 0 “objeto” permaneciam fora um do outro, um diante do outro, Eles se juntavam nos abismos do Absoluto, da Identidade original ou terminal. Hoje, 0 mental ¢ o social se reencontram na pratica: no espaco concebido e vivido. 35 © ESPACO 1, O que sera exposto situa-se no nivel tedrico, Vai na diregao da filosofia, embora nao da filosofia especula- tiva, dogmatica e sistematizada. Dessa filosofia classica, mantém-se a preocupagao de definir perspectivas ¢ conhecimentos a escala global. Como esses conhecimentos nao se encontram mais separados da pratica, trata-se de metafilosofia. Poder-se-ia dizer que esta exposicao é“interdisciplinar”, no sentido de uma critica das disciplinas parcelares. Ela evita o empirismo descritivo, mas nao comporta conceito ‘operacional. Ao contrario, tentar4 mostrar como determi- nado conceito operatério coloca questées: “por qué? para quem? no interesse de quem?” 2. Existem varios métodos, varias abordagens no que concerne ao espaco, ¢ isso a diferentes niveis, de reflexio, de recorte da realidade objetiva. Por exemplo, pode-se estudar 0 que alguns denominam bi6topo; pode-se estudar oespaco percebido, a saber, o da percepgio comum a escala do individuo e de seu grupo, a familia, a vizinhanga, ai compreendendo o que se chama “o ambiente” (Umwelt!) ee Esse estudo psicoldgico € socioldgico pode referir-se a0 corpo € aos gestos, a imagem do corpo e ao espaco da vizinhanga. Alguns desses aspectos, como, por exemplo, as questdes concernentes a lateralizacao do espago, interes- sariam & arquitetura e a urbanistica, Como ai distinguir ou indicar simetrias, dissimetrias? Como ai construir uma esquerda e uma direita, um alto e um baixo, correspondente 08 gestos, aos movimentos, aos ritmos do corpo? Pode-se elaborar uma semintica dos discursos sobre © espaco. Poder-se-ia conceber também uma semiologia do espaco, parte de uma semistica geral. Todo espaco € significante? Em caso positivo, de qué? Mais precisamente, todo espaco ou fragmento de espago nao seria um texto social, ele proprio contexto de textos especificos, isto 6 escritos: inscrigdes, antincios etc.? De sorte que é preciso ou reencontrar, ou construir os cédigos dessas diversas ‘mensagens para decifiré-las. Nessa perspectiva, 0 espago aparentemente insignifi- cante, ou seja, neutro, nao significaria de inicio sua insig- nificdncia, seu cardter vazio, e em seguida, através dessa neutralidade, desse vazio aparente, alguma coisa no nivel da sociedade inteira, isto é, da sociedade neocapitalista? Nesse nivel, nao seria a propria unidade dessa sociedade, sua globalidade, que apareceriam no seio de tal “realidade”” espacial aparentemente disjunta e separada, por exemplo, uma cidade nova? 3. O interesse tedrico geral dessas pesquisas, a gestual ea lateralizacao do espago, a semiologia e a leitura dos espacos, é o de mostrar como e por que, hoje e agora, os sentidos tornam-se imediata e diretamente te6ricos, como disse Marx (Manuscritos de 1844)? 37 Nessa perspectiva, a relagdo da teoria com a pratica nao é a de uma abstracao transcendente a uma imedia- tidade ou a um “concreto” anterior, A abstracao teérica ja estd no concreto. E preciso ai revela-la. No seio do espago percebido e concebido ja se encontra o espago tedrico ea teoria do espaco. 4. Um método pretensamente cientifico consiste em pér, ou em supor, um sistema e uma Idgica preexistentes; tal método afirma que 0 objeto estudado deve situar-se no seio de uma totalidade pressuposta, Ora, nao se temo direito de postular um sistema ja exis- tente ~ um sistema social, ou um sistema espacial, ou um sistema urbano, por exemplo ~ para nele inserir elementos parciais cuja racionalidade (ou irracionalidade) derivaria dessa suposicao, seria deduzida do conjunto. Nao se tem mais 0 direito de pressupor um sistema social ou politico, tedrico ou ideoldgico, assim como no se pode pressupor uma légica preexistente. Com efeito, isso significaria atribuir a esta sociedade, a sociedade neocapitalista, uma coeréncia jé alcancada, uma coesio ja efetuada. Se ha sistema, é preciso descobri-lo ¢ mostra-lo, ao invés de partir dele. Se partirmos de tal hipétese, instalamo-nos numa tautologia dissimulada, pois nao faremos mais que deduzir as conseqiiéncias da pressuposigio. Assim também para a légica, Se em alguma parte existe uma Idgica, e mesmo uma l6gica concreta (por exemplo, a de uma estratégia), também é preciso descobri-la, especificd-la no que difere dessa ou daquela outra légica concreta. Sup6-la, admitindo, por exemplo, uma ldgica do capitalismo, uma ldgica da mercadoria, uma l6gica da sobrevivéncia, é raciocinar por analogia com tal démarche ja efetuada, visando a coesio supondo té-Ia atingido. 38 Por que este predmbulo? Porque ¢ possivel que o espaco desempenhe um papel ou uma fungdo decisiva no estabelecimento de uma totalidade, de uma légica, de um sistema, precisamente quando nao se pode deduzi-lo desse sistema, dessa logica, dessa totalidade. E preciso, ao contririo, mostrar sua fungio nesta perspectiva (pratica e estratégica). 5, Do mesmo modo, se ha um “ponto de vista de classe’, ¢ impossivel metodologicamente partir dele, ¢ preciso chegar acle, Partir do “ponto de vista de classe” e pressup6-lo, & maneira de um sistema oposto ao sistema existente, é rejeitar o saber existente como integrante do sistema e construir um outro “sistema” sobre a recusa desse saber, e, no obstante, utilizando seus elementos, seus fragmentos, sua terminologia, suas palavras e seus conceitos. Aqui ha um dilema: se estamos encarcerados num certo sistema, nossas palavras e nossos conceitos fazem parte dele. O projeto de quebri-lo tedrica e praticamente é vao. Se houvesse um tal sistema, tdo forte, tao pregnante quanto alguns o supdem, © protesto e a contestacao nao teriam nenhum sentido. Quanto ao projeto de sair de um sistema de classe para um outro sistema de classe, ele implica a idéia de pular de um dogmatismo a outro por um salto verdadeiramente prodigioso. 6. Esta exposicao parte, portanto, de uma problematica definida, ou seja, ela nao parte de uma definicao particular, nao mais que de uma problematica indefinida e muito geral que se estabelece na consciéncia, na cultura, na ideologia etc, Trata-se da problemética do espaco. Contudo, nao se pdea questo: “o que é 0 espago?”, Questo que se colocaria a0 matematico ou, talvez, ao metafisico. Que nao paire 39 mal-entendido a este respeito, No inicio, trata-se do espago vivido, vinculado a pratica social, A problematica que se coloca a partir desse espaco compreende um conjunto de problemas parciais que tem um trago que os aproxima: a “espacialidade’” a) qual é 0 estatuto tedrico da nogao de espaco? Qual é a relagio entre o espaco mental (perce- bido, concebido, representado) eo espaco social (construido, produzido, projetado, portanto, notadamente o espago urbano), isto é entre o espaco da representacao e a representacio do espaco? b) qualé a inser¢ao do espaco (representado, elabo- rado, construrido) na pratica social, econémica ou politica, industrial ou urbana? Onde e quando a concepso do espago atuua? Quando ela se mostra eficaz € em quais limites? N.B, Haveria, caso se quisesse levar a andlise ao limite, uma dificuldade andloga aquela da légica e aquela da teflexdo sobre os fundamentos das matemiticas. Toda definigao do espago, ou pesquisa sobre o espago, implica um conceito de espago, no minimo, para enunciar e clas- sificar as proposigdes. Nessa problemitica, o espago éum “puro” objeto de ciéncia. No que concerne ao “vivido, 0 espago nunca é neutro e “puro”. O que jé coloca uma distancia entre a problematica do espaco vivido e a do espaco epistemolégico, posto como neutro. 7. problemitica do espaco vivido é um aspecto impor- tante e talvez.essencial de um conhecimento da realidade urbana, Desse modo, a problematica do espago pertencea 40 teoria do urbano e sua ciéncia e, por conseguinte, a uma problematica ainda mais vasta, a da sociedade global. Para 1nds, aqui, ¢ um viés ou um front pelo qual se pode abordar um conjunto de questées. Entre essas questdes encontram-se as colocadas mais acima e estas: a) encontramo-nos num conjunto fechado, num sistema estabelecido, de tal modo que sua forga recuperadora seja irresistivel até seu desmorona- mento em bloco? Se é que ele pode desmoronar de fato? b) existe saida, abertura, passagem, possibilidade de uma transicao, seja pela acao, seja pelo pen- samento e pela imaginagao, seja por ambos? 8. Primeira iese ow hipétese. O espaco é a forma pura, a transparéncia, a inteligibilidade. Seu conceito exclui a ideologia, a interpretacdo, 0 nao-saber. Nessa hipétese, a forma pura do espaco, desembaragada de todo conteiido, (sensivel, material, vivido, pratico) € uma esséncia, uma idgia absoluta andloga ao mimero platénico. A filosofia cartesiana, e mesmo a critica filoséfica kantiana, conservam essa nogao. Considerando quea légica constréi espacos de atributos, que os cientistas constroem espagos de configuragdes com um certo numero de variaveis © parametros, o espaco se apresenta como coeréncia e modelo de coeréncia. Ele articula o social e 0 mental, o tebrico e o pritico, 0 ideal e 0 real. Os conceitos se localizam, situam-se com seu enca- deamento no seio do espago intelectual, do mesmo modo ay que 0s objetos, os grupos, os individuos no espaco efetivo, socialmente realizado. O que permite a reducao prévia do caos fenoménico. As matemiaticas de um lado, e do outro, a filosofia (a fenomenologia e, sobretudo, a epistemologia), resgatam essa essencialidade, ou, mais exatamente, a estabelecem a constituem. A coeréncia do discurso se desenvolve no espago mental, que a garante. A epistemologia define uma topia (ou se define por ela), a saber, um conjunto de lugares e de percursos, topologia abstrata e geral completada por uma topologia de existéncias concretas. Eis alguns exemplos. A lingiiistica de Chomsky implica um conceito do espago. Assim, ele declara que existe um nivel lingiifstico no qual ndo se pode representar cada frase simplesmente como a seqiiéncia finita de elementos de um certo tipo, engendrada da esquerda para a direita por algum mecanismo simples, mas que ¢ preciso descobrir um conjunto finito de niveis ordenados de alto a baixo.’ Sabe-se que a psicanalise define um ou varios tépicos, por exemplo, o “id’, o “ego”, 0 “superego”. Procurando 0 sentido do discurso filos6fico, Jean-Michel Rey escreve O sentido se da como o poder legal de substituir os significados na mesma cadeia horizontal, no espaco de uma coeréncia regulada e calculada de antemio. E nesse espago centrado, teolégico, onde a cumplicidade do significado ja se encontrava estabelecida, é ai que 0 sentido sempre precede a si préprio.! Corpus, recorte, montagem, agrupamento, localizagio, esses termos espaciais, considerados nao como metafisicos 42 ou metaféricos, mas como rigorosos, sao de uso corrente na epistemologia.° Objegées: essa hipotese implica a liquidacao do tempo histérico, como do tempo vivido e, alids, de uma maneira desigual (muito mais em Michel Foucault que em Georges Gusdorf, por exemplo). Ela comporta igualmente uma ten- déncia para a “cientificidade” abstrata, para o saber “abso- lato” constituido por um inventério do passado (filosofia, ideologias, literatura etc.) e inscrito no espago atual. Essa teoria do espaco nao fica s6 no terreno epistemo- logico; ela o ultrapassa de uma maneira que merece ser mencionada. Alguns arquitetos ainda se veem como os senhores do espago que concebem e realizam, Eles se veer ow se fazem ver como 0s demiurgos capazes de operar, na sociedade, sua concepgao e sua definigio de espaco. O demiurgo platénico encarnou-se na matéria, nos niimeros e nas proporgdes, nas idealidades transcendentes. Esse espago tem as seguintes caracteristicas: vazio e puro, lugar de niimeros e de proporcées, por exemplo, do nimero de ouros ele é visual, por conseguinte, desenhado, espetacular; ele se povoa tardiamente de coisas, de habitantes e de “usuarios”; na medida em que esse espaco demitirgico tem ‘uma justificagao, ele se avizinha do espaco abstrato dos fildsofos, dos epistemélogos. Sua confusio nao ocorre sem riscos. Repitamos que 0 maior perigo ea maior objecao a evacuagao do tempo concomitantemente histérico vivido. 9. Segunda hipdtese. O espago social é um produto da sociedade, constatavel e dependente, antes de tudo, da constatacao, portanto, da descri¢ao empirica antes de qualquer teorizagao. 43 De que ele resulta? Para uns, de uma certa historia, de um passado, geral ou particularizado, Para outros, de diversas atividades, por exemplo, agricola, artesanal, industrial etc. Em outras palavras, 0 espaco resulta do trabalho e da divisio do trabalho; esse titulo, ele é 0 lugar getal dos objetos produzidos, 0 conjunto das coisas que © ocupam e de seus subconjuntos, efetuado, objetivado, portanto, “fancional’ Qualquer que seja.a conclusio que se tire dessa hipétese, ‘0 espaco é 0 objetivo, ou melhor, a objetivagao do social e, conseqiientemente, do mental, Para conhecé-lo, é impres- cindivel a démarche descritiva. Uma forma se desprende ouse constréia partir dos contetidos que o conhecimento descobre ou recorta. Ele se conhece reconhecendo-se, seja de uma maneira experimental, seja pela abstracao cientifica metodologicamente elaborada. A maioria das descrigSes analiticas ou criticas, sobretudo. do espaco urbano, dependem dessa hipétese, mal esclare- cida como tal e sobretudo mal confrontada com as outras hipoteses tedricas. 10. Terceira hipétese. O espaco nao seria nem um ponto de partida (ao mesmo tempo mental e social, como na hipotese filoséfica), nem um ponto de chegada (um produto social ou o lugar dos produtos), mas um intermedidrio em todos os sentidos desse termo, ou seja, um modo e um instrumento, um meio _e uma mediagao. Nessa hipéte- se, 0 espaco é um instrumento politico intencionalmente manipulado, mesmo se a intengao se dissimula sob as aparéncias coerentes da figura espacial. E um modo nas miaos de “alguém’, individual ou coletivo, isto é, de um poder (por exemplo, um Estado), de uma classe dominante 44 (a burguesia) ou de um grupo que tanto pode representar a sociedade global, quanto ter seus proprios objetivos, como 0s tecnocratas, por exemplo. Dai as questdes que 86 se colocam nessa hipétese: “Quem possui tal representagio do espago? E por qué?” Nessa hipétese, a representacéo do espaco sempre serviria a uma estratégia, sendo 20 mesmo tempo abstrata e concreta, pensada e desejada, isto é, projetada. Um tal espago se povoa segundo os decretos do poder, com um certo arbitrio; enquanto instrumento, ele pode reagir sobre os povoamentos preexistentes, a saber, os povoamentos hist6ricos, Enquanto mediagao, um tal espago instrumental per- mite tanto impor uma certa coesio (pela violéncia), quanto dissimular as contradigdes da realidade (sob uma aparente coeréncia racional e objetiva). Aqui, os termos “coesio” e “coeréncia” significam regulagdo buscada, pretendida, projetada, 0 que nao quer dizer obtida. A esse titulo, essa hipétese implica uma ambigiiidade, uma inclusao dissimulada do saber no ideolégico e da ideologia no saber. O espaco, assim definido, serve de mediagio entre esses termos. Um tal espago é ao mesmo tempo ideolégico (porque politico) e saber (pois comporta representacbes elaboradas). Pode-se, por conseguinte, denominé-lo racional- funcional, sem que tais termos possam separar-se, e funcional- instrumental, poisa fungao, no quadro global da sociedade neocapitalista, implica o projeto, a estratégia. Nessa hipétese, repitamos, 0 espaco, ao mesmo tempo funcional e instrumental, vincula-se A reprodugao da forga de trabalho pelo consumo, Pode-se dizer que ele 60 45 meio € 0 modo, ao mesmo tempo, de uma organizagio do consumo no quadro da sociedade neocapitalista, isto é, da sociedade burocratica de consumo dirigido. Em verdade, a aparente finalidade da sociedade, o consumo, se define pela reprodugio da forga de trabalho, ou seja, das condicées do trabalho produtivo. As cidades seriam t8o-somente unidades de consumo correlatas as grandes unidades de producao. Pode-se dizer que essa hipdtese reencontra, A sua maneira, a teoria da falsa consciéncia, jd mencionada, a propésito da segunda hipétese. De acordo com ela, haveria: a. uma consciéncia verdadeira, a da classe operaria, a0 menos como consciéncia possivel, represen- tada pela filosofias* b. a essa consciéncia, totalmente verdadeira da totalidade, opor-se-ia uma consciéncia falsa, ada burguesia. A partir dessas pressuposicées, Joseph Gabel’ desenvolveu uma tese, segundo a qual a espacializagio caracteriza a “falsa consciéncia’ uma falsa consciéncia mérbida, a do alienado (esquizdide), caso-limite da representacaio falsa. Esse espaco seria o lugar da reificacao, um lugar fora do tempo, fora da vida e da praxis, Nessa perspectiva, por conseguinte, o espago instru- mental teria uma “fungao especifica” No lugar de definir a inteligibilidade (primeira hipotese), ele definiria a realizagao-reificagao das relagoes sociais, a0 mesmo tempo quea falsa consciéncia dessas relacdes. A teoria do espago mental inte- ligivel se ope a do espaco social como cilada. A teoria do espaco inteligivel e do primado (filos6- fico) do espago se opde o primado do tempo. 46 ‘ereerenapee: A cilada na qual a burguesia captura a classe operdria acaba sendo, no limite, sua propria armadilha: espaco doentio ou espago de doenga social. De todo modo, nessa hipstese o espaco nao seria uma representacao inocente, mas veicularia as normas e os valores da sociedade bur- guesa e, de inicio, o valor de troca ea mercadoria, isto é, 0 fetichismo. No limite, ndo ha mais exatamente ideologia, mas somente falsa consciéncia, com os discursos que ela engendra, Objecées: essa vinculagao 4 produgao, do espaco em geral e do espago urbano em particular, abrange somente areprodugao dos meios de produgdo, dos quais faz parte a forga de trabalho, Ora, essa hipdtese convém ao capitalismo do século XIX, ao capitalismo concorrencial, cujo problema principal era re-produzir materialmente seus meios de produciio (maquinas e forca de trabalho) ¢ permitir 0 consumo dos produtos, ou seja, a compra no mercado. Sistema contratual (0 contrato de trabalho), sistema juridico (0 cédigo civil e 0 cédigo penal) quase bastavam para assegurar, com a venda da forca de trabalho, essa re-produgao dos meios de produgao. £ claro que nessas condigdes 0 espaco era, entio, simplesmente funcional ¢ instrumental. A cidade tradicional tinha, entre outras, essa fungao de consumo, complementar a produgio. Mas a situagtio mudou: 0 modo de producio capitalista deve se defender num front muito mais amplo, mais diversificado e mais complexo, a saber: a re-produgao das relagdes de producdo. Essa re-producio das relacdes de producao nao coincide mais com a reprodugio dos meios de produgao; ela se efetua através da cotidianidade, através dos lazeres € da cultura, através da escola e da universidade, através das 47 extensdes e proliferacdes da cidade antiga, ou seja, através do espago inteiro, 11. Quarta hipotese, Nao se pode dizer que o espaco seja um produto como um outro, objeto ou soma de objetos, coisa ou colegao de coisas, mercadoria ou conjunto de mercadorias, Nao se pode dizer que se trata simplesmente de um instrumento, o mais importante dos instrumentos, © pré-suposto de toda produgio e de toda troca. O espaco estaria essencialmente ligado a reproducio das relacdes (sociais) de produgio, Noutras palavras, essa teoria envolve a terceira hipdtese levando a anélise mais longe, modifi- cando-a um pouco, Para compreendé-la, é preciso tomar como referéncia a reprodugao das relagdes de produgao, ¢ nao a produgao no sentido restrito dos economistas, isto & 0 processo da produgao das coisas e de seu consumo, Portanto, © espago da produgao, nesse sentido amplo, implicaria e conteria em sia finalidade geral, a orientacao comum a todas as atividades na sociedade neocapitalista. © espago seria, desse modo, uma espécie de esquema num sentido dinamico comum as atividades diversas, aos trabalhos divididos, a cotidianidade, as artes, aos espacos efetuados pelos arquitetos ¢ pelos urbanistas. Seria uma relagéo ¢ um suporte de ineréncias na dissociacao, de inclusao na separagio. Seria, portanto, um espago ao mesmo tempo abstrato- concreto, homogéneo e desarticulado, que se deveria reencontrar nas cidades novas,* na pintura, na escultura e na arquitetura, e também no saber. Precisemos bem e insistamos sobre essa andlise de um espago homogéneo e desarticulado. Trata-se da produgio no sentido amplo: produgio de relagdes sociais e re-produgaio 48 de determinadas relagdes. F nesse sentido que o espago inteiro torna-se o lugar dessa reproducao, ai incluidos © espaco urbano, os espacos de lazeres, os espagos ditos educativos, os da cotidianidade etc. Essa reprodugio se realiza através de um esquema relativo a sociedade existente, cujo carater essencial é ser conjunta-disjunta, dissociada, mantendo uma unidade, a do poder, na fragmentagao. Esse espaco homogeneo-fraturado nao é somente 0 espago global do planejamento ou o espaco parcelar do arquiteto e dos promotores imobilidrios, é também o espaco das obras de arte, por exemplo, o do mobilidrio e do design. E oestetismo que unifica os fragmentos funcionais de um espaco deslocado realizando, assim, seu carter homogéneo e fraturado, Esse espaco, homogéneo e contudo deslocado, recortado eentretanto ordenado, desarticulado e todavia conservado, 60 espaco onde o centro, explodindo, se enrijece, por exem- plo, nos centros comerciais, lugares onde o monofuncional permanece a regra, mas com um cenario e um estetismo nao-funcionais, com simulacros de festas e uma simulacao do lidico. E 0 espaco onde a conexao coercitiva se efetua por meio de um sistema de acessos &s partes deslocadas: 0 espaco, ao mesmo tempo informe e duramente constran- gedor das periferias e dos subiirbios; onde os cortigos, as favelas, as cidades de urgéncia completam os subtirbios residenciais; onde as normas reinam, prescrevendo as utilizagdes do tempo, enquanto se devota ao espaco toda espécie de discursos, interpretagées, ideologias e valores “culturais’, artisticos etc. Os lugares de lazeres, assim como as cidades novas, s0 dissociados da produgao, a ponto dos espagos de lazeres parecerem independentes do trabalho e “livres”, Mas eles 49 encontram-seligados aos setores do trabalho no consumo or- ganizado, no consumo dominado. Esses espacos separados da produgio, como se fosse possivel af ignorar o trabalho produtivo, sao os lugares da recuperacao. Tais lugares, aos quais se procura dar um ar de liberdade e de festa, que se povoa de signos que nao tém a produgio e o trabalho por significados, encontram-se precisamente ligados ao trabalho produtivo. E um tipico exemplo do espaco a0 mesmo tempo deslocado e unificado, Séo precisamente lugares nos quais se reproduzem as relagées de producao, ‘© que nao exclui, mas inclui, a reprodugao pura e simples da forga de trabalho. ‘Tudo isso se 1é nesses espacos, mas com dificuldades, pois o texto e 0 contexto estio embaralhados (como num rascunho). O que se 1é mal se concebe claramente se se parte do conceito de espaco, de um lado desarticulado e separado, e de outro, organizado ere-unido pelo poder. A esse espago, cujas “propriedades” situam-se na articulagéo da forma ¢ do contetido, corresponde um tempo que tem as mesmas “propriedades” O tempo, bem supremo, mercadoria suprema, se vende e se compra: tempo de trabalho, tempo de consumo, de lazer, de percurso etc, Ele se organiza em fungao do trabalho produtivo e da reproducio das relagdes de produgio na cotidianidade, O tempo “perdido” nao o é para todo mundo, pois € preciso pagar caro por ele, O pretenso “tempo livre” é apenas o tempo separado e mantido como tal nos quadros gerais. Quanto ao tempo imposto, aquele dos transportes e das formalidades, ja se sabe como ele se vincula de maneira deslocada ao tempo do trabalho. O tempo homogéneo enquanto tempo manipulado, organizado em quadros definidos ¢ ao mesmo tempo 50 deslocado, separado, tempo de trabalho, tempo dito livre, tempo imposto etc. Para compreender esse esquema do tempo e do espaco, é preciso retornar ao capitulo mal conhecido de Marx, a0 final @’O capital, intitulado “A formula trinitaria’. Nesse dificil capitulo, Marx explica a sociedade burguesa, a saber, a conjungao-disjungao de seus elementos. Retomemos os termos da andlise. Ha, na sociedade em ato, ou seja, na producio e na reproducao das relagoes: a. 0 capital e 0 Iucro do empreendedor, isto é, da burguesia; b. apropriedade do solo, com as rendas miiltiplas: do subsolo, da agua, do solo edificado, etc €. 0 trabalho, com o salério destinado a classe operaria. Esses trés elementos, unidos na sociedade em ato, so representados como separados, e sua separagdo tem um sentido objetivo, pois cada grupo parece receber uma parte determinada do “rendimento” global da sociedade. Ha, portanto, aparéncia alienada das relacdes sociais, aparéncia que representa um papel “real”, £ a iluso da separagao numa unidade, a da dominagao, do poder econémico e politico da burguesia. ‘A separagio é ao mesmo tempo falsa e verdadeira, Os elementos que aparecem separados aparecem como fontes dlistintas da riqueza e da produgio, ao passo que é somente stia ago comum que produz essa riqueza. Enquanto fontes distintas da riqueza social, os elementos parecem receber 51 a parte que lhes cabe do “rendimento” nacional, 0 que mascara o fato da riqueza social coincidir com a mais-valia global. Esse capitulo decisivo d'O capital se encontra no livro III, seco 7, cap. 48.° Nessa hipétese, a ideologia coincide com a pratic: separacdo na sociedade burguesa. A ideologia é de aceitar a dissociagao e consideré-la real. Abandona-se, assim, a unidade concreta que constitui a sociedade burguesa e aceita-se a ilusio que ela coloca em seu lugar (ao invés da mais-valia global: a teoria do rendimento nacional ~ do PNB ~ € de suas diversas fontes). Uma vez admitido 0 esquema conjunto-disjunto que caracteriza a pratica da sociedade burguesa, pode-se afirmar 0 que se quiser. A ide- ologia? Trata-se de verborragia ao lado dos “assuntos” Nossa hipstese sobre o espago conjunto-disjunto se vincula, pois, diretamente, ao esquema tripartite ow trini- trio da sociedade capitalista, segundo Marx. Essa hipdtese situa-se entre a da falsa consciéncia, que exclui a ideologia, ea da ideologia, que implica interpenetragio do verdadeiro e do falso, e exclui a falsa consciéncia, Ha uma praxis: as separagées sustentadas, mantidas, portanto, representadas através da agao que mantém os elementos da sociedade, mesmo na sua dissociagao. Essa acao é precisamente 0 esquema do espaco, esquema gerador ligado a uma praxis, a uma realidade e a uma verdade nos limites desta sociedade. Trata-se, conseqiien- temente, de ideologia ligada a um certo conhecimento nos limites de uma pratica social. Essa representagao é ao mesmo tempo aparente, pois os elementos que ela dissocia encontram-se ligados, e real, porque os elementos que ela mantém estio dissociados. Ela propicia discursos mais ou 52 menos aberrantes, cuija relagio com 0 conhecimento ou 0 erro variam, conforme se tome como referéncia & praxis burguesa (separagao e dissociagio) ou uma outra praxis possivel. Oespaco arquitetonico e urbanistico, enquanto espaco, tem essa dupla caracteristica: desarticulado e até estilha- ado sob a coeréncia ficticia do olhar, espaco de coagbes e de normas disseminadas. Ele tem esse carater paradoxal que se tenta definir aqui: junto e separado. E dessa maneira que ele é concomitantemente dominado (pela técnica) e nao-apropriado (para e pelo uso). Ele ¢ imediato e mediato, ou seja, pertence a uma certa ordem préxima, a ordem da vizinhanga, ea uma ordem distante, a sociedade, o Estado. A ordem proxima ea distante s6 tm uma coeréncia apa- rente que de modo algum impede a desarticulagio. Esse espaco depende de interesses divergentes e de grupos diversos que, no entanto, encontram uma unidadeno Fstado. Ele depende de uma encomenda e de uma demanda que podem nao ter nenhuma relacao e que, contudo, encon- tram um denominador comum sob a predominancia deste ou daquele interesse. Quanto a divisio do trabalho entre os que intervém no espago, a saber, o arquiteto, 0 promotor imobilidrio, 0 urbanista, o empreendedor etc., essa divisio do trabalho realiza esse misto de unificagao imposta e de desarticulagao que se procura analisar. Poder-se-ia mostrar que o espaco da pinturae da escul- tura constitui precisamente esse espaco retalhado, dividido em pedacos ¢, nao obstante, determinado globalmente. 12. Repitamos que o espaco inteiro torna-se o lugar da reproducio das relagoes de produsio. 53 Outrora, 0 ar ea égua, a luz e o calor eram dons da natureza, direta ou indiretamente, Esses valores de uso entraram nos valores de troca; seu uso e seu valor de uso, com os prazeres naturais ligados ao uso, se esfumam: ao mesmo tempo e que eles se compram e se vendem, tornam-se rarefeitos. A natureza, como o espaco, com o espago, é simultaneamente posta em pedacos, fragmen- tada, vendida por fragmentos e ocupada globalmente. E destruida como tal e remanejada segundo as exigéncias da sociedade neocapitalista. As exigéncias da recondugao das relacées sociais envolvem, assim, a venalidade generalizada da propria natureza. Em contrapartida, a raridade do espago, nas zonas industrializadas e urbanizadas, contrasta com 0 vazio dos espagos ainda desocupados, os desertos terrestres os espagos interplanetarios; a carestia do espago assim ocupado e rarefeito é um fenémeno recente, com conseqiiéncias cada vez mais graves, Esse espaco, sendo lugar e meio da pritica social na sociedade neocapitalista (isto é, da reprodugao das relacoes de producdo), assinala os seus limites. Os dirigentes politicos, cuja tética exprime atualmente as aliangas e compromissos entre as forcas armadas ¢ a tecnocracia, tém alertado em vio a opiniao ptiblica, formado comiss6es e comités de estudo, criado adminis- tragées e ministérios; em vao tém suscitado proposicdes; 0s especialistas podem se mobilizar, mobilizar os cientistas, colocar as questées do meio ambiente ou das contaminagdes; eles podem procurar, conscientemente ou nao, deslocar nesse sentido os objetivos, as lutas politicas; eles podem apresenté-las como simples etapas para uma realidade mais elevada, com ou sem a ajuda das ciéncias humanas. Eles podem pretender que os problemas urbanos, desde jd, sa0 54 de todos, ou, a0 contrario, que os técnicos € os tecnocratas podem resolvé-los. Esta sociedade nao pode sair de seu espaco. Supondo que este ou aquele o proponha, ela nao pode superd-lo. Ela s6 pode tender para a sistematizagao desse espaco, ou seja, para uma légica que nunca pode efetuar até o limite. Falamos de “producao do espaco”. Essa expressao indica um passo adiante na reflexao arquitetonica e urbanistica, ultrapassando esses setores e referindo-se ao conjunto da sociedade. Ela quer dizer que nfo consideramos o espaco como um dado a priori, seja do pensamento (Kant), seja do mundo (positivismo). Vemos no espago o desenvolvimento de uma atividade social. Distinguimos, portanto, o espago social do espago geométrico, isto é mental. Contudo, a expresso permanece ambigua. De fato, toda sociedade produz “seu” espago, ou, caso se prefira, toda sociedade produz “um” espaco. O que hé de novo na sociedade em que a manutengao das relagdes de produgao torna-se determinante, na qual, porém, astécnicase as forgas produ- tivas alcangaram um nivel desconcertante? que significa apalavra produzir? Significa ‘coisas’, objetos, mercadorias? Em termos marxistas, esse espaco seria uma superestrutura da sociedade dita industrial (capitalista ou nao), como sugere a hipdtese da falsa consciéncia? Seria somente uma representacio mais prxima da pritica que as outras? Serd necessario, portanto, precisar estes termos e este conceito: a produgao do espaco. 13. Espago ¢ ldgica. Uma semelhante ambigitidade se reencontra, Onde se situa a l6gica (posta, suposta, imposta)? Hoje ha um abuso curioso da nogio (mal elucidada) de logica. Ao longo dos discursos, descreve-se a “légica do 55 vivo", a “légica do saber” (a epistemologia), a “ldgica da sobrevivéncia’, a “logica do urbanismo”, a “légica da mercadoria’, a “légica do Estado” etc. Esse abuso coincide com o do sistema (ou as sistematizagées com a légica que elas implicam), Esse abuso é social ou politico, ideolégico ‘ou pratico, implicado no discurso ou inconsciéncia? Oespaco teria sua logica? © espago ora depende de uma logica preexistente, superior e absoluta, quase teolégica, ora ele é a propria ldgica, 0 sistema da coeréncia, ora, enfim, ele permite a coeréncia autorizando a légica da aco (praxiologia ou estratégia). Reencontram-se aqui as diversas teses sobre 0 espa¢o, tomado ora como modelo, ora como instrumento, ora como mediacao. Proposigdes: Nao tendo uma légica interna e propria, © espaco remete & légica formal e & metodologia geral. © espago comum as atividades diversas e parcelares, no quadro imposto da sociedade burguesa, éum esquema do qual essa sociedade se serve para tentar constituir-se em sistema, para atingir a coeréncia. Como? Mascarando suas contradig6es, af inchuidas as do proprio espaco, esse carter 20 mesmo tempo global e pulverizado, conjunto e disjunto. Acstratégia de classes tenta assegurar a reproducao das relagies essenciais através do espago inteiro, Nessa hipétese, nao ha espaco absoluto, seja vazio, seja pleno, a nao ser para o pensamento filoséfico-matemitico. O espago men- tal e social € um espago especifico, portanto, qualificado, mesmo se nao percebido como tal. E uma modalidade da producio numa sociedade determinada, no seio da qual contradigées e conflitos se manifestam. Existem, portanto, contradigdes do espaco, mesmo se dissimuladas ou mascaradas. Nessa sociedade o “real” 56 encontra-se no fim e nao no inicio. Dessa maneira, ele engloba o que se deixa integrar, como os processos integradores, Ele engloba aquilo que se deixa reduzir, af compreendido o imaginério. Essa sociedade nao obedece a uma légica. Repitamos: ela tende para isso. Ela nao é sistema. Ela se esforca para isso, reunindo a coacao e 0 emprego das representages. As contradigdes do espago nao advém de sua forma racional, tal como ela se revela nas matemtticas. Elas advém do contetido pratico e social e, especificamente, do contetido capitalista. Com efeito, 0 espago da sociedade capitalista pretende-se racional quando, na pratica, & comercializado, despedagado, vendido em parcelas. Assim, cle é simultaneamente global e pulverizado. Ele parece logico ¢ é absurdamente recortado. Essas contradigdes explodem no plano institucional. Nesse plano, percebe-se que a burguesia, classe dominante, dispoe de um duplo poder sobre espaco; primeiro, pela propriedade privada do solo, que se generaliza por todo o espaco, com excegao dos direitos das coletividades e do Estado. Em segundo lugar, pela globalidade, a saber, o conhecimento, a estratégia, a acio do proprio Estado. Existem conflitos inevitaveis entre esses dois aspectos, e notadamente entre o espago abstrato (concebido ou conceitual, global e estratégico) e 0 espaco imediato, percebido, vivido, despedacado e vendido. No plano institucional, essas contradigées aparecem entre os planos gerais de ordenamento e os projetos parciais dos mercadores de espago. (Semindrios sobre o espaco, realizado em Nanterre, Oxford etc., em 1972.) 87

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