You are on page 1of 23
; _ Janet Helmick Beavin i Paul Watzlawick : Don D. Jackson / aa Pe BU ee ; aU Capitulo 2 ALGUNS AXIOMAS CONJETURAIS DE COMUNICAGAO 21 IntRopucio As conclusées a que chegamos no primeiro capitulo salien- taram, geralmente, a inaplicabilidade de muitas nogdes psiquid- tricas tradicionais ao quadro de referéncia por nds proposto e, assim, parecerd, talvez, sobrat muito pouca coisa em que se possa basear o estudo da pragmatica da comunicagio humana, Quere- mos demonstrar agora que essa impressio é errénea, Contudo, para fazé-lo, temos de comegar por algumas proptiedades simples da comunicacZo que tém implicagdes interpessoais fundamentais. Ver-se-d que essas propriedades sfio da natureza dos axiomas, dentro do nosso cé4lculo hipotético de comunicagio humana. Quando eles tiverem sido definidos, estaremos entio em situagio * de examinar algumas de suas poss{veis patologias, o que ser4 feito no Capftulo 3. 2.2 A ImpossisitipapE DE Nao ComunIcaR 2.21 Em primeiro lugar, temos uma propriedade do comporta- mento que dificilmente poderia ser mais bdsica e que, no entanto, € freqtientemente menosprezada: o comportamento nao tem oposto. Por outras palavras, nfo existe um nio-comportamento ou, ainda em termos mais simples, um individuo nao pode nao se comportar. Ora, se est4 aceito que todo o comportamento, 44 numa situago interacional,® tem valor de mensagem, isto é, & comunicacao, segue-se que, por muito que o individuo se esforce, élhe impossfvel #Zo comunicar. Atividade ou inatividade, pala- vras ou siléncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros € estes outros, por sua vez, no podem mao responder a essas comunicagdes ¢, portanto, também esto comunicando. Deve ficar claramente entendido que a mera auséncia de falar ou de abservar nio constitui excegio ao que acabamos de dizer. O homem que num congestionado balcfo de lanchonete olha diretamente em frente ou o passageiro de avido que se senta de olhos fechados estdo ambos comunicando que néo querem falar a ninguém nem que falem com eles; e, usualmente, os seus vizi- nhos “recebem a mensagem” e respondem adequadamente, dei- xando-os sozinhos. Isto, obviamente, é tanto um intercAmbio de comunicacdo como a mais animada das discussdes. 7 Tampouco podemos dizer que a “‘comunicagéo” sé acontece quando é intencional, consciente ou bem sucedida, isto é, quando ocorre uma compreensio mitua. Se a mensagem enviada: iguala a mensagem recebida é uma importante mas diferente ordem de (8) Poderfamos acrescentar que um indivfduo, mesmo sozinho, tem a possibilidade de dialogar em fantasia, com as suas alucinagdes (15) ou com a vida (s, 8.3). Talvez essa “comunicacao” interna obedeca a algumas das mesmas regtas que: governam a comunicacdo-interpessoal; contudo, tais fendmenos inobservAveis esto fora do ambito do significado que damos ao termo. (1) Pesquisas muito interessantes neste campo foram sealizadas por Luft (98), que estudou aquilo a que chama “privagio de estimulo social”. Reuniu dois estranhos numa sala, félos sentarem-se diante um do outro ¢ instruiu-os “para que nao falassem nem comunicassem um com o outro, de maneira alguma”. As entrevistas subseqiientes revelaram a natureza altamente tensa dessa situagio, Citando o autor: (...) ele tem & sua frente o outro individuo, com. seu comporta- mento manifesto, embora mudo, Neste ponto, é postulado, tem lugar a verdadeira prova interpessoal « sé parte da mesma pode ser realizada conscientemente. Por exempla> como reage o autto sujeito ao primeiro individuo ¢ as pequenas pistas ndo-verbais este Ihe envia? Haverg uma tentativa de compreender seu o intertogativo, ou ser4 friamente ignorado? _O outro sujeito exibird pistas posturais de tens&o, indicando 4 existéncia de alguma afligio ao confronté-lo? Ficard cada vez mais 4 vontade, indicando alguma espécie de aceitagZo, ou _o outro tratf-lo-4 como se fosse uma coisa, algo que nao existe? Estas ¢ muitas outtas espécies de comporta- mento facilmente discernivel parecem ter lugar... 45 andlise, pois que deve assentar, fundamentalmente, nas avaliagdes de dados espectficos, introspectivos, relatados pelo sujeito, os quais preferimos negligenciar para a exposicio de uma teoria -comportamental da comunicagio. Sobre a questa da incom- preensdo, o nosso interesse, dadas cettas propriedades formais da comunicagio, vai para.o desenvolvimento de patologias afins, 4 margem das motivagdes ou intengdes dos comunicantes (na vet- dade, a despeito das piesmas). 2.22 No que precede, 0 termo “comunicacio” foi usado de duas maneitas: como titulo genérico do nosso estudo e como uma unidade vagamente definida de comportamento. Sejamos agora mais precisos, Continuaremos, é claro, a teferir-nos ao aspecto pragmético da teoria de comunicacio humana, simplesmente, como “comunicacio”, Quanto ds vdcias unidades de comunicagio (comportamento), procuramos selecionar termos que j4 840 geral- mente compreendidos, Uma unidade comunicacional isolada serd chamada szensagem ou, quando nao houver possibilidade de con- fusfio, waa comunicagéo, A uma série de mensagens trocadas entre pessoas chamaremos interagdo. (Pata os que anseiam por umg quantificagio mais precisa, diremos apenas que a seqiiéncia a que nos referimos pelo termo “interacio” € maior do que uma mensagem mas nao infinita.) Finalmente, nos Capiftulos 4-7, actescentaremos os padrGes de interagZo, que constituem uma unidade de comunicagao de nivel ainda superior. Além disso, mesmo a respeito da unidade mais simples poss{vel, serf Sbvio que, uma vez aceito todo o comportamento Como comunicacZo, nao estaremos lidando com uma unidade de Mensagem monofénica mas com um complexo fluido e multifa- cetado de numerosos modos de comportamento — verbais, tonais, posturais, contextuais, etc. — que, em seu conjunto, condicionam 0 significado de todos os outros. Os varios elementos desse com- plexo (considerade como um_todo) sio capazes de permutas muito variadas e de grande complexidade, que vio desde o con- gruente ao incongruente e paradoxal,. O efeito pragmdtico dessas combinagGes, nas situagSeS interpessoais, ser4 de interesse aqui. 2.23 A impossibilidade de nao comunicar é um fendmeno de inte- resse mais do que simplesmente teérico, Por exemplo, faz parte do “dilema’’ esquizofrénico. Se o comportamento esquizofrénico 46 for observado pondo de lado consideragées etiolégicas, parecerd que 0 esquizofrénico-tenta nZ0 comunicar. Mas como o disparate, o siléncio, o ensimesmamento, a imobilidade (siléncio postural) ou qualquer outra forma de rentincia.ou negacio ¢, em si, uma comunicacio, o esquizofrénico defronta-se com a tarefa impos- sfyel de negar que. esté comunicando e, ao mesmo tempo, negar que a sua negacZo é uma comunicacic. A compreensdo desse dilema bdsico é uma chave para numetosos aspectos da comu- nicagéo esquizofrénica que, de outro modo, permaneceriam obscuras. Como qualquer comunicagao, como veremos, implica um compromisso e, por conseguinte, define a concepgio do emis- sor de suas relacSes com o receptor, podemos formular a hipétese de que o equizofrénico se comporta como se evitasse qualquer compromisso — nao comunicando, Se é essa a sua finalidade, no sentido causal, é impossivel provar, evidentemente; que esse & @ efeito do comportamento esquizofrénico serd abordado em maior detalhe na s. 3.2. 2.24 Em resumo, podemos postular um axioma metacomunica- cional da pragmdtica da comunicagio: nao se pode nao comunicar. 2.3 O Conretno & Nivzis pe ReLagéo pa. Comunicagio 2.31 Um outro axioma foi insinuado acima, quando sugerimos que qualquer comunicagao implica um cometimento, um compro- misso; e, por conseguinte, define a relagio, Isto é outra’maneira de dizer que uma comunicagio nao sé transmite informagio mas, ao mesmo tempo, impGe um comportamento, Segundo Bateson (132, p4gs. 179-81), essas duas operacdes acabaram sendo conhe- cidas como os aspectos de “relato” e de ‘“‘ordem”, respectiva- mente, de qualquer comunicagdo, Bateson exemplifica esses dois aspectos por meio de uma analogia fisiolégica: Sejam A, B e C uma cadeia linear de neurénios. Entao, 9 disparo do neurénio B é 0 “telato” que o neurénio A lhe enviou, a0 disparar, ¢ uma “ordem” enviada ao neuténio C pata que dispare. O aspecto “relato” de uma mensagem transmite informacio ¢€, portanto, é sinénimo, na comunicagio humana, do conteido 47 da mensagem. Pode ser sobre qualquer coisa que é comunicdvel, independentemente de essa informaco particular ser verdadeiza ou falsa, valida, invélida ou indetermindvel. O aspecto “ordem”, por outro lado, refere-se 4 espécie de mensagem e como deve ser considerada; portanto, em tiltima instancia, refere-se as relagdes entre os comunicantes. Todas estas definicdes de relacdes gravi- tam em torno de uma ou varias das seguintes assergdes; “Isto & como eu me yejo... Isto ¢ como eu vejo vocé Isto € como eu vejo que vocé me vé...” ete. numa regressdo teoricamente infinita, Assim, por exemplo, as mensagens “E importante soltar a embreagem gradual ¢ suavemente” e “Solte a embreagem de golpe, e a transmissio pifard num abrir e fechar de olhos” tém, aproximadamente, o mesmo contetido de informagao (aspecto de relato) mas definem, obviamente, relagdes muito diferentes. Para evitar qualquer incompreensdo sobre o que se diz acima, quetemos deixar bem claro que as relagdes sé raramente sao definidas de um modo deliberado e com plena conscincia. De fato, parece que quanto mais espontinea e “sauddvel” é uma relac&o, mais o aspecto relacional da comunicacio recua para um plano secundério. Inversamente, as relacdes ‘“‘doentes” sao carac- terizadas por uma constante luta sobre a natureza das, relagdes, tornando-se cada vez menos importante o aspecto de contetdo da comunicagio. 2.32 E muito interessante que antes de os cientistas behavioristas comec¢arem 4 ‘se interrogar sobre esses aspectos da comunicagiio humana, j4 os engenheiros de-computagio tinham deparado com © mesmo problema em seu trabalho. Tornou-se claro, para eles, que, quando se comunica com um organismo artificial, as comu- nicacGes tinham de apresentar os dois aspectos — 0 de relato e o de ordem. Por exemplo, se um computador vai multiplicar dois mimeros, ter-lhe-4 de ser alimentada essa informacio (os dois nimeros) e a informacio sobre essa informagio: a ordem de “multiplicar os ntimeros”. . Ora, o que & importante para o nosso exame é a relacio existente entre o contetido (relato) e a relagio (ordem) da comu- nicagZo. Essencialmente, foi definida no pardgrafo precedente, quando mencionamos que um computador necessita de informacio (dados) ¢ informagio sobre essa informagio (instrugées). Assim, as instrugdes sio, claramente, de um tipo Iégico superior aos dados; sio metainformagao, visto que constituem informacao 48 subre a informagio, ¢ qualquer confusdo entre as duas acarretaria um resultado anédino. 2.33 Se revertermos agora 4 comunica¢io humana, vemos que a mesma telagio existe entre os aspectos de relato e ordem: o primeiro transmite os “‘dados” da comunicacdo, o segundo coma essa comunicagao deve ser entendida. “Isto é uma ordem” ou “Estou sé brincando” sfo exemplos verbais de tais comunicagdes sobre comunicacéo, A relagio também pode ser expressa ndo-ver- balmente, por um grito, um sorriso ou muitos outros meios. E a relacao pode ser claramente entendida com base no contexto em que a comunicasao ocorre, por exemplo, entre soldados unifor- mizados ou na arena de um circo. O léitor terd notado que o aspecto relacional de uma comu- nicagfo, sendo uma comunicacio sobre uma comunicagao, é idén- tico, naturalmente, ao conceito de metacomunicagio desenvolvido no primeiro capitulo, onde ficou limitado & estrutura conceitual e a linguagem que o analista de comunicagio deve empregar quando comunica sobre comunicagZo, Podemos ver agora que nfo sé ele mas cada um de nés se defronta com esse problema. A capacidade de metacomunicar adequadamente é nao s6 a con- digdo sine qua non da comunicacao bem sucedida mas esté inti- mamente ligada ao grande problema da consciéncia do eu e dos outros. Este ponto serd explicado em maior detalhe na s. 3.3. De momento, e a titulo de ilustrago, queremos apenas mostrar que as mensagens podem ser interpretadas, especialmente na comunicagio escrita, o que oferece pistas metacomunicacionais sumamente amb{iguas. Conforme Cherry (34, p4g. 120) acentua, a frase “Voc® acha que aquele chegar4?” pode ter vétios signi- ficados, segundo a palavea que for acentuada — uma indicacZo que a linguagem escrita usualmente nao fornece. Um outro exemplo seria um letreiro num restaurante, dizendo: “Os clientes que acham os nossos empregados gtosseiros deviam ver o gerente”, uma frase que, pelo menos em teoria, pode ser enten- dida de duas maneiras inteiramente diferentes. As ambigiiidades desse género nfo so as tinicas complicagdes poss{veis que resul- tam da estrutura de nivel de toda a comunicacao; considere-se, por exemplo, um letreiro que avise: “DESPREZE ESTE AVI- SO”, Como veremos no capftulo sobre comunicagao paradoxal, as confuses ou contaminagdes entre esses niveis — comunicacdo 49 © metacomunicagio — podem redundar.em impasses idénticos, na estrutura, aos dos famosos paradoxos da Idgica. 2.34 . Por agora, resumamos apenas o que antecede num outro axioma do nosso célculo conjetural: Toda a comunicagao tem unt aspecto de contetdo e unt aspecto de comunicagio tais que o segundo classifica o primeira e é, portanto, uma metacomu- nicagao, 8 2.4 A Pontuacio pa Srqt@nctA pz Eventos 2.41 A préxima caracterfstica b4sica da comunicagio que dese- jamos explorar diz respeito a interag3o — troca de mensagens —~ entre comunicantes. Para um observador externo, uma série de comunicages pode ser vista como uma seqiiéncia ininterrupta de érocas, Contudo, os participantes na interacdo introduzem sempre © que, segundo Whorf (165), Bateson ¢ Jackson designaram por “pontuacdo da seqiiéncia de eventos”. Dizem eles: © psicélogo E-R confina tipicamente a sua atencdo a seqiiéacias de permuta tdo curtas que é impossfvel rotular um item de entrada como “estimulo” ¢ um outro item como “reforco”, enquanto se classifica o que o sujeito faz entre esses dois eventos como “res- posta”, Dentro da curta seqiiéncia assim comprimida, € poss{vel falar sobre a “psicologia” do sujeito. Em contraste, as seqiiancias * de permuta que estamos examinando aqui so muito mais extensas ¢, portanto, tém a catacterfstica de que todos os itens na seqtiéncia so, simultaneamente, estimulo, tesposta ¢ reforgo. Um dado item do comportamento de A €é um estimulo na medida em que é seguido de um, item fornecido por B e esse por um outro item fornecido por A. Mas na medida em que o item de A est4 comprimido entre os dois itens que foram a contribuicio de B, ele é uma resposta. (8) Algo arbitratiamente, preferimos dizer que a relagio classifica ou subsoma o aspecto de conterido, embora seja igualmente correto, em andlise légica, dizer que a classe é definida pelos seus membros e, pot- tanto, o aspecto de contetido definiria o aspecto de relacio, Como o nosso interesse primordial nao € a troca de informacio mas a pragmdtica da comunicagio, usaremos o primeiro critésio. . 30 ‘Analogamente, o item ce A é vm reforco na medida em que se segue a um item fornecido por B. As permutas em curso que estamos aqui analisando constituem, pois, uma cadeia de ligagoes triddicas sobrepostas, cada uma das quais ¢ compar4vel a uma seqiiéncla estimulo-resposta-reforco. Podemos tomar qualquer triade da nossa ita ¢ véla como uma prova isolada num experimento de aprendizagem de estimulo-resposta, Se observarmos desse ponto de vista os experimentos conven- cionais de aprendizagem, veremos imediatamente que as provas repe- tidas equiyalem a uma diferenciagao das relagdes entre os dois orga- nismos cnvolvidos: 0 rimentador ¢ o seu sujeito. A seqit cia de provas € tio pontuada que parece ser sempre 0 expetimentador uem fornece os “estimulos” ¢ os “reforgos”, enguanto o sujeito fornece as “respostas”. Estas wras $80 aqui deliberadamente tas entre aspas porque as definigdes de papel s6 sao ctiadas, de fato, pela disposicao do organismo em aceitar o sistema de pontua- go. A “realidade” das definigdes de papel € apenas da mesma ordem da realidade de um motcego num cartdo de Rorschach: uma criagio mais ou menos superdeterminada do processo perceptive. C tato que disse: “Consegui treinar o meu experimentador, Sempre que eu aperto este botao, ele me d4 comida”, estava recusando accitar a pontuacdo da seqiiéncia que o experimentador procurava impor. Também € verdade, porém, que numa longa seqiiéncia de pez- muta, 0 organismo envolvido —- especialmente no caso de pessoas — pontuard, de fato, a seqiiéncia de modo a ficar manifesto que um ou outro tem a iniciativa, o domfnio, a dependéncia etc. Isto é, estabelecerao entre eles padrdes de permuta (sobre os quais pode- TRO estar ou nfo de acordo) ¢ esses padrdes serao, de fato, as regras de contingéncia a respeito da troca de reforgo. Conquanto os ratos sejam amdveis demais pata reclassificar, alguns pacientes psiquidtricos nfo o sio°e criam traumas psicolégicos para o tera- peutal (19, pdgs, 273-74) Nao est4 aqui em pauta se a pontuagao da seqiiéncia comuni- cacional é, de um modo geral, boa ou md, como deve ser imedia- tamente ébvio que a pontuaco orga#iza os eventos comporta- mentais e, portanto, é vital para as interagdes em curso. Cultural- mente, compattilhamos de muites convenges de pontuagio que, embora nfo mais nem menos rigorosas do que outras concepgdes dos mesmos eventos, servem para organizar comuns e importantes seqiiéncias de intetacio.. Por exemplo, a uma pessoa que se comporta de certa maneira num grupo chamamos-lhe “lider” e a uma outra “adepto”, se bem que, se refletirmos, seja diffcil dizer quem chegou primeiro ou onde estaria um sem o outro. 2.42 , A discordincia sobre como pontuar a seqiiéncia, de eventos’ est na raiz de incontdveis Jutas em torno das relagdes. Supo- a1 nhamos que um casal tem um problema marital, para o qual o matido contribui com um retraimento passivo, enquanto os 50 por cento da esposa so censuras ¢ crfticas irritantes. Ao expli- car suas frustragdes, o marido dird que o seu tetraimento é a sua tinica defesa contra as implicancias da esposa, enquanto ela classificard essa explicagio de uma gtosseira e deliberada distorgio do que “realmente” acontece em seu casamento, notadamente, que ela o critica por causa da passividade do marido. Despojadas de todos os elementos efémeros ¢ fortuitos, as suas brigas consis- tem numa troca mondtona de mensagens: “Eu me retraio porque vocé implica” e “(Eu implico porque vocé se retrai”. Este tipo de interagio j4 foi mencionado de passagem na s. 1.65, Repte- sentado graficamente, com um ponto inicial arbitrdtio, a inte- ragfo do casal terd um aspecto mais ou menos assim: Hoe aA —_> Marido ~~, ~~ e eee stiliza Err E| e 3, 8 BST _Hos “Tm — _ _Hostiliza TT _ Hostilizg 52 Podemos ver que o marido apenas percebe as trfades 2-3-4, 4-5-6, 6-7-8 etc, em que o seu comportamento (setas cont{nuas ) é“meramente™ uma resposta ao comportamento dela (setas trace- jadas). Com a mulher, passa-se exatamente o inverso; ela pontua a seqiiéncia de eventos nas triades 1-2-3, 3-4-5, 5-6-7 etc. e vé-se como reagindo, tdo-somente, ao comportamento do marido mas naio o determinando. Na psicoterapia conjunta, com casais, um dos c6njuges mostra-se freqtientemente impressionado pela inten- sidade do que, na psicoterapia tradicional, seria designado como uma “distorcao da realidade” por ambas as partes. E muitas vezes diffcil acreditar que os dois individuos pudessent ter opi- niGes tio divergentes sobre tantos elementos de uma experiéncia conjunta. No entanto, o problema reside, primordialmente, numa drea jd freqtientemente mencionada: a incapacidade de ambos para metacomunicatem sobre os padrées respectivos de sua interacHo. Essa interagdo é de uma natureza oscilatéria sim-nio-sim-nio-sim, que teoticamente pode prosseguir ad infinitum: e quase invaria- velmente se faz acompanhar, como veremos adiante, pelas tipicas acusagdes de maldade ou loucura. Também as relacGes internacionais esto repletas de padrées andlogos de interacdo; veja-se, por exemplo, a andlise da corrida atmamentista, por C, E, M. Joad: (...) se, como eles sustentam, o melhor meio de preservar a paz € pteparar a, guetra, nao fica muito claro por que todas as nacdes encaram © atmamento de outras nagdes como uma ameaga A paz, Contudo, é assim que o encaram e, por conseguinte, sio estimuladas @ aumentar seus atmamentos pata suplantar os atmamentos pelos quais se julgam ameacadas {...) Sendo esse aumento de armas considerado, por seu turno, uma ameaga pela nago A, cujo arma- mento alegadamente defensivo provocou aquele, a nagao A usa esse aumento como pretexto para acumular ainda mais armamentos, com os quais s¢ defenda contra a ameaca. Contudo, essa mafor acumu- Jagdo de armamentos ~4, por sua vez, interpretada pelas nagdes vizi- has como uma ameaca contra elas préprias e assim por diante (...). (79, pag. 69) 2.43 _ Uma vez mais, a matemética fornece uma analogia descri- tiva: o conceito de “‘séries ascilantes ‘infinitas”. Conquanto a expressiio fosse apresentada muito mais tarde, séries desse género foram estudadas pela primeira vez, de um modo Idgico e coerente, pelo padre austrfaco Bernard Bolzano, pouco antes de sua morte em 1848, quando, segundo parece, ele estava profundamente Ppreocupado com o significado do infinito, As suas idéias foram 33 publicadas a titulo péstumo, na forma de um pequeno livro inti- tulado The Paradoxes of the. Infinite (30), que se tornou um cldssico da literatura matemdtica. Nele, Bolzano estudou varias espécies de séries (S$), das quais talvez a seguinte seja a mais simples: Ssa—ata—ata—ata—at+a—ata—.. Para os nossos fins, pode-se considerar que esta série repre- senta uma seqiléncia comunicacional de afirmagdes ¢ negagdes da mensagem a. Ora, como Bolzano demonstrou, essa seqiiéncia pode ser agrupada — ou, como nés dirfamos, pontuada — de muitas manciras diferentes mas aritmeticamente corretas.® © resultado é um limite diferente para a série, dependendo ‘de como se prefira pontuar a seqiiéncia de seus elementos, um resultado que deixou consternado muitos matemfticos, incluindo Leibnitz. Infelizmente, até onde nos é dado ver, a solugio do paradoxo oferecida, final- mente, por Bolzano nao traz qualquer ajuda para o andlogo dilema comunicacional. Como Bateson sugere (17), o dilema surge da pontuacao espuiria da série, notadamente, da pretensio de que tem um comego e ¢ esse, precisamente, o erro dos parceiros em tal situacio. 2.44 Assim, acrescentemos um terceito axioma metacomunica- cional: A natureza de uma relacao estd na contingéncia da pontua- ¢ao das segiléncias comunicacionais entre os comunicantes. (9) Os trés poss{veis agropamentos (“pontuagies”) sio: (a—a) + &p? + (aa) + (aa) +. 8 + ° +O+. Um outro modo de agrupar os elementos da seqiidncia serla: $= (a— a) —( a) — (a-~ a) — (aan a) —- oe =a—O— =a Ainda um outro modo seria: S=a—(a—ata—ata—ata—...) ¢, como os elementos contidos entre paréntesea nada mais sfo do que a propria série, segue-se que: Ssa~-—S a Logo: 28 = a,¢ S$ = zs (30, pags. 49-50) a4 2.5 Comunrcagio Dictra 2 ANALOGICA 2.51 No sistema nervoso central, as unidades funcionais (neuté- nios) recebem as chamadas “cargas* quanticas” de informacio através dos elementos de conexdo (sinapses). Quando chegam as sinapses, essas “‘cargas” geram potencisis excitatérios ou inibi- térios pés-sindpticos que sao totalizados pelo neurdnio e provo- cam ou inibem o seu disparo. Essa parte especffica da atividade neural, consistindo na ocorréncia ou nao-ocorréncia do seu dis- paro, transmite, portanto, informacio digital bindtia. O sistema humoral, por outro lado, nfo se baseia na digitalizagdo da infor- maco. Esse sistema comunica mediante a descarga de quanti- dades descontinuas de substancias especfficas na corrente san- guinea, Sabe-se também que os modos neural e humoral de comu- nicagZo intra-organfsmica existem nfo sé lado a lado mas que se complementam mutuamente e estdo na contingéncia um do outro, muitas vezes através de processos suniamente complexos. Os dois mesmos modos bdsicos de comunicagio podem ser vistos em funcionamento no campo dos organismos fabricados pelo homem: !° h4 computadores que utilizam o princfpio do tudo-ou-nada das vdlvulas eletrénicas ou transistores e sdo cha- mados digitais porque, basicamente, sio calculados para trabalhar com nimeros digitos; e hd uma outra classe de méquinas que manipulam grandezas distintas e positivas — andlogas dos dados — e que por isso se chamam avaldgicas. Nos computadores digi- (20) B devetas interessante o fato de haver razSes para acreditar que os engenheiros da informética chegaram a esse resultado de um modo totalmente independente do que os fisiologistas jf sablam na » fato que, por si s6, fornece uma bela ilustragiio do postulado de Von Berta- lanffy (25) de que os sistemas complexos tém sua prdpria legitimidade inerente que pode ser acompanhada através dos vdrios nivels sistémicos, -isto é os niveis atémico, molecular, celular, organfsmico, individual, social etc, Conta-se que, durante uma reunido interdisciplinar de cientistas inte- ressados nos fendmenos de Yetroalimentacio (provavelmente um dos sim- pésios da Fundagio Josiah Macy), o grande histologista Von Bonin viu o diagrama de instalagio de um dispositive de leitura seletiva e disse imedia- tamente: “Mas isto é um diagrama da terccira camada do cértex visual!” Nao podemos garantir a veracidade do episédia mas contamo-lo respaldados no provérbio italiano “Se non & vero, & ben trovato” (mesmo que nao seja verdade, é uma estéria bem bolada). 55 tais, os dados e¢ as instrugdes sfo processados na forma de aimeros, de modo que, amitide, especialmente no caso das instru- Ses, s6 existe uma correspondéncia atbitrdria entre o item parti- cular de informagao e 4 sua expressio digital, Por outras pala- vras, a esses niimeros sao arbitrariamente atribufdos nomes de cédigo que tém tio pouca semelhanga com, as grandezas reais quanto os mimeros de telefone com os seus assinantes. Por outro lado, como j4 vimos, o principio de analogia é a esséncia de toda a computacio analégica. Assim como no sistema humoral dos organismos naturais os veiculos de informac%o sfo certas subst@ncias e sua concentragdo na corrente sangufnea, também nos computadores andlogos os dados assumem a forma de quanti- dades descontfnuas e, no entanto, sempre positivas, por exemplo, a intensidade de correntes elétricas, o ntimero de rotagdes de uma roda, o gtau de deslocamento de componentes etc. O cha- mado mareémetro (um instrumento composto de réguas, rod{zios e alavancas usado para calcular as marés em qualquer momento dado) pode ser considerado um simples computador andlogo e, é claro, o homeostato de Ashby, mencionado no Capitulo 1, é um paradigma de uma maquina andloga, se bem que nio calcule coisa alguma. 2.52 Na comunicagdo humana, podemos nos referir aos objetos — na mais ampla acepodo da palavra — de duas maneiras inteira- mente diferentes. Podem ser representados por uma semelhanga, como num desenho, ou ser referidos por um nome, Assim, na frase escrita: “O gato apanhou o rato”, os substantivos poderiam ser substitufdos por desenhos; se a frase fosse falada, poderfamos apontar para o gato e o rato reais. Seria desnecessdrio acrescentar que isso seria um modo incomum de comunicagHo e, normalmente, usa-se o “nome” escrito ou falado, isto é, a palavra. Esses. dois tipos de comunicagio — um por semelhanca auto-explicativa, o outro por uma palayra — também sfo equivalentes, é claro, aos conceitos de analégico e de digital, respectivamente. Sempre que se usa uma palavra para denominar alguma coisa, é evidente que a relagio entre o nome e a coisa denominada é arbitrariamente estabelecida. As palavras sio sinais arbitrdrios que se manipulam de acordo com a sintaxe Iégica da linguagem. Nao existe qualquer motivo particular paré-que as quatro letras “‘g-a-t-o” denotem um determinado animal. Em ultima andlise, trata-se apenas de uma 56 convencao semantica da nossa linguagem e, fora dessa convensio, nao existe qualquer outra correlagao entre uma palavra e a coisa que ela representa, com a possivel mas insignificante excecio das palavras onomatopdicas. Como Bateson ¢ Jackson sublinharam: “Nada existe particularmente como-cinco no mimero cinco; nada existe particularmente como-mesa na palavra ‘mesa’” (19, pdg. 271). . . Na comunicacio analdgica, por outro lado, existe algo parti- cularmente “como-coisa” naquilo que € usado para expressar a coisa, A comunicagdo analdgica pode referir-se mais facilmente coisa que representa, A diferenga entre esses dois modos de comunicaciio talvez fique mais clara se compreendermos que por muito tempo que, se fique escutando uma Ifngua estrangeira no r4dio, por exemplo, nenhuma compreensfio da lingua resultard disso, enquanto que alguma informacio bisica pode ser facil- mente derivada da observagio de uma linguagem de sinais ou dos chamados movimentos intencionais, mesmo .quando usados por uma pessoa de uma cultura totalmente diferente. Sugerimos que a comunicacao analdgica tem suas rafzes em perfodos muito mais arcaicos da evolucdo ¢, portanto, é de muito maior validade geral do que o relativamente recente e muito mais abstrato modo digital de comunicagio verbal. O que ¢, pois, a comunicagio analdgica? A resposta é relati- vamente simples: virtualmente, é toda a comunicacao nio-verbal. Este termo, entretanto, € equivoco, porque esté freqiientemente resttingido aos movimentos corporais, apenas, ao comportamento conhecido como cinético, Nés sustentamos que o termo deve abranger postura, gestos, expressio facial, inflexdo de voz, seqiiéncia, ritmo e cadéncia das préprias palavras, e qualquer outra manifestagio nio-verbal' de que o organismo seja capaz, assim como as pistas comunicacionais infalivelmente presentes em qualquer contexfo em que uma interaco ocorra, 1? (11) A primacial significagio comunicacional do contexto & esque- cida com excessiva facilidade na andlise: da comunicago humana; entre- tanto, alguém que se pusesse a escovar os dentes numa rua movimentada, em vez de fazélo no seu banheiro, poderia ser rapidamente carregado para uma delegacia de polfcia ou para um manicOmio — para darmos apenas um exemplo dos efeitos pragmdticos da comunicagao nio-verbal. 37 2.53 . GO homem é o tinico arganismo conhecido que usa os modos analégico e digital de comunicagio.12 A significagao disso ainda € muito inadequadamente compreendida mas nio pode ser subes- timada. Por um lado, nao é possfvel duvidar de que o homem comunica digitalmente. De fato, a maioria se nao a totalidade de suas realizacGes civilizadas seria impens4vel sem que ele tivesse desenvolyido uma linguagem digital. Isto é particularmente importante para a partilha de informagées sobre objetos e para a funcio de transmissio oportuna de conhecimentos, Entretanto, existe uma vasta drea em, que confiamos quase exclusivamente na comunica¢ao analdgica, com freqiiéncia, sem mudangas apreci4- veis na heranga analdgica que nos foi transmitida pelos nossos mamfferos ancestrais. Trata-se da drea de relagdes. Baseado em Tinbergen (153) ¢ Lorenz (96), assim como em suas préptias pesquisas, Bateson (8) demonstrau que as vocalizagSes, os movi- mentos intencionais e os sinais de humor dos animais sio comu- nicagSes analdgicas pelas quais cles definem a natureza de suas relages, em vez de fazerem declaracdes denotativas sobre objetos. Assim, para usarmos um de seus exemplos, quando eu abro a geladeira e o gato vem rocar nas minhas pernas, miando, isso nao significa “Eu quero {cite — como um ser humano exptes- satia —- mas invoca uma relacdo especffica, “‘Seja mae para mim”, porque tal comportamento sé é observado .em crias, e relativa- mente a gatos adultos; nunca, porém, entre dois animais adultos. Inversamente, muitos amigos de animais domésticos estio conven- cidos de que os seus bichos de estimacdo “entendem” o que eles dizem. O que o' animal entende, seria desnecessdtio dizer, nfo é certamente o significado das palavras mas a riqueza de comu- nicagio analégica que acompanha a fala. Com efcito, sempre que a relagio é o ponto central da comunicagio, verificamos que a linguagem digital é quase anddina. Este nao é apenas o caso entre animais e entre homem e animal mas em muitas outras contingéncias da vida humana, por exemplo, no namoro, amor, socorro, combate ¢, é claro, em todo o trato com criancas muito pequenas ou pacientes mentais gravemente perturbados, Crian- gas, loucos € animais sempre tém sido creditados com uma intui- Gio particular a respeito da siriceridade ou insinceridade das (12) Hé razBes para acteditar que as balelas ¢ os golfinhos também podem usar a comunicagdo digital; mas as pesquisas nessa dtea’ ainda nfo so conchudentes. 58 atirudes humanas, pois é facil declarar alguma coisa verbalmente mas dificil transportar uma mentira para o domfnio ‘analdgico. Em resumo, se nos lembrarmos de que toda a comunicagiio tem um contetido e uma relagio, podemos esperar concluir que os dois. modos de comunicagio nao sé existem lado a lado mas complementam-se em todas as mensagens, Também poderemos esperar concluir que o aspecto de contetido tem toda a probabi- lidade de ser transmitido digitalmente, ao passo que o aspecto relacional ser4 predominantemente analdgico em sua natureza, 2.54 Nessa correspondéncia reside a importancia pragmdtica de certas diferencas entre os modos digital e analépico de comuni- cago que serio agora examinadas. Para tornar esses diferengas bem claras, podemos reverter aos modes digital e analdgico tal como sao representados nos sistemas artificiais de comunicagao. O desempenho, exatidio e versatilidade dos dois tipos de computadores — digitais ¢ anélogos — sio muito diferentes. analogias usadas em computadorés andlogos, em vez de grandezas reais, nunca podem ser mais do que aproximacdes dos valores reais e essa fonte onipresente de inexatidao é ainda mais aumen- tada durante o processo das prdprias operagdes do computador. Rolamentos, caixas de engrenagem e transmissdes nunca podem set fabrigados com perfeicdo absoluta, « mesmo quando as méquinas andlogas confiam inteiramente em intensidades distintas de cotrentes elétricas, resist@ncias elétricas, redstatos etc., essas analogias ainda estio sujeitas a flutuagdes virtualmente incontro- léveis. Uma méquina digital, por outra parte, funciona com toda perfeigio se 0 espago para atmazenar dfgitos nfo for limi- tado, tornando assim necessdtio atredondar quaisquer resultados que tenham mais digitos do que a m4quina pode suportar. Quem tiver usado uma régua de cdlculo (um excelente exemplo de um computador andlogo) sabe que poderd obter apenas um resultado aptoximado, enquanto que qualquer calculadora de esctitério forneceré um resultado exato, desde que os digitos requeridos -ndo excedam o méximo que a calculadota pode operar. A parte essa preciso perfeita, o computador digito tem a enorme vantagem de ser nfo sé uma mdquina aritmética mas também /dgica. McCulloch ¢ Pitts (101), mostraram que as dezesseis fungdes verdadeiras do célculo Iégico podem ser repre- sentadas por combinagdes de érgaos tudo-ou-nada, pelo que, por 59 exemplo, a soma de duas pulsagGes representard 0 “‘e” Iégico e a exclusividade miitua de duas pulsagdes representa o “ou” légico, uma pulsagio que inibe o disparo de um elemento representa negagao etc. Nada existe de compardvel, mesmo remotamente, em computadores andlogos. Como sé operam com quantidades positivas e descontinuas, sao incapazes de representar qualquer valor negativo, incluindo a prépria negagio, ou qualquer das outras fungSes de verdade, . Algumas das caracterfsticas dos computadores também se aplicam 4 comunicagio humana: o material de mensagem digita € de um grau muito mais elevado de complexidade, versatilidade e abstragdo do que o material analégico. Especificamente, verifi- camos que a comunicagio andloga nada tem de compardvel. com a sintaxe Iégica da linguagem digital. Isto significa que, na linguagem analégica, no existem equivalentes para elementos tio vitalmente importantes do discurso como “se... entio”, “ou... ou” ¢ muitos outros, e que a expresso de conceitos abstratos € tao diffcil, se nio impossfvel, quanto na primitiva escrita pictografica, em que cada conceito s6 podia ser represen- tado pela sua semelhanga fisica. Além disso, ‘a linguagem analé- gica divide com o célculo analégico a auséncia da negativa.sim- ples, isto’ é, uma expressiio para “ndo”, . A titulo ilnstragivo: h4 l4grimas de dor ¢ ligrimas de jubilo, o punho fechado pode assinalar agressio ou conten¢io, um sor- tiso pode transmitir simpatia ou animosidade, as reticéncias podem ser interpretadas como tato ou come indiferenga, e seria caso para perguntar se todas as mensagens analdgicas nao terio, talvez, essa curiosa qualidade ambfgua, que nos lémbra o Gegen- sin: der Urworte (sentido antitético das palavras primevas), de Freud. A comunicasao analégica niio tem qualificadores para indicar qual de dois significados discrepantes estd subentendido nem quaisquer indicadores que permitam uma distingio entre passado, presente e futuro.18 Esses qualificadores ¢ indicadores a (18) © leitor ja teré descoberto, por esta altura, como. existe uma s¢melhanga sugestiva entre os modos de comunicacio analdgico e digito e os conceitos psicanalfticos de processos primdrios ¢ secunddrios, respecti- vamente, Se a transpusermos do quadro de referéncia intraps{quico para © interpessoal, a descricdo freudiana do Id ‘converte-se, virtualmente, numa definigdo da comunicagia analégica: 60 existem, € claro, na comunicagao digita. Mas o que falta nesta €um vocabulério adequado para as contingéncias de relagdes. O homem, na sua necessidade de combinar essas duas lingua- gens, como emissor ou como receptor, deve fraduzir constante- mente uma para a outra e, ao fazé-lo, depara com dilemas muito curiosos, que abordaremos em maior detalhe no capitulo sobre comunicacio patolégica (s. 3.5). Pois na comunicacio humana a dificuldade de tradugio existe nos dois sentidos. Nao s6 é impossivel haver tradugdo do modo digital pata o analégico sem grande perda de informagio (ver s. 3.55 sobre a formagio histé- rica de sintomas) mas o inverso também é extraordinariamente dificil: falar sobre relagdes requer uma tradugo adequada do modo analdgico para o dfgito de comunicagio. Finalmente, pode- mos imaginar problemas semelhantes quando os dois modos tém de coexistir, como Haley notou em seu excelente capitulo, “Mar- riage Therapy”: Quando um homem e uma mulher decidem que a sua associacio deve ser Jegalizada com uma ceriménia matrimonial, cles propGem-se um problema que continuard durante todo o casamento: agora que estdo casados, permanecem juntos porque desejam ou porque devem? (60, pag. 119) A luz do precedente, dirfamos que, quando a parte mais ana- iégica de suas relagSes (o comportamento de namoro) € adicio- nada a digitaliza¢do (o contrato matrimonial), uma definicao nio-ambigua de suas relagSes torna-se muito problemdtica. 4 2.55 Em resumo: Os seres bumanos comunicam digital e analogi- camente. A linguagem digita é uma siniaxe Idgica sumamente complexa e poderosa mas carente de adequada semdntica no campo das relag6es, ao passo que a linguagem analdgica possui @ semantica mas nao tem uma sintaxe adequada para a definigao ndo-ambigua da natureza das relagées. As leis da IMgica — sobtetudo, a let da contradigio — nio sdo vdlidas para os processos do id, Existem impulsos contraditérios fado a lado, sent se neutralizarens mutuamente nem se repelirem. (...) Nada existe-no id que possa ser comparado A negacdo ¢ cau- S&nos espanto encontrar nele uma excegio A assercio dos fildsofos de que o espago e o tempo sio formas necessdtias dos nossos atos mentais. (49, pg. 104; 0 grifo é nosso) (24) Pelos mesmos motivos, é possivel sugerir que 9 divércio seria sentido como algo muito mais definitivo se 0 usualmente seco ¢ desinteres- sante ato legal de obtengdo da sentenca final fosse implementado por alguma forma de ritual analégico de separagao final. 61 2.6 InTERAGKO Simérrica 2 COMPLEMENTAR 2.61 . Em 1935, Bateson (6) descreveu um fenémeno interacional por ele observado na tribo Jatmul da Nova Guiné e do qual, em sev livro Naver (10), publicado um ano depois, se ocupou em maior detalhe. Deu a esse fendmeno o nome de cismogénese e definiu-o como um processo de diferenciagdo nas normas de comportamento individual resultante da interagao cumulativa entre individuos. Em 1939, Richardson (125) aplicou esse con- ceito as suas andlises da guerra ¢ da polftica externa; desde 1952 que Bateson e outros vém demonstrando a sua utilidade no campo da pesquisa psiquidtrica (Cf. 157, pdgs. 7-17; também 143). Esse conceito que, como vimos, tem um valor heurfstico que excede os limites de qualquer disciplina, singularmente conside- rada, foi elaborado por Bateson em Naven da seguinte mancira: Quando a nossa disciplina é definida em fungio das reagSes de um individuo as reagdes de outros individuos, tornase imedia- tamente evidente que devemios considerar as relagdes entre dois indi- viduos como suscetiveis de alteracdo, de tempos em tempos, mesmo sem qualquer perturbacdo de origem externa. ‘Temos de considerar nfio 86 as reacées de A ao comportamento de B mas devemos exa- minar também como essas reagées afetam o comportamento ulterior de B ¢ 0 efeito deste em A. E imediatamente ébvio que muitos sistemas de relagdes, entre indivfduos ou grupos de individuos, contém uma tendéncia para a mudanga progtessiva, Sc, por cxemplo, um dos padrées de compor- tamento cultural, considerado apropriado no individuo A, for cultu- talmente classificado como um padrao imperativo, enquanto que s¢ caper de B que reaja’ao mesmo no que é culturafmente considerado missdo, & provdyel que essa submissio encoraje a afitmacio e que esta afirmagio exija ainda mais submissio, ‘Temos, assim, um estado de coisas progressive ¢, a menos que outros fatores estejam Presentes para restringir os excessos de comportamento imperativo ¢ submisso, A tornar-se-d necessarlamente mais imperativo e B cada vez mais submisso; ¢ essa mudanga progtessiva ocorrerd quer A ¢ B sejam individuos independentes ou membros de grupos comple- mmentares. As mwudangas progressivas desse géncro podem ser descritas como cismogénese complementar, Mas existe um outro padrio de relagSes entre individuos ou grupos de individuos que contém igual- mente os germes da mudanca progtessiva. Se, por exemplo, encon- tramos a jactincia como padrdo cultural de comportamenta num grupo € o outro grupo responde a isso com jactancia, podese desen- volver uma situacio competitiva em que as atitudes jactanciosas 62 redundam em ,novas jactancias ¢ assim por diante, A cste tipo de saadanga, progressive poderemos chamar cismogénese simétrica. (10, 2.62 Os dois padrdes que acabam de ser descritos passatam a ser usados sem referéncia ao processo cismogenético e, atualmente, so citados apenas como interacZo simétrica e complementar. Podem. ser descritos como relacdes baseadas na igualdade ou na diferenga. No primeiro caso, os parceiros tendem a refletir o comportamento um do outro e por isso € que a sua interagio pode chamar-se simétrica. Fraqueza ou forga, bondade ou mal- dade, nZo so aqui pertinentes, pois a igualdade pode ser mantida em qualquer dessas dreas. No segundo caso, o comportamento de um parceiro complementa o do outro, formando uma espécie diferente de Gestalt comportamental, e dé-se-lhe o nome de complementar. Assim, a interagdo simétrica € caracterizada pela igualdade e a minimizagio da diferenca; a interacio complementar baseia-se na maximalizacio da diferenga. Existem duas posigdes diferentes numa relacio comple- mentar, Um parceito ocupa o que tem sido diversamente descrito como a posicgio superior, primdtia ou “de cima” e o outro a correspondente posi¢ao inferior, secunddria ou “de baixo”. Estes termos sio muito uteis, desde que equiparados a “bom” ou “mau”, “forte” ou “fraco”. Uma relaco complementar pode ser estabelecida pelo contexto social ou cultural (como no caso de mie e filho, médico e paciente, professor e aluno) ou pode ser o estilo de relagio idiossincrésica de uma determinada dfade. Num ou outro caso, é importante enfatizar a natureza conjugada da relacgio, em que comportamentos dessemelhantes mas ajustados se provocam mutuamente. Um. parceiro néo impde uma relagio complementar ao outro mas, antes, comporta-se de maneita que pressupde o comportamento do outro, enquanto que, a0 mesmo tempo, fornece razdes pata tal comportamento: as respectivas definigdes de relagio (s. 2.3) encaixam-se. 2.63 Um terceiro tipo de relagSes foi sugerido: a ‘‘metacomple- mentaridade”, em que A deixa ou forca B a encarregat-se dele; pelo mesmo raciocfnio, poderfamos também acrescentar a “pseudo- -simetria”, em que A deixa ou forca B a ser simétrico. Esta regressio potencialmente infinita pode, entretanto, ser evitada se 63 recordarmos a distingfo. anteriormente feita (s. 1.4) entre a observac3o de redundancias comportamentuis e suas explicagdes inferidas, na forma de mitologias; isto é, estamos interessados em Como o par se comporta sem ser distrafdo por por qué (eles créem) -assim se conduzem. Entretanto, se os individuos envol- vidos se aproveitam dos n{veis muiltiplos de comunicacao (s. 2.22) pata expressar diferentes padrdes em diferentes nfveis, podem surgir resultados paradoxais de significativa importancia pragmatica (s. 5.41; 6.42, ex. 3: 7.5, ex. 2d). 2.64 As patologias potenciais (escalada em simetria ¢ rigidez em complementaridade) desses modos de comunicacio serio abor- dadas no préximo capftulo, De momento, podemos enunciar simplesmente o nosso ultimo axiomd conjetural: Todas as permu- tas comunicacionais ou sao simétricas ou complementares, segundo se baseiem na igualdade du na diferenca. 2.7 Resumo Quanto aos axiomas acima, em geral, algumas limitagdes devem ser aqui enfatizadas de novo, Primeiro, convém que fique claro terem sido propostos conjeturalmente, algo informalmente definidos ¢ certamente a titulo mais preliminar do que exaustivo. Segundo, so entre eles muito heterogéncos, na medida em que os extraimos de uma yasta gama de observagdes sobre os fend- menos da comunicagio. Foram unificados nao pelas suas origens toas pela sua importancia pragmdtica, a qual, por seu turno, assenta nao tanto em seus particulares quanto em sua referéncia mais interpessoal do que monédica. Birdwhistell foi ainda mais longe, ao sugerir que . um individuo nfo comunica; ele se envolve em comunicacio ou torna-se parte da comunicacio, Pode movimentar-se ou fazer rufdos +.) mas nio comunica, De um modo paralelo, ele pode ver, pode ouvir, cheirar, provar ou sentir — mas no comunica. Por outras palavras, cle nao origina a comunicacho; participa dela, Por- tanto, a comunicagzo como sistema nao deve ser entendida como um slmples modelo de, agdo ¢ reagdo, por mais complexamente que seja to. sistema, tem de ser compreendido no nfvel transacional. (28, p4g. 104) “ 64 Assim, a impossibilidade de nado comunicar faz com que todas as situagdes de duas-ou-mais-pessoas sejam jinterpessoais, comunicativas; 0 aspecto de relagdo de tal comunicagio especi- fica ainda mais esse mesmo ponto. A importincia pragmdtica, interpessoal, dos modos digital e analdgico nao reside ‘no seu hipotético isomorfismo com o contetido e a relacdo mas na inevitavel e significativa ambigiiidade que tanto o emissor como © receptor enfrentam nos problemas de tradugio de um modo para o outro. A descrigtio dos problemas de pontuacio assenta, ptecisamente, na metamorfose latente do modelo clissico de agio- -teacio. Finalmente, o paradigma simetria-complementaridade 6, talvez, 0 que mais se aproxima do conceito matemético de funcao, sendo as posicGes dos individuos, meramente, variéveis com uma infinidade de valores posstveis cujo significado nao “é absoluto mas, outrossim, se manifesta unicamente em relacdo de recipro- cidade. 65

You might also like