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EDICAO STANDARD BRASILEIRA DAS OBRAS PSICOLOGICAS COMPLETAS DE SIGMUND FREUD Com os Comentérios e Notas de JAMES STRACHEY Em colaboragio com ANNA FREUD Assistides por ALIX STRACHEY e ALAN TYSON VOLUME xxi (1932-1936) NOVAS CONFERENCIAS INTRODUTORIAS SOBRE PSICANALISE. E OUTROS TRABALHOS Diregdo da Edigao Brasileira de JAYME SALOMAO IMAGO EDITORA Rio de Janeiro to rofrdos nae Notas do verses trabaios do presente volume Os til oiginae dos ol tor Ingle James Stachey) que proseder c2 mes CCopynigh under he intemationa and Pan American Conventions by IMAGO EDITORA Copyright © Portuguese Translation by 1059 Aight reserves, Copyright© James Strachey — Annotations, edtoril mater and arrangements 1969. Tradupdo: José Luiz Meurer iP-Brasi Catalogagso.nafonte Sinieato Nacional dee Edtores Ge Les, Rd Freud, Sigmund, 1856-1998 sas ht paced sng de Sgn Feu eons com coments fois ae lame Sache: et clr se aah Sac «An oon wes do steniowss ini 00 a drera0 geal ae Jayne Saloma ~ Ro de Jano: mage, Traduglo de: Th standard eon of he complete psychological works oF Sigmund Froud ‘aosndlce, Blosorata 0420 1, Psiandlse 1. Strachey, James. Freud, Anna, 1895-1082. .Titl, 00 - 150052 seams (CDU - 159.904.25FREUD Rosado ods on dros. Nena pare la mone, processofatomecsnco ove {nico sem petmantoexpresea oa Gotan 2008 Imaco EDITORA Func gutana, 2 nar Conro 20017-030-— Rie de Jane Tel: (21)2242.0627 — Fax (23) 2224.8359 Erma: imapo@imapoectoracom br ‘win imeagoestora com be Print in az SUMARIO VOLUME Xx NOVAS CONFERENCIAS INTRODUTORIAS SOBRE PSICANALISE (1933 [1932)) Nota do Editor Inglés Prefiicio Conferéncia XXIX —__Revisio da Teoria dos Sonhos XXX Sonos e Ocultismo XXXI___A Disseogio da Personalidade Psiquica XXXII Ansiedade e Vida Instintual XXXII Feminilidade XXXIV Explicagées, Aplicagées e Orientagées XXXV A Questio de uma Weltanschaswng A AQUISICAO E 0 CONTROLE DO FOGO (1932 (1931) Nota do Editor Inglés A Aquisigao e o Controle do Fogo POR QUE A GUERRA? (1933 [1932))instein ¢ Freud) Nota do Editor inglés Carta de Binstein Carta de Freud MEU CONTATO COM JOSEF POPPER-LYNKEUS (1932) Nota do Editor Inglés Meu Contato com Josef Popper-Lynkeus SANDOR FERENCZI (1933) Nota do Editor Inglés ‘Sandor Ferenczi 13 1s 7 39 63 85 113 135 155 181 183 191 193 197 21 213, 221 23 ‘UM DISTURBIO DE MEMORIA NA ACROPOLE CARTA ABERTA A ROMAIN ROLLAND POR OCASIAO DE SEU SETUAGESIMO ANIVERSARIO ‘Meu caro Amigo, Vi-me na emergéncia de contribuir, com algo escrito, para a comemora~ ‘0 do seu setuagésimo aniversério, fiz grandes esforcos por encontrar algo ‘que pudesse, de algum modo, ser digno do senhor e pudesse expressar minha ‘admiragéo pelo seu amor & verdade, pela sua coragem nas suas crengas e por seu carinho ¢ boa vontade para com a humanidade; ou, entio, algo que ppudesse testemunhar-Ihe minha gratido, como escritor que me ten propor- cionatlo tantos momentos de enlevo e prazer. Mas foi em vio. Sou dez anos ‘ais velhio que o senhor, ¢ minha capacidade de produgao esté no fim, Tudo ‘0 queposso encontrar para oferecer-Ihe & 0 dom de uma criatura empobrecida que ‘viu dias melhores’. senhor sabe que meu trabalho cientfico consistiu em elucidar mani- festagSes incomuns, anormais ou patolégicas da mente, isto 6, atibuir sua ‘origem as forgas psiquicas que operam por trés delase indicar os mecanismnos £m ago. Comecei tentando isto em mim proprio e entao passei a aplicé-lo a ‘utras pessoas ¢, finalmente, fazendo uma extensao ousada, 2 toda @ raga hhumana, Durante os iltimos anos, um fenémeno destes, que eu mesmo havia experimentado hd uma geragio atrés em 1904, e que eu jamais compreendera, 1passou a assediar minha mente.' De inicio, nfo vi o motivo desse fal; porém, afinal resolvi analisar o incidente — e agora presenteio © senhor com os resultados dessa investigacdo. No transcurso do que se segue, naturalmente terei de solicitar-Ihe que dispense a alguns eventos de minha vida particular ‘uma etengo maior do que eles de outro modo mereceriam. Todos os anos, naquela época, em fins de agosto ou no comego de | setembro, eu costumava, em companhia de meu inno mais novo, partir em vviagem de férias, que durava algumas semanas ¢ nos levava a Roma, ou a alguma outra regidio da Itélia, ow a alguma parte da costa do Mediterraneo. 1 (Freud fizeca uma breve alto aesse episéio uns dez anos antes, no Capitulo Ve O Futuro dde uma Tusio (19272), Edigéo Standard Brasileira, Vol. XXI, pig. 37, IMAGO Edicora, 1974, mas ndo hava apresentado a expicagao) 237 ‘Men inno dez anos mais novo que eu, de modo que tem a mesma idade que o senhor — uma coincidéncia que s6 agora me acorreu, Naquele ano, em particular, meu irmao me disse que seus negécios no lhe permitiriam manter-se afastado por muito tempo: uma semana seria o maximo que cle podia conseguir, e deviamos abreviar nossa viagem. Assim sendo, decidimos viajar via Trieste até a ilha de Corfu © passar ali cs poucos dias de nossas férias. Em Trieste, ele visitou uma pessoa que contecia dos seus negécios € que morava nessa cidade, e o acompanhei. Nosso anfitriéo, no seu modo alfvel, perguntou a respeito de noss0s planos e, ao saber que era nossa intengao ira Corft, advertiu-nos com veeméncia que nao o fizéssemos: ‘Que € que 0s leva a pensar em irl, nesta época do ano? Seria quente demais para que pudessem fazer alguma coisa, Melhor seria se, em vez disso, fossem Atenas. O navio do Lloyd parte hoje tarde; 16 0s senhores terdo trés dias ‘para ver @ cidade, e, na viagem de volta, o navio os apanha novamente. Isto seria mais agradével ¢ valeria mais a pena.” / Enquanto voltévamos dessa visita, estévamos ambos em um estado de espirito muito deprimido. Discutimos 0 plano que fora proposto, concorda- ‘mos em que era quase impraticavel e no viamos sendo dificuldades na sua realizago; supinhamos, ademais, que ndo nos permitiriam desembarcar na Grécia sem passaportes. As horas que antecederam & abertura do escrit6rio do Lloyd, passamo-Ias vagando pela cidade, num estado de animo aborrecido, fe indeciso, Mas, quando chegou a hora, dirigimo-nos ao guiché e compramos rnossas passagens para Atenas, como se fosse tudo muito natural, sem nos preocuparmos em absoluto com as supostas dificuldades, ¢ realmente sem havermos trocado idéias um com 0 outro acerca dos motivos de nossa decisiio} Esse comportamento, deve ser dito, foi muito estranho. Posterior- mente, reconhecemos que instantaneamente, muito répido, aceitéramos @ sugestdo de irmos a Atenas em vez de Corfu, Nao otstante, por que passamos © intervalo de tempo anterior abertura dos escritérios num estado. tio, sombrio e nao previamos senfo obstéculos ¢ dificuldades? Quando, por fim, na tarde apés nossa chegada eu me encontrava na ‘Acr6pole e pousava meus olhos sobre o censrio; um pensamento surpreen- dente passou rapido em minha mente: ‘Entio tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!” Para descreverasiuaca0 de modo ‘mais preciso, em mim essa pessoa que expressou esse comentirio estava dividida, muito mais nitidamente dividida do que em geral seria perceptivel, de uma outra pessoa que tomava conhecimento do comentario; e ambas as pessoas estavam surpresas, se bem que no com relago 4 mesma coisa. A ‘primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma 238 observagiio inequivoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até enti, duvidosa. Se me permito um‘pequeno exagero, era como se alguém, cami- nhando na margem do Loch Ness, subitamente enxergasse a forma do famoso ‘monstro encalhado na praia e se visse compelido a admitir: Entdo realmente existe mesmo — a serpente marinha, na qual nunca acreditavamos!*_A segunda pessoa, por outro lado, com razio estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existéncia real de Atenas, da Acrépole e do cenétio ‘em tomo, alguma vez tivesse sido objeto de diivida]O que essa pessoa estivera esperando era, preferentemente, alguma explessio de alegria ou admiragao. Ora, seria fécil argumentar que esse estranho pensamento que me ocorreu na Acrépole s6 serve para acentuar o fato de que ver algo com os préprios olhos é, afinal, coisa muito diferente de ouvir contar ou de ler a respeito. Mas continuaria sendo uma forma muito estranha de explicar um {ugar-comum sem interesse. Ou entao, seria possivel afirmar que era verdade que, quando eu era um colegial, pensara estar convencido da realidade hiistorica da cidade de Atenas e de sua historia, mas que a ocorréncia dessa idéia na Acrépole justamente mostrar que, em meu inconsciente, eu nao tinhe acreditado, e que s6 agora estava adquirindo uma convieso que ‘atingia © fando do inconsciente’. Semelhante explicago parece muito profunda, contudo é mais ficil de afirmar do que de provar; ademais, é muito mais passivel de ataque em bases tedricas. Nao. Creio que os dois fendmenos, a depressio om Trieste ea idéia na Actépole, relacionavam-se intimamente. E a primeira, a depress, é mais facilmente compreensivel e pode ajudar-nos no sentido de explicar a segunda, a idéi A experigncia em Trieste foi, também, como se pode notar, simplesmen- te uma expresséo de incredulidade. ‘Vamos ver Atenas? Impossivel! — vai ser dificil demais!” A depressio concomitante correspondia a um lamento de ‘que era impossfvel: teria sido tao lindo. E agora, sabemos onde estamos. Este mais um caso de“bom demais para ser verdade”! que encontramos com tanta freqiiéncia. E um exemplo da incredulidade que surge tantas vezes quando nos surpreendemos com uma boa noticia, quando sabemos que ‘ganhamos um prémio, por exemplo, ou que saimos vencedor, ou quando ima Jovem Vem a saber que o homem que ela amava em segredo pediu aos pais ela permisséo para fazer-Ihe a corte. / Quando estabelecemos a existéncia de um fenmeno, o passo seguinte 6 naturalmente, conhecer sua causa. A incredulidade, como essa que se 1 ["To0 good tobe te. Em inglés, no original) 239 vetificou, é evidentemente uma tentativa de repelir uma parte da realidad hd, porém, algo de estranho nesse fato. Nao ficariamos nem um pouc> ‘surpresos se uma tentativa dessa espécie tivesse como objetivo uma parte da realidade que ameagasse causar desprazer: 0 mecanismo de nossa mente é, por assim dizer, planiticado para funcionar segundo essas diretrizes. centanto, por que haveria de surgi essa incredulidade com felagao a algo que, pelo contririo, prometetrazer um elevado grau de prazer? Conduta realmente paradoxal! Lembro-me de que, em uma ocasido anterior, tratei do caso parecido de pessoas que, conforme expressei, io ‘arrasadas pelo sucesso”. Geralmente as pessoas adoecem de frustragio, da nio-tealizasio de alguma necessidade vital ou de um desejo. A estas pessoas, contudo, sucede o contririo; adoecem, ou. até mesmo, ficam aniquiladas, porque um desejo seu, excepeionalmente inteaso, realizou-se. O contraste entre as duas situages nio € tdo grande como parece & primeira vista. O que acontece no caso paradoxal é simplesmente que o lugar da frustrago extema é assumido por ‘uma frustragdo interna, O sofredor nao se permite a felicidade: a frustraao intema ordena-Ihe que se aferre A frustragio extemna, Mas por qué? Porque —csta é a resposta, em muitos casos — a pessoa néo pode esperar que o Destino Ihe proporcione algo tio bom. De fato, € outro exemplo de “bom dienmais-para ser verdade’, 6 a expresso de um pessimismo do qual uma ‘grande parte parece estar presente em muitos dentre nés. Em um outro grupo de casos, como naqueles que se arruinam com 0 éxito, encontramos um sentimento de culpa ou de inferioridade que pode ser traduzido assim: ‘No ‘merego tanta felicidade, no merego.” Mas esses dois motivos so, em esséncia, o mesmo, por ser um apenas uma projeyao do outro. Conforme hé ‘muito jé se sabe, o Destino, que esperamos nos trate tio mal, ématerializaga0 de nossa consciéncia, do severo superego que ha dentro de nés, sendo ele proprio um remanescente da instancia primitiva de nossa infancia? Isto, segundo penso, explica nosso comportamento em Trieste. Néo podiamos acreditar que nos seria dada a alegria de ver Atenas. O fato de que a realidade que estvamos tentando repelir era, no inicio, apenas uma possi- bilidade, determinava 9 caréter de nossas reagbes imediatas. Quando, porém, estivamos na Acropole, a possibilidade se tomara reatidade, ¢ a mesma descrenga encontrou uma expressio diferente, todavia muito mais clara Numa forma isenta de distoredo, isto poderia ter sido expresso assim: “Realmente, eu nlo poderia ter imaginado ser possivel que me fosse dado ver 1 Septo IT de “Alguns Tipo de Caster Encontradon0 Trabalho Psicanaitico’ (19164) 2 (CE Capitulo VI de 0 Mal-Evar na Cvizagdo (19300), Bigio Standard Brasileira, Vol. XX, pigs. 149-50, IMAGO Editora, 19743] 240 Atenas com meus préprios olhos — como indubitavelmente agora esti ocorrendo!” Quando relembro meu vivo desejo de viajar e ver o mundo, que me dominava nos tempos de colégio e posteriormente, € quanto tempo se passara até que meu desejo se concretizasse, no me surpreendo com esse efeito retardado na Acrépole; eu tinha, entio, quarenta e oito anos. Nao pperguntei a meu irmdo mais novo se ele sentia algo dessa mesma natureza, Determinada dose de reserva envolveu todo 0 episédio; ¢ foi isto que jé interferira em nossa troca de idéias em Trieste ‘Supondo que eu tenha adivinhado corretamente o significado do pensa- mento que me veio na Acrépole, e que realmente expressei minha alegre surpresa por me encontrar naquele lugar, a outra questo emergente & saber ‘por que esse significado teve de estar sujeito, no pensamento, a um disfarce tio dissimulado e desorientador. ( tema essencial do pensamento — isto é, a incredulidade — realmente estava contido na propria distorgao: ‘Pela evidéncia dos meus sentidos, estou agora na Acrépole, mas no consigo acreditarnisto.” Essa incredulidade, essa divida quanto a um aspecto da realidade, estava, contudo, duplamente deslocada em sua expressio real: primeiro, estava atribuida ao passado e, segundo, estava transportada de minha relago para com a Acrépole, para a propria existéncia da Acrdpole. E assim ocorreu algo que equivalia a uma afirmagao de que, em certa época do passado, eu duvidara da real existéncia da Acrépole —, um fato que, no entanto, minha meméria rejeitava como incorreto e, com efit, impossivel. As duas distorges envolvem dois problemas independentes. Podemos tentar penetrar mais fundo no processo de transformagao. Sem especificar, no momento, como foi que cheguei & idéia, partirei da suposigdo de que fator original deve ter sido 0 sentimento do inacreditivel ¢ do irreal na situasiio daquele momento. vila@%6 inciuia a mim préprio, a Aérépole © a wiinha percepe3o dela. Eu nao podia explicar essa diivida; evidentemente, no podia ligar a divvida as minhas impressdes sensoriais referentes & Acro- pole. Lembrei-me, contudo, de que, no passado, tivera uma diivida a respeito de algo relacionado previsamente a esse local ¢, assim, encontrei o meio de deslocar a davida para o passado, Nesse processo, entretanto, o tema da davvida foi modificado. Nao s6 me recordei de que, em meus anos de jovem, duvidara se um dia haveria de ver a Acropole, mas também afirmei que naquele tempo eu desacreditara da realidade da propria Acrépole. E justa- mente esse efeito do deslocamento que me leva a pensar que a situagao atual na Acrépole encerrava um elemento de divida acerca da realidade, Certa- ‘mente ainda nao consegui tornar claro o processo; assim, concluirei dizendo, 2a ‘em sinopse, que toda essa situagio psfquice, de aparéncia to confusa ¢ tio dificil de descrever, pode ser elucidada satisfatoriamente supondo-se que, no ‘momento, tive (ou poderia ter tido) um sentimento instanténeo: ‘O que estou vendo aqui ndo é real.” Tal sentimento é conhecido como ‘sentimento de desrealizacio” [‘Entfremdungsgefih!’.” Fiz um intento de afastar esse sen timento, ¢ 0 consegui a custa de uma falsa afirmagéo acerca do pasado, Essas desrealizagées so fendmenos notéveis, ainda pouco compreendi- dos. Diz-se serem ‘sensagdes’, mas, evidentemente, so processos comple- x03, Vinculados a conteiidos mentais peculiares e vinculados 2 operayGes feitas a respeito desses contetidos. Surgem com muita freqiiéncia em deter- minadas doengas mentais, no sendo, contudo, desconhecidos entre pessoas sadias, Nao obstante, so falhas do funcionamento” eso estruturas anormais, como os sonhos, os quais, apesar de ocorrerem normalmente em pessoas sadias, nos servem como modelo de disnirbio psicologico, Esses fendmenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu proprio eu, lhe ¢ estranha, Nesse altimo caso, falamos em “despersonalizagio’; existe uma intima relagio entre des- realizages e despersonalizagdes. Existe mais um outro grupo de fendmenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas — & 0 que se conhece como ‘fausse reconnaissance’, “déja vu’, ‘déié raconté’, ete? ilusdes em que procuramos aceitar algo como pertencente a0 nosso ego, do mesmo modo como nas desrealizagées, nos empenhamos em manter algo foradenés. Uma tentativa ingénua e ndo-psicolégica de explicar o fendmeno do ‘déja vw’ procura encontrar nele a prova de uma existéncia anterior de nosso cu (self) mental. A despersonalizagao leve-nos & extraordinéria situa- (0 de ‘double conscience” que se descreve cf como ‘per: sonalidade dividida’, Tudo isso, contudo, é to obscuro ¢ tem sido tio ma! dominado cientificamente, que tenho de me abster de Ihe falar mais a respeito dessas coisas. 1 [Bsa plavra tem sido traduzida de diversas maneias em ingls. Henderson ¢ Gillespie, em Seu Textbook of Paychlary (Quinta Eigse, 1940), 102, usavam o terme ‘derelizaton’ ( descalizaeio") fazer a mesma dstingSo que fez Freud entre ese temo e“Uepesonal- zation’ (‘despersovalizagSo') em Frevd‘Depersonalisaton’)] 2 [Feblleisnmgen.” Essa plavia esti comumeate traduzida por ‘parapraxas’ na Baio Standard} 3 [Freud discoren sobre esses fendmenos por duss vezes, de forma um tanto detalhads: no (Capitulo XI (D) de The Psychopathology of Everday Lif (19018), Standard al. 6.265 ¢ seg, enum artigo sobre ‘Fousse Reconnatssnce” (19 14a). CE também o ven" do Homem {es Lobos (1918), EdigSo Standard Brasileira, Vol. XVI, pig. 96 e segs © 124 segs, IMAGO Editor, 1976 4 [Bm francés, no original: “consigncia dup 242 ara os meus propdsitos, set-me-d suficiente retomar as caracteristicas gerais dos fendmenos da desrealizagao. A primeira caracteristica consiste em que todos eles servem ao objetivo de defesa; visa a manter algo distanciado do ego, visam a rechagé-lo. Ora, novos elementos capazes de ensejar medidas defensivas acercam-se do ego oriundos de duas direyGes—do mundo externo real ¢ do mundo intemo dos pensamentos ¢ impulsos que emergem no ego. E possivel que essa opcdo coincida com a escolha entre desrealizagées propriamente ditase despersonalizagdes, Hum numero extraordinariamente grande de métodos (ou, conforme dizemos, de mecanismos) utilizados por nosso egona descarga de suas fungdes defensivas, Neste momento esta sendo desenvolvida uma investigagdo, muito préxime de mim, dediceda ao estudo desses métodos de defesa: minha filha, analista de criangas, esta escrevendo um livro a respeito detes.' O mais primitivo e mais verdadeiro representante desses métodos, a ‘repressio’, foi_o ponto.de.pastida de toda a nossa ‘compreensdo mais profunda da psicopatologia, Entre a repressio e aquilo que se pode chamar de método normal de afastar o que éaflitivo ou insuportével, reconhecendo, considerando, ajuizando e passando a uma agao adequada a respeito dessa mesma coisa, existe toda uma série de métodos de comporta~ ‘mento, mais ou menos claramente patologicos, por parte do ego. Posso fazer ‘uma pausa momentanea, a fim de lembrar-Ihe um caso relacionado a esse tipo de defesa? O senhor recorda-se do famoso lamento dos mouros de Espanha ‘Ay de mi Alhama’ [Minha pobre Alhama’}, que refere como 0 rei Boabdil? recebeu a noticia de que sua cidade Alhama tinha sido tomada. Ele sente que sua perda significa o fim de seu reinedo, Contudo, néo permitira “que seja verdade’, determina que se trate a noticia como ‘non arrivée’? Diz © poema: “Cartas le fueron venidas que Athama era ganiada: las cartas eché en el fuego, y al mensajero matara.”* {Anna Freud, The Ego andthe Mechaniom of Defence (1936) 2 [Ultimo rei mouro de Granada, n fim do século XV. Alhama, 2 20 has de distinc, era ‘a fortaeza-chave da capital) 3 [Freud usou a mesma expresso para qualficar ese processodefensivo na Seqio f de seu primeir artigo sobre “The Neuro-Psyehoses of Defence’ (1854), Standard Ei, 3,48, e, hhovamente, no Capitulo VI de Tribigdes, Sinuomase Ansiedade (1926), Eigho Sander Brasileira, Vol. XX, pig. 143, IMAGO Eaitora, 1976) 4 [Chegaram-e cars dizendo que Alama tnka sido tomada;jogou a carta 30 fogo € ‘ator o mensegeiro] 2453 & fii perceber que um outro motivo para essa conduta do rei era sua necessidade de combater um sentimento de impoténcia ante a situagao, Queimando as cartas e mandando matar o mensageiro, ele ainda tentava ‘mostrar seu poder absoluto A segunda caracteristica geral das desrealizagdes — sua dependéncia do passado, do_repertério. de. recordagdes.e.de-experiéncias.angustiantes. da inffineia, que talvez tenham, sucumbido.&.repressio.—.ndo ¢ accita sem _ controvérsia. Mas justamente minha propria experiéncia na Aerépole, que realmente culminou num distirbio de meméria e numa falsficagio do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexio. Nao é procedente o fato de ue, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez, duvidasse da existéncia real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria_a ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possivel, ell, aIgUini dia, viajar to Tonge — eu "peiCorTer um caminho tio longo’. Isto se ligava is limitagBes e pobreza dé nossas condigdes de vida em mina adolescncia, Minha insia de viajar, sem diivida, era também expressio de um desejo de escapar daquela pressio, como a forga que impele tantos adolescentes a fugirem de casa. Ha muito tempo, compreendera claramente que uma grande parte do prazer de viajar se baseia na realizagio desses antigos desejos — isto é, tem suas origens na_ insatisfagao com a casa ¢ com a familia. Quando, pela primeira vez, uma pessoa erxerga 0 mar, cruza 0 oceano ¢ sente como realidades as cidades © 08 paises que per tanto tempo tinham sido distantes, inatingiveis coisas desejadas, entio a pessoa se sente como um herdi que realizou feitos de inimagindvel grandeza. Naquele dia, na Acr6pole, cu podia ter dito a meu imo: “Ainda se lembra, quando éramos jovens, como costumvamos cami- har, dia apés dia, pelas mesmas ruas, em nosso caminho para a escola, € ‘como todos os domingos costumavamos ir ao Prater, ou a alguma excursio, que conheciamos tio bem? E agors, aqui, estamos nés, em Atenas, n3 Acrépole! Realmente, realizamos muitas coisas!” Se me for facultado com- parar esse pequeno evento com um outro, maior, também Napoledo, durante ‘sua coroagdo como imperador em Notre Dame,' voltou-se para um de seus inmios — deve ter sido, sem ditvida, o irmio mais velho, José — e observou: *O que Monsieur noire Pere teria dito disto, se ele pudesse ter estado aqui, no dia de hoje?” ‘esse ponto, porém, deparamos com a solugo do pequene problema da causa pela qual, j4 em Trieste, interferiamos em nosso regozijo pela viagem 1 (Geraimente conta-se que ess fto ocorrex quando da Si iavestidura coma Coroa de Ferro «6 Lembrdia, em Milo] 248 a Atenas. Pode ser que um sentimento de culpa estivesse vinculado satisfagio de havermos realizado tanto: havia nessa conexdo algo de errado, ue desde os primeiros tempos tinha sido proibido. Era alguma coisa relacio- nada com as eriticas da crianga ao pai, com a desvalorizagio que tomou 0 lugar da supervalorizacio do inicio da infancia. Parece convo se a esséncia, do éxito consistisse em ter realizado mais do que 0 pai realizou, e como se ainda fosse proibido ultrapassar o pai ‘Como acréscimo a esse motivo, cuja validade & geral, estava presente uum fator especial, em nosso caso particular. O proprio tema referentea Atenas € Acropole continka provas da superioridade do filho. Nosso pai se dedicara 0 comércio, no tinha tido instrugo secundéria, ¢ Atenas podia nio ter significado muito para ele. Assim, 0 que interferia em nossa satisfagio de viajar a Atenas era um sentimento de respeito filial] E agora o senhor no ‘mais haverd de se admirar de que a lembranga desse incidente na Acrépole ‘me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho de ter paciéneia e nfo posso mais viajar. Com a estima de sempre, ‘IGM. FREUD Janeiro de 1936 245

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