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Cap.

01 – O Novo Trabalho de Roxy

Certa manhã, fui despertado do sono pelo mais delicioso dos cheiros. Flutuou
em minhas narinas enquanto eu dormia, enchendo meu coração de calorosas e
maravilhosas emoções.

— O qu…?!

Assustado com este aroma sedutor, abri meus olhos… e me deparei com uma
deusa na cama, ao meu lado, dormindo profundamente. Seu rosto angelical
estava a centímetros de meus olhos. Eu podia até mesmo ouvir sua respiração
suave através de seu narizinho encantador.

— Ooh…

Lentamente saí dos cobertores e então me prostrei, de joelhos, o mais


silenciosamente que pude. Juntando minhas mãos, ofereci a ela um breve
gesto de súplica. Havia uma pessoa sagrada em minha cama. Era natural que
eu mostrasse a devida deferência.

— Espera aí. Isso poderia significar…

Com a mão trêmula, a estendi para puxar o cobertor de cima da deusa. Era
exatamente como eu esperava! Por incrível que pareça, seu corpo todo se
manifestou ao meu lado!

— Ooooh!

Sua silhueta esguia e enganosamente jovem, sem curvas em certos lugares


onde se costumaria esperar. Estava escuro demais para ver direito, mas… será
que aquela pinta que vi em seu peito era um símbolo divino? Uma marca
auspiciosa, destinada a representar seu terceiro olho?

Não, provavelmente não. Ainda assim, era algo não menos sagrado.

— Gulp…

Seria permitido eu tocá-la? Eu certamente tinha a bênção implícita dos céus.


Afinal, a deusa foi até mim. Eu fui o escolhido. O messias. E um messias com
certeza tinha a permissão para tocar em sua divindade.

Mas era permitido que eu fizesse isso enquanto seu espírito vagava por outro
lugar? Havia o risco de sobrecarregar minha alma com o pecado e me barrar
diante dos portões do Nirvana. No momento em que estendesse minha mão,
ela poderia inundar o quarto com uma luz brilhante, gritar: “Suma, maldito
Mara!” e me purificar até não restar nada.

Que dilema cruel. Eu não pude evitar que meu pequeno apóstolo estivesse se
sentindo particularmente fervoroso nesta manhã!

— Hm… Tão frio…

A deusa cegamente agarrou o cobertor, puxou-o sobre ela e se virou para o


outro lado.

— Oooh…

Verdadeiramente maravilhoso! Eu podia ver a nuca branca de seu pescoço


aparecendo por baixo de seu cabelo azul! Podia ver os chupões que deixei lá na
última noite! Verdadeiramente esplêndido. Eu, por ser agraciado com vistas tão
belas assim que acordei, era com certeza o homem mais sortudo do mundo.

Ah, é mesmo… Não temos muito tempo pela manhã, temos? Melhor acordá-la…

— Roxy, acorde. Já amanheceu.

— Hm…?

Minha deusa abriu os olhos e se sentou lentamente. Enquanto ela fazia isso, o
cobertor escorregou, revelando suas lindas costas nuas. Era o alvorecer de
uma nova era.

— Bom dia…

Ela, lentamente, se virou para me encarar, seus olhos nublados de sono.


Possuía duas marcas auspiciosas no peito e umbigo bonitinho abaixo delas. E
então sua calcinha, que escondia ainda mais delícias espirituais.

Minha estupa estava acumulando carma em uma velocidade perigosa. Nesse


ritmo, eu alcançaria a iluminação em pouco tempo.

— Oh…

Talvez percebendo o estado dessas coisas, ela agarrou o cobertor e o puxou


para esconder seu corpo. A deusa me abandonou. Todas as luzes
desapareceram do mundo. Uma nova era das trevas estava sobre nós…

— Existe uma razão para você parecer tão abatido? — perguntou ela
secamente.

— Ah, não é nada. Eu só queria dar uma boa olhada em seu corpo à luz do dia,
Mestra.
— De qualquer forma, não acho que tenha muito para olhar…

— Não fale bobagens! Vamos, tire esse cobertor. Aqueça-me com seu
esplendor!

— Minha nossa, esta manhã você está mesmo cheio de energia… Bem, tanto
faz. Suponho que não haja mais motivos para ser tímida…

Roxy, lentamente, colocou o cobertor de lado. E, assim, a luz voltou a iluminar o


meu mundo. Sim, eu vi a luz, e isso era bom!

Também vi a escuridão; chamei isso de Eros, e a luz de Apollo. Ao lado da


escuridão, vi um umbigo e coxas. Os chamei de Cupido e Amor. Parecia
trabalho suficiente para o primeiro dia.

— Tudo bem, acho que é o suficiente.

Mais uma vez, aquele cobertor amaldiçoado escondeu as glórias da criação de


meus olhos. Outra era de trevas estava… Certo, até eu estava ficando com nojo
disso.

— Uhm, Rudy?

— Sim, querida?

— Obrigada. Pela noite passada.

Roxy abaixou a cabeça para mim em uma pequena reverência desajeitada.

A noite passada foi algo especial para nós. Foi algo que construímos ao longo
de algumas semanas. Concordamos que Roxy se tornaria oficialmente minha
segunda esposa, assim que Sylphie desse à luz. Isso tinha acontecido há um
tempo. Mas, até o dia anterior, Roxy e eu não tínhamos dormido realmente
juntos, desde nossa chegada em Sharia. Parte disso era porque todos estavam
ocupados se ajustando à chegada de Lucie, mas eu poderia dizer que Roxy
também estava ansiosa com nosso acordo. Isso era compreensível, mas eu
queria fazer algo a respeito.

E, então, fiz um esforço especial para aliviá-la. Na noite passada tratei Roxy
como uma princesa. Nesta manhã minha mandíbula ainda estava meio
dolorida – fiz um trabalho e tanto.

Mas valeu a pena. Ela definitivamente ficou satisfeita.

— Para ser sincera, eu nem sabia que existiam… técnicas assim. — Seus olhos
se desviaram dos meus, Roxy corou um pouco.

— Heh heh. Bem, o mundo é vasto, sabe?


Usei todos os truques que conhecia. Ao longo dos anos, desenvolvi uma rotina
especial que sempre deixava Sylphie sem fôlego de tanto gemer. Eu também
queria sobrecarregar Roxy com prazer, e achei que minhas “técnicas” seriam a
melhor maneira para fazer isso.

Porém, não foi exatamente como o esperado. Principalmente porque Roxy fazia
perguntas em cada etapa do processo – geralmente algo como “O que eu faço
agora?” Ela parecia ser bem aplicada, mesmo na cama. A guiei com breves
dicas e explicações, seguidas por extensas demonstrações práticas.

— Ensine-me mais detalhes da próxima vez, certo?

— Você pode só deitar e deixar tudo comigo, Roxy. Vou garantir que você se
divirta.

— Não, obrigada. Quero desenvolver minhas próprias habilidades.

Para ser sincero, não era isso que imaginei quando estava planejando as coisas
de antemão. Mas, à sua maneira, não foi tão ruim. Sylphie tinha uma
abordagem para o sexo, e Roxy outra. Achei as duas muito satisfatórias, então
não iria reclamar.

— Ugh. Vou me atrasar para o trabalho…

Com o rosto ainda um pouco vermelho, Roxy virou a cara e saiu da cama.
Fiquei exatamente onde estava – sentado formalmente na cama – banhado
pela radiância de sua bunda enquanto ela caminhava pelo quarto.

— Hm? O que foi?

— Ah, nada. Absolutamente nada.

Sentindo meu olhar, Roxy olhou para mim. Virei e fingi que estava o tempo todo
me vestindo.

—…

Senti o olhar de Roxy em minhas costas. Eu estava começando a pensar em


me flexionar para diverti-la quando ela se aproximou e tocou minhas costas.

— Sinto muito, Rudy. Parece que te arranhei. Está doendo?

— Hm?

Quando virei a cabeça para dar uma olhada, pude ver apenas quatro vergões
longos e finos em um lado das minhas costas. Doeu um pouco quando os
toquei. Roxy os fez em mim ontem à noite. Em outras palavras, eram uma
medalha de honra.
Gah, agora ela me fez lembrar da expressão que tinha no rosto enquanto fazia
isso… Calma, garoto! Calma! Não temos tempo para suas palhaçadas agora!

— Estou bem, Roxy.

— Espero que não deixem cicatriz nem nada…

O rosto de Roxy brilhava de tão vermelho enquanto ela murmurava essas


palavras. O fato de que nem mesmo pensou em curá-los com magia me fez
sentir como se também estivesse ocupada lembrando da noite passada. Ergui
os olhos e encontrei o olhar dela. Pude ver o reflexo de meu rosto em seus
grandes olhos azuis. Um momento depois, ela os fechou, claramente
esperando por um beijo.

Eu, porém, não poderia aceitar isso. Acabaríamos de novo na cama dentro de
dez segundos. Então me contive em acariciar afetuosamente sua bochecha.

— Acho que está na hora de nos vestirmos, Professora…

— Ah. Certo. C-Claro!

Roxy se afastou de mim, parecendo bastante envergonhada, e começou a vestir


as roupas íntimas. Me virei e também comecei a me vestir.

— Eu pareço bem, Rudy?

Depois de colocar suas vestes, Roxy ficou na minha frente para que eu pudesse
conferir tudo por ela.

— Sim.

— Sério?

— Claro, Roxy. Você está ótima.

Isso, na verdade, era eufemismo. Se existisse alguém estúpido o suficiente


para sugerir que Roxy parecia algo abaixo de perfeita, eu teria certeza de fazer
essa pessoa enxergar que estava errada.

— Bem, tá bom. É meu primeiro dia de trabalho, sabe? Não posso acabar com
tudo!

Roxy fechou a mão em um punho e balançou a cabeça para si mesma. A partir


deste dia, ela também estaria indo para a Universidade de Magia… mas como
parte do corpo docente. Este também seria meu primeiro dia como estudante
do terceiro ano.

Mas, antes de começarmos com isso, provavelmente devo voltar um pouco no


tempo.
Vamos falar sobre o dia em que Roxy conseguiu seu novo emprego.

Vários Meses Antes

Passou mais ou menos uma semana desde que voltei da minha jornada. As
coisas passaram algum tempo agitadas, mas finalmente estavam começando
a se acalmar novamente.

Eu estava relaxando no sofá da sala quando Roxy entrou.

— Rudy, acho que eu gostaria de trabalhar na Universidade de Magia. Estaria


tudo bem para você?

— Huh?

No começo eu não entendi muito bem o que ela queria dizer. Roxy olhou para
mim com a expressão estável de sempre, fixando seus olhos nos meus.

— Sinto que tenho muito tempo livre, então queria ser um pouco mais útil.

— Hm, então… está dizendo que quer ser professora ou algo assim?

— Bem, é a ideia. — Roxy balançou a cabeça, seu rosto sério e solene.

Isso fazia sentido. Ela parecia um pouco inquieta desde que chegamos.

Roxy não era exatamente o tipo de dona de casa. Ela passou a maior parte da
vida como uma aventureira solitária pela estrada, então podia lidar com quase
qualquer trabalho quando precisava… mas quando se tratava de serviços
domésticos, não era tão eficiente quanto Aisha, Sylphie ou Lilia.

Além disso, já tínhamos duas criadas dedicadas vivendo em casa, então não
havia muito para ela fazer.

Às vezes ela ocupava o lugar da minha mão esquerda. Eu ainda não estava
acostumado a ser um maneta, e isso tornava as coisas realmente
inconvenientes. Ter Roxy por perto para me auxiliar a me vestir e fazer minhas
refeições era de grande ajuda.

Ainda assim, não era como se eu precisasse dela por perto o tempo todo.
Poderia andar sozinho quando fosse necessário.

— Hmm…
De qualquer forma… Roxy queria ser professora, não é? Ela era uma professora
incrível, é claro. Eu sabia, pessoalmente, que bênção poderia ser aprender
magia com ela.

Dados seus talentos e sabedoria, mantê-la por perto como nada mais do que
uma substituta para a minha mão perdida seria um crime da minha parte.
Mantê-la só para mim tinha seus apelos, mas, pelo bem de todas as outras
pessoas no mundo, ela deveria estar lá, enriquecendo nossa sociedade com
sua presença.

— Tenho certeza de que isso te parece um pouco arrogante, já que não sou
nada especial como maga… mas sempre gostei de ensinar o que sei aos
outros.

— O quê? Não era isso que eu estava pensando!

Na verdade, de certa forma, fiquei meio ofendido.

Não importa quantos universos paralelos possam existir, nunca existiria um


onde eu pensasse que Roxy era arrogante. Eu estava destinado a respeitá-la
profundamente, em qualquer que fosse a linha temporal. Essa era a escolha de
Steins;Gate!

— Você deveria ir em frente, Roxy. Com certeza. Você será uma ótima
professora!

— Ah. Bem, é bom ouvir isso… e acho que um pouco embaraçoso.

Agora que o assunto estava resolvido, não havia motivo para perder tempo.

— Então tá bom. Por que não vamos falar com o Vice-Diretor Jenius?

Roxy ficou surpresa.

— Jenius? Espera, o Professor Jenius agora é Vice-Diretor?

— Isso mesmo. Você conhece ele?

Roxy, por alguma razão, hesitou por um momento com algo parecido com uma
careta no rosto.

— Ele era meu mestre, na verdade.

Oh? Jenius então é um Mago de Água de nível Santo? Achei que a especialidade
dele fosse magia de fogo… Será que eu estava equivocado?

Mas, bem, não era incomum que um mago estudasse mais de um elemento.
Jenius, presumivelmente, também era um Mago de Água, e acabou
esquecendo de mencionar isso para mim.
— Receio ter dito algumas coisas muito duras da última vez que o vi. Agora me
arrependo disso, mas eu era uma jovem de cabeça quente…

— Não se preocupe com isso, Roxy. O passado é passado.

Pelo que ela me disse, o mestre de Roxy era um tolo orgulhoso e pomposo.
Mas o Jenius que eu conhecia era um cara diligente e educado que passava a
maior parte do tempo vendo documentos. Ela provavelmente mudou muito
com o passar do tempo.

— Mas e se ele usar isso contra mim?

— Vou me certificar de que ele deixe tudo para trás. Quer ele queira ou não.

Eu já devia muito a Jenius por sua ajuda ao longo dos anos, mas, pelo bem de
Roxy, não hesitaria em aumentar ainda mais a minha dívida.

— Bem, então tá. Espero que não chegue a esse ponto.

Com isso resolvido, partimos para a Universidade de Magia.

Encontramos Jenius enterrado sob uma montanha de documentos, como


sempre.

— Bem… Minha nossa.

Ao ver Roxy, ele nos recepcionou com um sorriso que mais parecia uma careta.

Sorrisos estranhos eram a expressão padrão dele, mas este era definitivamente
mais estranho do que o normal.

— Desculpe interromper, Vice-Diretor Jenius. Podemos ter um pouco do seu


tempo?

— Claro, Rudeus. Por que não vamos para a outra sala?

Ainda assim, apesar do fato de que estava obviamente ocupado, Jenius


prontamente concordou em falar conosco. O homem sempre tinha muito o que
fazer, mas nunca me enxotou quando precisei de ajuda. Ele não era um cara de
coração ruim.

— Sentem-se, por favor.

Depois de ir para a sala de recepção, Roxy e eu nos acomodamos em um sofá


diante de Jenius.

Quando foi a última vez que estive aqui? Depois de meu duelo com Badigadi?
Já fazia um bom tempo desde aquilo.
— Primeiro… é bom te ver de novo, Roxy.

— Já faz muito tempo, Mestre Jenius…

— Hm. Você não disse que eu, ah… não era digno desse título?

Roxy deixou seu olhar cair no chão.

— Sinto muito por isso. Eu era jovem e arrogante, suponho.

A conversa começou provisoriamente. Os dois claramente pensavam que uma


palavra errada poderia resultar em uma explosão de raiva.

— Acho que isso vale para nós dois. Eu era orgulhoso demais.

Assim que se desculparam, ambos visivelmente relaxaram.

Eles pensavam um no outro como obstáculos por um longo tempo, mas em


algum momento deviam ter desenvolvido uma espécie de respeito mútuo. E só
então, anos após o ocorrido, foram capazes de admitir isso para si mesmos.

Eu não tinha como saber sobre o que discutiram no passado, mas depois
desse tempo todo, pareciam ser águas passadas. Uma ou duas décadas são
suficientes para mudar a maioria das pessoas.

Alguns segundos depois, Jenius ergueu a cabeça e pigarreou.

— De qualquer forma… o que posso fazer por vocês?

— Bem, Mestre Jenius… em minhas viagens após deixar a Universidade, acabei


entendendo as alegrias e recompensas de ensinar. Eu esperava me tornar uma
instrutora aqui, se possível.

— Ora, ora — disse Jenius com a sombra de um sorriso. — Em determinado


momento você não considerou os professores “totalmente inúteis”? Você
certamente mudou, Roxy.

Ele nos causaria problemas por causa disso?

Ficando um pouco nervoso, lancei um olhar para Roxy, apenas para notar que
ela também estava sorrindo um pouco. Os dois talvez tivessem visto algo de
engraçado na situação. Me senti um pouco excluído.

Se Jenius tivesse rejeitado a ideia, eu planejava ser bem agressivo em nome de


Roxy, mas não parecia que isso seria necessário. Minha presença ali, na
verdade, foi provavelmente inútil.

— Mestra, estaria tudo bem se eu deixasse vocês dois resolverem os detalhes?


— Huh…? Hm, certo. Mas não me importo se você ficar por perto.

— Bem, eu estava pensando em visitar um amigo meu.

Roxy e Jenius eram velhos conhecidos. Provavelmente tinham muito a


conversar. E, de alguma forma, senti que Roxy poderia relutar em me deixar
ouvir muitas histórias embaraçosas de sua juventude.

Isso me deixou um pouco triste, mas me pareceu que sair dali seria melhor.

Fui direto para o laboratório de Zanoba.

Falei para ele que poderia ficar fora por dois anos, e consegui voltar em apenas
seis meses. Ele provavelmente ficaria surpreso em me ver.

O resultado da minha viagem não foi necessariamente bom, é claro, mas não
havia motivos para também deixá-lo deprimido. Eu teria que tentar agir o mais
alegremente possível.

— Certo…

Bati na porta e entrei sem esperar resposta.

— Notícias de última hora, Zanoba! Estou de volta!

— O qu…?!

Lá dentro, encontrei meu amigo montado em um manequim em tamanho real


com uma expressão de êxtase no rosto.

—…

—…

Nós dois nos encaramos em silêncio por alguns segundos.

O que Zanoba estava sentindo neste instante? Que emoções estavam tomando
sua mente?

Eu sabia, é claro. Eu sabia muito bem disso.

—…
Desviando o olhar, fechei a porta sem dizer uma palavra.

Na mesma hora, houve um enorme estrondo vindo de dentro da sala. Esperei


cerca de dez minutos até que os sons finalmente parassem e uma voz
estrangulada chamasse:

— Estou pronto.

Pela segunda vez abri a porta com tudo.

— Notícias de última hora, Zanoba! Estou de volta!

— Ohhhh! Que esplêndido! Se não é meu amado mestre, Rudeus!

Nós dois nos alegramos com nosso reencontro e nos abraçamos como se
nada tivesse acontecido. Não havia motivo para nenhum de nós agir estranho.
Éramos melhores amigos. Eu não vi nada. Não aconteceu nada.

— Você realmente voltou rápido, Mestre! Achei que ficaria fora por dois anos!

— Bem, é uma longa história, mas acabamos voltando mais cedo.

— Ah, então você cumpriu uma missão de dois anos em menos da metade do
tempo! Você nunca para de me surpreender!

Dei uma olhada ao redor. Estava cheio de bonecos e estátuas, muitos dos quais
pareciam ser algum tipo de arte popular. Eu já tinha estado neste quarto muitas
vezes, é claro, mas estar de volta era quase nostálgico. Ele com certeza
acumulou muitos brinquedos novos enquanto estive fora. A mesa de Julie, em
particular, estava virtualmente coberta por bonecos de argila e estatuetas. Ela
esteve obviamente trabalhando duro durante minha ausência.

— Onde estão Ginger e Julie?

— As duas estão fazendo compras no momento. Algumas das coisas que pedi
não estarão disponíveis até a noite, então levarão algum tempo para retornar.

Entendo. Então é por isso que ele sentiu que seria seguro ter um “encontro”
com sua amada amiga boneca.

Esta provavelmente era uma oportunidade incomum para Zanoba. Quase me


senti mal por ter interrompido.

— Oh? Mestre, sua mão…

Nesse momento, Zanoba finalmente percebeu que eu voltei sem a mão


esquerda. Ele estava olhando para o coto do meu pulso com uma expressão
preocupada no rosto.
— Sim, já era. Fui um pouco descuidado.

— Que oponente seria temível o suficiente para prejudicá-lo tanto…?

— Era uma hidra imune à magia.

— Uma hidra? Hmm, entendo. Essa não é uma ameaça pequena.

Quando parei para pensar naquela batalha, tornou-se óbvio que estávamos
com pouco dano físico. Se Zanoba estivesse conosco, talvez pudéssemos ter
derrotado a hidra com mais facilidade. Talvez devêssemos ter voltado
temporariamente para recrutá-lo, ou outra pessoa, para nos ajudar.

Mas não fazia muito sentido ficar pensando nisso.

— Se a besta era resistente à magia, posso ver porque até mesmo você sofreu
para derrotá-la.

— Sim. Ah, e mesmo quando conseguimos cortar uma de suas cabeças, ela
voltava a crescer. Não foi brincadeira, com certeza.

— Ela também era capaz de se regenerar? Então como conseguiu matá-la?

— Meu… Nosso espadachim cortou suas cabeças e queimei os tocos com fogo.

— Ah, agora entendo. A carne era vulnerável, mesmo a pele não sendo! Devo
presumir que você mesmo pensou nessa estratégia, Mestre?

— Acabei lembrando que ouvi dizerem que essa era a melhor maneira de fazer
isso.

Pensar nessa batalha não estava fazendo bem para o meu humor. Descobri
como matar aquele monstro, mas Paul acabou morrendo. Quanto mais Zanoba
elogiava nossa vitória, mais deprimido eu ficava.

— Devo dizer, Mestre, você parece bastante para baixo.

— Bem… nós ganhamos, mas custou muito caro.

— Ah, entendo. — Olhando para minha mão, Zanoba balançou a cabeça para si
mesmo. — Por falar nisso, acho que tenho uma ideia.

Sorrindo, ele trotou até sua mesa de trabalho e começou a vasculhar a última
gaveta. Alguns momentos depois, puxou um modelo de uma mão.

Talvez essa não seja a maneira correta de descrever. Era um pouco desajeitado
para ser uma “mão”. Talvez fosse um protótipo de algum tipo de luva.

— Dê uma olhada nisso, por favor.


— O que é isso, Zanoba?

— Heh heh. É o fruto de um trabalho de cerca de seis meses!

— Oh?

— De fato — disse Zanoba com orgulho, um sorriso significativo no rosto. —


Durante sua ausência não fiquei apenas sentado, Mestre.

Verdade. Você também tem feito amor com objetos inanimados… Opa. Não, eu
não vi aquilo. Eu não vi nada!

— Então tá. O que é isso exatamente ?

— Observe!

Com o rosto cheio de confiança, Zanoba fechou a mão livre em um punho,


depois, mergulhou-a dentro da luva modelo.

Nesse ponto, ele gritou algo que parecia um encantamento:

— Terra, seja minha mão!

O modelo de repente começou a se mover. Foi fixado em forma de punho, mas


agora seus dedos parecidos com argila se estendiam lentamente. Voltou a
fechar, depois abriu e então dobrou os dedos um a um.

Todos esses movimentos eram surpreendentemente suaves e pareciam


naturais.

— É um instrumento mágico em forma de mão. Ele se move exatamente como


seu portador deseja.

—…

— Segui seu conselho, Mestre, e continuei meu estudo a respeito daquele


boneco misterioso com a ajuda de Cliff. Esta é a primeira implementação
prática de minhas descobertas.

—…

— Mestre? Er… Mestre?

— Uh, sim. Sinto muito por isso.

Na verdade, fiquei sem palavras por um momento, tudo devido à surpresa. Eu


lembrava de ter dito a Zanoba para se concentrar em estudar as mãos e os
braços daquele boneco, mas eu certamente não esperava que ele fizesse algo
tão impressionante em questão de meses.
— Isso é incrível, Zanoba. Estou sinceramente impressionado.

— Heh heh heh. Ah, mas ainda não cheguei na melhor parte. Ao usar este
dispositivo, sou capaz de controlar minha força terrível!

— Espera, sério?

— De fato.

Zanoba assentiu com um sorriso de genuína alegria no rosto. Sua felicidade era
evidente e contagiante.

Se Zanoba podia controlar sua força, significava que ele mesmo poderia fazer
estatuetas. Finalmente encontrou uma forma de criar as coisas que mais
amava. Era difícil para mim imaginar o quanto isso significava para ele.

— Minha mão, volte para a terra.

Com o segundo encantamento de Zanoba, a mão parou de se mover. Pelo


visto, poderia ligá-la e desligá-la à vontade.

— Então…

Tirando a mão do implemento mágico, Zanoba o ofereceu para mim.

— Por favor, experimente você mesmo, Mestre. Simplesmente ordene com as


palavras “Terra, seja minha mão”, e se tornará uma parte de você. Quando
quiser tirar, diga as palavras “Minha mão, volte para a terra.”

— Certo.

Aceitando a mão de Zanoba, a empurrei contra meu pulso esquerdo. A coisa foi
feita para ter espaço para uma mão fechada dentro dela, é claro; como me
faltava a mão, parecia capaz de cair a qualquer momento.

— Mas não tenho certeza se isso vai ficar…

— Isto não será um problema. Vá em frente, experimente o encantamento.

— Certo, então… Terra, seja minha mão.

No instante em que falei essas palavras, senti o dispositivo drenando mana do


meu braço.

Não puxou muita. Mas é claro que não iria, já que Zanoba podia usar.

— Whoa!
Assim que absorveu minha mana, senti o dispositivo pressionar com força
contra meu coto.

A sensação de que eu estava “vestindo” algo desapareceu na hora. Em seu


lugar, pude sentir a mão artificial que estava agora conectada a mim.

— O que acha…?

Cautelosamente, tentei mover minha mão esquerda. Abri e fechei, estiquei cada
dedo, começando pelo polegar e dobrando até o dedo mindinho. A argila de
aparência bruta respondeu como se fosse apenas outra parte do meu corpo.
— Está se movendo! Está se mexendo de verdade!

— Ah, mas isso não é tudo. Por que não tenta tocar em algo?

— Certo…

Estendi a mão para pegar uma pequena estatueta de madeira da mesa mais
próxima. Era a estatueta de um cavalo, mais ou menos do tamanho do meu
punho.

As pontas de meus dedos artificiais podiam “sentir” seu peso e textura. A


sensação era um pouco enfadonha e indistinta – quase como se eu estivesse
usando luvas de algodão grossas – mas definitivamente existia.

— Dá para até sentir as coisas com isso? Isso é incrível.

— Mas é claro. Dificilmente se poderia esperar fazer uma estatueta sem a


sensação de toque.

Verdade. Era preciso ser bastante preciso com a quantia de força usada ao
esculpir algo. Já que Zanoba fez isso com seus próprios objetivos em mente,
essa sensação de toque seria uma característica essencial.

Só para ver o que poderia acontecer, tentei lançar um feitiço por meio dos
meus novos “dedos”. Uma pequena bola de água apareceu na frente deles.
Parecia que minha magia também não enfrentaria problemas.

Zanoba criou mesmo essa coisa em apenas meio ano? Não deve ter sido fácil.
Sua paixão por estatuetas deve tê-lo mantido incrivelmente motivado.

— Eu não tinha certeza se você seria capaz de usar sem a mão, mas parece que
não há grandes problemas — disse Zanoba com um sorriso satisfeito.

— Sim, se move muito bem. Também posso sentir os dedos. E usar magia.

— Se deseja aumentar sua força, só precisa o alimentar com mais mana. Seu
poder aumentará de acordo com isso.

— Ah, sério?

— Claro, se você usasse toda sua mana, imagino que acabaria quebrando
devido à tensão. É mais resistente do que uma mão humana normal, mas tome
cuidado.

— Bem, vejamos…

Enquanto conversávamos, alimentei o dispositivo com um pouco mais de


mana. O peso da escultura em minha mão pareceu desaparecer por completo.
— Uau, isso é realmente…

Antes que eu pudesse terminar minha frase, um estalo agudo soou.

— Ah.

— Aaah!

Arranquei uma das pernas do cavalinho sem querer.

— Aaaagh… Mestre, como você pôde…? — Zanoba olhou para mim com um
olhar de reprovação no rosto.

— Sinto muito, Zanoba… Vou te compensar por isso.

— Uggh… era uma escultura tradicional do antigo principado de Giara… Duvido


que algum dia eu encontre algo parecido de novo…

— U-Uh, bem, e se eu fizer algo novo para você? Seria apenas uma escultura
feita com magia de Terra, mas…

Diante desta oferta, o rosto de Zanoba se iluminou.

— Oooh! Que esplêndido! Sinto muito, não quis pressioná-lo!

Tirando a escultura de mim, ele cuidadosamente a guardou em uma mesa.


Talvez estivesse planejando colá-la ou algo assim. Esperançosamente, tudo
correria bem.

Zanoba se virou para me encarar.

— Pode ficar com essa mão, Mestre Rudeus. Ainda é apenas um protótipo, é
claro, mas tenho certeza de que é melhor do que nada.

— Sério? Tem certeza?

— Com você e Cliff me ajudando, tenho certeza que posso fazer outra de
qualidade semelhante em um instante.

Fazia sentido. Afinal, ele ainda estava ativamente trabalhando em sua


pesquisa.

Seria bom tornar essa coisa mais sensível. Dessa forma, eu poderia usá-la para
carícias recreativas.

Claro, havia inúmeras outras melhorias possíveis. Essa coisa


tinha muito potencial. Poderíamos, por exemplo, encontrar uma maneira de
transformá-la em várias armas ou ferramentas. Quão útil seria ter dedos que se
transformavam em brocas sempre que precisava de uma? Ou uma mão que se
transformasse em um canhão mágico sob demanda?

— Zanoba, acho que essa pode ser uma invenção incrível…

— Concordo plenamente! Não quero me gabar, mas acho que é um item


bastante esplêndido.

Por mais útil que fosse em combate ou na confecção de estatuetas, havia


muitas outras aplicações. Para começar, era uma prótese brilhante.

Neste mundo, era possível recolocar um membro decepado caso fosse um


mago com habilidades avançadas de Cura. E feridas que levariam ao hospital
no meu antigo mundo poderiam ser rapidamente curadas até mesmo com
feitiços básicos.

Regenerar uma parte que faltava no corpo, por outro lado, era extremamente
caro. A menos que fosse muito rico, provavelmente não conseguiria. E não
existiam muitos magos capazes de restaurar um braço ou perna inteiros.
Poderia encontrar alguns no País Sagrado de Millis, mas mesmo por lá eram
bem raros. Um simples aventureiro não poderia esperar contratar seus
serviços.

Quando um aldeão ou aventureiro comum perdia parte do seu corpo, na maior


parte das vezes tinham que se contentar com uma substituição grosseira –
algo mais parecido com a perna de pau do Capitão Ahab.

Se começássemos a vender próteses mágicas como essa a um preço


relativamente acessível, acabaríamos ajudando muitas pessoas. E
ganharíamos muito dinheiro no processo.

Os Curandeiros de Millis podiam não ficar muito satisfeitos com isso, mas,
felizmente, estavam do outro lado do mundo, bem longe de nós. Contanto que
conseguíssemos o apoio de uma organização maior, como a Universidade ou a
Guilda dos Magos, provavelmente funcionaria muito bem.

— Você tem um nome para isso, Zanoba?

— Não, ainda não dei um. Infelizmente, nem Cliff nem eu temos muito talento
para nomear as coisas.

— Ah, é? — Isso não era tão legal. Com certeza poderíamos inventar algum,
certo?

— Se importaria de fazer as honras por nós, Mestre Rudeus?

— Hein? Uh, claro, eu acho.


Eu também não me considerava lá muito bom em dar nomes às coisas, mas
não poderia recusar já que ele queria a minha ajuda.

Olhando para a coisa que agora servia como minha mão esquerda, parei para
pensar por um momento.

Quando se tratava de mão artificiais removíveis, as primeiras palavras que


passaram pela minha cabeça foram “Punho Foguete”. Mas não era como se eu
pudesse atirar isso nos inimigos ou algo assim… embora sempre pudesse
beliscá-los.

O segundo termo que passou pela minha mente foi “Mão da Glória”. Como na
mão decepada e conservada de um criminoso executado, que supostamente
tinha poderes mágicos – não o movimento especial de um personagem de
anime pervertido que usava uma bandana.

Não senti necessidade de reutilizar um nome já existente.

Essa coisa era uma invenção completamente nova – algo que este mundo
nunca tinha visto. Os inventores talvez merecessem algum crédito.

— Por que não pegamos um pouco de “Zanoba” e um pouco de “Cliff” e


chamamos de Prótese Zaliff?

— Não deveria haver também parte do seu nome, Mestre?

— Nah, está tudo bem. Não contribuí em nada para isso.

— Não creio que seja completamente verdade, mas que seja. A partir de agora,
vamos chamar esse dispositivo de Prótese Zaliff, Protótipo Um. — Zanoba
sorriu com orgulho enquanto falava.

Em qualquer caso, parecia que agora eu tinha um substituto mágico para


minha mão perdida. Não era tão precisa ou sensível quanto a minha antiga,
mas movia-se muito bem, e eu podia ao menos sentir as coisas com ela.
Também podia se tornar muito poderosa com a adição de um pouco mais de
mana. Mas eu precisaria de um pouco de prática para pegar o jeito de usar a
quantidade certa de força.

Meu objetivo era chegar ao ponto em que poderia apertar os seios de Roxy e
Sylphie suavemente.

— Ainda há espaço para melhorias, é claro, mas também precisamos continuar


nosso estudo do autômato. O que devemos priorizar, Mestre Rudeus?

— Hmm, vejamos…
Aparentemente, este protótipo tinha alguns problemas fundamentais. Por um
lado, seu consumo de mana não era ideal. Eu poderia usar sem parar, mas
passadas duas ou três horas Zanoba já não tinha nada sobrando.

Os dedos também eram meio grossos, o que não era esteticamente agradável.
E, claro, seu sentido de toque ainda não era perfeito. Se conseguíssemos
resolver todos esses problemas, seria uma invenção ainda mais surpreendente.

Dito isso, a prótese não era o foco principal da nossa pesquisa. Era apenas um
subproduto dela.

— Bem, não vamos perder o foco.

Nosso objetivo era fazer um autômato próprio, com nossas próprias mãos.
Esta prótese definitivamente teria um preço elevado e era uma ferramenta
muito conveniente. Provavelmente poderíamos inseri-la no mercado. Mas eu
não queria que isso tomasse todo o nosso tempo de pesquisa.

— Estamos tentando fazer um boneco totalmente automatizado, certo? Não


podemos esquecer disso.

— Realmente.

— Por enquanto, vamos colocar o aprimoramento da prótese em espera e voltar


a estudar aquele autômato.

— Claro. Eu esperava que você dissesse isso, Mestre.

Felizmente, Zanoba e eu parecíamos estar de acordo. Poderíamos sempre


trabalhar na prótese no tempo livre.

Continuamos conversando por algum tempo. Na maior parte dele, nossa


conversa focou nos vários bonecos e estatuetas que eu tinha visto no
Continente Begaritt. Quando contei a ele sobre as esculturas de vidro, os olhos
de Zanoba brilharam de entusiasmo.

— De qualquer forma, como Julie esteve enquanto estive fora?

— Muito bem. Outro dia, ela terminou uma estatueta de um certo cavalheiro.
Acredito que ela queria te mostrar, Mestre Rudeus.

Hm? Ela já tinha terminado a estatueta de Ruijerd? Eu queria ver isso o quanto
antes, mas…

— É bom ouvir isso. Mas se ela não vai voltar até de noite, acho que não poderei
vê-la hoje.

— Hrm. Você tem algum outro negócio a tratar?


— Minha mestra está fazendo uma entrevista de emprego no momento. Assim
que ela terminar, estava planejando dar uma volta por aí e dizer olá para todos.

— Sua mestra?

Com uma pontualidade impecável, alguém bateu à porta.

— Rudy? Você está aí? É aqui, não é?

Era a voz de Roxy. Ela aparentemente terminou com o vice-diretor enquanto


Zanoba e eu conversávamos.

— Entre. Na verdade, estávamos falando sobre você.

— Perdão…

Roxy hesitantemente entrou no cômodo. Ela parou para olhar ao redor da sala
por um momento, então cautelosamente caminhou até o meu lado.

— Este é um laboratório impressionante. Está mesmo tudo bem que eu esteja


aqui? Sinto que há várias coisas que eu realmente não deveria estar vendo…

— Não seja boba, Roxy. Não há um único lugar neste campus onde você não
possa entrar.

— Realmente não acho que isso dependa de você, Rudy.

— Talvez não. Mas ao menos aqui você é bem-vinda.

Enquanto nós dois conversávamos, Zanoba ficou paralisado onde estava. Um


momento depois, percebi que ele estava tremendo um pouco.

— Zanoba, deixe-me apresentá-la. Esta é Roxy M. Greyrat, minha mestra em


magia.

— É bom te ver de novo, Príncipe Zanoba. Fico feliz em te ver com tanto vigor e
boa saúde.

Roxy baixou a cabeça profundamente para Zanoba.

— Oh… Oh… Ohhh…

Zanoba, por sua vez, apenas olhou para ela e tremeu ainda mais do que antes.
Por fim, ergueu os braços trêmulos acima da cabeça. De repente, soltou um
tipo de rugido estranho.

— Ohhhhhhh!!!
Depois de pular no ar igual a um sapo, caiu no chão, prostrando-se com as
mãos estendidas para frente.

— Uau! — Roxy se encolheu de surpresa e deu um passo para trás de mim,


escondendo-se parcialmente da vista.

— Que bom te ver de novo, Lady Roxy! Minhas mais profundas desculpas pela
grosseria com que te tratei no passado! Na época eu não fazia ideia de que
você era a mestra do meu mestre!

— Hm, por favor, pare de se rastejar! Você é o príncipe de um reino inteiro e eu


sou apenas uma maga. E se alguém visse isso?

Roxy estava obviamente perturbada. Não que eu pudesse culpá-la.

Esta provavelmente era a minha deixa para intervir e acalmar um pouco as


coisas.

— Não se preocupe, Mestra. Se alguém tentasse fazer disso um problema, eu


mesmo os silenciaria.

— Você também não, Rudy! Ficou louco?!

Deus, ela é tão fofa quando fica toda agitada…

Mas realmente não havia nada com que se preocupar.

— Acho que você só precisa respirar fundo e se acalmar, Roxy. É perfeitamente


natural que Zanoba queira se prostrar diante de você.

— Uh, é? Poderia explicar o motivo?

— Bem, Zanoba? É perfeitamente natural, não é?

O rosto dele ainda estava firmemente pressionado contra o chão, mas Zanoba
balançou a cabeça com respeito.

— De fato! Afinal, ela é a mestra do meu mestre!

Viu? Perfeitamente razoável.

— Isso não é uma explicação! Eu quero um motivo real!

— Você não precisa de um “motivo” para o que é natural, certo? Apenas aceite o
gesto com graça, por que não?

— Mas…

— Ah, então tá bom. Zanoba, se importaria de se levantar?


Parecia que não estávamos progredindo com a conversa, então decidi deixar
Zanoba ficar de pé.

O homem era alto, então, assim que ficasse de pé de novo, provavelmente teria
uma visão clara do topo da adorável cabeça de Roxy.

Isso me parecia decididamente atrevido, mas eu teria que deixar passar. Afinal,
ele não conseguia controlar sua própria altura.

— De qualquer forma, Senhorita Roxy, como foi sua entrevista? — perguntou


Zanoba educadamente. — Acha que será contratada como professora?

— Sim. Mestre Jenius, o vice-diretor, digo, achou que minhas habilidades como
maga são adequadas.

— Bem, é claro que são — interrompi. — Afinal, foi você quem me ensinou
magia!

— Você aprendeu muita coisa sozinho, Rudy. Não tenho certeza do quanto isso
diz sobre meu potencial como educadora.

Roxy, pelo visto, estaria começando seu novo trabalho como instrutora assim
que o próximo semestre começasse.

Isso claramente exigia uma celebração.

Também não era a única coisa que tínhamos para comemorar. Em breve nos
casaríamos, minhas irmãs fariam dez anos em pouco tempo e tínhamos mais
um membro da família a caminho.

Pode ser mais fácil juntar todos os eventos em uma grande festa ou algo
assim.

Além de tudo, a carta de Paul sugeria uma celebração assim que todos
voltassem para casa. Porém, não havia pressa. Todos estávamos de mãos
cheias no momento. Seria melhor esperar até que as coisas estivessem um
pouco menos agitadas.

— Ah, quase esqueci. Eu estava planejando sair por aí dizendo olá para todo
mundo.

— Bastante razoável, Mestre. Tenho certeza de que ficarão muito felizes em vê-
lo de volta tão cedo.

Zanoba sorriu tão brilhantemente que não pude deixar de sorrir também.

Mais do que qualquer outra coisa, eu estava animado para finalmente


apresentar Roxy aos outros.
— Então tudo bem, Zanoba. Mais uma vez, obrigado pela prótese. Voltarei em
breve.

— Por favor, passe por aqui quando tiver tempo, Mestre. Julie ficará feliz em te
ver.

— Claro.

— Ah, uma última coisa. Se sua mão nova começar a causar problemas, pode
ser melhor mostrar primeiro a Cliff, em vez de vir até mim.

— Entendido.

Com isso, deixamos os aposentos de Zanoba para trás.

Enquanto caminhávamos pelos corredores frios da Universidade, um som de


rangido ecoava pelas paredes.

Estava saindo da minha nova prótese; eu estava ativamente testando quanta


magia poderia alimentá-la com segurança. Cada vez que eu abria e fechava a
mão, emitia um ruído audível.

Suponho que não era razoável esperar que um protótipo fosse projetado para
operar em silêncio.

— Rudy, essa prótese é um instrumento mágico? — perguntou Roxy, olhando


para a mão cor de barro.

— Isso mesmo. Aparentemente, é o produto de algumas pesquisas e pelo


engenhoso desenvolvimento da parte de Zanoba.

— É um trabalho muito impressionante, devo dizer. Parece capaz de fazer


movimentos muito precisos.

— Sim, é mesmo. Dado o quão bem funciona, acho que poderei viver muito bem
de agora em diante. Mesmo sem ter você por perto o tempo todo.

— Ah… c-claro. Suponho que sim.

O rosto de Roxy, por algum motivo, assumiu uma expressão ligeiramente


abatida.

— Sinto muito, Rudy. Suponho que não estava levando sua situação em
consideração. Fiquei tão ansiosa para me tornar professora que nem pensei
nos problemas que isso poderia te causar…

— Está falando da minha mão perdida? Sério, isso não é grande coisa.
Ter Roxy por perto era de grande ajuda, mas não era como se eu tivesse pedido
a ela para assumir o papel de minha assistente pessoal. Obviamente, queria
que ela colocasse seus próprios objetivos em primeiro lugar.

Por um lado, há muita gente na minha vida que estão dispostos a me ajudar
quando necessário. Não que eu fosse dizer isso, já que soaria como se eu
estivesse chamando Roxy de substituível.

— Em qualquer caso, estou feliz por você voltar a ter uma mão esquerda.

— Aham. Agora posso te tocar duas vezes mais.

Estendi a mão e acariciei os ombros de Roxy suavemente com a minha mão


artificial.

Pude sentir seu calor e a suavidade de seu corpo, mesmo através de seu robe.
Pelo visto, essa coisa também era sensível à temperatura. Era realmente bem
feita.

Continuei acariciando Roxy por um longo período de tempo, mas ela aceitou
tudo sem reclamar.

— De qualquer forma, quero te apresentar a todos. Se importa de vir um pouco


comigo?

— Oh… oh! Claro. — Roxy balançou a cabeça, parecendo um pouco nervosa.

Pelo resto da tarde, percorri o campus apresentando Roxy aos meus amigos e
conhecidos. Conseguimos ver Linia, Pursena, Ariel, Luke e Nanahoshi. Eu
planejava visitar Cliff também, mas ouvi gemidos apaixonados dentro de seu
laboratório quando nos aproximamos, então decidi voltar em outra ocasião.

As reações que obtivemos foram bem variadas.

Linia e Pursena responderam de forma particularmente divertida. No momento


em que sentiram o cheiro do perfume de Roxy, as duas ficaram atentas e com
olhares de medo em seus rostos.

Enquanto permaneciam ali, docilmente com o rabo entre as pernas, apresentei


Roxy como minha amada mestra. Elas curvaram a cabeça na mesma hora.

Acho que o povo-fera é rápido em reconhecer pessoas com quem não devem
mexer. Desta vez seus instintos estavam certos.

Ariel e Luke, por outro lado, ficaram surpreendentemente indiferentes.

Quando apareci para dizer olá, as primeiras palavras que saíram da boca de
Ariel foram: “Vejo que se lembrou de passar por aqui ao menos depois da
viagem.”
Ela não parecia realmente chateada, mas explicou que poderia ter me oferecido
ajuda caso eu fosse vê-la antes de partir. Considerando que meus preparativos
inadequados acabaram me custando caro, ouvir isso me deixou um pouco
envergonhado. Acabei me desculpando por minha omissão.

Entretanto, deixando isso de lado… Quando apresentei Roxy, os dois olharam


para ela com uma surpresa inexpressiva, depois se viraram para olhar um para
o outro. Estavam obviamente surpresos por uma maga tão “jovem” estar
assumindo um papel no corpo docente.

Ainda assim, Ariel era uma princesa, com todas as habilidades diplomáticas a
isso implicadas. Ela cumprimentou Roxy com muita educação, sem qualquer
sinal de confusão em sua voz. O autocontrole dessa mulher era
impressionante.

Encontramos Nanahoshi parecendo um tanto desgastada. Ela podia ter pego


um resfriado ou algo assim, já que estava tossindo sem parar. Quando ela viu
meu rosto, sorriu de alívio e murmurou: “Agora podemos retomar a pesquisa.”

Quanto apresentei Roxy e expliquei que ela começaria a ensinar na


Universidade, sua resposta foi um desinteressado “Entendo”.

Isso me pareceu muito pouco, então dediquei um tempo a falar sobre as


muitas virtudes e talentos de Roxy. Infelizmente, Nanahoshi só fez uma careta
e me chamou de “papa-anjo”.

Suponho que esperar que uma garota comum do colégio pudesse compreender
a grandeza de Roxy era querer demais.

A essa altura, já era noite e tínhamos passado por todos que eu queria visitar.

Porém, quando eu estava prestes a sugerir que fôssemos para casa, Roxy falou
com uma expressão ligeiramente descontente no rosto:

— Rudy?

— Sim, Roxy?

— Estou muito feliz que você tenha reservado um tempo para me apresentar
aos seus amigos, mas sinto que você está sendo… um pouco exagerado em
seus elogios.

— Sério? Não foi intencional, te garanto.

— Está falando sério?

— Bem, no que me diz respeito, nenhuma palavra que pudesse oferecer seria o
suficiente para expressar o quão maravilhosa você realmente é. Na verdade,
pensei que estava te fazendo passar por menos do que é.
Franzindo a testa, Roxy apontou um dedo para mim.

— Certo, começou de novo! Rudy, você está me provocando ou algo assim?

— Não seja ridícula. Meu respeito e admiração por você é o mais real possível.

— Ah, fala sério… Sabe, sempre que você começa a me chamar de Mestra, não
consigo deixar de lado a sensação de que você está tirando sarro de mim.

Roxy fez uma pausa para deixar um longo suspiro escapar.

Sinceramente, eu achava que minha opinião sobre ela era perfeitamente


justificável, mas parecia que ela achava meio exagerada.

— Mas deixando isso de lado… Você me apresentou a alguns de seus amigos e


disse que eu era sua mestra. Mas não mencionou que eu era sua esposa.

— Oh!

Só nesse momento percebi como estraguei tudo.

Isso pode nem ser algo que eu possa consertar de imediato.

Roxy estava perfeitamente certa. Ela não era mais Roxy Migurdia. Agora era
Roxy M. Greyrat.

A apresentei assim para todos, é claro. E ela repetiu isso enquanto


cumprimentava. Acho que uma parte de mim presumiu que isso bastava – que
era perfeitamente óbvio que estávamos casados.

Eu, no mínimo, estava confiante de que uma pessoa tão astuta quanto Ariel
teria percebido.

Ainda assim, isso não era desculpa. Roxy tinha todo o direito de ficar furiosa.

Acho que eu queria enfatizar, acima de qualquer coisa, a sua grandeza. E uma
parte de mim ainda achava que ela era boa demais para se casar com alguém
como eu. Mas ela claramente queria que eu a apresentasse como minha
esposa.

Foi um erro imperdoável da minha parte. Roxy era minha segunda esposa, sim,
mas isso não a tornava menos minha esposa. Passaríamos o resto de nossas
vidas juntos. Talvez até teríamos filhos.

— Sinto muito, Roxy, querida. Mas você sabe o quanto te amo, certo? Como
posso te compensar por isso? Quer que eu me apresente aos seus pais?

— Uh… n-não, não acho que isso seja necessário. Afinal, é uma viagem bem
longa. Eventualmente faremos isso.
Eventualmente? Hmm.

Esperançosamente, Rowin e Roraki estavam bem lá no Continente Demônio.


Agora que eu era casado com Roxy, eles eram meus sogros. Eu também devia
a eles pela ajuda que me deram há muitos anos. Meio que queria arrumar um
tempo para ir vê-los.

Se traçássemos uma rota através de alguns círculos de teletransporte,


poderíamos chegar lá em pouco mais de dois meses, mas…

— Então tá. Qualquer dia temos que arrumar tempo.

Não havia necessidade de apressar as coisas. Depois que tudo se acalmasse,


talvez poderíamos levar toda a família para cumprimentá-los.

Afastando o pensamento para o fundo da minha mente, fui para casa com
minha nova esposa ao meu lado.

Lendas da Universidade #1: O Chefe pode disparar sua mão igual a um foguete.
Cap. 02 – Terceiro Ano

Chegou o primeiro dia do meu terceiro ano na Universidade.

Quando acordei e desci para a sala, me deparei com Sylphie lá, amamentando
Lucie.

— Ah, bom dia, Rudy.

— Bom dia, Sylphie.

Lucie tinha apenas alguns meses de idade, mas já parecia ser forte e saudável.
Sylphie também estava bem. A única diferença era que eu sentia como se ela
tivesse ficado de alguma forma mais feminina. Será que era por ter deixado o
cabelo crescer? Ou era aquela coisa de “aura de mãe”? Ou apenas o fato de ter
ficado um pouco mais velha?

Seja lá qual fosse o caso, ela estava desabrochando em uma beldade ao estilo
de Hollywood. Podia se sentar em silêncio no sofá, sem fazer nada em
particular, e ainda parecia que estava posando para um retrato. Às vezes, eu
até mesmo hesitava em falar com ela, de tão hipnotizado que ficava.

Ainda assim, quando eu me aproximava, ela continuava sendo a mesma Sylphie


que conhecia e amava – ansiosa por carinho e atenção. Isso era bem
reconfortante.

— Hoje Lucie está cheia de energia de novo — disse ela, sorrindo para mim.

Olhei para nosso bebê, que furiosamente chupava o seio de minha esposa. Ela
estava fazendo isso com tanto vigor quanto eu fazia na cama. Tal pai tal filha.

Lucie era um bebê saudável, mas um pouco calada. Ela não chorava muito. Por
um tempo, fiquei ansioso pensando que poderia estar doente ou ter algum
problema físico. Sempre que eu tocava nesse assunto, porém, Sylphie apenas
sorria e me chamava de “preocupado demais”. Eu não lembrava de ter ficado
tão nervoso quando minhas irmãs nasceram, mas acho que quando o bebê é
seu as coisas são diferentes.

Apesar de minhas preocupações, Lucie vinha crescendo de forma constante e


se mantendo saudável. Ela ainda era bem quieta para um bebê de sua idade,
mas seu corpo parecia forte o suficiente. Certa vez, quando Lilia estava
cuidando de minha filha tranquila, fez uma observação: “Ela me lembra você
nessa idade, Mestre Rudeus.”

Isso me assustou, é óbvio. A palavra “reencarnação” passou pela minha mente.


Para ser sincero, eu era um lixo humano na minha vida anterior. A ideia me
preocupou. E se Lucie fosse a reencarnação de algum idiota imprestável do
Japão?

A ideia continuou me atormentando por um tempo. Por fim, comecei a falar


com minha filha em japonês e inglês para ver se ela reagia.

Qualquer um que passasse por ali me veria murmurando coisas como “Você já
descobriu, né? Este é um universo paralelo…” e “Você é meu raio de sol! Eu sou
uma caneta!”

Tenho certeza de que deve ter sido uma visão cômica. Lembro de Aisha nas
sombras rindo de mim.

Meus métodos não eram exatamente os melhores, mas comecei a pensar que
minha filha provavelmente não era a reencarnação de ninguém. Quando eu
conversava com ela, tudo que ela fazia era sorrir e balbuciar incoerentemente.

Era possível que ela estivesse apenas escondendo sua verdadeira natureza, é
claro, mas não sei quantos adultos conseguiriam manter uma imitação perfeita
de um bebê por tanto tempo. E mesmo que fosse esse o caso, era meio fofo
imaginar alguém desesperadamente fingindo ser um bebê.

Sim. De uma forma ou de outra, Lucie definitivamente era fofa. Eu poderia ficar
o dia todo ao lado de seu berço, sem nunca me cansar de vê-la. No final das
contas, eu realmente não me importava sobre ela ser a reencarnação de
alguém. Cuidaria bem dela de qualquer maneira. Afinal, Paul fez o mesmo por
mim.

— Nossa filha continua tão adorável quanto sempre.

— Fala sério. Por que ela é tão fofa assim?

— Provavelmente puxou à mãe.

Deslizando meus braços por trás dos ombros de Sylphie, a abracei suavemente
contra mim. Abaixei minha cabeça, como se fosse dar um beijo em sua nuca…
mas depois continuei, enterrando meu rosto em seu cabelo.

Ela tinha um leve cheiro de leite. Era uma espécie de perfume natural.

— Hee hee… obrigada, Rudy.

Esfregando o rosto contra minha mão, Sylphie sorriu timidamente.

E então, viu Roxy parada atrás de mim.

— Hm… olá, Roxy. Como Rudy se saiu na noite passada?


Roxy estremeceu de surpresa.

— Er… oh. Bem, hm, ele foi muito atencioso.

— Sério? Sei que às vezes ele pode ser bem grosso. Ele não te assustou nem
nada?

— Não, na verdade não. Afinal, era a segunda vez e ele foi gentil comigo… Ah,
sinto muito. Talvez eu não devesse estar falando isso…

— Você não tem nada pelo que se desculpar.

— Não…?

— Não mesmo.

As duas ainda eram um pouco estranhas uma com a outra, mas ao menos não
demonstravam hostilidade entre si. Poderia dizer que estavam tentando ser
respeitosas e atenciosas. Isso me denunciava que queriam fazer isso.

Um relacionamento a três como esse não era algo tão simples quanto um
relacionamento monogâmico. Provavelmente exigiria algum esforço de todas
as partes envolvidas. Estaríamos, em particular, dependendo muito de Sylphie.
Sua mente aberta era a única coisa que tornava isso possível.

Voltei atrás em minha palavra com ela e tomei Roxy como segunda esposa. Ela
teria justificativa para bater com os papéis do divórcio na minha cara.

— Café da manhã, café da manhã, hora de tomar o café da manhã…

Nesse momento, Aisha entrou na sala cantarolando para si mesma.

Sinceramente, era uma música horrível. Ela talvez tivesse acabado de inventar.
Acho que até mesmo gênios têm seus pontos fracos.

— Bom dia, Rudeus! Bom dia, Senhorita Sylphie e Senhorita Roxy! O café da
manhã de hoje é praticamente o mesmo de sempre!

Ela estava carregando pão branco, sopa verde e leite quente de égua. Nessa
região, a tradição era de que novas mães tomassem muito disso.
Supostamente ajudava a amamentar.

— Isso não vai dar certo, Aisha. Diga a todos o que você está servindo.

Lilia entrou na sala atrás da filha. Pelo visto, também estava na cozinha.

— Temos sopa de batata e feijão Yoko, servida com pão branco e leite de égua
altamente nutritivo! — tagarelou Aisha obedientemente.
Claro, já sabíamos disso, pois era o que comíamos meio que todas as manhãs.
Mas acho que manter as formalidades menores vale a pena.

— Muito bom — disse Lilia, balançando a cabeça, satisfeita. — Por favor,


esperem um momento.

Com isso, ela subiu para o segundo andar.

— Obrigada pela paciência. — Alguns momentos depois, retornou com Zenith.

Minha mãe entrou na sala de estar, parou para olhar para mim e, logo depois,
silenciosamente se dirigiu ao seu lugar habitual à mesa.

— Bom dia, Mamãe…

Já tinham passado meses, mas as memórias de Zenith ainda não tinham


retornado. Ela, entretanto, estava mudando em coisas pequenas, mas
perceptíveis. Agia, em particular, de maneira bem diferente quando Norn estava
por perto. Ela acariciava a cabeça de sua filha ou tentava alimentá-la com sua
própria comida – esse tipo de coisa. Quase como se achasse que a garota
tinha apenas dois ou três anos.

Norn às vezes parecia perturbada com isso, mas aceitava a atenção de Zenith.
Não sei exatamente no que ela estava pensando. Mas eu presumia que seus
sentimentos a respeito disso eram confusos.

A garota ainda estava na idade em que seria natural se apegar à mãe… ou se


prepara para se rebelar contra ela. De qualquer forma, é um período da vida em
que o relacionamento com os pais é muito importante.

Ainda assim, Norn entendia a condição de Zenith, e estava claramente tentando


colocar os sentimentos de sua mãe acima dos seus. Alguns anos atrás eu não
esperaria esse tipo de maturidade dela, mas acho que as pessoas mudam.

—…

Mas era difícil saber o que isso significava para o lado de Zenith.
Ela sentia uma conexão com sua filha, em algum nível instintivo? Ou estava
lentamente começando a recuperar fragmentos de sua memória?

No momento, esperar e ver o que acontecia parecia ser o melhor a fazer.

— Certo, pessoal. Vamos comer.

Todos nós tomamos nosso café da manhã juntos. Sylphie estava sentada à
minha direita e Roxy à esquerda. Do outro lado da mesa estavam Aisha, Lilia e
Zenith, nessa ordem. Norn costumava sentar ao lado de sua mãe, mas desta
vez não estava presente.
Eu não lembrava de ninguém ter organizado isso, mas acabamos chegando a
esse arranjo nos assentos.

— Tenho certeza que você lembra, mas a partir de hoje estarei de volta à
Universidade. Cuide bem de Lucie para mim, viu?

— Claro, Senhorita Sylphiette. Deixe tudo conosco.

A partir deste dia, Sylphie e eu voltaríamos às aulas. Enquanto estivéssemos


fora de casa, Lilia e Aisha cuidariam de nossa filha.

Mas Lucie ainda era uma criança. Ela não poderia sobreviver sem acesso aos
seios de sua mãe.

Espera. Isso também me torna uma criança? Hmm.

Deixando isso de lado por um tempo, decidimos contratar uma ama de leite.
Era uma moça chamada Suzanne que morava na vizinhança – uma ex-
aventureira e mãe de dois. Ela era uma velha conhecida minha, mas não há
necessidade de tocar no assunto agora.

— Obrigado pela comida.

Era hora de eu começar meu terceiro ano na Universidade.

— Yo!

— Dia, senhor!

— É bom te ver de novo!

No momento em que pisamos nossos pés no campus, alunos que eu não


reconhecia começaram a aparecer para me dizer oi. Todos tinham aparência
rude, mas eram estranhamente respeitosos.

Talvez eu estivesse projetando uma aura de autoridade.

Pensando bem, acho que era porque virei um pai de família. Não que eu me
sentisse diferente.

— Ei, Chefe!
Enquanto eu pensava nisso tudo, as alunas com a aparência mais perigosa de
todas apareceram diante de nós.

— Dia, Chefe!

— Ah, bom dia para vocês também, Fitz e Senhorita Roxy.

Eram Linia e Pursena, é claro. Essas duas estavam agora no último ano de
estudo, mas não tinham mudado muito.

Linia ainda esbanjava arrogância e Pursena mastigava algo que parecia um


presunto enquanto falava conosco.

— Você não é um cara de sorte, Chefe? Chegando na escola com uma garota
de cada lado!

— Qual é a sua, nos largando e depois arranjando uma segunda esposa? Injusto
pra caralho, é isso que é.

— Vamos nos formar este ano, sabe. Acho que também teremos que arrumar
alguém.

— Sim. Tudo se resume a isso. Temos que arranjar um homem antes de


voltarmos para casa!

Elas pareciam genuinamente agitadas. Parecia que estavam com inveja de


mim – veja bem, não de minhas esposas, e sim de mim.

No fundo, as duas queriam claramente liderar seu próprio “bando”. Era a


mentalidade de Decepticon se revelando novamente.

— Boa sorte para vocês duas — disse Sylphie com um sorriso agradável.

Foi a resposta provocadora de uma mulher que tinha alguma confiança em sua
própria posição. Para ser sincero, fiquei um pouco surpreso.

Mas, bem, Sylphie conhecia essas duas há mais tempo do que eu. Acho que
fazia sentido que se sentisse confortável lidando com elas.

Roxy, por outro lado, parecia ter interpretado suas palavras ao pé da letra. Ela
baixou a cabeça para elas com uma expressão de desculpas.

— Sinto muito por isso. Suponho que cortei a fila, não foi?

— Mya?!

— Huh?!

Linia e Pursena foram, naturalmente, surpreendidas por isso.


— Uh, nah, tudo bem! Não quisemos dizer isso, sabe?

— Sim, só estamos bravas com nossa maldita falta de apelo sexual. Não
estamos fazendo pouco de você, Senhorita Roxy!

As duas de repente começaram a freneticamente oferecer desculpas a Roxy.


Ela era mais do que digna de tal deferência, é claro, mas o quão desesperada
elas estavam chegava a ser quase assustador.

Para ser sincero, eu meio que esperava que essas duas dissessem algo como
“Somos muito mais sensuais do que essa pequenina, mew!” ou “Você se casou
com um maldito demônio?!” Não que eu fosse tolerar tal desrespeito.

Depois que elas terminaram de se desculpar, as duas deram tapinhas


simpáticos nos ombros de Sylphie.

— Isso também deve ser difícil para você, hein? Aguente firme, Fitz!

— Não vai ser fácil acompanhá-la, mas sei que você consegue!

Sylphie piscou, parecendo um pouco perplexa.

— Huh?

— Melhor ter o seu segundo logo.

— Sim. Foco em manter a liderança.

— O quê…?

Sylphie parou para pensar por um momento, então murmurou “Oh” e seu rosto
assumiu uma expressão um pouco estranha.

— Hm… Rudy ainda está me dando muito amor, sabe?

Linia e Pursena reagiram a isso com fungados ruidosos em simpatia


exagerada.

— Aw, pobre e doce criança!

— Estou quase chorando! Vamos lá, Fitz! Uma pessoa quieta como você com
certeza vai acabar em segundo plano assim que o Chefe pegar a número três e
quatro, certo? Isso é tão triste!

Uau. Olha só essas idiotas…

Aliás, eu não planejava adicionar mais esposas à minha família. E mesmo se


fizesse isso, não iria começar a negligenciar Sylphie por qualquer motivo que
fosse. Ela colocou seu corpo em risco para me ajudar. Eu nunca, jamais,
esqueceria isso.

Não que eu tivesse retribuído isso muito bem até o momento, com Roxy e tal.

— Hein? Isso não é verdade! Hm… certo, Rudy?

Não consegui distinguir a expressão de Sylphie por baixo dos óculos escuros,
mas sua voz parecia ansiosa. Eu precisava me aproximar e dar a ela um pouco
de segurança.

— Claro que não!

Me inclinei e a puxei para um grande abraço.

Afetuosamente esfregando suas costas, respirei fundo e me preparei para


expressar meus sentimentos. Provavelmente seria melhor esclarecer as coisas
logo, com muitas testemunhas ao redor.

— EU TE AMO, SYLPHIE!

Esta declaração contundente recebeu uma salva de palmas de vários


espectadores aleatórios. Sylphie corou um bocado e se contorceu em meu
abraço.

— Rudy, vamos! Aqui não é hora nem lugar!

— Ah, sério? Foi você quem me pediu segurança.

— B-Bem, se você quer fazer um grande gesto, então deve fazer o mesmo pela
Roxy!

Justo. Olhei para Roxy.

— Isso não é realmente necessário… Estou bem.

Ela estava me encarando com algo semelhante a expectativa em seu olhar.

Sem mais hesitação, abracei Roxy com o braço esquerdo, mantendo Sylphie
pressionada contra mim com o direito.

Ah, que felicidade. Agora eu tinha uma esposa de cada lado.

— EU AMO VOCÊS DUAS!

Desta vez, recebi um coro de vaias de alguns dos alunos que estavam
assistindo. Provavelmente eram seguidores da Igreja Millis ou algo assim.

Que seja! Suas leis não se aplicam a mim! Eu sou a lei!


Em qualquer caso, toda a atenção do público estava se tornando um pouco
demais para Sylphie. Seu rosto estava tão vermelho quanto um tomate.

— Ah, meu deus! Estou indo me encontrar com a Princesa Ariel, tá?

— Claro. Te vejo na hora do almoço, Sylphie.

— É Fitz quando estamos na universidade, lembra?!

Ah, é mesmo. Eu tinha esquecido completamente dessa coisa.

Não via as aulas há quase um ano, então acho que simplesmente esqueci. Para
ser sincero, porém, não parecia que havia muito sentido em continuar com a
farsa. Ela já estava bonita demais para ser convincente que era um garoto.

Bem, tanto faz. Ela era bonita de qualquer jeito, e como se apresentava era
escolha dela.

— Suponho que então irei para os escritórios do corpo docente — disse Roxy
após vermos Sylphie sair trotando.

— Certo. Boa sorte no seu primeiro dia, Roxy.

— Ah, isso me lembra. Você deveria me chamar de Professora Roxy enquanto


estivermos nas dependências da escola.

Hmm. Verdade, tínhamos que manter nossas vidas pessoais e profissionais


separadas.

Por mim tudo bem, é claro. Mas, o mais importante… Roxy realmente
era professora, não era? Isso era meio… picante. Me vi pensando na noite
anterior.

Imagino até que horas te deixam ficar com as chaves do depósito de Educação
Física…

Nesse ponto, abruptamente lembrei de algo que parecia importante.

— Uh, Professora Roxy?

— Sim, Rudeus? — disse Roxy, olhando para mim com um sorriso calmo e
profissional.

— Este é o primeiro dia do novo período, certo? O corpo docente não tem uma
reunião antecipada ou algo assim?

— Gah!

Hmm. A cor desapareceu do rosto dela. Isso não era um bom sinal.
— S-Sinto muito, preciso ir! Agora! Com licença!

Em poucos segundos, ela correu em direção aos escritórios da faculdade e


desapareceu no meio da multidão.

Acho que não tínhamos calculado o tempo. Um membro do corpo docente não
seguiria a mesma programação que um simples aluno, é claro.

— Bem, então tá. Vamos andando também, gente.

— Meow!

— Estamos com você, Chefe.

Eu, particularmente, fui para a sala especial com minhas subordinadas leais no
meu encalço. Desta vez tínhamos uma classe obrigatória.

Ambas as minhas esposas desapareceram pelo resto do dia, mas de alguma


forma continuei com duas garotas bonitas ao meu lado. Meus dias de popular
talvez tivessem finalmente chegado.

Não que eu fosse colocar as mãos em Linia ou Pursena ou algo assim. Ah, às
vezes é difícil ser homem…

— Ah, é mesmo. Existe um boato sobre você por aí, Chefe.

Linia se virou para mim, suas orelhas de pé. Eu podia ver a curiosidade
brilhando em seus olhos.

— Sério?

— Aham. Estão dizendo que você travou uma batalha realmente épica. Tão
épica que perdeu a mão esquerda.

— Ah…

Pensando bem, tudo que eu disse para as duas foi que tinha voltado da minha
jornada e que Roxy começaria a lecionar na Universidade. Zanoba era o único
amigo para quem eu tinha falado sobre os detalhes.

Então ele espalhou os rumores? Ou podia ser Cliff. Afinal, ele provavelmente
tinha ouvido a história por Elinalise.

— Esse é o nosso chefe, mew! Voa para o Continente Demônio para lutar contra
um dos Sete Grandes Poderes e sacrifica a própria mão para vencer!

— O qu…?

O quê? De onde saiu essa coisa dos Sete Grandes Poderes?!


— Seu oponente teve que fugir envergonhado, certo? É assim que se faz!

— Espera. Espera! Vá mais devagar por um segundo, Linia!

Isso era bizarro demais! Como diabos o boato se distorceu a esse ponto? Eu
realmente não gostei disso. E se circulasse o suficiente para que todos
começassem a acreditar que eu derrotei um dos Sete Grandes Poderes? E se
um dos Poderes ouvisse esse boato?

E se fosse o número dois dessa lista? Um cara chamado Orsted?

— Bem, de qualquer forma, fui eu quem acabou de inventar essa história. Não
se preocupe, vou me certificar de espalhar por todos os… myaaa!

Antes que Linia pudesse terminar de falar, a agarrei pelo rabo e dei um puxão
feroz. Ela me atacou com as garras para fora, mas evitei seus golpes usando
meu Olho Demoníaco. Depois de algumas tentativas fracassadas, ela
pressionou a mão contra a bunda e olhou para mim com os olhos cheios de
lágrimas.

— Por que fez isso?! Não puxe a cauda de uma moça!

Olhei de volta para ela.

— Não espalhe nenhum boato exagerado, entendeu? Senão vou arrancar essa
coisa de você!

— Huh?! E-Entendido! Sinto muito!

Essas duas tinham uma fixação por espalhar boatos. Elas espalharam aqueles
sobre meus problemas na cama por todo o campus, mas disso poderia perdoá-
las, já que era verdade. Mas este era um caso totalmente diferente. Isso
poderia me causar problemas reais. Poderia acabar até mesmo morto.

Esse era o tipo de boato que precisava ser cortado pela raiz.

Nesse momento, Pursena entrou na conversa.

— Zanoba nos disse o que aconteceu. Você lutou contra uma hidra imune à
magia, certo? Ele estava dizendo que deveria ter ido junto. Acredita que poderia
ter evitado que você se machucasse.

— Isso mesmo, mew. Mas ficamos impressionadas por você ter conseguido
derrotar aquela coisa. Então, eu estava imaginando que precisávamos nos
assegurar de que todos soubessem o quão fodão você é…

— Obrigado, mas não.


Eu definitivamente fiquei um pouco mais forte com o passar dos anos. Mas
quando realmente importava, continuava dolorosamente fraco. Eu não queria
que as pessoas tivessem uma opinião exagerada sobre mim. Não merecia isso.

— Mas, sabe, Chefe… mesmo se não dissermos nada, as pessoas já estão


inventando coisas. Todos podem ver que agora você está com uma mão
artificial.

— Isso mesmo, mew. Não fará muita diferença se jogarmos nossa história no
meio disso.

—…

Eu aparentemente era uma figura semi-notória do campus, então devia ser


inevitável que as pessoas especulassem. Ainda assim, eu queria manter os
Sete Grandes Poderes fora disso. Esse era um território perigoso. Eu ainda
tinha uma memória bem vívida do dia em que Orsted quase me matou.

— Que rumores vocês ouviram por aí?

— Tem um monte. Vejamos…

Linia começou a contar uma série de histórias. Algumas pessoas estavam


dizendo que eu tinha lutado contra um guerreiro Superd até a morte, outras
diziam que eu tinha enfrentado uma horda de cem monstros sozinho. Outros,
ainda, afirmavam que lancei um antigo feitiço proibido com sucesso, mas que
acabei perdendo a mão no processo.

Nada disso parecia particularmente confiável, então presumi que com o tempo
esses boatos sumiriam.

— Hmm…

Pensando bem, os Sete Grandes Poderes provavelmente também estavam


acostumados a pessoas inventando histórias absurdas sobre eles. Eles eram
incrivelmente famosos por suas proezas em batalha. Talvez não prestassem
atenção a alguma história boba circulando pela universidade, mesmo que de
alguma forma ficassem sabendo sobre isso.

— Bem, tá bom. Foi mal pelo rabo.

— Vocês, humanos, não conseguem imaginar o quanto isso dói, mew. Puxar a
cauda de uma moça é imperdoável!

— Tá bom, tá bom. Qualquer hora dessas vou te comprar um pouco de peixe,


tá?

— Hee hee, ótimo! Eu deveria tentar reclamar com mais frequência…


— Em vez disso, carne para mim.

Nós três mais uma vez saímos pelo corredor.

Nossa sala de aula continuava a mesma de sempre.

Os outros cinco estavam sentados em grupo ao redor da minha mesa. Zanoba


estava brincando com suas estatuetas, sua leal assistente Julie ao seu lado.
Linia estava ocupada lixando suas garras, Pursena mastigava um pouco de
carne e Cliff estudava seriamente um livro grosso. Também tinha Ginger, que
estava parada em silêncio ao fundo da sala, embora não fosse uma estudante.

Já fazia muito tempo desde que estive nesta sala, mas tudo parecia bem
familiar. Era difícil imaginar que perderíamos dois dos nossos em apenas um
ano. Assumindo que Linia e Pursena conseguissem se formar, é claro.

— A propósito, Rudeus… — Cliff tirou os olhos do livro e me encarou. — Existe


uma razão pela qual você não apareceu para me dizer olá, assim como fez com
os outros?

Eu podia entender o mau humor. Não tive tempo de ir vê-lo.

— Foi mal por isso, Cliff. Passei pelo seu quarto depois de voltar, mas parecia
que você e Elinalise estavam ocupados com alguma coisa.

— Uh… entendo. Suponho que naquela noite estava com ela, sim. Tudo bem,
deixa pra lá. Minhas desculpas.

Por sorte, Cliff recuou bem rápido. Mas, ainda assim, eu estava começando a
ter a sensação de que as pessoas nesse espectro social eram muito exigentes
em relação a esse tipo de formalidade. Ariel também ficou descontente pela
forma como saí sem dizer qualquer coisa.

Quando eu era aventureiro, todo mundo era mais casual sobre essas coisas.

— Porém, sua primeira criança nasceu, sim? Você poderia ter falado ao menos
isso. Ainda estou treinando, mas poderia ter ao menos oferecido uma bênção a
ela.

— É, acho que sim…

— Ah, é mesmo. Você não segue a Igreja Millis, então suponho que isso não
seja necessário. Ainda assim, quase parece que você está me evitando. Tenho
certeza de que está preocupado com sua filha, mas não poderia ter encontrado
tempo para passar pelo meu laboratório ao menos uma vez?

Ele tinha razão. Eu talvez estivesse o evitando.


Mas havia uma razão para isso. Uma razão chamada Roxy. Eu agora tinha duas
esposas e Cliff era um devoto membro da Igreja Millis. Ele provavelmente não
reagiria de forma muito favorável às notícias.

— Será que há algum motivo para você não querer me ver? Se sim, gostaria de
ouvir diretamente de você, caso não se importe.

Neste dia ele estava estranhamente tenaz a respeito disso. Tive a sensação de
que Elinalise já tinha contado. Conhecendo-a, ela provavelmente também o
aborreceu um pouco. Eu podia vê-la dizendo algo como “Sei que você é
apaixonado pela sua fé, Cliff, mas se perdoá-lo pelas ofensas, vai mostrar a todos
o quão gentil e tolerante você é!”

Claro, eu não precisava do perdão ou permissão de Cliff para casar com Roxy.
Mas isso não significava que também queria arruinar nossa amizade.
Provavelmente era melhor eu entrar no jogo. Poderia confessar toda a verdade,
deixar Cliff me perdoar e depois elogiar sua mente aberta por um bom tempo.
Ele ficaria com o ego inflado e esqueceria do assunto. Sério, era uma situação
em que todos ganham.

Então tá bom. Acho que vou dançar nas suas cordas, Elinalise…

— Na verdade, Cliff…

— Perdão.

Antes que eu pudesse terminar de falar, entretanto, alguém abriu a porta da


nossa sala de aula.

Duas pessoas entraram. Uma delas era o professor encarregado de nossa


classe, que normalmente dirigia nossas aulas.

A outra era uma adorável jovem vestindo um robe, seus olhos sonolentos e
uma expressão séria, que parecia um pouco nervosa. O tipo de garota que
obviamente faria o melhor em todos os momentos, e que ninguém poderia
deixar de querer abraçar. Com isso, quero dizer… Roxy.

— Olá, pessoal. Gostaria de apresentá-los à professora assistente que estará


me ajudando com a Classe Especial.

— Prazer em conhecê-los — disse Roxy, dando um passo à frente e inclinando


um pouco a cabeça. — Meu nome é Roxy M. Greyrat.

Zanoba e os outros apenas olharam surpresos, mas nosso professor seguiu


em frente.

— A Professora Roxy pode parecer muito jovem, mas isso é uma simples
característica particular de seu povo. Ela, na verdade, tem mais de cinquenta
anos. Parece que já possui conexões com alguns de vocês, então decidimos
colocá-la aqui. Ela, no momento, atuará como minha assistente, mas
pretendemos que no próximo ano assuma inteiramente a classe.

— Mew?! O que vai acontecer com você, Professor Samson?!

O professor acenou com a cabeça para esta pergunta. O nome dele era
Samson? Isso era novidade para mim. Era quase impressionante o quão
despercebido ele passava.

— Voltarei para minha terra natal no ano que vem. Afinal, não tenho mais
qualquer parente nesta classe.

— Ah, sim. Afinal, para onde Ren foi depois que se formou?

— Minha irmãzinha está servindo como cavaleira mágica no Ducado de Neris.


Parece que ela está se saindo muito bem por enquanto, mas não há como dizer
o que fará se eu não estiver por perto para ficar de olho nela.

— Ooh. Entendi.

Eu só ficaria sabendo disso mais tarde, mas, aparentemente, era comum que o
orientador da classe especial fosse um instrutor com alguma conexão especial
com um ou mais alunos. Provavelmente tinha algo a ver com o quão
imprevisíveis eles eram. Gostariam de alguém que pudesse controlá-los um
pouco, ou ao menos servir como uma voz de contenção.

O Professor Samson, que estava encarregado de nós até o momento, era irmão
de uma estudante que se formou um ano antes de Cliff se matricular. Ela fazia
parte da família ducal de Neris, uma das três Nações Mágicas, e supostamente
tinha notável talento para a magia.

Em qualquer caso, Roxy tinha conexões pessoais comigo e com Zanoba. Ela
era, essencialmente, a escolha perfeita para o trabalho.

Voltando a dar um passo à frente, Roxy olhou pela sala e então começou a
falar.

— Sei que já fui apresentada a alguns de vocês, mas, novamente, meu nome é
Roxy M. Greyrat. Sou a segunda esposa do Rudeus Greyrat ali. Vou tentar não
deixar que isso influencie minhas ações como professora, mas espero que
entendam.

—…

Neste momento Cliff estava fazendo beicinho.


Ele provavelmente queria saber dessa coisa de “segunda esposa” pela minha
boca. Dessa forma, ele poderia ter aceitado a situação com elegância e ganho
minha gratidão. Mas seus planos estavam agora arruinados.

— Hm, Cliff…

— Hmm. Uma segunda esposa, não é? A palavra fidelidade não faz parte do seu
vocabulário, Rudeus?

Quando falei com ele, ele partiu para o modo de sermão na mesma hora.

— Eu sei, eu sei. Admito que me provei falho no departamento de lealdade.

— Abençoei seu casamento com Sylphie porque você me disse que a amaria, e
apenas ela. Você lembra disso, não?

— Claro. E sou muito grato a você.

— Bem, suponho que desde o início eu sabia que você não segue a minha fé.
Não vou continuar insistindo neste ponto. Se der certo, você tem meus
parabéns. Espero que sejam felizes juntos.

— Obrigado, Cliff.

Cliff bufou após isso.

— Sabe, encontrei sua irmã Norn várias vezes na cidade. Ela me disse que
esperava algum dia ter um casamento feliz como o seu. Ela te disse alguma
coisa quando você apareceu com uma segunda esposa em sua casa?

— Ela ficou bem chateada comigo.

— Imagino que sim. Ela orou quase todos os dias na igreja pelo retorno seguro
seu e de seu pai. Normalmente, sua volta para casa deveria ser uma ocasião
alegre para ela.

— Mas, no final, ela me perdoou.

— Bem, claro que sim. Ela deve ter ficado com muito medo de ser expulsa de
casa em caso de teimar muito no assunto.

— Eu não faria isso, não importa o quê…

— Claro, sei que não faria. Mas coloque-se no lugar da parte mais vulnerável. A
garota acabou de perder o pai. Você é a única pessoa com quem ela pode
contar agora, entende? Acho que você realmente deveria tentar ser mais
atencioso aos sentimentos dela, assim como uma família.

— Você tem razão.


— Além disso, aceitar novas parceiras só vai complicar os seus
relacionamentos. Mulheres não são objetos para serem colecionados, sabe.

Cara, ele estava cutucando onde doía. Parecia que eu estava sendo interrogado
por um sacerdote severo ou algo assim. Esse homem podia ser intenso quando
queria.

— Certo… hm, Cliff?

— O que foi, Rudeus?

Mesmo assim, havia uma parte dessa história que era novidade para mim, e eu
devia alguma gratidão a ele.

— Você estava cuidando de Norn enquanto estive fora, não é? Obrigado. Fico
grato por isso.

— Um dia a vi na igreja, então começamos a conversar um pouco, e é só isso.


Ah, tocando no assunto, você não deveria deixar uma garota tão jovem vagar
pela cidade tão livremente. Esta área é bem segura, mas ouvi falar de
sequestradores à espreita nos becos.

— Você tem razão. Vou tomar mais cuidado.

— Pois bem. Parece que você está devidamente arrependido, então suponho
que irei perdoá-lo por seus erros. Afinal, São Millis nos ensinou a ser tolerantes.

— Agradeço por isso, Cliff.

Bem, eu fui perdoado. Talvez isso tenha sido mais uma confissão do que uma
conversa.

Ainda assim, o homem tocou em muitos pontos positivos. Claro, eu estava me


sentindo mal sobre como tratei Norn até o momento. Teria que ser duas vezes
mais gentil com ela no futuro.

— Parece que terminamos nossas discussões pessoais, certo? Então vamos


abordar os assuntos da Universidade…

Com o sermão de Cliff chegando ao fim, o Professor Samson delicadamente


recomeçou a aula. Roxy ficou o tempo todo ao lado dele, parecendo
extremamente desconfortável.

Joguei um beijo para ela, o que me rendeu uma risadinha, seguida por uma
carranca de desaprovação.

Durante o resto do tempo, minha vida prosseguiu ao longo dos velhos hábitos
familiares.
Eu visitava Zanoba e Cliff regularmente, aparecia para ajudar Nanahoshi com
sua pesquisa e usava meu tempo livre para trabalhar em meu livro ou estudar
as pedras que absorvem magia que consegui durante minha última viagem.
Como sempre, eu tinha muito com que ocupar meu tempo. Sentia uma certa
saudade dos dias em que podia dedicar meu dia todo a uma única tarefa, ou
talvez duas.

Uma coisa que mudou foi a forma como eu usava meu tempo logo após o
término das aulas. Antes, ajudava Norn com seus estudos, mas agora eu a
estava treinando para o uso da espada.

Eu fiquei um pouco preocupado com a possibilidade de essa mudança ter um


efeito negativo nos seus resultados acadêmicos, mas ela jurou que trabalharia
duro para permanecer no caminho certo, então eu estava disposto a dar uma
chance. Parecia que seria melhor deixá-la perseguir as coisas pelas quais era
apaixonada enquanto estava motivada.

No momento, não irei me aprofundar muito em nada disso.

Assim que estivesse pronto para deixar o campus, eu encontraria Sylphie e


Roxy e iríamos juntos para casa.

Quando Sylphie tinha o turno noturno, ficávamos apenas eu e Roxy. E quando


Roxy tinha uma reunião noturna do corpo docente, ficava só eu. Às vezes, Norn
também aparecia.

Certa noite, me vi voltando apenas com Sylphie. Demos as mãos enquanto


caminhávamos e conversávamos, principalmente sobre os eventos recentes na
Universidade de Magia. Pelo visto, o conselho estudantil irá aceitar/ irá abrir
vagas para um ou dois novos membros neste semestre.

— Você devia se juntar, Rudy!

— Não acho que tenho tempo livre, foi mal.

Não foi muita conversa, mas estávamos desfrutando da companhia um do


outro. Não muito descaradamente, é claro. Estávamos em público.

— Chegamos.

No momento em que entrei pela porta, Aisha saltou para frente e jogou os
braços ao meu redor.

— Bem-vindo de volta, Rudeus! Quer jantar? Ou banhar? Ou talvez… eu?!

Onde ela aprendeu isso? Que clichê. Ah, espera, fui eu quem ensinou isso?
Não… eu lembrava de ter ensinado isso para Sylphie, mas não para minha
própria irmãzinha.
Declarando “Sua…!”, comecei a fazer cócegas nas axilas de Aisha, sem
qualquer piedade, até que ela fugiu, gargalhando, e levou um golpe de Lilia na
cabeça.

Depois desse pequeno interlúdio, fui direto para o banho.

Aisha o incluiu em sua lista de opções, mas não estava pronto e à minha
espera nem nada assim. Ainda deviam estar trabalhando no jantar. Em outras
palavras, “Ela” era a única opção realmente disponível.

Ah, bom, que seja. Felizmente, Aisha sempre limpava a banheira durante o dia,
então tudo que eu precisava fazer era colocar água.

Eu não costumava tomar muitos banhos sozinho. Em algum momento,


começamos a usar o lugar aos pares. Já era quase uma regra tácita. Eu nunca
tinha ouvido falar de um costume assim antes, mas, que seja.

Neste dia, Aisha me acompanhou até o banho. A garota já tinha onze anos, mas
ainda não parecia ter nenhum senso de vergonha. Se ela alguma vez
conversasse com um garoto com os hormônios em alta, o pobre garoto
provavelmente teria a ideia errada em questão de minutos.

— Sempre digo para você se cobrir com uma toalha quando for entrar no banho,
Aisha.

— Por quê?

— Por educação.

— Tuuudo bem.

Nesse aspecto, ao menos, eu estava começando a desejar que ela pudesse


aprender com a irmã.

Ainda assim, era bom ter uma irmãzinha. Ela gostava de se contorcer por entre
minhas pernas e exigir que eu lavasse suas costas ou enxaguasse sua cabeça,
e era sempre muito fofa. Que bom que ela era minha irmã – e também apenas
uma garotinha magricela – ou eu poderia acabar com outra esposa em minhas
mãos.

Se Sylphie ou Roxy tentassem a mesma façanha, eu tinha certeza de que


perderia qualquer autocontrole em segundos. Não que eu
realmente precisasse me controlar caso fosse a situação.

Enfim. Me acomodei para desfrutar de alguns momentos agradáveis de vínculo


familiar com minha irmã. Nos lavamos enquanto Aisha me contava os
acontecimentos do dia. Na maioria das vezes, eram apenas coisas triviais.
Lucie tinha feito algo adorável, Zenith tinha ajudado na remoção de ervas
daninhas, Lilia tinha cochilado perto de uma janela, ela plantou algo novo em
nosso jardim… esse tipo de coisa.

Ah, é mesmo. Eu confiei aquelas sementes de arroz que consegui a Aisha e


pedi a ela para ver se conseguia cultivar. Ela me prometeu fazer uma tentativa
assim que o tempo esquentasse um pouco. A garota era um gênio, então fiquei
otimista de que logo teria meu próprio suprimento particular de arroz. Fiquei
realmente ansioso por isso.

Quando saímos do banho, Roxy estava chegando em casa, então fomos direto
para o jantar.

Desta vez comemos um ensopado de peixe de água doce, pão, feijão e batata.
Mais ou menos o mesmo de sempre.

Após a refeição, observei atentamente enquanto Lucie mamava furiosamente


no seio de Sylphie. Considerando o quão quieto nosso bebê estava, ela com
certeza tinha muito apetite. Era difícil imaginar a filha de Sylphie crescendo
bem gordinha, mas eu teria que me certificar de que ela faria algum exercício
quando ficasse grande o suficiente.

Por um tempo, após o jantar, relaxamos como uma família. Ensinei um pouco
de magia para Aisha e Roxy subiu para o quarto dela para preparar suas aulas
do dia seguinte.

Sylphie estava ocupada cuidando de Lucie, mas às vezes arrumava tempo para
praticar um pouco de magia.

Tu, nosso tatu de estimação, foi até mim, então dei um pouco de atenção a ele.

Aliás, Aisha era responsável por cuidar dele. Ela o treinou por completo, e ele
estava começando a agir igual a um cão de guarda leal.

— Então tá bom, acho que está na hora de irmos para a cama. Boa noite a
todos.

Lilia e Zenith costumavam ser as primeiras a ir se deitar.

— Boa noite!

Aisha também ia para a cama cedo. Uma vez que eu terminava sua sessão de
tutoria, ela costumava ir direto para a cama.

— Bem, agora… Você está pronta, Sylphie?

E depois que a casa ficou em silêncio, convidei minha esposa para o nosso
quarto.

— Sim — respondeu ela, corando e segurando a manga da minha camisa.


Naturalmente, isso era mais do que suficiente para me estimular a entrar em
ação. Pegando-a no colo, a carreguei como se fosse uma princesa até a cama.

Depois disso, bem… apreciamos nosso tempo privado.

Mentalmente e fisicamente realizado, caí em um sono profundo com minha


esposa em meus braços.

Apenas alguns minutos antes disso, porém, escorreguei silenciosamente para


fora da cama, tomando cuidado para não acordar Sylphie.

Desci até o porão na ponta dos pés, o mais silenciosamente que pude. Uma vez
lá, olhei para trás várias vezes, cauteloso, antes de abrir uma certa porta
escondida.

Lá dentro, preparei um pequeno altar. Meus ídolos sagrados estavam lá.

Para os não iniciados, podiam parecer nada mais do que pequenos pacotes de
tecido. Mas eu sabia que os espíritos divinos de Roxy e Sylphie habitam neles.

Esta noite, como em todas as outras, ofereci minhas preces de gratidão.

Lendas da Universidade #2: O Chefe pode fazer seus olhos brilharem.


Cap. 03 – Treinamento com a Norn

Outro mês passou. Ainda estava frio, mas a neve estava começando a derreter
e dava para ver trechos do solo aqui e ali.

Certa manhã, levantei da cama o mais silenciosamente possível, tentando não


acordar Sylphie. Ela gostava de usar meu braço como travesseiro, por isso
sempre exigia um pouco de delicadeza para eu me soltar. Indo para outro
cômodo, coloquei minha roupa de treino, uma roupa forrada que parecia um
pouco com um moletom. Foi Sylphie quem escolheu para mim. Era um pouco
leve para o inverno, mas quando estivesse se exercitando, cairia quase bem.

Depois de me vestir, peguei uma espada de pedra que deixei em um canto do


cômodo.

Era uma coisa grossa e de aparência tosca. Eu mesmo a fiz com minha magia
de terra. A lâmina não tinha fio, mas era excepcionalmente pesada. Essa era
uma boa forma de praticar com a força da minha nova mão esquerda artificial.

Na verdade, eu estava começando a me apegar um pouco à coisa. Talvez


algum dia desses lhe desse um nome. Algo tipo “Atum” ou “Peixe-Espada”.

Pensando bem, eu não comi nada parecido com sashimi desde que cheguei a
este mundo. Ninguém comia peixe cru ou o quê?
—…

Quando fiquei pronto, suavemente afaguei a cabeça de minha esposa


adormecida, murmurando as palavras:

— Te vejo mais tarde.

— Hee hee…

Com os olhos ainda fechados, Sylphie sorriu e esfregou a cabeça em minha


mão. Acho que ela estava meio acordada. Era tão adorável, preciso nem dizer.

Olhando para baixo, percebi que as cobertas estavam um pouco emaranhadas,


deixando sua parte de baixo com a calcinha exposta. Também a acariciei
gentilmente. Ninguém pensaria que essa garota já era mãe. Mas, bem, Elinalise
também continuava tendo um bom corpo. Isso podia ser genético.

Após um momento de hesitação, puxei os lençóis de volta sobre o corpo de


Sylphie.

Estávamos aos poucos retomando nossas atividades noturnas normais, mas


parecia um pouco cedo para tentar um segundo filho, então eu estava tentando
ser um pouco mais contido. Ainda que não houvesse garantia de que isso não
fosse acontecer.

Assim que eu estava saindo do quarto, Sylphie me chamou, ainda sonolenta.

— Nn… Até depois…

Volte logo.

Em seguida, fui para o quarto de Norn.

Atualmente, ela se juntava a mim em meu treino matinal. Quando ela estava em
casa, fazíamos isso no quintal; quando estava no dormitório, nos
encontrávamos no pátio. Este era um de seus dias em casa.

— Está pronta, Norn?

Bati na porta e comecei a abri-la.

— Gah! Rud…

— Opa. Lamento.

Ela ainda estava se vestindo, então fechei de novo na mesma hora.

O corpo de Norn ainda não tinha se desenvolvido muito. Eu gostava de garotas


magras e pequenas, é claro, mas minhas irmãzinhas simplesmente não tinham
apelo sobre mim. Eu às vezes achava isso meio lamentável, mas assim era
melhor. Era bom poder ser carinhoso com elas sem me sentir sujo por isso.

Ainda assim, o pensamento de que Norn algum dia se casaria inspirava uma
sensação desconfortável na boca do meu estômago. Será que era isso que um
pai sentia ao ver sua filha crescer?

Não era tão ruim. Eu teria que tomar o lugar de Paul e repreender o primeiro
namorado dela. Não vou entregar a Norn para um vadio feito você! Suma!

— Sinceramente. De que adianta bater se você não espera por uma resposta?

Enquanto eu pensava nessas coisas, Norn saiu de seu quarto com suas roupas
de exercícios, carregando uma espada de madeira em uma das mãos. Sua
roupa era simples e funcional, com mangas compridas e longa. Era o
equipamento de exercícios padrão da Universidade; comprei alguns pares para
ela na loja da escola.

Olhando rapidamente para além de Norn, para seu quarto, vi a espada de Paul
colocada no alto da parede. No meu velho mundo, ela provavelmente teria
montado um altar com uma foto do rosto dele, mas não existiam câmeras
neste. Era possível que alguém tivesse criado uma ferramenta mágica capaz de
capturar uma imagem, mas, se fosse assim, não tinha uso facilitado. Sem
fotos, as pessoas tendem a usar lembranças para recordar do que perderam.

— Norn, se importaria se eu entrasse em seu quarto por um segundo?

— Hã? Uh, acho que tudo bem…

Eu entrei. O quarto tinha o cheiro de sua ocupante, do jeito que as coisas ficam
pela manhã. Se eu tivesse pulado na cama e pressionado meu rosto contra
seus lençóis amassados, poderia ter preenchido meus pulmões com o cheiro
de Norn. Não que eu fosse fazer isso.

Parando bem diante da espada de Paul, juntei as mãos.

— Pai, Norn e eu vamos treinar novamente nesta manhã. Pode ficar de olho em
nós para que não nos machuquemos muito?

Assim que terminei minha breve prece, inclinei ligeiramente a cabeça para o
lado.

De qualquer forma, como Paul responderia a isso? Poderia ser algo como “Você
nunca vai melhorar sem se machucar um pouco, sabe.” Ou apenas “Caramba, é
melhor não deixar Norn se machucar.”

De relance, vi Norn ajoelhada ao meu lado com as mãos juntas, ao estilo Millis.

Tive uma boa visão de seu belo coque de cabelo em sua cabeça.
—…

Sério, não importava o que Paul teria dito. Ele não estava mais presente. Agora
eu tinha que desempenhar seu papel. Eu tinha a responsabilidade de cuidar da
Norn com o melhor de minhas habilidades. Afinal, ela não tinha mais ninguém a
quem recorrer.

— Então tá bom. Quer ir?

— Sim. Estou pronta, Rudeus.

Nós dois saímos para iniciar outra sessão.

O regime era bem simples: alongamento, corrida e prática de balanços.

Eu chamava isso de “treinamento de espada”, mas, no momento, estávamos


trabalhando apenas nos fundamentos. Nos últimos meses, eu estava guiando
Norn rigidamente para moldar sua resistência básica.

Quando digo rigidamente, não quero dizer que ela seguia a mesma rotina que
eu. Isso seria demais para lidar. Comecei com um quinto do meu regime de
treinamento. Norn tinha apenas onze anos e nunca foi muito fisicamente ativa,
então não havia muito que eu pudesse esperar que ela suportasse.

Enquanto ela praticava balanços no quintal, eu terminava meus próprios


exercícios para a parte superior do corpo.

— Vinte e cinco… vinte e seis…!

Balançar a espada contra nada é um exercício bem simples, mas é parte da


razão pela qual é necessária alguma força de vontade verdadeira para
continuar treinando. Mas Norn nunca deixou isso pela metade.

Eu estava orgulhoso dela por isso. A garota era mais forte do que parecia.

— Cinquenta…!

— Certo, está bom. Bom trabalho.

— Haa… haa… Obrigada, Rudeus!

— Então vamos nos lavar e voltar.

Após o treinamento, nós dois íamos juntos para o banho.

Norn tinha a infeliz tendência de tropeçar e cair durante nossas sessões de


corrida, o que às vezes a enchia de arranhões ou hematomas nos joelhos. Criei
o hábito de examiná-la e depois usar magia de cura nela. Meio parecido com
beijar para melhorar, só que funcionando de verdade.
A propósito, Norn se opôs muito a me deixar vê-la nua, então tomava esses
banhos usando calcinha e uma camisa fina. Acho que ela estava chegando a
uma idade sensível. Era uma pena que não dividisse essa modéstia com Aisha.
Claro, eu também sempre usava roupas íntimas, tudo para deixar Norn um
pouco mais confortável.

Ainda assim… às vezes me pergunto como ela reagiria se eu contasse que


alguns caras por aí ficam mais excitados ao ver uma mulher com uma
camiseta molhada. Podia ser divertido de se ver, mas resolvi manter isso só
para mim. Eu não queria que ela me banisse de nossos banhos conjuntos.

Um irmão mais velho também precisa manter sua dignidade.

Enquanto eu refletia sobre isso, Norn me lançou um olhar e fez beicinho.

— Hoje só corri e pratiquei balanços de novo. Quando você vai me ensinar a


usar a espada?

— Já estou.

— Não estou falando de só balançar. Quero dizer, sabe… as posturas, as


técnicas.

Até o momento, eu estava instruindo Norn a respeito de como correr e brandir


sua espada. Correr aumentaria sua resistência, e a prática de balanços
aumentaria sua força. Até que ela tivesse trabalhando em ambos os aspectos
por um tempo, não faria sentido aprender “técnicas”. Ao menos era assim que
eu imaginava.

— Hmm, vejamos…

Mas a garota já estava nisso há meses. Ela provavelmente tinha feito algum
progresso.

Dei uma olhada em Norn. Ela tinha o corpo esguio de uma criança em
crescimento, mas em comparação com quando estávamos no começo, os
músculos de seus braços e pernas estavam um pouco mais definidos. Era
difícil dizer que ela estava “em forma” neste momento, mas um pouco de
esforço provavelmente não acabaria lhe machucando. Talvez fosse hora de
começar a ensinar as posturas mais básicas.

— Acho que você está certa. Vamos começar a coisa de verdade depois das
aulas de hoje, pode ser?

— S-Sério? Certo!

Depois de lavar nosso suor, nós dois saímos do banheiro juntos.


Naquela noite, encontrei Norn no terceiro campo de treinamento externo da
Universidade de Magia – um campo de exercícios localizado perto dos limites
do campus. Já tinha trocado minha roupa para a de treino.

Minha irmã também estava com seu equipamento de exercícios e já estava


com sua espada de madeira em mãos. Seu rosto estava mortalmente sério.

Não tínhamos a área só para nós. Alguns alunos com robes estavam treinando
nas proximidades e outros pareciam ter saído para caminhar um pouco.
Também atraímos alguns espectadores, que estavam obviamente curiosos
para saber o porquê de estarmos usando nossas roupas de treinamento
naquele horário.

Mas não importa se tivéssemos reunido uma multidão.

— Norn, hoje vamos começar seu verdadeiro treinamento como espadachim.

— Sim senhor!

O rosto da garota brilhava de energia e entusiasmo. Era óbvio o quanto estava


ansiosa para aprender “técnicas” reais. Fazia apenas alguns meses desde que
começamos, mas acho que a natureza repetitiva de nosso treinamento básico
a estava desgastando um pouco.

Ainda assim, brandir uma espada em uma batalha não era um jogo. Primeiro
era necessário aprender os fundamentos.

— Só para você saber, estou planejando ser bem rigoroso com você.

— Tudo bem — disse Norn, balançando a cabeça seriamente.

— Se continuarmos assim, você pode acabar ficando chateada comigo. Você


pode até começar a pensar que te odeio. É a esse ponto que vou ser rigoroso
com você.

— Certo.

— Para ser sincero, não quero fazer você me odiar. Mas um instrutor indiferente
acaba machucando seus alunos. Se eu pegasse leve com você no treinamento
e você acabasse morrendo em sua primeira luta real, eu jamais seria capaz de
encarar nosso pai no céu.
Norn não tinha nenhum talento com a espada. Ao menos não quando
comparada a Eris na mesma idade. Eu não diria que ela era pior do que a média
de onze anos de idade, mas a “força” só pode ser medida por termos relativos.

Quando se está lutando contra alguém, o combatente mais forte vence e o


mais fraco morre. Perder não é uma opção válida.

Para que Norn seja capaz de superar qualquer ameaça, precisaria se


esforçar muito. Eu precisava treiná-la duro. E ela também precisava aprender
alguns truques.

— Em algum ponto, isso pode começar a deixá-la infeliz. Você pode ficar
frustrada com a falta de progresso. Pode ver alguém com mais talento te
superando rapidamente. Chegará o dia em que sentirá vontade de desistir.

—…

— Só para você saber, eu sei como é isso. E não poderia te culpar, ou qualquer
outra pessoa, por desistir diante das adversidades.

—…

Norn fez uma carranca após dizer isso.

Nada surpreendente, sério. Do ponto de vista dela, provavelmente parecia que


eu era bem talentoso em qualquer coisa que tentasse fazer. E neste corpo, eu
realmente era muito capaz em todos os tipos de coisas. Mesmo assim, perdi
muitas batalhas. Mais de uma vez, quase morri. Paul, de certa forma, morreu
porque eu não era forte o suficiente.

Mais do que qualquer coisa, eu queria manter Norn a salvo de qualquer perigo.

— Dito isso, não quero que você desista da espada, não importa o que
aconteça. Se fizer isso, nunca mais vou te ensinar, e jamais deixarei você usar a
espada do Papai.

—…

— Mas, contanto que você continue assim, também não vou desistir de você.

Um discurso meio cafona, eu sei. Pensando bem, eu estava mesmo


demonstrando alguma determinação?

Bem… desisti de melhorar com a espada, mas continuei com meu treinamento
diário. Queria acreditar que não era um completo hipócrita.

— Norn, você entende?

— Sim senhor! Entendo perfeitamente!


A resposta de Norn foi rápida e enérgica. Ela estava olhando para mim com as
bochechas coradas e determinação no olhar. Me vi imaginando se, quando
pequeno, também parecia algo assim para Paul.
Norn talvez acabasse seguindo um caminho parecido… me deixando para trás
e encontrando outro mestre para treiná-la. Depois de colocá-la no nível
Iniciante, eu poderia muito bem chamar Ghislaine ou algo assim. Supondo que
descobrisse onde a mulher estava.

Havia também aquele Santuário da Espada ao oeste. Se eu pagasse o


suficiente, talvez pudesse atrair um Santo da Espada para ensiná-la por um
tempo.

— Fico feliz em ouvir isso. Então vamos começar correndo.

— Hã?! Esta noite não vamos treinar com a espada?

— Sim, é claro. Desta vez você correrá com a espada em mãos. Afinal, terá que
carregá-la por toda parte no campo de batalha.

—…

— Estou esperando uma resposta!

— Senhor! Sim, senhor!

Desta vez, nosso regime consistiria em corrida, uma revisão das três formas
básicas e uma breve sessão de treino. Minha intenção era dificultar bastante a
vida dela. Ela precisava entender que isso poderia ser doloroso e assustador.
Não acho que a dor seja uma parte essencial do processo de aprendizagem
nem qualquer bobeira dessas, mas achei que seria melhor que ela percebesse
logo de cara o quanto isso poderia ser difícil.

Existia a chance de eu acabar a fazendo chorar. Havia uma chance de ela


começar a me odiar após esta noite.

Mas, ainda assim, eu precisava transformar meu coração em pedra. Esgrima


não era o tipo de coisa que se fazia por ser divertido. Essa era uma forma
infalível de acabar morto na diante da primeira ameaça real.

— Certo, Norn! Siga-me!

— Sim senhor!

Ainda me sentindo um pouco ansioso, apesar de tudo, comecei a correr.

— Certo! Isso está bom para hoje!


— O-Obrigada, senhor…

Enquanto o sol poente brilhava sobre nós, Norn desabou no chão, sentindo falta
de ar.

— Quero que você pratique as três formas básicas que te ensinei assim que
tiver tempo! De manhã, na hora do almoço, a qualquer hora! Mesmo quando
não estou por perto!

— S-Sim senhor!

Para nossa primeira sessão de treinamento real, foi bem decente.

Depois que terminamos de correr, comecei a revisar as “formas” ou


movimentos básicos. Depois disso, a joguei direto em uma luta contra mim,
usando espadas de madeira. À medida que avançávamos, corrigi sua postura e
movimento de pés. Provavelmente não foi tão complexo quanto o tipo de
treinamento que receberia de um instrutor de kendo no Japão, mas este mundo
não tinha muitas “regras” para que seus espadachins aprendessem.

Na verdade,, aprender a lutar com uma espada consiste principalmente em


prática. Paul tinha começado a me bater logo no início de nossas sessões, e
Ghislaine também passava muito tempo treinando com Eris. Senti que tinha a
ideia geral do que fazer.

Norn parecia bem relutante em realmente golpear alguém com uma espada de
madeira, então comecei deixando-a balançar livremente para que superasse
isso. Nem me defendi, só movi meu corpo para que não me machucasse. Ela
fazia uma careta toda vez que sentia a espada atingindo o alvo, mas tentei de
tudo para manter um olhar calmo e composto no rosto. Eu queria que ela
acreditasse que eu poderia suportar seus golpes sem problemas.

Acho que funcionou. Provavelmente. Desde que ela passou os últimos meses
fazendo muitos balanços de prática, seus golpes tinham uma força decente por
trás deles. Eu provavelmente ficaria com alguns hematomas feios.

Depois disso, chegamos ao treino real. Bati em Norn com minha espada por
algum tempo e, depois, encerrei a sessão. Peguei leve com ela, é claro, mas
seus braços e pernas definitivamente ficariam pretos ou azulados em pouco
tempo.

Em outras palavras, judiei de minha doce irmãzinha. Uma parte de mim já


estava se perguntando se fiz a escolha certa. Ainda assim, Norn continuou me
atacando até o amargo fim. Ela não se rendeu nem reclamou, tampouco
desatou a chorar.

Enquanto ela mantivesse esse nível de motivação, praticamente qualquer tipo


de treinamento seria produtivo.
— O que acha, Norn? Isso machucou, não?

— Sim…

— Foi muito para suportar? Você quer desistir?

— Não. Amanhã… amanhã quero treinar de novo.

— Certo.

Para ser sincero, eu não estava muito confiante em minha própria habilidade
como professor.

Mas se magia podia ser comparada a um assunto acadêmico, então a esgrima


poderia ser considerada um esporte. Caso quisesse melhorar, não existia uma
resposta correta, só precisava persistir.

— Venha aqui, Norn. Vou te curar.

Eu pretendia colocar Norn no chão e usar minha magia para aliviar sua dor. Se
ela tivesse algum hematoma sob as roupas, eu teria que pedir para Sylphie
fazer as honras depois.

Então, de novo, Norn voltaria para casa para passar a noite conosco, então
talvez eu pudesse fazer isso enquanto tomássemos banho juntos.

Me aproximei de minha irmã e tirei sua jaqueta para ver melhor os seus braços.
Mas então, senti que estávamos sendo observados.

— Hm?

Virando, vi um grupo de alunos olhando para nós, iluminados pelo sol poente.

Há quanto tempo aqueles caras estão lá? Hmm… será que desde o início?

Presumi que eram apenas espectadores curiosos, mas se tinham ficado por
tanto tempo, então provavelmente tinham algum motivo para toda essa
vadiagem. Talvez quisessem algo de mim.

— Norn, vista-se e me espere, tá? Hoje vou para casa com você.

— Huh? Uh, certo. Tá, Rudeus.

Lancei alguns feitiços de cura em Norn e a mandei para o vestiário.

Assim que ela chegou em segurança, fui até o grupo de garotos. Ao me


aproximar, descobri que deviam ser mais de dez. Nenhum deles parecia ser o
tipo de criança popular. Isso era bom – talvez pudéssemos nos entender.
Porém, estavam me encarando com hostilidade clara no olhar. Quando os
encarei de volta, alguns acabaram desviando o olhar, sem jeito.

A essa altura, eu era um “normie” com duas esposas e uma criança. Mas isso
não significa que senti desprezo por esses caras. Afinal, não fui muito diferente
deles em minha vida. Não que isso os impedisse de se sentirem intimidados.

— Pessoal, precisam de alguma coisa? — perguntei.

Eles se encararam por um momento, então começaram a sussurrar e empurrar


as costas uns dos outros. Eventualmente, um membro do grupo deu um passo
à frente.

O garoto parecia ter uns dezoito anos. Ele era quase tão alto quanto eu, mas
parecia desengonçado e fora de forma. Suas bochechas eram ossudas e seus
olhos meio astutos. O “mago” clássico, acho. Se colocasse um par de óculos
em sua cara, poderia parecer um pouco com Zanoba.

Mas, claro, Zanoba era cheio daquela confiança bizarra. Esse cara estava mais
para o tipo auto-aversivo e ressentido.

— Por que você está intimidando a Norn? — ele cuspiu, olhando para mim.

— Hm…?

Intimidando?

Pude sentir minha testa franzindo ao som dessa palavra.

O jovem mago estremeceu perante minha reação, mas continuou de pé.

— Olha, sei que Norn é desajeitada e pode complicar um pouco as coisas.


Talvez ela tenha acidentalmente te irritado de alguma forma. Mas ela dá o
melhor de si em tudo que faz, sabe? Precisava mesmo descontar nela assim?

Atrás dele, o grupo todo murmurou palavras de concordância.

— Em primeiro lugar, Norn nunca segurou uma espada. Ela não sabe nem como
se defender! Não sei o que ela fez, mas obrigá-la a lutar contra você foi
maldade.

O grupo voltou a concordar, com um pouco mais de entusiasmo desta vez.

— Hrm.

Pelo rumo das coisas, pareciam acreditar que eu tinha forçado aquela espada
nas mãos de Norn, então batido nela por puro prazer sob o pretexto de “treiná-
la”. Era basicamente o oposto da verdade, mas era possível entender a razão
de chegarem a essa conclusão. Para começo de conversa, eu não era um
instrutor muito habilidoso.

De qualquer forma, precisava esclarecer esse mal-entendido.

— Bem, sabe…

— Sei que você é o mago mais poderoso de toda a escola. Mas se for maltratar
a Norn assim, vamos lutar contra você pelo bem dela.

Este cara estava completamente louco. Havia clara determinação em sua voz.
Mas o coro de aprovação de seus amigos dessa vez foi muito mais fraco.

Na verdade, ouvi alguém da parte de trás murmurando algo como “Acho que
não concordei com isso.”

É triste, mas caras como nós também são problemáticos quando estão em
grupo.

Ah, certo… Antes de me explicar, havia uma coisa que eu precisava entender.

— Certo. Quem são vocês?

— Huh?!

Com a voz embargada, o jovem mago voltou a olhar para seus amigos em
busca de orientação. Um momento depois, virou para mim de novo, agora com
um olhar estranho.

— Uh… o que você quer dizer?

— Estou perguntando como conhecem minha irmãzinha. São amigos dela ou


algo assim?

— E-Er, não, só… notamos ela no ano passado, quando era uma caloura… Ela
sempre, uh, dá o seu melhor em tudo, então… acho que estamos meio que
torcendo por ela…

O cara começou a gaguejar, mas assim que ele disse essas palavras, seus
amigos também começaram a concordar.

— A notei no campus há cerca de seis meses…

— Estou no mesmo ano que Norn. Tínhamos aulas práticas juntos, e ela sempre
errava o feitiço, mas…

— A vi ficando com os olhos marejados enquanto o instrutor a repreendia


durante o treinamento de magia, então só…
Eles falavam sem jeito e nunca pareciam terminar suas frases. Mas consegui
ter uma ideia geral. Esses caras tinham visto Norn em suas aulas ou sessões
de treinamento. A viram chorar enquanto falhava várias vezes, mas ainda
assim continuava lutando. E isso aqueceu seus corações.

Em algum momento, se uniram para tentar oferecer um apoio sutil a ela. Em


outras palavras…

Norn tinha um fã-clube.

Pensando bem, senti como se Sylphie já tivesse mencionado algo do tipo para
mim. Isso era compreensível. Afinal, Norn era adorável. Eu podia entender o
ponto de vista deles. Como irmão de Norn, queria encorajar seus esforços.

— Acho que agora entendo a situação. Todos vocês, obrigado por cuidar de
Norn. Me chamo Rudeus Greyrat, sou o irmão mais velho dela.

Quando abaixei a cabeça em agradecimento, um murmúrio de surpresa


percorreu o pequeno grupo.

Esses caras estavam do lado de Norn. Alguns deles podiam ser capazes de
levar as coisas longe demais, mas, como grupo, pareciam ter apenas boas
intenções. O correto seria tratá-los com respeito.

Dito isso, eu ainda precisava esclarecer esse mal-entendido.

— Quanto à nossa sessão de treinamento de agora… Sei que parecia que eu


estava a tratando com severidade. Porém, aprender a usar uma espada não é
brincadeira. Pode ser uma questão de vida ou morte.

A seguir repassei toda a situação em detalhes.

Primeiro, expliquei que foi tudo ideia de Norn. Depois, disse a eles que aprender
esgrima era perigoso, a menos que levasse isso muito a sério. E, por fim,
enfatizei que Norn precisava se esforçar muito mais nisso do que a maioria das
pessoas precisaria.

No começo o fã-clube ficou um pouco surpreso, mas, algum tempo depois,


pareceram entender meu ponto de vista. Ainda assim, ouvi alguém
murmurando:

— Você tinha mesmo que bater nela com tanta força?

Era uma pergunta justa. Eu também não tinha certeza se meus métodos
estavam corretos. Tudo o que eu queria era que entendessem que eu não
estava judiando de Norn.

Continuei com uma longa explicação, tentando transmitir minhas motivações.


Os rostos dos membros do fã-clube lentamente ficaram mais sérios enquanto
ouviam, e no final estavam relutantemente concordando. Esses caras ainda
eram jovens, mas pelos padrões deste mundo, eram todos adultos. Eram
capazes de entender como uma batalha real era mortalmente séria.

— Rudeus? Algum problema?

Quando estávamos chegando a um acordo, Norn retornou. Ela estava usando


algo parecido com um poncho sobre o uniforme escolar padrão.

— Oh! É a Norn!

— Olá, Norn! Hoje você está tão fofa! Como sempre!

— Bom trabalho, Norn!

No instante em que minha irmã chegou, todos de seu fã-clube ficaram


incrivelmente esquisitos.

Eu conseguia entender muito bem os seus sentimentos. Ela estava adorável


com aquela roupa. Tão adorável que me vi imaginando ela carregando um
guarda-chuva folha.

— Ah, o-olá, pessoal… O-Obrigada.

Norn se encolheu de surpresa diante da súbita enxurrada de encorajamentos,


então respeitosamente baixou a cabeça. Mas percebi que ela não estava se
aproximando muito deles. Acho que também estava captando algumas
vibrações estranhas.

— H-Hm, Rudeus, acho que esqueci algo no meu quarto. Vou lá pegar, então me
espere nos portões da escola, tá?

Assim sendo, Norn se virou e correu em direção aos dormitórios. Antes que ela
chegasse longe demais, porém, tropeçou e caiu.

— Guh…

Ela demorou um pouco para se levantar. E uma vez que ficou de pé, olhou para
mim por um momento. Seus olhos estavam brilhando.

Suprimi um suspiro. Criança, você talvez não devesse correr logo depois de se
exercitar…

Quando voltássemos para casa, eu teria que fazer uma massagem para ajudar
a controlar as dores musculares. Ela também precisaria de um banho longo e
relaxante.

— Aw, ela é tão adorável…


— Não corra tão rápido, Norn… Você está de saia, lembra?

— No começo pensei no uniforme escolar como uma ideia estúpida, mas acho
que agora entendo o apelo…

— Mas ela é uma corredora terrivelmente lenta.

— Sim… Se um sequestrador tentasse levá-la, ela não poderia escapar…

— Se Norn acabasse no mercado de escravos, eu a compraria em um instante.


Heh heh.

— Aah… imagine morar com ela… Hee hee…

Hmm… sim, eu também compraria a Norn. Então a levaria de volta para casa e
comeria algo bom com ela. A daria uma boa comida e insistiria para que limpasse
o prato… Ah, posso vê-la sofrendo para comer tudo…

Gah. Espera, não!

Norn era minha irmã mais nova. Eu não deixaria ninguém comprá-la no maldito
mercado de escravos. Se alguém ousasse sequestrá-la, eu caçaria essa pessoa
e a mataria dolorosamente.

Parece bom, Papai?! Não fique com raiva de mim!

— Ahem!

— Gah!

Limpei minha garganta fazendo barulho, isso fez com que os membros do fã-
clube abandonassem suas fantasias perturbadoras.

— Gente, preciso que não falem sobre escravizar minha irmãzinha, obrigado.

— S-Sinto muito…

— Está tudo bem, eu sei que ela é adorável. Ao menos alguns devaneios vocês
podem ter. Contanto que mantenham uma distância segura dela.

— Ah. Sério?

Todos pareceram relaxar um pouco com isso.

— Sim. Mas se tocarem um dedo nela, irão se arrepender amargamente.

— Eek!
Ser claro a respeito dessas coisas não machucava. Não achei que algum dos
presentes fosse capaz de fazer alguma travessura, e grupos como este
tendiam a ter um efeito moderador sobre seus membros… mas nunca se sabe
o que alguém pode acabar fazendo por impulso. A última coisa que eu
precisava era de um deles passando dos limites e tentando agarrar Norn no
meio da rua.

— Por outro lado, quais regras seu clube segue até agora?

— Huh? Nosso clube…?

— Sim. Este é o fã-clube da Norn, certo? Qual é a política de interação com ela?

Era muito importante ter um conjunto bem claro de diretrizes. Geralmente, os


fãs concordavam em não abordar a idol de forma direta, mas ouvi falar de
alguns casos em que as pessoas permitiam apertos de mão e autógrafos. Mas
a coisa do aperto de mão era um território perigoso. Às vezes, os caras
passavam coisas estranhas nas mãos. Como chicletes… ou espinhos. Eu queria
ter certeza de que esse tipo de coisa era oficialmente proibido.

— O que da Norn…?

— O que é um fã-clube?

— Hã…?

Para minha surpresa, porém, os caras pareciam não entender do que eu estava
falando. Era quase como se nunca tivessem ouvido falar desses conceitos. Que
estranho.

— Espera aí, rapazes. Quem é o responsável por este grupo?

— Responsável…? Uh, na verdade não temos ninguém no comando…

— Sério? Preciso que vocês expliquem tudo em detalhes, por favor.

Estranhamente, descobri que o grupo não tinha sido formado por ninguém em
particular. Eles foram naturalmente atraídos pela apreciação compartilhada
pela fofura de Norn. Muitos deles nem sabiam os nomes uns dos outros.

— Entendo…

Esta era uma situação muito perigosa.

O que tínhamos aqui era uma multidão desorganizada de tamanho incerto,


unida apenas pelo interesse em minha irmãzinha. Nesses grupos, as pessoas
eram capazes de fazer coisas que não teriam coragem de fazer por conta
própria. Por exemplo, sequestrar minha adorável irmãzinha e culpá-la por ser
fofa demais para se resistir.
Inaceitável! Ultrajante! Escandaloso!

— Caras, nada bom. Nesse ritmo, vocês vão se transformar em um bando de


criminosos.

— Criminosos? Não, não, nós só…

— Sinto muito, mas sei que estou certo sobre isso — falei categoricamente. —
Um de vocês vai acabar cruzando a linha.

Não surpreendentemente, isso inspirou uma tempestade de negações e


protestos.

— Não seja ridículo!

— Nenhum de nós jamais tocaria em Norn!

— Digo, gostamos muito dela, mas é mais como se fosse nossa irmãzinha ou
algo assim…

O que você disse, seu punk? Ela é minha irmã, e não vou dividir com ninguém!

Espera, espera. Vamos tentar seguir no assunto.

— Acredito que vocês têm boas intenções, mas acho que precisamos deixar
algumas regras bem claras.

Quando alguém quer evitar que um grupo de pessoas fique fora de controle, é
necessário estabelecer alguns regulamentos básicos. Depois de estabelecidas
as regras, os membros do grupo começariam a ficar de olho uns nos outros.
Após dar às pessoas um conjunto de regras, até aquelas tão sem sentido como
usar as mesmas roupas e o mesmo lenço enquanto esperava para ver a idol
começaria a fazer sentido.

Regras surgem o tempo todo com naturalidade. Passam a existir quando são
necessárias e desaparecem quando não são. Esse fã-clube ainda não tinha
muita história. Não teve tempo suficiente para que suas regras se
desenvolvessem organicamente.

Mas até que criassem algumas, Norn estaria em perigo. Eu precisava acelerar o
processo artificialmente. Não iria esperar até que a machucassem.

Alguém precisava tomar algumas decisões fundamentais, o quanto antes.


Felizmente, os problemas em si eram bastante claros e simples. Eles só
precisavam prometer que não assustariam ou colocariam Norn em risco. O
problema era encontrar alguém que realmente propusesse essas regras.
Normalmente seria o líder do grupo, mas essas pessoas não tinham um.
O cara que deu um passo a frente para me encarar devia ser o mais obstinado.
Eu poderia nomeá-lo como chefe e deixar que definisse as regras?

Definitivamente não.

O líder precisava entender a responsabilidade que estava assumindo e aceitá-la


de boa vontade. Deixar o poder cair aleatoriamente no colo de alguém jamais
seria uma boa ideia.

Então, quem é que mais entendia a gravidade da situação? Quem mais se


preocupava com o bem-estar de Norn?

Eu. Óbvio.

— Então tá bom.

Norn também era minha irmãzinha. Minha carne e sangue.

Em outras palavras… era eu quem mandava.

No ano 425 da Era do Dragão Blindado, uma certa organização foi fundada na
Universidade de Magia de Ranoa.

Seu nome: O Fã-Clube Oficial de Norn Greyrat.

Este grupo, com cerca de trinta membros, deixaria uma marca inapagável na
história da Universidade.

O nome de seu primeiro presidente, no entanto, se perdeu na história.

Lendas da Universidade #3: O Chefe pode convocar trinta lacaios com uma única
palavra.
Cap. 04 – Posso Ficar Com Ele?

Vamos falar sobre Aisha por um momento.

A garota estava indo bem. Apesar das tragédias que abateram sobre nossa
família, ela parecia tão brilhante e enérgica como sempre. Nunca a vi olhando
para fora da janela com tristeza, assim como sua mãe às vezes fazia. Ela não
mordia o lábio quando olhava para a espada de Paul, igual Norn. Ela cuidava do
trabalho doméstico com alegria, como se nada tivesse mudado. Durante o dia,
cuidava de suas flores no jardim e em seu quarto; à noite, se dedicava às
minhas aulas de magia e se aninhava feliz comigo.

Parecia quase como se estivesse com mais energia do que antes.


Provavelmente era a única pessoa menos melancólica em toda a nossa casa.

Às vezes, quase parecia como se não estivesse de luto por Paul. Não pude
deixar de me perguntar se ele não significava muito para ela.

Dito isso, Norn não lembrava muito de nosso tempo em Buena Village, então
parecia possível que Aisha também não tivesse muitas memórias com Paul ou
Zenith. Assim como Norn passou muitos anos na estrada com Paul, Aisha
passou a maior parte de sua infância com Lilia.

Considerando tudo, não era justo que eu esperasse que ela ficasse cabisbaixa.
Sua alegria pelo retorno seguro de Lilia talvez superasse sua tristeza pela
morte de Paul. Assim sendo, provavelmente era melhor.

Afinal, não era como se eu quisesse que minha irmã ficasse deprimida em vez
de curtir a vida.

Certo dia, eu não tinha nada em particular para fazer.


Não teria aulas naquele dia, mas Roxy e Sylphie infelizmente tiveram que ir
trabalhar. Eu planejava cuidar de Lucie e passar o dia relaxando.

Senti um pouco de culpa por vadiar por aí enquanto minhas duas esposas
trabalhavam duro… mas adultos precisam descansar quando podem, certo?

Hmm. Mas não estou ganhando nenhum dinheiro no momento. Está mesmo tudo
bem? Considerando que tenho um bebê e tal? Bem… estudar é a melhor maneira
de conseguir algum dinheiro, certo? Sim, está tudo bem.

Depois de me despedir de minhas esposas, verifiquei como Lucie estava. Ela


ainda estava dormindo, então saí para o jardim, sem qualquer motivo em
particular.

Quando nos mudamos para esta casa, não havia nada aqui além de um pedaço
de terra estéril e abandonado. Mas, no momento, após poucos anos, foi
completamente transformado.

Em primeiro lugar, agora tínhamos três grandes árvores lá nos fundos. Uma
delas floresce na primavera, a segunda no verão e a terceira no outono. Não
que eu já tivesse as visto florescer.

Quando perguntei a Aisha onde as conseguiu, ela explicou que fez um pedido à
Guilda dos Aventureiros que as trouxe da floresta mais próxima.

Transportar árvores adultas parecia um verdadeiro aborrecimento, então


perguntei quanto custou. Ela disse que Zanoba ajudou, então só teve que cobrir
os custos de alguns guarda-costas.

Em um canto do jardim, havia uma seção de solo separada do resto por


divisórias de tijolos. Foi lá que Aisha plantou as sementes de arroz que trouxe
comigo. Nenhum de nós sabia preparar um arrozal adequado, então estávamos
tentando cultivar o arroz em solo seco. Até o momento, a primeira safra estava
brotando bem. Mas era difícil dizer se conseguiríamos algo comestível com
isso.

Neste instante, Aisha estava agachada perto daquele pequeno campo. Para
minha surpresa, Zenith estava sentado ao seu lado.

— O que vocês duas estão fazendo? — questionei.

— Ah, oi, Rudeus! — disse Aisha, olhando para mim. — Estamos tirando as ervas
daninhas do arroz!

Por um segundo, pensei que ela estava brincando, então me aproximei e


percebi que era verdade. Aisha estava arrancando ervas daninhas do meio dos
talos de arroz e Zenith também ajudava em silêncio.
Pensando nisso, tive algumas vagas memórias de Zenith arrancando ervas
daninha sem Buena Village. Talvez fosse algo comum do cultivo de plantas,
mesmo onde o clima era frio.

— A Senhorita Zenith também queria ajudar!

—…

Algo sobre essa coisa de Senhorita Zenith não me pareceu muito certo.

— Hm, Aisha, se quiser pode chamar a Mãe Zenith só de “Mamãe”, sabia?

— Nah. A Mãe Lilia disse que não posso. Ela sempre diz que devo chamá-la
de Senhorita Zenith ou Madame.

Ah, então era mais um dos mandamentos de Lilia. Ela era rigorosa com relação
a essas coisas.

Mas, bem, senti que, de qualquer forma, Aisha não pensava em Zenith como
uma mãe. Só para registrar, Zenith a tratou como um de seus próprios filhos
quando ela era um bebê, mas Aisha obviamente não era capaz de lembrar
disso.

Bem, tanto faz. De qualquer forma, não era grande coisa.

— Há quanto tempo a Mãe Zenith está te ajudando assim?

— Na verdade, já faz um tempo. No começo a Mãe Lilia tentou impedi-la, mas


ela sempre vem me ajudar quando começo a mexer no jardim. Ela é melhor
nisso do que eu!

Zenith também se esforçava muito para manter nosso jardim em Buena Village.
Talvez tivesse algo a ver com isso.

Eu, de nenhuma maneira, iria desencorajá-la. Nunca se sabe o que poderia


ajudá-la a recuperar suas memórias. De qualquer forma, era legal ver ela e
Aisha sentadas assim, lado a lado. Pareciam contentes com a companhia uma
da outra. Mesmo não sendo parentes de sangue, acho que Zenith
ainda continuava mãe de Aisha.

— Ah, é mesmo. Rudeus, hoje você está livre, certo?

Enquanto eu as observava trabalhando, Aisha se virou para olhar para mim. Sua
bochecha estava suja de lama.

— Sim. Vou passar o dia todo em casa.

— Ótimo! Tenho que te mostrar algo. Pode passar no meu quarto depois?
— Claro — falei, me abaixando para limpar seu rosto. Aisha sorriu
estupidamente enquanto eu a limpava.

Zenith olhou para ela, nos encarando intensamente.

“Tenho que te mostrar algo. Pode passar no meu quarto depois?”

Uma fala bem sugestiva, tenho certeza que qualquer um concordaria.

Aisha era uma criança muito precoce. Existia a possibilidade de levantar a saia
e tentar me mostrar suas partes íntimas ou algo assim.

Bem, pensando melhor, talvez não. Já tomávamos banho juntos regularmente.


Não havia nenhuma parte baixa dela que eu já não estivesse acostumado.

Mesmo assim, a garota era tão sem vergonha que eu estava começando a me
preocupar com seu futuro. Talvez eu devesse dar algumas lições básicas de
educação sexual para ela.

Espera, ela não disse que Lilia já tinha ensinado isso tudo?

Certo… mas e se só tivesse ensinado um monte de besteira? Eu realmente deveria


intervir…

Franzindo um pouco a testa enquanto considerava o que era mais adequado a


se fazer, entrei no quarto de Aisha.

Ela me disse para passar “depois”, mas não especificou um horário. Então
esperar por ela aqui não deveria ser problema.

Não era como se eu só quisesse dar uma olhada no quarto de uma garota ou
algo assim. Embora eu talvez estivesse um pouco curioso.

— Bem, parece que ela ao menos mantém o lugar limpo…

O quarto de Aisha estava impressionantemente organizado. Estava tudo em


seu devido lugar, e eu não conseguia ver uma única partícula de poeira em
lugar algum. Sua cama também estava bem feita.

Aqui e ali, notei alguns ligeiros toques femininos. O brinquedo de pelúcia em


sua cama era particularmente notável. Era um garotinho, de uns vinte
centímetros de altura, cabelo castanho claro, robe e cajado. Provavelmente era
um mago.

Pelo que eu sabia não vendiam brinquedos como esse nesta cidade. Será que
ela comprou de um mascate viajante? Acho que nem Zanoba tinha algo assim
em sua coleção, e isso significava que devia ser um achado muito raro.

Será que ela mesma tinha feito? Nah, claro que não.
Aisha também tinha alguns vasos de plantas perto da janela – tudo, desde
tulipas a aloés e um cactozinho. Tinha mais ou menos uns dez vasos alinhados
de vários tamanhos. Comparado com o quarto de Norn, o lugar parecia um
pouco mais com o que se esperaria de um quarto de uma garota.

Vagando até um canto, abri o armário de Aisha e dei uma olhada. Havia três
trajes de criada completos. Foi nítido perceber que todos estavam bem usados,
com alguns remendos aqui e ali. Pareciam mais as roupas de uma criada
veterana do que as de uma criança de onze anos. Aisha estava crescendo bem
rápido, então logo deveriam ficar pequenos para ela. A menos que Lilia
pudesse modificá-los de alguma forma.

Voltando a olhar ao redor, percebi uma única e bela roupa feminina pendurada
do outro lado do armário. Tinha um monte de babados e tal. Será que estava
guardando para uma ocasião especial?

Com alguma sorte, não seria isso que ela queria me mostrar. Eu teria que fingir
que não vi isso.

Fechando o armário, abri a gaveta embaixo dele.

Um dos lados estava cheio de calcinhas cuidadosamente dobradas. Para


qualquer garoto apaixonado por ela, seria um verdadeiro tesouro.

Ao lado das calcinhas estavam várias camisas… e assim que olhei mais de
perto, também vi alguns sutiãs. Minha irmãzinha era bem desenvolvida para
sua idade, já sendo capaz de equipar uma “armadura torácica”. Ainda assim, no
momento, devia ter o equivalente ao tamanho P. O Sábio Velho Eremita já a
classificava como uma joia rara em formação, mas ainda era cedo demais.

Enquanto eu continuava contemplando as roupas da minha irmã, uma


pequena batida por trás fez meu coração dar um salto. Ativando meu Olho
Demoníaco da Previsão, canalizei mana em minhas mãos e girei os
calcanhares, certificando-me de fechar a gaveta atrás de mim.

— Quem está aí? — chamei, apontando meus dedos em direção à porta.

Não havia nada lá. Ninguém que eu pudesse ver.

Aisha e Zenith ainda deviam estar ocupadas com o jardim, e Lilia devia estar
ocupada preparando o almoço.

Então era nosso tatu de estimação? Não, ele se juntou a Roxy quando ela foi
para a Universidade. Provavelmente estava tirando uma soneca por algum
estábulo de lá.
Matsukaze, o cavalo que comprei antes de ir para Begaritt, estava alojado em
um estábulo na cidade. Às vezes eu ia até lá para verificá-lo, mas duvidava que
ele poderia chegar em casa sozinho.

Sobrou apenas Lucie, e ela ainda nem engatinhava.

Então era alguém totalmente inesperado? Um ladrão? Um pervertido querendo


roubar o sutiã de uma jovem inocente?

Me abaixei com cuidado até ficar agachado, olhei pelo quarto todo.

Eu não estava vendo ninguém. E também não existiam bons esconderijos.

Ainda assim, algo parecia estranho. Minha intuição aguçada estava me dizendo
que eu não estava sozinho.

Seria um inimigo invisível? Será que era alguém com um implemento mágico
que fornecia uma camuflagem perfeita? Nesse caso, o efeito teria que passar
mais cedo ou mais tarde.

— Acho que então teremos que ver quem pisca primeiro… — murmurei baixinho.

Se fosse apenas o ranger da casa ou algo assim. Eu me sentiria um verdadeiro


idiota.

Não… definitivamente há algo de errado. Eu posso sentir.

Olhe mais de perto, Rudeus. O que mudou aqui? O que está fora do lugar?

O brinquedo de pelúcia…? Não, não é isso.

A porta continua fechada. A cama ainda está feita. O teto está impecável como
sempre.

Então sobram… os vasos de plantas. Sim. Existem mais deles do que antes?

Acho que não. Mas sinto que aqui está ficando mais quente…

—…

Enquanto eu olhava para as plantas, tentando encontrar algo fora do comum, o


sol emergiu de trás de uma nuvem. Um raio de luz entrou pela janela de Aisha.

Thump! Thump!

— Gaaaah!
A planta do vaso menor reagiu instantaneamente. Ela estava
se contorcendo toda, tentando obter mais do raio de sol para si, torcendo suas
folhas em direção à janela.

A cada movimento, o vaso batia levemente no parapeito da janela de madeira.

Esse som foi o mesmo que eu ouvi alguns momentos atrás.

— O que diabos é essa coisa?

Dei uma cutucada cautelosa na planta, e ela estremeceu com algo parecido
com surpresa. Um momento depois, porém, se inclinou para se esfregar no
meu dedo e começou a lentamente se enrolar nele, como um broto.

Um pouco surpreso, afastei meu dedo. A planta prontamente voltou a se


banhar ao sol.

— Uma planta se movendo…?

Que esquisito. Espero que ela não comece a dançar e cantar pelo quarto ou
algo assim.

—…

Pensando seriamente, porém, eu tinha alguma ideia do que essa coisa poderia
ser. Afinal, já tinha visto esse tipo muitas vezes.

Essa coisa era um Ente.

As criaturas conhecidas como Entes podiam ser encontradas em todo o


mundo. Pertencem a uma das categorias de monstros mais comuns e
conhecidos. Nesse sentido, poderia compará-los aos slimes de Dragon Quest.

Eu já tinha viajado bastante para a minha idade, inclusive pelo Continente


Demônio, Continente Millis, Continente Central e Continente Begaritt.
Infelizmente ainda não tive a chance de conhecer o Continente Divino, mas
ainda eram quatro dos cinco principais.

Em cada um dos que eu já tinha visitado, havia algum tipo de Ente.

Os encontraria basicamente em qualquer floresta, e também não eram


incomuns nas planícies e desertos. A maioria deles era feita de madeira, mas
nem todos pareciam com árvores ambulantes.
Os Entes de Pedra se assemelhavam a batatas grandes e irregulares. Os Entes
Cactos pareciam plantas verdes pontiagudas. E também havia muitas outras
espécies. Eu tinha ouvido falar que Entes Antigos, por exemplo, eram capazes
de usar magia de água.

Ainda assim, eu nunca tinha visto um Ente tão pequeno assim. A coisa tinha
cerca de quinze centímetros de altura. Talvez vinte, se contasse suas raízes.
Tinha quatro folhas grandes e dois brotos parecidos com gavinhas. Eu não vi
flores ou frutos. Talvez fosse uma muda muito jovem. Consequentemente,
decidi me referir a ele como Ente Bebê.

Não que isso importasse. Eu só precisava de uma forma de me referir a isso.

Pois bem. Minha principal pergunta no momento era o que nosso Ente Bebê
estava fazendo no quarto de Aisha.

— Certo, Aisha. Qual é o problema com essa coisa?

— Hm, bem, é que de repente começou a se mover.

Aisha, que apareceu correndo após meu grito de alarme, não parecia se sentir
particularmente culpada pela situação.

— Quando isso aconteceu?

— Logo depois que você voltou de sua viagem, na verdade. O que acha? É bem
legal, né?

Ela parecia orgulhosa de seu pequeno… mascote.

— Sim, é mesmo. Por que não me contou sobre isso?

— Eu queria! Mas você tem estado tão ocupado, sabe? Achei que isso poderia
esperar um pouco. E agora você descobriu por conta própria!

Aisha, de mau humor, estufou as bochechas. O efeito foi adorável,


desnecessário dizer. Agora eu pelo menos sabia o que ela queria me mostrar.

— Bem, de qualquer forma… não acredito que uma daquelas sementes que
trouxe era na verdade de um Ente. Quais são as chances disso?

— Huh? Não, não. Tenho certeza de que isso cresceu de algumas sementes de
Vatirus que conseguimos em Asura.

— Ah. Sério?

— Sim. Tem folhas e gavinhas, vê? Deve dar belas flores roxas em breve.
Eu reconheci o nome da planta. Suas flores eram o ingrediente principal de um
poderoso afrodisíaco e também podem ser usadas para fazer certos perfumes.
A cultivavam em certas partes do Reino Asura.

Mas isso não explicava por que esta tinha se transformado em um Ente.

— Mas o que foi que a fez se mover? Foi assim desde o começo?

— Não; costumava ser só uma planta. Começou a se mover quando a coloquei


neste vaso.

Aisha explicou que gostava de plantar as flores no jardim externo antes de


colocá-las nos vasos. Assim que cresciam o bastante, as colocava de volta no
quintal. Ela ainda estava fazendo testes, por isso os vasos e as plantas dentro
deles eram bem variadas.

— Hrm.

O vaso em si era algo perfeitamente comum que compramos juntos em uma


loja de produtos em geral há algum tempo. Achei bem improvável que fosse
um item mágico ou com algum tipo de encantamento.

— Você não fez nada de estranho com isso, fez?

— Não; tratei igual todas as outras. Estou usando o solo que você preparou
para mim. Parece ter mais nutrientes do que a terra daqui.

Então isso provavelmente eliminava o solo. Eu sempre fazia coisas


perfeitamente normais com minha magia. Não era algo em que colocava muito
esforço. Talvez tivesse direcionado um toque de afeto à minha irmãzinha, mas
isso não parecia relevante.

— Ah, espera. Acho que às vezes eu regava com a água que sobrava da
banheira.

Restos da água da banheira! Hmm. Eu não estava por perto na época, então
deveria estar impregnado com o suor de Sylphie e Aisha… talvez com um pouco
do suor de Nanahoshi.

Intrigante. Pude ver como isso poderia levar uma planta a desenvolver alguns
tentáculos pegajosos.

Certo, Rudeus. Deixe de ser idiota.

— Hmm…

Então o que poderia ter causado isso? Ela plantou uma semente normal e a
cultivou normalmente, mas de alguma forma se transformou em um monstro.
Era algo que simplesmente… acontecia de vez em quando?
Parecia mais provável que uma semente de Ente tivesse sido acidentalmente
misturada com as normais. Entes eram mímicos naturais. Talvez fingiu ser
uma Vatirus normal no começo para continuar discreto. Bem, parecia uma
teoria coerente.

— Bom, de qualquer forma, acho que devemos matar a coisa — murmurei para
mim mesmo. — Talvez eu possa queimar ou algo assim.

— Quêêêêê?! — guinchou Aisha. — Por quê?! Passei esse tempo todo criando
esse garotinho! Por que você o queimaria?!

Fiquei um pouco surpreso com a ferocidade de sua oposição. Mas, bem, ela me
chamou para mostrar seu Ente. Acho que fazia sentido que não ficasse muito
feliz em se livrar dele.

— Aisha, você sabe o que é essa coisa, certo? É um Ente. É um tipo de monstro.

— Mas olha como é pequeno! É adorável!

— Sim, por agora. Mas, quando ficar maior, pode começar a atacar as pessoas.
Isso é perigoso.

— Vou treiná-lo! Vou me certificar de que não machucará ninguém!

Ela agora estava desesperadamente agarrada à minha cintura, e seus olhos


estavam cheios de lágrimas. Fiquei extremamente tentado a dizer apenas Ah,
tudo bem. Mas depois não vou resolver as coisas por você!

Ainda assim, não estávamos falando de um gatinho de rua. Era um monstro.

— Vamos, Rudeus. Não posso ficar com ele? Por favor?

— Esses olhos de cachorrinho pidão não vão funcionar em mim. Precisamos


nos livrar disso.

— Mas ele é um bom garoto, é sério! Ele é bom com todos os outros e faz tudo
que eu mando!

— Agora você está inventando coisas, Aisha. Como um Ente faria o que você
manda? Isso nem tem ouvidos.

— Olha!

Trotando até o Ente Bebê, Aisha estendeu a mão em sua direção. A


criaturazinha reagiu deslizando lentamente uma de suas gavinhas ao redor de
seu dedo indicador. Sem se desvencilhar de seu “aperto”, ela suavemente
esfregou a parte de baixo das suas folhas com a ponta dos dedos, e o Ente
Bebê torceu seu corpo de forma que parecia prazerosa.
Era uma visão bem bizarra. A coisa parecia exatamente com uma planta, mas
reagia como um animal.

— Certo, solte — disse Aisha.

O Ente desenrolou a gavinha do dedo na mesma hora, deixando-a descansar na


palma da mão dela.

— Qual é o dedo mindinho?

Após um momento de hesitação, a gavinha deslizou para seu dedo mindinho.

— Dedo médio.

A gavinha soltou o mindinho e segurou o dedo médio.

— Não solte, mas também segure meu polegar.

Ainda enrolada em torno do dedo médio, a gavinha estendeu-se ainda mais,


esticando-se obedientemente em direção ao polegar de Aisha. Não era longa o
suficiente para agarrá-lo, mal conseguia tocar a ponta do dedo.

— Certo, solte. — Ela continuou brincando com o Ente desse jeito por algum
tempo, então se virou para me encarar. — Viu? Ele ouve o que eu digo, certo?

— É, parece que sim.

Para minha surpresa, era claramente possível se comunicar com essa coisa. E,
pelo andar da carruagem, isso era bem apegado à minha irmãzinha.

Eu precisava pensar um pouco melhor.

Entes eram monstros. Isso era um fato. De acordo com minhas experiências,
se disfarçavam de árvores ou outras plantas e, depois, lançavam ataques
surpresa violentos contra qualquer viajante que passasse.

Ainda assim, eu sabia que existiam algumas espécies de monstros por aí que
poderiam ser domesticadas.

Criaturas como o Tu, nosso mascote; e o lagarto em que cavalguei no


Continente Demônio não costumavam ser vistos como monstros – as pessoas
geralmente os chamavam de “bestas”. Mas não havia nada que os separava
intrinsecamente dos monstros, além de seu temperamento.

Este Ente Bebê parecia domesticado o bastante, então eu talvez não precisasse
classificá-lo como um monstro.

Sinceramente, não era tão ameaçador. Tu, se quisesse, certamente poderia


causar muito mais dano do que isso.
Dito isso… Tu foi domesticado por um domador de bestas profissional.

— Olha, estou um pouco preocupado com a possibilidade de essa coisa te


estrangular enquanto dorme, sinceramente.

— Acho que deve ficar tudo bem, Rudeus. Mesmo as Vatirus totalmente
crescidas ficam com no máximo o dobro desse tamanho.

— Hmm… tá, mas…

— Se ele machucar alguém, qualquer vez, farei o que você disser! Prometo!

— E se você ficar gravemente ferida na primeira vez que ele te atacar?

— Grr…

Aisha estufou as bochechas, de mau humor por causa disso, mas então
pareceu reconsiderar sua estratégia. Abrindo bem os olhos, entrelaçou as
mãos na frente do peito e olhou para mim com sua expressão mais doce e
inocente.

— Por favorzinho, Rudeus? Pode me dar uma chance?

Onde diabos ela aprendeu a pedir assim? Nada sutil, criança.

Fiquei tentado a insistir no assunto, mas agora existiam assuntos mais


urgentes em questão.

Certo, vejamos…

Eu tinha certeza de que nunca ouvi falar de alguém domesticando Entes.


Também não sabia muito sobre o comportamento deles, então era difícil dizer
qual era a melhor maneira de treinar um. Mais importante ainda, eram monstros
perigosos, mesmo que fossem bem fracos. Se errássemos em alguma coisa,
mesmo que pouco, tudo poderia ficar fora de controle.

Mas, bem, se realmente ia ficar com no máximo trinta centímetros de altura,


então não havia muito que pudesse fazer para nos machucar.

Aisha tinha criado essa coisa desde que era semente, então isso estava
acostumado a ter humanos por perto. Esse fato tornava menos provável que
atacasse um de nós… presumindo que nesse aspecto fosse como um animal
comum.

Hmm…

Claramente irritada com minha indecisão, Aisha começou a fazer beicinho.


— Então tá. Se é assim que você vai se comportar, talvez eu deva usar meu
trunfo.

— Seu trunfo?

— Por que não conto a Sylphie e Roxy sobre o seu segredinho?

— Do que você está falando?

Eu estava guardando algum segredo terrível das duas? Não passava nada pela
minha mente…

Mas, então, sorrindo arrogantemente, Aisha jogou uma bomba no meu colo.

— Estou falando sobre seu quarto secreto no porão!

— Gah!

Todo mundo tem uma parte de si mesmo que deseja manter em


sigilo absoluto. No meu caso, era aquele altar lá embaixo.

Aquele cômodo era um lugar sagrado que eu visitava apenas à noite,


oferecendo minhas preces enquanto minha família dormia. Minhas deusas
agora estavam fisicamente presentes em minha casa, é verdade; mas isso não
tornava o ritual menos significativo para mim.

A fé, em si, tem valor, sabe? O ato de orar nos acalma e centra, ajudando-nos a
viver cada dia plenamente. Mantive essa rotina por anos. Era parte da minha
vida.

Mas o que aconteceria se meu altar fosse descoberto? O que Sylphie pensaria?
O que Roxy diria? Eu queria pensar que ao menos Lilia entenderia. Aisha
evidentemente não comentaria sobre o assunto, mas e quanto a Norn? Tive a
sensação de que ela reagiria com claro desgosto.

O resultado final provavelmente seria a destruição do meu altar. E, com isso,


perderia parte crucial da minha rotina diária.

— A-Aisha, escute. Só estou preocupado com a sua segurança, entendeu?


Entes são monstros perigosos, então criar um pode te colocar em risco.

— Não me importo se você é um completo pervertido, Rudeus, mas imagino


como Sylphie e Roxy reagirão a isso. Principalmente Roxy… Você tem
idolatrado a calcinha dela há muuuuito tempo, não é?

Agh! Que garota implacável! Só estou tentando cuidar dela, e agora está me
chantageando!

Droga, o que devo fazer? Qual é a opção menos pior?


Enquanto tentava chegar a uma resposta, a porta do quarto de Aisha de repente
foi aberta atrás de nós.

— Hm, acho que acabei de ouvir meu nome. Precisa de alguma coisa?

— Gah!

— Guh!

Aisha e eu nos viramos e encontramos Roxy parada à porta, parecendo um


pouco perplexa.

— O-O que você está fazendo aqui, Roxy?! — gaguejei. — Você não acabou de
sair?

— Voltei para pegar uma coisa que esqueci. Felizmente, não tenho aula no
momento.

Clássico de Roxy! A pequena professora esquecida! Que fofa!

Espera, vamos manter o foco.

— Bem, Roxy, Rudeus e eu estávamos conversando sobre o segre… mmph!

Hmm. Acabei cobrindo a boca da minha irmãzinha no meio da frase. E agora?

—…

—…

Um silêncio constrangedor se seguiu. Os únicos sons eram as batidas suaves


do Ente Bebê se contorcendo no parapeito da janela.

Roxy disparou o olhar em direção dele e arregalou os olhos de surpresa.

Certo, talvez eu possa tirar vantagem disso. Ela deve ficar do meu lado nisso,
certo? Tenho certeza de que ela sabia bem o quão perigosos são os Entes.

— Isso é um Ente, não é? — perguntou Roxy curiosamente.

— Isso mesmo! — falei. — Aisha acabou de me dizer que quer criar essa coisa
como um animal de estimação! Mas Entes são monstros, sabe? Isso pode ser
perigoso. Pode me ajudar a convencê-la a se livrar disso?

Aisha agarrou minha mão, que continuava abafando seus gritos de protesto, e
tentou afastá-la. Garota tola. Você não pode me vencer em uma competição de
força! Pode morder meus dedos se quiser, não vou soltar!

Gah, espera. Não lamba eles! Pare! Isso é golpe baixo!


— Não sei, Rudy. Acho que deve ficar tudo bem.

Hã?! Ela ficou do lado de Aisha?!

— Se criar apropriadamente, Entes são criaturas leais — continuou Roxy. — E


este também é bem pequeno. Não deve haver muito perigo envolvido.

— Espera, sério? Você pode domesticá-los?

— Claro. Não parece ser algo muito comum neste continente, mas a tribo
Migurd usa Entes para afugentar os pássaros de seus campos.

Eles faziam mesmo isso? Hmm… talvez. Minhas memórias daquela visita já
estavam um pouco confusas a esta altura.

Ah, sim! Tinham aquelas coisas que pareciam Plantas Piranhas no meio da
plantação. Mas eu não tinha percebido que eram Entes.

De qualquer forma, parecia que Aisha estava certa, então a soltei de minhas
garras.

— Sinto muito, Aisha. Parece que eu estava errado sobre isso.

Ela me olhou duvidosamente por um momento, mas por fim sorriu de alívio.

— Tudo bem, Rudeus. Você só estava preocupado comigo, certo?

— Sim, é claro. Você precisa admitir, criar um monstro parece que pode ser
perigoso.

— Então tá bom. Acho que então vou ficar quieta.

— Obrigado, Aisha. Lembre-me de te comprar uma boa refeição qualquer hora


dessas.

— Vou sim!

Indo para longe de mim, Aisha prontamente correu até Roxy e jogou os braços
ao redor dela.

— Obrigada, irmãzona! Eu te amo!

— Uh, de nada, suponho…

Roxy aceitou o abraço, mas parecia tão perplexa quanto sempre.

A partir de então, o Ente Bebê passou a fazer parte da casa como nosso
segundo mascote. Naturalmente, estabeleci algumas regras e condições.
Primeiro e mais importante: se alguma vez isso machucasse alguém, nos
livraríamos na mesma hora.

Segundo, Aisha precisava treiná-lo para não atacar ninguém.

Terceiro, ela teria que explicar a todos exatamente que tipo de “planta” era.

Quarto, não o deixaria perto de nenhum bebê, só por segurança.

E assim por diante.

Passei essas regras para Aisha em um sermão inflexível, mas ela acenou com
a cabeça concordando com tudo, sem nenhuma carranca. A garota mantinha
suas promessas, ainda bem, então isso provavelmente daria certo.

A propósito, nomeei nosso amiguinho de “Bet”, escolhendo algumas letras das


palavras Ente Bebê.

Esperançosamente, se tornaria um membro confiável e prestativo de nossa


família. Eu já o imaginava plantado nos campos de Aisha, defendendo minhas
preciosas safras de arroz dos predadores.

Mas como diabos a garota descobriu sobre meu altar secreto…? É realmente
necessário manter o olho aberto para essas criadas.

Lendas da Universidade #4: O Chefe domesticou monstros que vivem na casa


dele.
Cap. 05 – Dignidade Paternal

Antes de eu perceber, passaram mais três meses.

Já era verão. A neve derreteu toda e ficamos no meio de um clima quente e


seco. Até o momento, passei a maior parte do ano pensando em Lucie. Sempre
que eu tinha algum tempo livre, o usava olhando para ela. Afinal, era minha
primeira e única criança. Era natural que eu a adorasse.

Neste dia, como em muitos outros, eu estava em seu quarto, observando-a em


silêncio. Sempre que eu olhava para aquele rostinho angelical com bochechas
rechonchudas, ficava com um enorme sorriso bobo no rosto.

Contudo, eu era tecnicamente o chefe desta família. Não exalava lá muita


autoridade, mas queria agir de maneira relativamente digna com minhas
esposas e irmãs. Se passasse muito tempo arrulhando meu bebê, igual um pai
coruja, a opinião sobre mim com certeza seria afetada.

Por isso, pretendia ser um pai severo. Sabe – rígido, mas justo. Esse tipo de
coisa.

Se eu bem conhecesse Paul, ele provavelmente tinha pensamentos parecidos


enquanto me olhava quando eu era bebê. Um pai deve inspirar admiração em
seus filhos. Deve ser um exemplo para eles e uma meta para que alcancem.

A certa altura, pensei que Paul era desprezível, ou até patético. Mas, agora,
sabia melhor das coisas. Ele foi um pai magnífico. Tinha seus defeitos, muitos,
mas, ainda assim, era maravilhoso.

Claro, ele não era o mais fiel dos maridos, mas eu não tinha mais o direito de
criticá-lo a respeito disso. Era melhor se concentrar nos aspectos positivos.

Neste ponto, eu poderia dizer, cheio de confiança, que queria seguir os passos
de meu pai…

— Aaah, aaah!

Opa, ela está agitada de novo.

Hoje eu não tinha Sylphie para tomar o comando, então tive que assumir o
controle sozinho.
— Aqui vamos nóóóóós, Lucie! É o papai! Abluhbluhbluh!

— Aahaah! Hyaa ha ha!

Ah, senhor, que fofa. Existe algo no mundo tão adorável quanto o sorriso deste
bebê?

Minha esposa, de alguma forma, deu à luz um verdadeiro anjo. Não existe outra
explicação para isso!

Hmm, acabei desviando um pouco do rumo. Voltemos ao assunto de “severo e


digno”.

Ao meu ver, o pai ideal era próximo o suficiente de seus filhos para ser
atencioso, mas distante o suficiente para guiá-los adiante. Normalmente,
deveria ser gentil e bondoso com seus filhos. Quando necessário, porém, não
deveria hesitar em repreendê-los com firmeza. E quando realmente
precisassem de seu apoio, deveria se apresentar de imediato. Ao meu ver, esse
era o pai ideal.

Parecia que eu estava apenas descrevendo minhas impressões sobre Paul.


Então ele era minha ideia de pai perfeito?

Hmm. Para ser honesto, eu não queria que meus filhos me considerassem
“patético”. Mas, bem, foram meio que as fraquezas de Paul que me tornaram
querido para ele. Pude aprender muitas lições com seu exemplo. Além disso,
embora ele às vezes pudesse parecer lamentável, foi sempre um pai
maravilhoso para Norn. Isso era óbvio, considerando o quanto ela o adorava.

Nesse caso, o amor e a compaixão talvez fossem os mais imp…

— Aaah! Aaabaa, baaa!

Ah não, ela está ficando nervosa de novo…

— Oiii, Lucie! O papai voltou! Vou te pegar, viu? Aqui vamos nóóóós!

— Hyaa ha! Hyahahaha!

Assim que tirei Lucie de seu berço e comecei a balançá-la para lá e para cá, ela
começou a gargalhar alto. A julgar pelo sorriso angelical em seu rosto, gostava
bastante de ser embalada em meus braços grandes e fortes. Meu coração não
aguentava tanta fofura.

— Uh, Rudeus…

— Sim, Suzanne?
Enquanto eu confortava Lucie, sua ama de leite, Suzanne, falou do outro lado
do cômodo. Ela era uma aventureira aposentada e uma velha amiga minha.

— Não me importo em acalmar a mocinha quando ela se agita, sabe? Isso é


parte do trabalho.

— Agradeço a oferta, mas eu gostaria de manter esses momentos felizes para


mim, muito obrigado.

Nós dois tínhamos nos conhecido quando eu estava começando a trabalhar


como aventureiro solitário. Perdemos o contato por cerca de quatro anos, mas
então ela viu meu pedido para o emprego de ama de leite. Vê-la de novo foi um
verdadeiro choque.

— Huh. Bem, se você realmente quer fazer isso por conta própria, então fique à
vontade.

— Existe algum homem no mundo que não queira acalmar sua filha recém-
nascida?

— Não posso dizer que meu marido fica muito ansioso para lidar com isso.

— Que vergonha. Parece que ele precisa ser guiado nas alegrias da
paternidade.

Eu lembrava muito bem do tempo que passei com Suzanne.

Eu tinha só doze anos, recém-deixado por Eris e estava indo sozinho para os
Territórios Nortenhos, sentindo extrema pena de mim mesmo. Palavras não
podem descrever o quão infeliz fiquei ao ter que dissolver nosso antigo grupo,
“Fim da Linha”, na guilda em Basherant. Como forma de me distrair dos meus
sentimentos, tentei assumir uma tarefa extremamente difícil e perigosa
sozinho.

Foi aí que Suzanne e seu grupo entraram em ação.

Seu grupo tinha dois guerreiros, uma arqueira, um curandeiro e um mago. Eram
um grupo de rank B, mas eram todos veteranos experientes. Suzanne era uma
das guerreiras da vanguarda. Para ser sincero, ela não era uma espadachim
das melhores ou coisa assim. Em termos de habilidade de combate, estava
mais perto da base do Rank B do que do topo.

Porém, tinha uma reputação de ser bondosa e sabia como manter um grupo
trabalhando bem. Quando ela me percebeu tentando partir em uma missão
suicida, se aproximou e disse algo como “Que tal fazermos esse trabalho
juntos?”
Protestei, falando que queria fazer um nome para mim como um aventureiro
solo, mas ela argumentou que eu precisava trabalhar com outras pessoas para
construir uma reputação. No final, deixei ela me convencer e trabalhamos
juntos.

Na época, Suzanne ficou alarmada com o quão rude eu parecia ser. Meus olhos
estavam opacos e sem vida, e ela percebeu que eu não estava dormindo o
suficiente. Quando falei em um tom cuidadosamente educado, ela achou isso
mais assustador do que reconfortante.

Ainda assim, me acolheu e me ajudou. Até o dia em que deixei aquela primeira
cidade para trás, seu grupo me levou em todos os tipos de missões. Até
mesmo me convidaram para me juntar a eles permanentemente.

Acabei rejeitando a oferta, mas sempre foram amigáveis comigo quando nos
esbarrávamos. Às vezes, até mesmo me levavam para uma taverna para
comer.

Olhando para o passado, ficava óbvio que estavam cuidando de mim de todas
as formas possíveis. Eu era grato a todos eles.

Depois que nos separamos, Suzanne casou com Timothy, o mago e líder do
grupo. Foram para Sharia juntos, já que era a cidade natal de Timothy.

E tiveram dois filhos. O terceiro, infelizmente, nasceu prematuro e logo morreu.

O corpo de Suzanne ainda estava produzindo leite, mesmo com a morte de sua
criança, então ela decidiu vender seus serviços como ama de leite. Ela estava
verificando as ofertas de emprego quando acabou vendo meu nome.

A propósito, trombei com Timothy e o cumprimentei alguns dias antes. O


homem não mudou nada.

— Mas devo dizer, você com certeza mudou…

— Hmm. Mudei?

— Uh, sim. Nos velhos tempos, você nunca teria insultado o marido de uma
mulher na frente dela.

Isso era verdade. Quando conheci Suzanne, eu tinha pavor de perturbar as


pessoas.

Se possível, ainda não queria ofender ninguém, mas acho que não ficava mais
pisando em ovos. Aconteceu muita coisa desde então.

— Sinto muito, Suzanne. Te chateei?


— Nah. Uma provocaçãozinha de vez em quando não faz mal, sabe? Contanto
que você esteja dizendo isso na minha cara, sem problemas. No máximo me
deixa mais confortável.

Isso provavelmente tinha algo a ver com os amigos que fiz na Universidade.
Atualmente eu tinha mais gente com quem poderia conversar casualmente.

Zanoba e Cliff preferem as coisas assim, e também era mais fácil para mim.

— Nossa, você poderia ser um pouco mais casual perto de mim — continuou
Suzanne. — Você é tecnicamente meu empregador, sabe?

— Suponho que sim, mas isso não é motivo para tratá-la indelicadamente.

Suzanne revirou os olhos diante disso.

— Como quiser, criança.

Eu devia muito a ela. No final das contas, foi ela quem me ensinou o básico das
aventuras nos Territórios Nortenhos. Eu não conseguia ser muito casual com
ela.

— Bem, acho que está tudo bem para mim, desde que eu receba meu salário.

— Claro. E garanto que vou dar um belo extra.

A mulher falava como se estivesse fazendo tudo pelo dinheiro, mas estava
sendo maravilhosa.

No começo fiquei um pouco nervoso, desde que lembrei de algumas histórias


de terror sobre babás sádicas que ouvi na minha vida anterior. Mas Suzanne
era tão terna com Lucie que ninguém perceberia que ela não era a mãe.

Claro, tínhamos Lilia e Aisha o tempo todo em casa para ficar de olho nas
coisas. E eu sabia desde o começo que ela não era o tipo de pessoa que
maltrataria uma criança.

— A propósito, como estão seus filhos?

— Ah, os meninos continuam com tudo, como sempre. Agora estão dando
trabalho para a Vovó e para o Vovô.

Suzanne e Timothy estavam morando com os pais de Timothy no momento.


Era a única razão pela qual ela conseguia trabalhar como ama de leite em
tempo integral, mesmo tendo duas crianças correndo pela casa.

Ela costumava reclamar com Lilia sobre como era difícil viver sob o mesmo
teto que a sogra. Lilia provavelmente estava mais inclinada a se identificar com
a sogra, mas acho que ela tinha mais ou menos a idade de Suzanne. Pareciam
estar se dando bem; eu às vezes via elas tomando chá juntas.

— Estive pensando… Você também queria um garoto?

— Na verdade não. Por que iria?

— Bem, sabe… todo mundo quer um herdeiro, certo?

— Ah. Claro.

Tive algumas discussões do tipo quando minha filha nasceu. Zanoba e Ariel
também tocaram no assunto. Obviamente era uma questão importante para
famílias reais e casas nobres – em Asura, ouvi até mesmo histórias de garotos
recém-nascidos sendo levados por parentes distantes para serem adotados
pelo ramo principal da família Boreas.

— Bem, acontece que na verdade não sou nobre ou um homem de negócios


rico. De qualquer forma, isso não me incomoda. Só quero ver minha criança
crescer feliz.

E até fiquei feliz por ter conseguido a opção mais fofa. Eu estava em um
número significativamente menor nesta casa, sim… mas não posso dizer que
me importava em ficar cercado por garotas adoráveis e mulheres charmosas. E
também não era como se estivessem me intimidando. Eram quase
boas demais.

— Ei, esse é o espírito. Gostaria que meu marido aprendesse algumas coisas
com você. Assim que engravidei, ele começou a falar sobre as coisas que
gostaria de fazer se tivéssemos um garoto. Não parou nem pra pensar em
outra opção!

— Bem, no final você conseguiu seus garotos, então acho que acabou tudo
bem.

— É, acho que sim. Mas tenho alguns sentimentos confusos a respeito disso. A
terceira era uma menina, sabe?

— Ah, certo… sinto muito. Isso foi algo estúpido para se dizer…

Por um instante, imaginei como me sentiria se Lucie tivesse nascido morta. O


simples fato de pensar nisso já era horrível o bastante.

— Está tudo bem! Vamos tentar de novo.

Mas Suzanne parecia quase indiferente a isso. Perder um bebê era realmente
algo tão corriqueiro assim? Eu sabia que ao menos eu teria levado isso muito a
sério. Não foi fácil para Sylphie engravidar, então não havia como dizer quanto
tempo levaríamos para conseguirmos outro tiro certeiro.
E, mais importante, Sylphie ficaria arrasada. Era fácil imaginá-la chorando e me
pedindo desculpas por perder nossa criança.

Gah. Só de pensar nisso meu estômago começava a doer.

Mas não fazia sentido ficar pensando nessas coisas, certo? Lucie estava bem,
assim como Sylphie. Já tinha passado tempo suficiente para que eu me
sentisse relativamente confiante de que não era só um sonho.

Em vez de pensar em como as coisas podiam ter dado errado, eu deveria estar
curtindo a minha boa sorte.

— De qualquer forma… assumo que vocês em algum momento dissolveram o


grupo, certo?

— Sim, não muito depois de você deixar a cidade. Quando se é tão medíocre
quanto nós éramos, fica bem difícil quando se perde um membro importante
do grupo, sabe? Patrice disse que voltaria para Asura para virar um soldado, e
meio que nos afastamos lá mesmo.

— Você sabe o que aconteceu com Sara…?

— Você está curioso?

— Sim, um pouco.

Sara era o nome de uma arqueira que fazia parte do grupo de Suzanne. Era raro
que um aventureiro confiasse em arco e flechas, mas ela tinha talento natural
para acertar disparos oportunos e precisos em batalha, o que a tornava
bastante eficiente em sua função. Tínhamos idade relativamente semelhante, e
no começo ela foi abertamente hostil comigo… mas, com o tempo, ficamos
cada vez mais amigáveis.

No final, nosso relacionamento emergente implodiu graças aos meus


problemas de “desempenho” , mas eu ainda tinha um pouco de interesse em
saber como ela estava.

— Bem, ela continua por aí, ganhando a vida como aventureira. Não se vê
muitos arqueiros por aí, já que é bem mais fácil aprender a lançar uma bola de
fogo, mas ela agora tem habilidades e experiência. Ela ficará bem em qualquer
lugar que for.

— Ah. Certo.

— Se houver algo que você não disse, então deveria ir procurá-la em algum
momento. Nunca se sabe quando um aventureiro pode acabar morto.

— Não acho que isso seja realmente necessário.


Nosso pequeno caso estava no passado. Encontrá-la para falar sobre aquilo
não me faria nenhum bem.

E era difícil pensar que Sara quisesse se lembrar daquela bagunça toda.

— Bem, se você diz… Hmm?

Suzanne de repente desviou o olhar de mim e o dirigiu à porta.

Quando virei, vi Zenith parada ali, em silêncio. Lilia estava à espreita logo atrás
dela.

— Mamãe?

Zenith não respondeu, é claro, mas Lilia balançou a cabeça.

— Perdoe a intrusão, Mestre Rudeus.

Com os olhos meio desfocados, Zenith avançou lentamente, depois se sentou


ao meu lado – se posicionando para que pudesse dar uma boa olhada no rosto
de Lucie.

— Não se preocupe, Mamãe. Lucie está muito bem.

Isso não resultou em nenhuma reação. Zenith ficou olhando para o bebê tão
atentamente que parecia ter esquecido que havia mais gente no quarto.

Depois de sua chegada à minha casa, senti que ela se tornou visivelmente mais
ativa. Quando Norn estava por perto, tentava alimentá-la na mesa de jantar;
quando avistava Aisha, iam para o jardim e começavam a arrancar as ervas
daninhas juntas. E quanto eu estava cuidando de Lucie, ela fazia essas visitas
para checar como estávamos. Também existiam diferenças sutis em como
reagia a Roxy e Sylphie.

Sua expressão facial nunca parecia mudar, e ela ainda não falava nada.
Mas estava se movendo. Estava mudando. Talvez estivesse lentamente
avançando para algo semelhante a uma recuperação.

—…

— Kyaa hah! Gaa!

Zenith estendeu as mãos. Sorrindo de orelha a orelha, Lucie as agarrou


brincando.

— Aw, a pequena Lucie com certeza ama sua vovó, não é?

No começo fiquei nervoso com isso. Os sintomas de Zenith pareciam com


demência; me preocupei com a possibilidade de ela acabar machucando Lucie
sem motivo algum, mesmo sem querer. A essa altura, porém, estava óbvio que
não tínhamos nada com que nos preocupar. Tudo que ela sempre fazia era
observar Lucie em silêncio. Nunca vi nenhum indício de emoção negativa nela.
Parecia, no máximo, com uma mulher normal pacificamente olhando para sua
neta.

Me senti meio culpado por ter duvidado dela no começo. Não era como se ela
já tivesse se tornado violenta com alguém.

— Ahaha! Gyaaaha!

De certa forma, parecia que Lucie também entendia que suas intenções eram
boas. A garota fica toda sorridente sempre que Zenith visitava. Sinceramente,
era muito reconfortante.
Mas, claro, havia muito que não sabíamos sobre a condição de Zenith e sobre
como ela poderia se desenvolver. Era difícil imaginar algo de ruim acontecendo
nessas visitas, mas dado o quanto continuava incerto, provavelmente era
melhor que fossem sempre supervisionadas.

Afinal, acidentes podem acontecer, mesmo quando as intenções são boas.

—…

Zenith, de repente, olhou para mim. Parecia quase como se estivesse tentando
me passar alguma mensagem com o olhar… não que eu fizesse ideia do que
pudesse ser.

— Waaah! Waaaaah!

Segundos depois, Lucie começou a se agitar ruidosamente.

— Perdão, Senhorita Zenith…

Lilia se abaixou e gentilmente afastou Lucie de mim e de Zenith. Suzanne se


moveu e recebeu o bebê. Ela começou a acalmá-la ao mesmo tempo em que
verificava sua fralda e procurava por erupções na pele.

Um momento depois, porém, balançou a cabeça.

— Parece que alguém está com fome.

Já era essa hora? Sylphie a amamentou antes de sair, mas já deviam ter
passado algumas horas desde então. Huh.

— Bem, então acho que vou sair do quarto.

— Não me importo se você quiser ver, sabe.

Foi uma demonstração de gentileza de Suzanne, mas recusei educadamente.


Éramos velhos amigos e tudo mais, mas isso não significava que eu devia ver
os seios de uma mulher casada. E ela também era tão bem dotada quanto
Zenith ou Lilia. Eles inclusive pareciam um pouco maiores do que antes. Será
que era por causa de todo o leite ali?

Se eu tivesse um vislumbre daquelas coisas, o Velho Sábio Eremita dentro de


mim poderia despertar de seu sono. Isso, por si só, poderia não ser grande
coisa. Mas e se Lilia, digamos, mencionasse isso para alguém? Sylphie e Roxy
podiam ficar desanimadas. Era inegável que elas estavam mais para o lado do
peito plano do espectro, mas eu não escolhia as mulheres com base em seus
corpos. Eu não queria que se sentissem constrangidas por causa disso.
De qualquer forma… era só eu ou Zenith também tinha notado que Lucie estava
pronta para ser alimentada? Talvez tenha adquirido um sexto sentido para esse
tipo de coisa após criar suas três crianças.

Saí para o corredor e olhei pela janela mais próxima. Infelizmente, era um dia
cinzento e chuvoso. Era difícil adivinhar exatamente que horas eram, mas como
Lucie estava com fome, devia ser perto do meio-dia.

Eu, de alguma forma, consegui passar minha manhã toda com o bebê. Mas, na
minha opinião, foi um tempo bem gasto. Não existia nada mais importante do
que passar um tempo com sua criança.

No momento, porém, fui para meu escritório – uma pequena sala no primeiro
andar que reservei para minhas pesquisas.

A mesa estava coberta por relatórios manuscritos e algumas pedras mágicas.

Eu não passei os últimos seis meses apenas brincando com minha filha e
minhas irmãs, esquecendo de todo o resto. Também estive estudando os
prêmios que trouxe do Continente Begaritt.

Foram essas pedras que deram à hidra sua capacidade de ignorar feitiços, nos
forçando a um perigoso combate a curta distância. Elas absorviam qualquer
magia que entrasse em contato. À primeira vista, pareciam escamas verde-
claras comuns. Se não fosse pela transparência, sequer seriam identificáveis
como pedras.

Consegui aprender alguns fatos básicos sobre isso na biblioteca da


Universidade de Magia.

Primeiro de tudo, costumavam ser chamadas de “pedras de absorção”. Hidras


Manatite as produziam naturalmente dentro de seus corpos. Uma vez que
aquela espécie foi extinta há milhares de anos durante a divisão dos
continentes, isso agora era incrivelmente raro e valioso.

Muitos dragões produziam pedras ou cristais mágicos dentro de seus corpos.


Este era apenas um caso particularmente incomum em questão. A pedra em
meu cajado, por exemplo, foi recuperada de uma espécie dracônica de serpente
marinha.

Os efeitos dessas pedras variam muito, mas boa parte delas tinham aplicações
mágicas diretas de algum tipo. Algumas podiam aumentar a capacidade
mágica ou diminuir a quantidade de mana necessária para lançar feitiços;
outras tornavam os feitiços duas vezes mais poderosos sem aumento no custo
de mana. Não era tão surpreendente que também houvesse algo capaz de
absorver magia.

A parte complicada era descobrir exatamente como essas pedras faziam isso.

Quando simplesmente as deixava em uma mesa como esta, não sugavam a


mana de tudo que estava ao redor. Algo claramente precisava acontecer
primeiro. Depois de alguns experimentos, logo percebi que as pedras tinham
uma parte “dianteira” e uma “traseira”. Era bem difícil distinguir um lado do
outro, mas definitivamente existiam.

Quando eu colocava minhas mãos na parte traseira de uma pedra e a


alimentava com um pouco de mana, a parte da frente começava a absorver
magia enquanto soltava um gemido agudo.

Em outras palavras, essas coisas não funcionavam automaticamente. Era


preciso ligá-las e desligá-las. Parecia com as ventosas nos tentáculos de um
polvo.

Parecia que a hidra contra a qual lutamos estava ativando sua “armadura”
absorvente de magia ao ver os feitiços serem disparados, tornando meus
ataques inúteis no último instante.

Era difícil imaginar que muita gente pudesse reagir tão rapidamente, mas
animais selvagens costumam ter uma visão dinâmica e reflexos muito
melhores do que qualquer ser humano.

Fazendo mais experimentos, também percebi que a pedra não


exatamente “absorvia” magia como eu esperava. Quando eu a segurava em
minha mão direita e lançava um feitiço com a outra, o feitiço desaparecia, mas
eu não recuperava a mana gasta. Na verdade, eu tinha certeza de que isso
me custava um pouco de mana – a mesma quantidade que usava para lançar o
feitiço original.

Seriam necessários experimentos mais profundos para ter certeza do


significado disso, mas eu já tinha uma hipótese para trabalhar. Basicamente,
estava suspeitando que a pedra convertia a mana com que era alimentada em
ondas que poderiam instantaneamente desintegrar qualquer outra coisa feita
de mana. Os resultados pareciam com o feitiço Atrapalhar Magia, mas senti
que essas pedras eram ainda mais eficientes em obliterar os feitiços com os
quais interagiam.

Ainda havia muita coisa que essa teoria por si só não poderia explicar, é claro.
Por exemplo, as estatuetas que criei com magia não eram afetadas pelas
pedras, mesmo quando muito próximas.
Estatuetas de barro eram imunes às ondas, mas o projétil do meu Canhão de
Pedra não era. Eu não fazia ideia do motivo para isso. Será que a mana das
estatuetas tinha se estabilizado com o tempo, tornando-as imunes a
interrupções? Hmm.

Mas não fazia muito sentido ficar insistindo nesse mesmo ponto. Eu nem tinha
uma boa noção do que “mana” realmente era. Em vez de procurar uma
explicação abrangente, eu queria me concentrar em como poderia usar essas
coisas. E em como poderia neutralizá-las no futuro.

Com isso em mente, prossegui com outro experimento.

Tive a sensação de que poderia usar essas pedras para destruir algumas
coisas que o Atrapalhar Magia não poderia. Círculos mágicos, por exemplo.

Cliff me ajudou com esse experimento. Como esperado, consegui destruir um


feitiço de Barreira e o círculo mágico que foi usado para lançá-lo. O desenho
em seu pergaminho original não foi afetado, mas enquanto o feitiço estivesse
em uso ativo, as pedras de absorção poderiam apagar o círculo.

Porém, não eram capazes de afetar um círculo no interior de um implemento


mágico. Talvez fosse porque o círculo foi esculpido no próprio implemento, em
vez de desenhado em sua superfície.

Isso faria sentido. Pensando em nossa batalha contra a hidra, notei que ela
nunca desativou o círculo mágico em seu covil, apesar de se debater pelo lugar
todo.

De qualquer forma, a lição mais importante era que essas escamas não podiam
destruir tudo que fosse de natureza mágica.

Dito isso, elas provavelmente eram mais do que eficazes o bastante para lidar
com a maioria das ameaças que eu pudesse encontrar. Com uma dessas no
bolso de trás, poderia me libertar da próxima vez que caísse em uma armadilha
e acabasse preso dentro de um feitiço de Barreira. O ideal seria evitar de cair
em armadilhas, mas ter algo para segurança não faria mal.

No momento, estava pensando em incorporar uma das pedras em minha mão


protética em algum lugar. Talvez na palma da mão.

Podia ser complicado usar essa mão para ativar a pedra e lançar magia, mas
imaginei que pegaria o jeito com um pouco de prática.

— Olá, irmão querido. Você tem um convidado.

Eu estava trabalhando em meu escritório há algum tempo quando Aisha


apareceu para anunciar que tínhamos visitas. Seu rosto estava calmo e
composto; ela entrou no modo de criada profissional.
— Quem é?

— Príncipe Zanoba. Ele está esperando por você na sala de estar.

Hmm. Será que ele precisa de algo?

Não que eu me importasse com ele visitando por puro capricho, é claro… Talvez
só queira um pouco de companhia.

— Entendi. Obrigado, Aisha.

Casualmente levantei da cadeira.

Zanoba vinha fazendo progressos em sua pesquisa sobre o autômato. Minha


prótese Zaliff era um produto desses esforços. E, no final das contas, as pernas
e pés do autômato funcionavam de forma semelhante às mãos e aos braços.
Desta vez ajudei a fazer o protótipo. Zanoba desenhou as plantas, eu criei a
maquete, seção por seção, usando minha magia, e Cliff inscreveu os círculos
mágicos necessários.

Era um processo lento e delicado. Passamos quase um mês fazendo uma


única perna. Esperançosamente, algum dia começaríamos a vendê-la junto
com nossas mãos artificiais, mas estávamos bem longe de produzir essas
coisas em massa.

Enfim. Agora que tínhamos uma boa compreensão dos membros, Zanoba
estava finalmente começando a investigar o corpo do autômato. Isso envolvia
localizar as pequenas costuras entre suas seções e, depois, cortá-las
cuidadosamente para estudar as “entranhas”.

Bem no meio do peito da coisa, ele encontrou uma pedra mágica. Era uma
coisa cristalina vermelha e bonita, com um tamanho incomum. Após estudá-la,
entretanto, percebeu que não era apenas uma simples pedra. Era uma
combinação de várias outras menores, cada uma delas coberta por minúsculos
círculos mágicos.

Era claramente o “núcleo” do autômato. Se conseguíssemos decifrar todos os


padrões gravados nele, seríamos teoricamente capazes de fazer a mesma
coisa.

E então, assim que levássemos nossa pesquisa a patamares ainda mais


elevados, o sonho da Criada-Robô finalmente se tornaria realidade!

Infelizmente, Zanoba estava sofrendo para enfrentar esse novo desafio.

Os círculos no núcleo eram incrivelmente estranhos e complexos. Além do


mais, os padrões estavam cheios de fragmentos de escritas antigas – notas,
avisos, passagens de livros obscuros – e desenhos preliminares riscados.
Resumindo, estava claro que o criador do autômato ainda estava
aperfeiçoando o modelo do núcleo, mesmo enquanto o construía.

Parecia que a obra-prima que encontramos era na verdade uma falha ou um


protótipo. Não tinha como dizer o que seu criador realmente queria.

Entender isso tudo seria muito mais difícil do que qualquer desafio que
enfrentamos até o momento. Mas Zanoba não se intimidou. Ele parecia, no
máximo, ainda mais determinado do que antes para cumprir a “missão da sua
vida”.

Para qualquer coisa que valesse a pena, ele tinha meu apoio moral.

— Ei, Zanoba. Desculpe por te deixar esperando.

Quando cheguei na sala de estar, ele saltou do sofá, onde estava tomando chá
até um momento antes.

— Ah, Mestre Rudeus! Minhas desculpas por aparecer assim!

Julie e Ginger, que estavam paradas em um canto da sala, seguiram seu


exemplo e baixaram a cabeça em silêncio.

— Então, o que posso fazer por você?

— Eu só estava pela vizinhança, então pensei em passar por aqui e dizer olá.

Huh. Portanto, era realmente apenas uma visita social.

— Entendi. Bem, sinta-se em casa.

Esse era um comportamento bastante incomum para Zanoba, mas eu não iria
mandá-lo embora nem nada do tipo.

Quando me sentei em uma cadeira, Julie trotou até o meu lado.

— Olha, Grão-Mestre Rudeus. Terminei mais uma.

Ela estendeu uma estatueta para eu examinar. Foi sua mais recente tentativa
de realizar a estatueta de Ruijerd que pedi para que ela produzisse como tarefa.

— Bom trabalho — falei, estudando a coisa de vários ângulos. — Você está


melhorando rápido. Continue produzindo para mim, certo?

— Certo! — Julie disse com uma reverência alegre.

Enquanto eu viajava pelo Continente Begaritt, Julie terminou sua estatueta


original de Ruijerd. Fiquei genuinamente surpreso com o quão boa ficou. Ficou
claro que ela usou minha própria versão como modelo, mas, sinceramente, a
dela ficou melhor.

Por um lado, a postura era perfeita. Mesmo um completo amador perceberia


que estava olhando para um personagem fodão.

Quando o mostrei para Norn, ela não pôde deixar de murmurar “Eu quero um”
bem baixinho, então dei o original de presente para ela. No momento, ela o
mantinha em uma prateleira em seu dormitório.

Reconhecendo o sucesso de Julie pelo que era, a encarreguei de produzir o


máximo de cópias da estatueta que fosse possível. Ainda demorava um bom
tempo para fazer uma, mas isso não era um problema lá tão grande. O trabalho
era uma boa forma de aumentar sua capacidade de mana e, com sorte,
teríamos uma boa pilha delas pronta para uso assim que estivéssemos prontos
para vender o livro de Norn.

— Ontem vi a Senhorita Norn na escola.

— Ah, é mesmo? Vocês se esbarraram? Ela disse alguma coisa?

— Ela me agradeceu. Então também agradeci a ela.

— Aw, isso é bom. Bom para você, Julie.

Estendi a mão e afetuosamente afaguei a cabeça dela. Ela enrijeceu um pouco


ao meu toque, mas não recuou.

Norn, por acaso, tinha recentemente terminado seu livro sobre Ruijerd. Mesmo
após começar a praticar com a espada comigo, ela continuou escrevendo. O
livro era curto e a prosa um pouco estranha e desajeitada. Também cobria
apenas uma parte da vida de Ruijerd: a história daquelas lanças amaldiçoadas,
começando com o serviço leal de Ruijerd ao seu lorde e terminando com sua
vingança.

Mas, apesar de todas as falhas, ela conseguiu capturar perfeitamente a


personalidade de Ruijerd. Seu orgulho, dor e ousadia transpareciam com
surpreendente clareza. Com um pouco de edição aplicada, eu estava confiante
de que poderíamos vendê-lo como um livro infantil.

Para testar essa teoria, li o rascunho para Julie, que o adorou. Ela me fez ler
três vezes seguidas e provavelmente teria continuado caso Ginger não tivesse
intervindo.

Pelo visto, ninguém nunca tinha lido histórias assim para Julie quando era
pequena. Talvez fosse cultural. Os anões aparentemente tinham alguns tipos
de contos de fadas tradicionais, mas talvez não escrevessem livros infantis. Ou
seus pais talvez estivessem ocupados demais para gastar muito tempo
entretendo-a. Bem, não que isso realmente importasse.

De qualquer forma, como Julie tinha gostado tanto do livro, eu planejava


apresentá-la a Norn qualquer hora dessas, mas parecia que fizeram isso sem
minha ajuda. Norn provavelmente ficou um pouco envergonhada ao saber que
já tinha uma fã. Mas era bom saber que começaram com o pé direito.
Reconhecer os talentos de cada um é um excelente primeiro passo para
construir um bom relacionamento profissional.

Isso tudo indicava que estávamos fazendo um excelente progresso nos


preparativos para nossa campanha de RP Superd. Eu também estava
mantendo minha pesquisa e meu treinamento. De modo geral, senti como se
estivesse fazendo bom uso do meu tempo. Se eu me forçasse a assumir algo
mais além do que já estava lidando, provavelmente acabaria me
sobrecarregando.

Talvez seria ótimo me concentrar em uma única área específica na qual me


especializar, mas minha sensação era de que nunca seria o melhor em seja lá o
que tentasse. Isso foi verdade na minha primeira tentativa de vida, e
provavelmente também seria nesta.

Sempre haverá alguém melhor por aí. Talvez no momento eu fosse o melhor
mago da Universidade, mas o mundo estava repleto de pessoas incrivelmente
poderosas.

Existe talento genuíno – o tipo de talento com o qual é impossível competir,


não importa o quanto tente.

Mas eu também não sentia necessidade de me esforçar para ser o melhor em


qualquer coisa. Meu objetivo era ser flexível o suficiente para competir em
várias frentes. Se não pudesse vencer alguém em uma luta um contra um,
simplesmente encontraria uma forma de contornar isso.

A teoria disso parecia boa. Mas, claro, às vezes é possível acabar se deparando
com uma Hidra Manatita. Eu queria me tornar poderoso o suficiente para
proteger minha família. Lutar não era a minha especialidade, mas eu teria que
encontrar maneiras de ficar mais forte.

— Ah, é mesmo. Quer dar uma olhada em Lucie, Zanoba?

— Ooh! Você está disposto a me mostrar sua filha?! Tem certeza?!

— Digo… sim. Existe algum motivo para eu não fazer isso?

— Suponho que não! No entanto, acredito que há certos países onde a tradição
é esperar até que uma criança faça cinco anos antes de permitir que alguém de
fora da família a veja.
— Sério? Huh. Pessoalmente, prefiro exibi-la a todos que puder…

De qualquer forma, não havia razão para pensar muito nesse assunto. Eu só
tinha que continuar lentamente me movendo, sempre em frente.

Continuei com meu treinamento diário e exercícios com magia, estudando


meus projetos de pesquisa e fazendo muitos amigos interessantes. Em
comparação com minha última tentativa de viver, estava me esforçando muito
mais e conseguindo cada vez mais com o passar dos dias. Era justo dizer que
eu estava fazendo um bom trabalho – ao menos para os meus padrões.

Em outras palavras, não precisava de pressa. Se eu me esforçasse demais,


acabaria entrando em colapso físico ou mental. Minha pressa também poderia
me deixar descuidado. Eu não queria me deparar com outro desastre, igual
aconteceu com aquela hidra.

Então, por enquanto, continuaria seguindo meu próprio ritmo. Um passo de


cada vez.

Eu queria fazer com que meus esforços de autoaperfeiçoamento fizessem


parte de minha rotina diária. Esse esforço, com sorte, valeria a pena na próxima
vez que me encontrasse diante de um grande desafio.

Hmm. Porém, qual era o próximo passo que eu deveria dar?

Substituí minha mão por uma prótese. Minha pesquisa estava indo muito bem.
Meu relacionamento com minhas esposas era excelente, minhas irmãs e minha
filha estavam bem e nossa família tinha uma sólida segurança financeira.

Talvez já fosse hora de pedir para Roxy me ensinar um pouco de magia de água
de nível Rei.

Lendas da Universidade #5: O Chefe tem uma queda por crianças.


Cap. 06 – Surge um Nível Rei de Água

Em um canto normalmente silencioso da Universidade de Magia, uma


conversa sugestiva ocorria.

— Não. Eu disse não!

O local: um pequeno prédio conhecido por alguns alunos como “galpão de


armazenamento de EFI.”

Na frente da porta, um jovem agarrou uma garota de cabelo azul pelo braço.

— Vamos lá, qual é o problema? Estou te implorando, me ensine…

— Não é não!

A atitude da garota foi de brusca rejeição. Seu rosto estava virado para o lado, e
ela estava fazendo beicinho de desagrado.

Mas o jovem não estava recuando.

— Só desta vez? Por favor?

— Já te dei a minha resposta. Agora me solta, por favor! O almoço já está


acabando.
— Ei! Não seja assim!

Estava claro que ele não tinha intenção de libertá-la. A garota olhou para os
lados, via-se preocupação em sua expressão.

Este era um canto tranquilo do campus, mas isso não significava que fosse
deserto. Havia bastante gente na área.

Mas quando a garota lhes lançou um olhar suplicante, todos simplesmente


desviaram o olhar.

Havia uma razão simples para isso: sentiam medo do jovem que a assediava.
Ele era o delinquente mais infame de toda a cidade.

Não é que não quisessem ajudar a garota. Mas todos sabiam que qualquer
tentativa de intervenção seria inútil e que isso poderia custar caro. Ninguém era
corajoso o suficiente para arriscar.

— Pensa nisso por um minuto, pode ser? Estamos falando de um acordo em


que todas as partes saem ganhando. Você pode não estar gostando da ideia,
mas, a longo prazo, ambos vamos nos beneficiar.

— Bem… suponho que sim…

— Ei, que tal isso? Se você fizer isso por mim, em troca farei o que você quiser.

— Ugh… Olha, eu… eu só…

Enquanto a determinação da garota vacilava, o jovem aproveitou sua vantagem


de maneira implacável. Ele se aproximou, quase colocando a boca na orelha
dela, enquanto sussurrava palavras melosas.

A cada momento o rosto da garota ficava mais vermelho. Mexendo em seus


longos cabelos trançados, ela, com vergonha, olhou para o chão.

— Ei! É o conselho estudantil!

Mas, naquele momento, o homem mais bonito da Universidade entrou em cena.


Uma notável garota de cabelos brancos e óculos de sol o seguia de perto.

— Ooooh! Sir Luke!

— Fitz Silenciosa também está aqui!

Os espectadores, aliviados, reconheceram os recém-chegados em um instante.


Eram Luke e Fitz, do conselho estudantil.

— Sir Luke é tão incrível! Que momento perfeito!


— Leve-me agora, Luke!

— Sou só eu ou a Fitz ficou muito mais bonita?

— Cara, eu nunca teria imaginado que ela era uma garota…

Ignorando os gritos estridentes da audiência, os dois caminharam até o jovem


e a garota.

— Bem, Rudeus… estamos aqui porque alguém relatou que você estava
agredindo uma aluna, mas…

Luke parou no meio da frase para soltar um suspiro pesado. Ele conhecia as
duas pessoas envolvidas nessa pequena farsa: Rudeus Greyrat e sua segunda
esposa, Roxy.

A “garota”, em outras palavras, não era uma estudante. E Rudeus não estava a
agredindo.

Tendo confirmado esses fatos, Luke se virou e começou a retornar por onde
tinha aparecido.

— Fitz, lide com isso, por favor.

Coçando as orelhas desajeitadamente, Fitz assentiu.

— Certo.

Quando o jovem cavalheiro saiu de cena, Roxy soltou um longo suspiro.

— Uma aluna? Sério?

— Não pode culpá-los, Mestra — disse Rudeus, indulgentemente balançando a


cabeça. — A maioria dos estudantes ainda não sabe que você é professora. —
Nesse momento, ele olhou para Fitz Silenciosa em busca de apoio, e a
encontrou descontente, com as bochechas um pouco estufadas. — Hm? Qual é
o problema, Sylphie?

— Olha, Rudy. Sei que Roxy é sua esposa, mas isso não significa que pode
forçá-la a fazer algo que ela não quer. Às vezes, a garota simplesmente não
está afim, sabe?

— Hein? Uh, certo. Claro — disse Rudeus, parecendo um pouco perplexo.

— Sinceramente… — murmurou Fitz. — Ela pode ser melhor nessas coisas, mas
você poderia tentar me pedir…

— Espera. Calma aí. Será que…


Os olhos de Rudeus de repente brilharam. Aproximando-se rapidamente de Fitz,
ele cutucou sua bochecha com o dedo; e ela respondeu virando a cara para o
lado e estufando ainda mais as bochechas.

— É isso! É isso! Você está com ciúmes, Sylphie!

Com esta exclamação, ele jogou os braços ao redor de Fitz e a apertou com
força. Ela não parecia totalmente aborrecida, nem emburrada.

— S-Sério, eu não diria que estou com ciúme. Isso está mais para decepção!

— Não se preocupe, querida! Não vou te deixar de fora! Faremos isso juntos!

— Quê… V-Você está falando sério? Quer dizer… nós três?

Rudeus levou a boca ao ouvido de Fitz e murmurou sua resposta.

— Sim, isso mesmo. Podemos fazer com que Roxy ensine a nós dois ao mesmo
tempo.

— Uhh… Roxy vai nos ensinar…?

— Bem, claro que vai. Afinal, ela é especialista nisso.

Fitz olhou para Roxy, que virou o rosto para o lado, amuada.

— Sabe, ainda não falei que vou fazer isso.

— Vamos lá, não diga isso. Sylphie também quer aprender. Não é verdade,
Sylphie?

— E-Eu não sei… Isso parece meio constrangedor… — Ainda envolvida pelos
braços de Rudeus, Fitz se contorceu inquieta. Os óculos de sol que ela usava
como disfarce deixavam seus olhos fora de vista, mas era óbvio que estavam
brilhando de emoção. — Mas acho que vou fazer isso… por você, Rudy…

— Oh, Sylphie!

Dominado pelo afeto, Rudeus enterrou o rosto no cabelo de Fitz. Seu cheiro e
suavidade agradáveis o deixaram ainda mais animado, e seu abraço ficou
ainda mais intenso. Fitz, por sua vez, ficou encantada com esse abraço
poderoso e logo parou de apresentar qualquer resistência.

Roxy encarava isso com os olhos cheios de inveja.

Era exatamente disso que Rudeus precisava. Era hora de voltar ao ataque.

— Por que você não quer me ensinar, Roxy? Você não gosta mais de mim?
Desta vez, ele assumiu um tom profundamente magoado. Foi o suficiente para
fazer Roxy estremecer.

— Claro que ainda gosto de você, Rudy! Eu… eu te amo muito!

— Então por que está agindo assim?

— Bem… se eu te ensinar isso, então não terei mais nada em que serei melhor
do que você…

— O quê? Não seja boba, Roxy! Você está em um plano de existência mais
elevado do que eu!

Roxy suspirou após isso.

— Tá, olha. Faz um tempo que quero dizer isso, mas acho que sua opinião a
meu respeito é um pouco exagerada. Sou uma pessoa mesquinha, sério… o tipo
de mulher que fica chateada porque seu aluno a superou.

— Isso não é um problema, eu garanto! Você é perfeita do jeito que é,


mesquinha e tudo mais!

— Enfim, gastei meses da minha vida para aprender isso, sabe? Você e Sylphie
são mais talentosos do que eu jamais fui, então provavelmente vão dominar
isso bem rápido…

Neste ponto, Fitz finalmente percebeu que tinha entendido a situação de forma
equivocada e seu sorriso sonhador deu lugar a uma expressão confusa.

— Hm, desculpa, Rudy… exatamente sobre o que estamos falando aqui?

— Ah, é mesmo. Eu estava pedindo para Roxy me ensinar um feitiço de Água


nível Rei.

Está familiarizado com o conceito de um passeio romântico de bicicleta?

Permita-me elaborar isso. Refiro-me especificamente a um jovem casal


compartilhando uma única bicicleta.

Normalmente, o garoto fica pedalando na frente, e a garota fica sentada atrás


dele. Ela se senta de lado na garupa – talvez com os braços em volta da cintura
dele, talvez mantendo um pouco de distância. O garoto pode pilotar e pedalar,
mas, em muitos casos, a bicicleta é da garota.
O habitat natural para um evento deste tipo é a margem de um rio no início da
noite. O brilho vermelho e quente do sol poente convenientemente disfarça
qualquer rubor que possa aparecer.

No momento, me encontrei em uma situação bem semelhante. O sol ainda


estava alto no céu, mas a nuca de Sylphie estava bem na minha frente.
Movendo meu nariz para frente, eu poderia facilmente encher minhas narinas
com o doce aroma de sua pele.

Eu também estava com meus braços em volta da cintura dela, com as mãos
cruzadas bem perto de seu umbigo. Meu corpo estava pressionado contra o
dela; era capaz de sentir as batidas de seu coração no meu peito.

Era realmente esplêndido.

Aliás, só uma observação, devo mencionar que estava mantendo a


parte inferior do meu corpo um pouco afastada dela, por razões que não
precisam ser declaradas. Ela era minha esposa e tal, mas eu ainda precisava
tratá-la com respeito.

Além disso, eu tinha visto várias notícias sobre acidentes de carro causadas
por passageiras apalpando os motoristas. No momento estávamos em um
cavalo, o que não era exatamente a mesma coisa, mas ainda não seria boa
ideia distrair a pessoa que segurava as rédeas.

— Matsukaze é realmente um bom cavalo — disse uma voz logo atrás de


Sylphie. — Ele é calmo e faz o que mandam, mas também é bem forte.

Inclinei-me para olhar por cima do ombro de Sylphie e as costas de uma garota
de cabelo azul apareceram. Era Roxy; ela estava sentada bem na frente de
Sylphie.

— Aham. Com certeza não se vê um cavalo desses todos os dias.

Nós três tínhamos nos espremido no lombo de um único cavalo.

Matsukaze, o mais negligenciado animal de nossa casa, não parecia se


importar nem um pouco com esse fardo excessivo. Ele trotava como se nem
estivéssemos lá.

— Ginger não o escolheu para você, Rudy? — perguntou Sylphie. — Ela tem um
bom olho para cavalos.

— Você sabe muito sobre cavalos, Sylphie? — perguntou Roxy.

— Hein? Hm, eu não diria isso… mas cheguei a ver alguns dos melhores cavalos
do Reino Asura algumas vezes. Como aquele em que o capitão dos cavaleiros
reais cavalga.
— Entendo. Tenho certeza de que deve ser um animal esplêndido…

Com isso, Matsukaze relinchou como se objetasse.

— Ah, sinto muito, Matsukaze! — disse Roxy apressadamente. — Você também


é esplêndido. Afinal, você é o único corcel da família Greyrat.

Hmm. Alguns animais deste mundo entendiam as línguas humanas? Ou será


que Roxy podia ser uma encantadora de cavalos?

Provavelmente não. Os animais começam a responder à sua voz quando se


fala o bastante com eles, é só isso. Aisha também estava sempre conversando
com Bet e Tu.

— De qualquer forma… Tenho que admitir, é um pouco embaraçoso andar na


frente com a minha idade.

Cada vez que encontrávamos alguém vindo da direção oposta, Roxy corava e
puxava o chapéu sobre o rosto. Suponho que sentar na frente da pessoa que
segura as rédeas era comparável a andar na cadeirinha de bebê em um carro.

— Não me importaria de seguir vocês dois no Tu ou algo assim, sabe.

— Boa tentativa, Roxy — disse Sylphie com um sorriso. — Aposto que você
estava planejando fugir no instante em que tirássemos os olhos de você.

— Não sou criança. Não iria fugir.

Apreciando o som da conversa de minhas esposas, tirei algum tempo para


contemplar a paisagem ao nosso redor.

No momento, estávamos na periferia da cidade. Havia um pequeno e lindo


riacho correndo à nossa direita; à nossa esquerda, havia uma grande planície
com uma floresta meio distante. Os Territórios Nortenhos não eram a parte
mais fértil do mundo, mas nesta época ficava bastante verde.

Até alguns minutos antes, passávamos por campos de trigo e batata, mas
agora estávamos cercados por uma região vazia e subdesenvolvida. Eu não
tinha certeza de quantas horas já estávamos cavalgando, mas claramente
tínhamos ido longe o bastante para ter um pouco de privacidade.

Observando a água à nossa direita, vi peixes enquanto a luz do sol refletia em


suas escamas. Este era um dos vários riachos menores que desembocavam no
rio que passava pela cidade de Sharia.

Podia ser bom sair da cidade para pescar em um dia ensolarado, mesmo que
não viajasse até tão longe. Não que eu já tivesse pescado antes.

— Falei para vocês que iria ensiná-los, e pretendo fazer um bom trabalho.
O motivo para esse deslocamento todo era bem simples: Roxy cedeu. Meus
insistentes apelos e pedidos finalmente a esgotaram.

— Vou ensinar um único feitiço de Água de nível Rei que dominei: Tempestade
de Relâmpagos.

Roxy ainda parecia desapontada com o rumo dos acontecimentos, então


passei pelo lado de Sylphie e afetuosamente acariciei seus ombros.

De qualquer forma… Tempestade de Relâmpagos, hein? Com base apenas no


nome, parecia um feitiço padrão baseado em eletricidade. Pensando melhor
nisso, porém, relâmpago não era uma disciplina mágica padrão neste mundo.
Eu nunca tinha visto alguém usando um feitiço elétrico.

E, além disso, era um feitiço de nível Rei. Tive que presumir que seria
dramático.

— Hmm, tudo bem. Acho que já avançamos o suficiente.

Depois de mais algum tempo na estrada, Roxy falou para pararmos e saltou de
Matsukaze. Ela começou a amarrá-lo a uma arvorezinha quase tão grossa
quanto a perna do cavalo.

— Ei, Professora… lembra do Caravaggio?

— Ah, sim. Esse era o nome do cavalo de Paul, não? Isso realmente desperta
algumas memórias… — Roxy sorriu, parecendo um pouco nostálgica.

Passaram doze anos desde que ela me ajudou a me tornar um Santo da Água.
Consegui um monte de outras habilidades nesse meio tempo, mas só agora
estava dando o passo para o nível Rei. Parecia que eu tinha feito muitos
desvios pelo caminho até chegar neste momento.

Mas voltando ao assunto do cavalo… o pobre Caravaggio quase morreu


naquela época. Roxy acabou salvando sua vida, mas ele poderia ter morrido
instantaneamente. Era possível que ela tivesse esquecido disso depois de
tanto tempo, então senti a necessidade de tocar no assunto.

— Existe algum risco de outro acidente como o que tivemos naquela época?

— Não, acho que não. Mas não queremos que Matsukaze se resfrie com a
chuva, então é melhor fazer uma Fortaleza de Terra para abrigá-lo.

— Entendido.

Eu prontamente me virei e coloquei nosso cavalo em uma espécie de iglu de


barro. Ele aceitou isso com admirável autoconfiança.
— Hm, será que eu deveria esperar à distância ou algo assim? — disse Sylphie,
vestindo a capa de chuva.

— Não, não é necessário — respondeu Roxy, fazendo o mesmo.

Até mesmo um feitiço de nível Santo seria o suficiente para deixar qualquer um
encharcado, então propus que trouxéssemos isso como uma medida de
precaução. Também coloquei a minha.

— Está todo mundo pronto?

— Sim.

— Assim que você estiver.

Roxy acenou com a cabeça e apontou para uma árvore bem longe. Era uma
coisa enorme. Mesmo de longe, eu poderia dizer que seu tronco era
incrivelmente grosso.

— Usarei aquela árvore como alvo. Só posso usar isso uma vez por dia, então
observem com bastante atenção.

— Entendido.

Com outro pequeno aceno sinalizando minha resposta, Roxy fechou os olhos e
começou a respirar profundamente. Suas mãos agarraram seu cajado com
força enquanto ela se concentrava intensamente na tarefa em mãos.

Isso durou mais tempo do que eu esperava. Ela podia lançar um feitiço de nível
Santo rapidamente, mas parecia que esse não seria tão fácil assim. Embora eu
não tivesse um Olho do Poder Mágico ou coisa assim, me senti bastante
confiante sobre ela estar usando esse tempo para reunir uma grande
quantidade de mana para o feitiço.

Alguns longos minutos depois, Roxy abriu os olhos e murmurou:

— Então tá bom. Vamos começar.

Com essas palavras, ela cravou seu cajado no chão.

Com a mão esquerda, o segurou firmemente. Com a direita, agarrou a pedra


mágica em cima dele.

E, finalmente, começou a entoar – lenta e cuidadosamente, como se revisse


cada palavra antes de pronunciá-la.

— Ó, espíritos das magníficas águas, suplico ao Príncipe do Trovão! Realizem


meu desejo, abençoe-me com sua selvageria e revelem a esta serva insignificante
um vislumbre de seu poder! Que o medo golpeie o coração do homem, enquanto
vosso martelo divino bate na bigorna e cobre a terra de água!

Algumas frases depois, reconheci as palavras e pisquei, confuso.

— Venha, ó chuva, e lave tudo com teu dilúvio de destruição!

Nuvens negras rapidamente tomaram o céu acima de nós. Ao mesmo tempo,


uma chuva forte e violenta começou a cair. O vento açoitou a planície,
empurrando a água para cima e para baixo do meu casaco. Meu manto ficou
encharcado no mesmo instante. Um relâmpago cintilou acima de nós,
ameaçando atingir o solo a qualquer momento.

Foi tudo muito impressionante, mas eu já tinha visto isso antes. Era o feitiço de
nível Santo, Cumulonimbus.

— Eu te invoco, poderoso espírito de luz, resplandecente senhor dos céus!

Mas quando eu esperava que o cântico terminasse, Roxy seguiu em frente.

— Vê o inimigo atrevido elevando-se diante de nós? Vê seu inimigo jurado, e toda


sua arrogância? Eu seria a lâmina sagrada que o derrubaria! Deixe seu poder
radiante ensinar a ele que o Imperador ainda reina supremo!

Com cada palavra que saía de sua boca, o céu acima de nós
era comprimido. As nuvens negras que se estendiam pelo horizonte desabaram
sobre si mesmas, formando um círculo que se tornava menor e mais denso a
cada segundo. Eletricidade crepitante espalhou-se e formou um arco ao redor
da massa escura.

E, finalmente, quando o anel de nuvem encolheu a um mero ponto no céu…

— Relâmpago!

Um pilar de pura luz caiu sobre a terra.

Era um relâmpago, sim. Mas não era nada parecido com qualquer coisa que eu
já tivesse visto.

A onda sonora nos alcançou uma fração de segundo depois.

O rugido foi ensurdecedor, mesmo àquela distância. Sylphie tapou os ouvidos


com as mãos e fez uma careta.

Eu, por outro lado, estava ocupado demais ficando boquiaberto. Não consegui
encontrar nada para dizer. Nem mesmo uma única palavra.

Alguns momentos depois, consegui fechar a boca. Em algum momento, fechei


minhas mãos formando punhos; e estavam tremendo.
Depois que o rugido passou por nós, nada sobrou. As enormes nuvens negras
desapareceram. As massas de chuva torrencial tinham sumido. O pilar de
iluminação ofuscante se foi. E aquela árvore enorme também tinha sumido.

Não restava mais nada.

O céu acima de nós estava claro e azul. A terra ao nosso redor estava úmida,
mas essa era a única pista remanescente do que tinha acabado de acontecer.

Quando pisquei os olhos, mal consegui distinguir um monte negro de madeira


carbonizada onde a árvore costumava ficar.

— Uau…

Perdendo as forças para segurar seu cajado, Roxy cambaleou para o lado. Corri
para segurá-la antes que caísse.

— Você está bem?

— Ah, fico feliz por ter conseguido isso. Com minha capacidade de mana, só
posso usar uma vez, mesmo com meu cajado… Você deu uma boa olhada no
feitiço, Rudy?

— Com certeza, Mestra.

Não fui capaz de desviar meus olhos daquilo por um único segundo que fosse.
E também lembrava de cada palavra do encantamento.

— Acha que está pronto para tentar?

— Vou tentar!

Depois de entregar Roxy para Sylphie, me virei, estendi meu próprio cajado e o
segurei bem forte.

Aqua Heartia estava comigo desde o dia em que fiz dez anos, apoiando-me em
todas as turbulências da minha vida. Eu tinha confiança de que poderia lançar
esse feitiço sem sua ajuda, mas ainda assim queria usá-lo.

Tentei lembrar do que tinha acabado de ver com a maior precisão possível,
olhei para o céu e comecei a entoar.

— Ó, espíritos das magníficas águas, suplico ao Príncipe do Trovão! Realizem


meu desejo, abençoe-me com sua selvageria e revelem a este servo insignificante
um vislumbre de seu poder! Que o medo golpeie o coração do homem, enquanto
vosso martelo divino bate na bigorna e cobre a terra de água! Venha, ó chuva, e
lave tudo com teu dilúvio de destruição!
Uma grande quantidade de mana jorrou de minhas mãos para o cajado e, em
seguida, disparou para os céus.

Enquanto as nuvens de tempestade se juntavam, senti a magia se espalhando


ao meu redor, pronta para ser controlada e liberada. Se eu tivesse entoado a
palavra “Cumulonimbus” em seguida, o feitiço teria se completado.

Mas eu não faria isso. E pensei ter entendido o motivo. Se desse ao feitiço uma
forma coerente, provavelmente seria impossível conseguir aquela compressão
das nuvens. Eu precisava passar para o próximo estágio sem estabilizar o
feitiço.

— Eu te invoco, poderoso espírito de luz, resplandecente senhor dos céus! Vê o


inimigo atrevido elevando-se diante de nós? Vê seu inimigo jurado, e toda sua
arrogância? Eu seria a lâmina sagrada que o derrubaria! Deixe seu poder radiante
ensinar a ele que o Imperador ainda reina supremo!

A cada frase que eu falava, a magia no ar ficava cada vez mais intensa. Eu não
tive escolha a não ser colocar mais mana no feitiço para evitar que ficasse
totalmente fora de controle. Eu estava forçando as nuvens a se comprimirem,
apertando-as com todas as minhas forças.

Este feitiço exigia poder. Poder bruto e cru. Essa era a única coisa que tornava
isso possível. Eu nunca lancei nada que exigisse uma força tão feroz.

Não, isso não era verdade. Algo nisso me parecia familiar. Não era muito
diferente do que senti quando estava lançando meu Canhão de Pedra ao seu
potencial máximo.

No momento em que percebi isso, o feitiço de repente pareceu muito mais fácil
de controlar.

— Relâmpago!

Quando falei a palavra final, pude sentir algo como um buraco vazio se abrindo
sob minha bola de mana comprimida.

Empurrei tudo para baixo, de uma só vez.

KRA-KOOM!

Mais uma vez, um grande pilar de relâmpago atingiu a terra e seu rugido
passou por nós. Não usei nenhum alvo em particular, mas o feitiço atingiu o
solo exatamente onde eu queria.

Mais uma vez, não sobrou nada em seu rastro. Não havia nuvens negras acima
de nós, apenas um céu azul claro. Mas o solo estava um pouco mais
encharcado do que antes e nossos casacos pingavam água.
A imagem residual do relâmpago ainda estava piscando diante dos meus
olhos. Meus ouvidos ainda zumbiam com seu rugido.

Eu consegui.

Sylphie foi a primeira a falar. Tudo o que ela conseguiu, no entanto, foi um
assustado: “Oh, uau.”

Com apenas isso, me tornei um Mago de Água de nível Rei.

— Isso foi um pouco frustrante…

No caminho de volta para casa, a expressão de Sylphie estava ligeiramente


abatida.

Depois da minha tentativa bem-sucedida, ela também tentou usar o feitiço.


Roxy começou com Cumulonimbus. Ela falhou na primeira vez, mas conseguiu
na segunda tentativa.

Infelizmente, ela não conseguiu lançar Relâmpago. Sua primeira tentativa


falhou e também a secou. Comprimir a mana era de longe a parte mais difícil
do feitiço; Provavelmente, só consegui porque tinha experiência em fazer algo
semelhante.

Ainda assim, Sylphie aprendia rápido. Tive a sensação de que ela descobriria se
tentasse mais algumas vezes.

— Não se sinta mal, Sylphie — disse Roxy com um sorriso. — Eu ainda erro mais
ou menos uma vez a cada cinco.

De certa forma, fiquei um pouco feliz por Sylphie ter falhado dessa vez. Se nós
dois tivéssemos conseguido na primeira tentativa, Roxy poderia ter seu orgulho
ferido.

Entretanto, isso foi bem interessante. Com base no que vi, Sylphie parecia ter
uma capacidade de mana maior do que Roxy. E a de Roxy não era nada
pequena, pelo que percebi.

— Bem, alguém teve sucesso na primeira tentativa. Você é incrível, Rudy.

— Sim, isso foi certamente impressionante. Tenho que admitir que esperava
que isso acontecesse, mas foi um pouco deprimente que você tenha
conseguido tão facilmente.
—…

Não consegui encontrar nada para dizer às duas.

Claro, comecei a usar magia por volta dos dois anos de idade e me esforcei
para expandir minha capacidade de mana. Mas dado o tamanho da minha,
provavelmente também nasci com um suprimento anormalmente grande. Eu
me esforcei, mas também tive sorte. Isso deixava a discussão a respeito de
minhas habilidades como mago um pouco complicada.

Em qualquer caso, eu precisava ficar focado. Ainda não estávamos em casa e


minhas esposas estavam exaustas.

Uma vez que tivéssemos retornado em segurança, eu teria que massagear os


ombros de ambas. Esta noite também não teríamos atividades noturnas.
Estávamos todos exaustos.

— Ah, olha, Rudy — disse Sylphie. — Não é um lindo pôr do sol?

Olhei para o oeste, onde o sol estava começando a descer pelo horizonte. O
céu ao redor adotava um tom brilhante de vermelho.

A natureza é tão bela aqui quanto no meu antigo mundo. Isso era algo que não
tinha mudado.

— Sim, é lindo.

Hmm… eu deveria dizer “mas não tão lindo quanto você”?

Com um pequeno suspiro, Sylphie se inclinou ligeiramente contra mim. Ela


parecia prestes a cochilar.

Provavelmente estaríamos voltando para casa antes de escurecer, mas eu teria


que ficar alerta até chegarmos aos limites da cidade. Essas duas não podiam
usar magia no momento, então se algum monstro aparecesse, eu precisaria
lidar com ele.

— Sabe, às vezes me pergunto se tudo isso é um sonho… — murmurou Roxy


enquanto contemplava o pôr do sol.

Sylphie inclinou a cabeça interrogativamente.

— Um sonho?

— Isso mesmo. Talvez eu ainda esteja presa naquele labirinto, e esta é uma
pequena ilusão feliz que estou tendo antes de morrer.

Mantive meus olhos examinando a área ao nosso redor em busca de ameaças,


meio que ouvindo a conversa.
Sylphie e Roxy estavam falando devagar, o cansaço evidente em suas vozes.

— Estou muito mais feliz agora do que há seis meses. Eu me casei, para
começar, e fui contratada como professora na Universidade. Acho que pareço
uma espécie de intrusa para você, Sylphie… mas estou feliz por estar aqui,
montada neste cavalo com vocês dois.

Senti Sylphie estremecer um pouco quando Roxy disse a palavra intrusa. Ela
então balançou a cabeça em negação.

— Você não é uma intrusa, Roxy. E fico feliz que você tenha sido tão gentil e
atenciosa com tudo isso. Não acho que eu venceria caso você transformasse
isso em algum tipo de competição…

A voz de Sylphie estava tão incerta que senti a necessidade de interromper este
momento com um abraço. Ela tirou uma das mãos das rédeas para dar um
tapinha no meu braço; era sua forma de dizer “Eu sei”.

— Digo, na verdade só tive sorte — continuou ela após um momento. — Conheci


Rudy quando éramos pequenos e depois o reencontrei quando ele estava
desesperado por ajuda. Se fosse de outra forma, eu jamais teria chamado a
atenção dele.

— Acho que você está sendo modesta demais… — disse Roxy com a voz um
pouco perturbada.

— Bem, eu provavelmente nem estaria aqui se não tivesse conhecido Rudy


quando era criança.

— O que você quer dizer?

— Ele me ensinou magia quando eu era jovem, sabe? É a única coisa que me
manteve viva.

Sylphie começou a contar a história de sua vida após o Incidente de


Deslocamento.

Ela teve o azar de cair do céu acima do palácio real em Asura. Ao lançar um
feitiço rapidamente, ela mal conseguiu pousar com segurança. Mas, naquele
momento, seu cabelo perdeu a cor original – possivelmente um efeito colateral
por gastar muita mana em um momento de terror.

A Princesa Ariel gostou dela, mas foi sua rara habilidade de lançar feitiços não
verbais que lhe rendeu um lugar na corte real. E quando Ariel foi derrotada por
seus rivais políticos, essa mesma habilidade permitiu que Sylphie lutasse
contra dezenas de assassinos enquanto fugiam.
Da forma como ela disse, minha magia era a única coisa que a manteve viva
durante esse tempo todo.

— Na época em que eu trabalhava como maga guardiã da Princesa Ariel, um


pensamento sempre passava pela minha cabeça: Se eu não soubesse usar
magia, provavelmente teria me tornado uma escrava.

Enquanto ela falava, imaginei o quão diferente minha vida teria sido se eu não
tivesse conhecido Roxy ou Sylphie quando ainda era jovem.

Se não fosse por Roxy, eu não teria coragem de deixar aquela casa por vários
anos. Eu estava muito confiante disso. Se eu nunca tivesse dado um passo
para fora – nunca tivesse conhecido Sylphie – poderia ter sobrevivido ao
Incidente de Deslocamento? Eu poderia ter feito meu caminho através do
Continente Demônio?

Bem, se eu nunca tivesse conhecido Sylphie, não teria sido enviado para a
cidade de Roa. Ou seja, não teria conhecido Eris ou Ghislaine. Meus pais talvez
acabassem me enviando para a escola. Eu em algum momento chegaria a um
limite com minha magia, então poderia acabar pedindo para que me
mandassem para a Universidade de Magia de Ranoa.

Em outras circunstâncias, Paul poderia ter aprovado isso, em vez de me dizer


para esperar até fazer doze anos. Mas, claro, eu não teria encontrado Sylphie à
minha espera em Ranoa. Ela também não me seguiria.

Talvez eu acabasse na mesma classe que Linia e Pursena e me apaixonasse


por uma delas. Quando nos formássemos, eu voltaria para a Grande Floresta e
viveria com o povo-fera.

Bem, não… o Incidente de Deslocamento eventualmente ocorreria, então eu


provavelmente teria voltado correndo para minha casa em Asura.

De qualquer forma, minha vida poderia ser completamente diferente.

Ainda assim… não pude deixar de sentir que teria topado com Sylphie em algum
lugar. E me apaixonaria por ela, é claro.

Sim, isso com certeza estava predestinado pelas leis da causalidade!

Ou apenas “destino”, se preferir. Que seja.

— Minha vida mudou completamente no dia em que conheci Rudy — concluiu


Sylphie, encerrando sua história. — Digo… também me esforcei muito, mas
acho que tive sorte, mais do que qualquer outra coisa. Então, quando vejo
alguém como você, que mudou a vida do Rudy para melhor, e sei que os dois se
amam, bem… Não quero que ele perca isso por minha causa, sabe?
Provavelmente não tenho o direito de contestar, sendo que acabei de chegar
aqui… Desculpe, não sei como explicar isso.

— Tudo bem — disse Roxy calmamente. — Bem, entendo o que você está
tentando dizer. E fico… muito feliz por você ter uma opinião tão elevada a meu
respeito.

Não pude ver o rosto de Roxy, já que ela estava sentada na frente. Mas pude
ver que seus ombros tremiam um pouco.

Estiquei meus braços e puxei ela e Sylphie para um abraço.

— Rudy…

No meu antigo mundo, escolher Roxy implicaria em perder Sylphie. E poderia


ter sido da mesma forma neste mundo, se não fosse pela decisão de Sylphie de
me perdoar.

A única pessoa de sorte aqui era eu.

Dado meu histórico nada ideal como marido, prometer que as amaria para
sempre soaria como algo vazio.

Em vez disso, teria que falar com minhas ações.

Assim que chegamos em casa naquela noite, reservei um tempo para repassar
o que tinha aprendido na lição do dia sobre magia de nível Rei.

Relâmpago era um feitiço complicado, mas o conceito básico era simples:


Espalha uma grande quantidade de mana por todo o céu, depois a concentra
em um local e a joga em um alvo.

Fisicamente falando, criava as nuvens de tempestade e depois disparava um


relâmpago. Simples assim.

Parando para pensar, Cumulonimbus e Relâmpago eram essencialmente duas


partes de um mesmo feitiço.

Seu poder destrutivo era o maior dentre todos aqueles que eu conhecia. Mas
isso era natural. Eu não conhecia nenhuma magia que exigisse mais mana
bruta do que Cumulonimbus, e Relâmpago concentrava toda essa energia em
um único ponto.

Até o momento, meu Canhão de Pedra costumava ser o feitiço mais letal em
meu arsenal, mas desta vez podia ter sido superado. Com tantos quebra-
cabeças na ponta dos dedos, poderia me lançar ao futuro que quisesse.

Mas, sério.
Embora o nome desse feitiço fosse Relâmpago, o verdadeiro segredo por trás
de seu poder estava na etapa de compressão de mana. Fiquei curioso para
saber se quaisquer feitiços de nível Rei de outras disciplinas poderiam ser
aplicações da mesma técnica básica.

De qualquer forma, agora que tinha lançado o feitiço uma vez, seria capaz de
usá-lo não verbalmente no futuro.

Na próxima vez que o usasse, tinha quase certeza de que poderia acelerar as
fases de formação e compressão de nuvens e soltar o relâmpago muito mais
rápido do que antes. Mas, embora eu estivesse planejando praticar, não tinha
certeza se teria muitas chances de colocar esse feitiço em uso prático. Afinal,
se eu estivesse contra um único alvo, meu Canhão de Pedra geralmente seria
mais do que suficiente.

No geral, Relâmpago era um feitiço exagerado. Seria mais útil se eu pudesse


encontrar uma forma de reduzir o seu poder.

Com esse pensamento em mente, comecei a brincar um pouco em uma escala


muito menor. E após vários experimentos fracassados, descobri uma forma de
gerar uma forte corrente elétrica.

O método envolvia lançar um minúsculo feitiço Cumulonimbus não verbal,


comprimi-lo e disparar um Relâmpago na direção do meu alvo. Isso resultou
em um pequeno raio de eletricidade que pode ser direcionado com
considerável precisão. Sua voltagem parecia ser bastante baixa, então o dano
que causava não era muito excessivo.

Eu não tinha certeza de como isso funcionava, mas poderia ser útil.
Provavelmente não seria adequado para combates a curto alcance. Poderia
acabar tomando um choque junto com o alvo. Vendo pelo lado bom, não
causaria nenhum dano duradouro. Na pior das hipóteses, ficaria incapacitado
por um tempo. Mas existiam muitos outros feitiços mágicos de ataque
que não apresentavam o risco de ferir o próprio lançador.

Ainda assim, parecia que valia a pena tentar refinar isso. Eu poderia usar um
feitiço projetado para atordoar alguém, e não para matar. Relâmpago se
ramificaria no ar para atingir o alvo, então seria impossível evitá-lo. E o choque
poderia até ser eficaz em incapacitar alguém protegido por uma aura de
batalha. Eu não tinha ninguém em quem testar isso no momento, mas se
Badigadi voltasse, eu poderia pedir a ele para ser minha cobaia.

De qualquer forma, tirar isso da manga contra um inimigo mais poderoso


poderia ser uma boa surpresa.

A propósito, embora esse feitiço fosse apenas uma forma minúscula de


Relâmpago, decidi chamá-lo de Elétrico para poder distinguir os dois.
Que dia produtivo que foi esse!

Lendas da Universidade #6: O Chefe tem uma personalidade elétrica.


Cap. 07 – A Cerimônia de Casamento

Eu estava planejando dormir sozinho na noite em que me tornei um Rei da


Água. Principalmente porque Roxy e Sylphie estavam cansadas, então não
parecia ser hora para romance. Eu também estava um pouco cansado, mas
sabia que não seria capaz de manter minhas mãos longe se fosse para a cama
com qualquer uma delas, então decidi que dormiríamos em quartos diferentes.

Quando mencionei isso a Aisha, porém, ela insistiu em dormir comigo. Esse
tipo de coisa já aconteceu muitas vezes antes. Nunca a convidei ativamente,
mas quando ela pedia para dormir comigo, eu não recusava. Não havia nenhum
motivo para negar, então dei minha permissão a ela.

Claro, esse seria o tipo estritamente platônico de dormir. Enquanto Aisha


comemorava, percebi que Norn estava olhando com algo que parecia inveja em
seus olhos. Norn já estava aqui esta noite. Conhecendo-a, provavelmente não
há muito sentido em sugerir que se juntasse a nós.

Essa foi minha suposição, pelo menos. Mas quando perguntei por educação,
Norn realmente aceitou.

Acabei imprensado entre minhas irmãs naquela noite. Aisha estava deitada à
minha direita e Norn ficou à minha esquerda. Em pouco tempo, estavam
roncando com a cabeça apoiada em meus braços.

Aisha era uma coisa, mas fiquei um pouco perplexo por Norn ter concordado.
Seu rostinho pacífico também não estava me dando nenhuma pista. Talvez
fosse sua maneira de me dizer que me aceitou como uma espécie de pai
substituto. Eu confio em você o suficiente para dormir com você, ou algo assim.
Talvez.

Eu estava preso no lugar com meus braços estendidos, mas me senti


profundamente feliz naquele momento.

Era quase como se eu tivesse encontrado uma parte de mim que estava
faltando. Assim como um pássaro precisa de duas asas, talvez um homem
precise de duas irmãs em seus braços.

Esse pensamento deu origem a uma ideia que me deu um choque na espinha.

Cara, eu quero fazer um ménage à trois com a Sylphie e a Roxy.

Era a voz do demônio, sem dúvida, sussurrando essas palavras em meu ouvido.
Alguma cobra malvada, com a língua tremulando sugestivamente, estava
fazendo o possível para me desencaminhar.
Eu não poderia me permitir continuar pensando sobre isso.

Em teoria, era algo que me interessava há muitos anos. Mas, na prática, não
tinha ideia de como começaria a conversa. Ambas me amavam, mas isso não
significava que ficariam confortáveis com um pedido como esse.

Eu poderia aceitar um “não” como resposta, é claro, mas e se até mesmo


perguntar a elas destruísse nosso relacionamento?

Não achei que fosse possível, mas não pude deixar de me preocupar com isso.

Não era como se eu estivesse insatisfeito com nosso acordo atual. Afinal, eu
estava passando noites alternadas com duas mulheres lindas.

Além do mais, eu estou apaixonado pelas duas. Uma já tinha me dado um filho.
Do que eu tenho para reclamar? Nada, é isso.

Então… queria tentar dormir com as duas ao mesmo tempo.

Parte disso era porque ambas abordam a questão de maneira muito diferente.

Sylphie era um pouco submissa. Como regra geral, ela fazia tudo que eu pedia
na cama. Quando sugeria que tentássemos algo novo, ela costumava abaixar
os olhos ansiosamente, mas nunca se opunha.

Isso não quer dizer que era um peixe morto. Assim que começávamos, ela
sempre se divertia. Dentro de alguns minutos estaria ofegante e se agarrando a
mim desesperadamente. Era óbvio o quanto ela queria me agradar, e isso era
adorável.

Roxy, por outro lado, era uma espécie de técnica. Ela estava constantemente
fazendo uso das coisas que aprendeu com Elinalise, tentando aumentar suas
habilidades. Quando eu pedia a ela para tentar algo, ela pensava na melhor
maneira de fazer. Quando me ofereci para fazer algo eu mesmo, ela deu todo
tipo de sugestões. Dada a diferença entre nossos tamanhos, tínhamos alguns
desafios físicos a superar, mas ela era criativa e trabalhadora o suficiente para
encontrar maneiras de contorná-los. E isso era tão adorável, à sua maneira.

Sylphie era do tipo indulgente e Roxy, uma experimentadora. Ambas eram


maravilhosas. Eu não preferia uma à outra.

Era possível que eu eventualmente começasse a aproveitar mais meu tempo


com uma delas, mas, mesmo assim, eu não planejava negligenciar a outra.
Minha intenção era tratá-las tão igualmente quanto possível.

Certo. Eu amava as duas igualmente. Então era realmente tão errado pensar em
dormir com as duas ao mesmo tempo?
Claro que a resposta era não. Qualquer homem de verdade tem interesse
nessas coisas. É simplesmente da nossa natureza!

No entanto, isso não significa que eu expressaria esses pensamentos. Às


vezes, é mais sensato manter seus desejos mais extremos para si mesmo, se
quiser manter relacionamentos saudáveis.

Esta era a razão pela qual eu nunca me permiti tocar no assunto antes.

A partir deste momento, pelo menos, eu estava confiante de que isso não iria
mudar.

Na manhã seguinte, fui ao laboratório de Cliff.

A pesquisa de Cliff era focada no desenvolvimento de implementos mágicos,


especificamente, aqueles capazes de neutralizar maldições.

Ele insistiu que eu poderia visitá-lo a qualquer momento, mas sempre que eu
aparecia, fazia questão de ouvir atentamente à porta. Dependendo dos
barulhos que ouvia lá dentro, às vezes eu me virava e saía.

Desta vez, não parecia haver nada de problemático acontecendo, então bati na
porta.

— Entre. A porta está aberta — gritou uma voz de dentro.

Entrei no laboratório e encontrei Elinalise sentada na janela. Ela estava


descansando o rosto na mão e olhando para a rua, seus longos cabelos
cacheados brilhando ao sol.

A mulher com certeza era digna quando não estava falando. Mas eu a conhecia
muito bem para ficar impressionado, ela provavelmente estava tendo
pensamentos indescritivelmente sujos.

— Você é a única em casa, Elinalise?

— Isso mesmo.

Cliff estava muito ocupado ultimamente e não tinha feito muito progresso em
suas pesquisas. Havíamos conversado por meses sobre encontrar tempo para
melhorar seus protótipos existentes usando as pedras de absorção, mas isso
ainda não tinha acontecido.

— Cliff está trabalhando nos preparativos do casamento novamente.

Esse era um dos principais motivos. Cliff e Elinalise iriam se casar.

— Eu continuo me oferecendo para ajudar — continuou ela —, mas ele está


determinado a fazer tudo sozinho.
— Tente não usar isso contra ele. Os homens podem ter orgulho dessas coisas,
sabe?

Antes de partirmos para o Continente Begaritt, Cliff prometeu à Elinalise que se


casariam quando voltássemos. Quando retornamos, ele nem tinha começado a
se preparar ainda. E não era culpa dele, de forma alguma. Dissemos que
poderíamos ficar fora por dois anos, mas acabamos voltando em seis meses.
Teria sido estranho encontrá-lo com tudo pronto e esperando.

Porém, Cliff era o tipo de cara que levava suas promessas a sério. Com notável
foco e teimosia, ele organizou tudo nos últimos meses. Em primeiro lugar,
encontrou um lugar para morar, comprou os móveis e planejou tudo de que
precisavam para se mudar. Na maior parte do tempo, cuidou de tudo por conta
própria, embora eu tenha ajudado um pouco com a caça ao imóvel. Ao
contrário de mim, ele não estava interessado em comprar uma casa; acabou
concordando em alugar um apartamento no distrito estudantil. Se ficasse
muito apertado para eles, imaginou que poderiam se mudar para um lugar
maior.

Fiquei um pouco surpreso com essa atitude, considerando que Cliff era uma
espécie de exibicionista por natureza. Mas, por outro lado, ele não estava
nadando em dinheiro no momento, então era perfeitamente razoável. Ele não
poderia ter comprado uma casa cara. Não sem a ajuda financeira de Elinalise,
pelo menos. Eu sabia que ela estava muito bem de vida.

— Ah, e sobre isso… Parabéns, Elinalise.

Eles estavam nos estágios finais. O casamento estava marcado para o próximo
mês. Algo sobre Elinalise usando um vestido todo branco parecia um pouco
estranho, mas contanto que os dois estivessem felizes, isso era tudo o que
realmente importava.

— Você se importa se eu esperar até que Cliff volte?

— Não me importo.

Elinalise estava respondendo, mas ainda nem tinha olhado na minha direção. E
então, ainda olhando pela janela, soltou um suspiro longo e profundo.

Era o tipo de suspiro que saía com suas próprias legendas: Estou muito
preocupada. Ninguém vai me perguntar o que há de errado?

— Você está tendo dúvidas sobre o casamento ou algo do tipo? — arrisquei.

— Claro que não. Cliff é tão doce e dedicado que quase sinto que não o mereço.
Eu não poderia estar mais feliz por nos casarmos.
Justo. Eu era apenas um espectador aqui, mas, pelo que pude ver, Cliff não era
nada além de amoroso e leal a Elinalise. Isso não quer dizer que fosse uma
pessoa perfeita. Ele tinha muitas falhas. Mas ainda era jovem, não tinha nem
vinte anos, na verdade. Quando se levava em consideração seu potencial de
crescimento futuro, o cara era uma verdadeira charada.

— Então, por que você continua suspirando?

— Isso não é óbvio?

— Ah, entendi.

Isso significava que era uma coisa sexual, provavelmente.

— Cliff tem estado tão ocupado que só dorme comigo duas vezes por semana!

Sim. Percebi isso.

— Isso é muito ruim, mas o que você pode fazer? Ele está fazendo tudo por
você, Elinalise.

— Sim, sim. Eu entendo, acredite em mim.

— E quando você finalmente se mudar para o seu ninho de amor,


provavelmente não vai sair por uma semana inteira, não é?

Eu estava falando por experiência própria. No momento em que voltamos do


Continente Begaritt, Elinalise e Cliff haviam se trancado aqui por dias. O
suficiente para fazer qualquer um se perguntar se tudo o que realmente
importava era o sexo. Não que eu tivesse o direito de dizer isso, dada minha
libido saudável.

— Uff… eu não posso deixar de ficar com ciúmes de você, Rudeus.

— Por que? Às vezes fico sem elas por alguns dias.

— Sim, mas você pode brincar com Sylphie e Roxy ao mesmo tempo, não é?
Estou satisfeita com Cliff, é claro, mas tenho certeza de que vocês três se
divertem muito quando estão juntos.

— Espera, o quê? Não! Não fazemos sexo a três nem nada.

— O quê, sério? É uma pena. É muito bom, te garanto. Por que você não tenta?

Ah, não! O diabo está me tentando de novo! Não dê ouvidos a ela, Rudeus. Vá
embora, Mara! Amém!

— Escandalosa! Vergonhosa! Vou fazer com que você seja banida da biblioteca,
Elinalise!
— Eu não acho que Sylphie ou Roxy se importariam, sabe.

— Fácil para você falar, mulher! E se eu destruir meus casamentos?!

— Hmm. Suponho que Roxy às vezes pode ser um pouco cabeça dura. Ela pode
não reagir muito bem se você aparecer com a ideia do nada.

— É isso que eu estou dizendo.

Sylphie tendia a concordar com qualquer coisa que eu propusesse. Era difícil
saber como ela se sentia a respeito das coisas, e às vezes eu me perguntava se
ela estava sacrificando seus próprios desejos para me agradar… mas se eu
dissesse que queria tentar, tinha certeza de que concordaria.

Só que as coisas eram diferentes com Roxy. Apesar de sua personalidade


séria, ela tinha um lado surpreendentemente inocente. Pelo que eu sabia, no
momento em que propusesse um ménage à trois, ela começaria a fazer as
malas para ir para a casa dos pais.

— Agora que você mencionou — murmurou Elinalise —, eu poderia falar com


elas sobre isso. Sabe… cimentar seu caminho.

Meu deus! É claro! Brilhante!

Roxy poderia não reagir bem se eu aparecesse com isso do nada, mas ela
estava ativamente aprendendo novas técnicas com Elinalise. Elinalise poderia
facilmente começar a inserir algumas lições sobre sexo a três no currículo. E
Sylphie também seguia cegamente os seus conselhos.

Isso era perfeito. Quase perfeito demais! Estaríamos agarrados juntos na cama
em um piscar de olhos, e eu nem teria que me sentir estranho com isso!

— Elinalise! Você é uma deusa!

Era uma auréola que vi acima de sua cabeça? Dominado pela emoção, me
curvei profundamente diante de minha salvadora.

Elinalise respondeu em um tom de voz entretido:

— Ora, ora. Quanta bajulação. Porém, não tenho certeza se realmente quero
ajudá-lo. Não é como se eu estivesse ganhando alguma coisa com a barganha.

— Guh!

Ela apareceu com a ideia e agora se recusava a me ajudar? Que mulher terrível.

Mas eu não voltaria atrás. Ela me tinha na palma da mão e sabia disso. Eu tinha
toda a força de vontade de um cavalo com uma cenoura balançando na frente
do nariz.
— Existe… alguma coisa… que eu possa fazer por você, Elinalise?

Quando olhei ansiosamente para o rosto dela, ela sorriu maliciosamente.

A mulher era mesmo uma vilã. Mesmo meus sorrisos não pareciam tão
malvados. Provavelmente.

— Bem, parece que me lembro de ouvir algo sobre um afrodisíaco raro do Reino
Asura.

— Beleza. Eu ainda tenho. Nunca tive tempo de usá-lo.

— Você se importaria de me dar? Como um presente?

Ela devia estar falando sobre aquele pequeno frasco de poção que recebi de
Luke.

Para ser honesto, nunca senti a necessidade de confiar nessas coisas. Eu tinha
mais resistência do que qualquer uma das minhas esposas, então tinha medo
de acabar as machucando se o tomasse. A ideia de fazê-las tomar aquilo
também parecia um pouco errada. Nunca descobri uma boa maneira de usá-lo.

— Como você usaria?

— Para apimentar minha noite de núpcias.

— Isso vai ser mesmo necessário?

— É uma ocasião especial, querido. Eu prefiro ter Cliff em cima de mim feito
uma besta selvagem durante a noite toda.

Às vezes me surpreendia a liberdade com que Elinalise abraçava seu próprio


tesão. Digo, não era como se Cliff estivesse constantemente andando em um
estado de excitação.

— Pergunta delicada, Elinalise, mas você já se preocupou em acabar afastando


Cliff com seu, uh… apetite?

— De jeito nenhum. Para começar, não teríamos acabado juntos se ele não
pudesse lidar com isso.

— Já considerou tentar DIMINUIR o ritmo pelo bem dele?

— Eu poderia tentar me conter, mas eventualmente explodiria. Prefiro ser


sempre honesta sobre meus sentimentos.

Essa sim era a Elinalise, isso aí.


Pensando bem nisso, Cliff também não parecia estar se forçando a
acompanhá-la. Ele fazia o possível para agradá-la, mas eu sentia que ele
conhecia seus próprios limites.

Ambos se amavam intensamente, de maneiras distintas. Parecia uma dinâmica


divertida para um relacionamento. Eu meio que invejava eles.

— Certo, tudo bem então. Temos um acordo. Vou trazer da próxima vez que
passar por aqui.

— Você é muito gentil, querido. Mal posso esperar para ver como o Cliff fica
quando não consegue mais controlar a paixão…

Elinalise começou a babar, os olhos vidrados de paixão. Eu estava começando


a me sentir um pouco preocupado pelo meu amigo, mas espero que os dois
saiam disso ainda mais próximos do que antes.

Um mês depois, encontrei-me na única Igreja Millis na cidade de Sharia.

Era um lugar majestoso e solene; não muito diferente de uma catedral cristã.
Fileiras de bancos simples ocupavam a maior parte do espaço. Na frente, o
símbolo sagrado da fé Millis estava sob um raio de luz do sol que entrava por
uma enorme janela de vidro. E diante desse símbolo, um sacerdote estava
falando de louvor a Deus.

— Santo Millis sempre irá guiá-los e cuidar de vocês.

Um homem e uma mulher estavam de frente para o sacerdote, vestindo roupas


totalmente brancas. Atrás deles, vinte e tantos espectadores olhavam em
silêncio.

— Se alguém tentar dividir você, seu escudo sagrado irá protegê-lo. Se alguém
tentar prejudicá-lo, sua espada sagrada o julgará. E se o seu amor se provar
uma mentira, sua tristeza ardente perfurará os céus.

Eu era um desses espectadores. De pé na primeira fila, na verdade, todos


vestidos com roupas elegantes ao estilo Asurano.

Sylphie estava à minha direita e Roxy à minha esquerda. Ambas usavam


vestidos formais e modestos. Não tínhamos nenhuma dessas roupas de
antemão, então saímos e as compramos para a ocasião. Eu não tinha certeza
de quando precisaríamos usá-las novamente, mas não faria mal guardar, para o
caso de precisarmos de novo.

Ariel e Luke estavam do outro lado de Sylphie, vestindo o que pareciam ser
roupas muito caras. Atrás de nós estava outra fileira de VIPs, incluindo Zanoba,
Linia e Pursena. E atrás deles, havia uma fila de convidados diversos: Ginger,
Julie e duas meninas que aparentemente eram atendentes de Ariel, entre
outros. Eu não conseguia vê-las de onde estava, mas Norn e Aisha também
estavam em algum lugar por ali.

As duas também estavam usando vestidos bonitos, mas optei por alugá-los.
Ambas eram garotas em fase de crescimento, então parecia prematuro
comprar qualquer coisa. Elas não ficaram muito satisfeitas com isso, é claro.

Havia alguns convidados que também não reconheci. Mas, sem surpresa,
Nanahoshi não apareceu.

Nos casamentos da Igreja Millis, as fileiras de convidados aparentemente eram


divididas por categorias. A primeira fila era reservada para os espectadores
mais proeminentes, bem como para os familiares mais próximos da noiva e do
noivo.

A presença da Princesa Ariel bem na frente era natural, em outras palavras. E


Sylphie era a única parente de Elinalise aqui, o que lhe rendeu um lugar. Por
outro lado, eu só estava aqui porque era o marido de Sylphie. Isso me fez sentir
um pouco deslocado.

Roxy, porém, estava em uma situação pior do que a minha. Ela estava ali como
minha segunda esposa, e a Igreja Millis não aceitava bigamia. Creio que ela
achou a situação um pouco embaraçosa, já que estava parada rigidamente no
lugar desde o início da cerimônia.

Luke disse que não havia necessidade para ficar constrangido, já que muitos
nobres Asuranos tinham várias esposas, apesar das doutrinas de sua igreja.

Eu também não acho que Roxy tinha algo pelo que se sentir culpada, só para
constar.

À medida que a cerimônia avançava, uma frase chamou minha atenção.

— Cliff Grimoire. Você jura amar Elinalise Dragonroad, e apenas ela, enquanto
vocês dois viverem?

— Eu juro amá-la até a minha morte.

Aparentemente, a Igreja Millis também tinha votos de casamento. E a escolha


de palavras de Cliff me pareceu muito pesada. Conhecendo-o, ele manteria sua
palavra, literalmente. Elinalise seria a única mulher que ele tocaria pelo resto de
sua vida.

Eu admirava esse tipo de fidelidade… mesmo que eu aparentemente não fosse


capaz de seguir.

— Elinalise Dragonroad. Você jura amar Cliff Grimoire, e apenas ele, enquanto
vocês dois viverem?
— Eu juro amá-lo por toda a minha vida.

Mas eu não tinha certeza do que pensar sobre o voto de Elinalise.

Eu sabia que ela tentaria manter sua palavra. Mas ela tinha que enfrentar sua
maldição, e também havia a questão de sua longevidade. Cliff provavelmente
morreria antes dela, e eu senti que ela eventualmente procuraria por outra
pessoa para amar. E ninguém poderia culpá-la por isso, com certeza.

Mesmo assim… era meio bizarro vê-la se casar, considerando que todo o
motivo pelo qual ela se matriculou na universidade foi para dormir com um
bando de jovens vigorosos. A vida é uma caixinha de surpresas, não é?

— O noivo pode colocar o Colar de Millis em sua noiva.

Cliff cuidadosamente aceitou um colar grande e bem ornamentado do


sacerdote. Era um adereço cerimonial padrão, supostamente feito com a
imagem de um colar que o próprio Santo Millis usou. Cada igreja tinha sua
própria cópia.

— Curve-se um pouco, Lise — sussurrou Cliff bem baixinho.

— Ah, perdão.

Elinalise abaixou ligeiramente a cabeça e Cliff ficou na ponta dos pés para
colocar o colar em seu pescoço. Não foi o momento mais gracioso. O pobre
coitado não parecia estar ficando mais alto.

— E agora, a noiva pode dar o beijo promissório no noivo — disse o sacerdote.

— É claro.

Inclinando-se lentamente, Elinalise beijou Cliff na testa, em vez de nos lábios.


Esta parte da cerimônia era baseada em uma história da vida de Santo Millis.

No dia de sua partida para o campo de batalha, Millis concedeu seu colar à sua
“Mais Amada”. Em troca, ela o beijou na testa, rezando por seu retorno em
segurança.

Mais tarde, quando Millis estava em grave perigo, sua Mais Amada ergueu o
colar dela para os céus. Comovido por sua beleza e pelas profundezas de seu
amor, Deus então intercedeu para salvar Millis.

Dizem que a história se baseia em eventos históricos reais, mas era difícil dizer
o quanto disso era literalmente verdade.

— Deus do céu, ouça meu apelo! Conceda a esses dois o dom do amor eterno e
da felicidade!

Enquanto ele falava essas palavras, o cajado de madeira do sacerdote soltou


uma brilhante explosão de luz que iluminou toda a igreja. Os recém-casados se
destacavam contra o esplendor; com suas roupas puramente brancas, parecia
até que estavam derretendo nela.

Foi um momento adorável, semelhante ao de um sonho, que pareceu durar


muito mais tempo do que realmente durou. Mesmo depois que a luz se apagou,
Elinalise e Cliff permaneceram como estavam, sorrindo um para o outro. Eles
pareciam realmente felizes. E era óbvio que continuariam assim.

Quase me senti culpado por pensar “Huh. Então esse cajado é um instrumento
mágico, certo?” em vez de aproveitar o espetáculo. Talvez eu estivesse ficando
um pouco pragmático demais.

Com a cerimônia encerrada, os convidados saíram em fila da igreja enquanto


os recém-casados observavam. Foi um evento bastante curto, considerando
todas as coisas. Seu propósito era apenas provar seu amor mútuo a Deus,
conosco servindo como testemunhas. Não houve recepção nem nada.
Membros da nobreza provavelmente aproveitariam a oportunidade para uma
festa posterior, mas Cliff infelizmente era apenas um estudante.

Ainda assim, se Badigadi estivesse presente, eu tinha a sensação de que ele


teria exigido em voz alta que fizéssemos um banquete. E eu estava com
vontade de comemorar pelo menos uma vez. Afinal, era uma ocasião feliz.

— Foi incrível!

— A noiva estava tão linda!

Aisha e Norn também estavam de bom humor. Elas estavam conversando


animadamente sobre a cerimônia desde que saímos da igreja. Ninguém nunca
teria imaginado que existia tensão entre elas.
Pensando bem, eu não as tinha visto brigando recentemente. Na verdade, elas
estavam se dando bem.

— Os casamentos Millis são tão românticos, não são?

— Sim! Eu quero usar um vestido assim!

Enquanto minhas duas irmãs conversavam longe, eu olhei para elas


furtivamente.

Eu podia ver Norn se apaixonando por alguém e algum dia colocando seu
próprio vestido todo branco. Não era o mais agradável dos pensamentos. Eu
teria que dar ao sortudo um soco no rosto como seu presente de casamento.

Aisha, porém… eu não tinha tanta certeza sobre ela. Era difícil imaginá-la
fugindo para se casar. Talvez passasse a vida inteira como criada da família.

— Acho que garotas sonham com esse tipo de cerimônia, hein? — falei, virando-
me para Sylphie.

— Bem, claro. Mas não estou reclamando! — respondeu ela com um sorriso. —
O nosso foi bom da sua própria maneira. Eu gostei de como foi íntimo.

Claro, se ela quisesse sua própria cerimônia de casamento adequada,


poderíamos fazer algo semelhante. Não éramos fiéis da Igreja Millis, seria mais
uma imitação do que qualquer outra coisa. Cliff provavelmente concordaria em
oficiar se eu me ajoelhasse e implorasse um pouco.

E eu também não hesitaria em me humilhar pelo bem de Sylphie. Um bom


homem coloca sua esposa acima de sua dignidade.

—…

Alguém silenciosamente puxou minha manga esquerda. Virei para me deparar


com Roxy olhando para mim.

Ela tinha colocado um pouco de maquiagem para a ocasião, o que realçava sua
beleza. O rubor em suas bochechas parecia ser puramente natural.

— Você quer ter uma cerimônia de casamento, Roxy?

Nós dois nunca tínhamos celebrado formalmente o nosso casamento. O


momento teve muito a ver com isso, afinal, tínhamos acabado de anunciar a
morte de Paul. Mas, além disso, os Migurd não tinham tradição de cerimônias
matrimoniais. Roxy me disse desde o início que isso não seria necessário.

Ainda assim, não teria me surpreendido se ela tivesse mudado de ideia depois
de hoje.
— Não, isso não será necessário. Mas, uh… tente ler nas entrelinhas, pode ser?

Com isso, Roxy fechou os olhos e ficou na ponta dos pés.

Eu não tinha certeza do que motivou isso, mas não estava prestes a deixar
passar um convite tão delicioso. Pegando Roxy pelos ombros, puxei-a para
perto e beijei-a na testa.

— O qu…

— Desculpe. Hoje sua testa está particularmente adorável.

— É-É…? Hee hee.

Roxy pareceu um pouco confusa no início, provavelmente por causa de onde eu


beijei. Mas assim que a elogiei, um grande sorriso bobo se espalhou por seu
rosto.

A mulher era realmente fácil de manipular. Mas isso era apenas outra parte do
que a tornava charmosa.

Beleza, acho que já me decidi. Esta noite tem que ser a Roxy…

— Rudy, também quero!

Agarrando-se ao meu braço direito, Sylphie empurrou a cabeça em minha


direção, cheia de expectativa.

Eu, naturalmente, não iria desapontá-la. Por que hesitaria em dar um beijo na
testa de uma linda mulher?

— Hee hee hee…

Apesar de ter iniciado o beijo, Sylphie pressionou a mão na testa e soltou uma
risadinha envergonhada.

Ela tem que ser tão fofa o tempo todo? Gah. Agora eu quero dormir com ela esta
noite! Mas a Roxy também…

Hmm. E as duas ao mesmo tempo?

Eu não tinha certeza se Elinalise já tinha preparado o terreno para mim. Fazia
um tempo desde que conversei com ela, e já fazia algum tempo que eu tinha
entregue o afrodisíaco.

Talvez não fizesse mal tentar…

— Rudeus, você poderia tentar se controlar? — disse Norn, interrompendo


minha sessão de malícia. — Estamos em público.
O olhar em seu rosto transmitia claramente a parte não dita de sua
mensagem: Acabei de ver um casamento muito bom, mas sua degeneração está
matando o clima. Eu entendi como ela se sentia. Não era muito divertido ver seu
irmão seduzindo uma mulher, quanto mais duas de uma vez.

— Ah, alguém está com ciúmes?

— O qu… Gah! Pare com isso!

A título de desculpa, dei um grande abraço em Norn e dei um beijo em sua


testa. Corando, ela se afastou e começou a furiosamente esfregar o local onde
meus lábios a tocaram.

Que visão esplêndida.

—…

Aisha percebeu tudo isso com uma expressão extremamente invejosa. Era
óbvio que ela queria ser incluída, mas temia que eu pudesse recusar. Não que
ela tivesse motivos para se preocupar, é claro.

— Aisha!

Com minha melhor tentativa de mostrar um sorriso caloroso e amoroso, me


virei para ela e abri bem os braços.

— Rudeus!

Com o rosto brilhando de alegria, Aisha saltou na minha direção. Depois de


receber seu beijo na testa, ela se aconchegou contra mim igual um gatinho
feliz. Fwahaha! Venha. Sofra em meu abraço!

Entretanto, eu não poderia dizer que aprovava ela entrelaçar as pernas nas
minhas assim em público. Ela estava usando um vestido, então provavelmente
estava expondo sua calcinha.

— Aisha, solte a minha perna. Você está de vestido, lembra? Estou supondo que
você não queira mostrar para todo mundo na rua.

— Tá! Entendi!

Pulando para longe de mim com um sorriso satisfeito, Aisha voltou a trotar pela
rua.

O que eu faria com ela? É verdade que ela tinha apenas onze anos, o que a
tornava uma criança. Mas, infelizmente, existem alguns cavalheiros por aí que
consideram qualquer pessoa com mais de dez anos como zona neutra. Eu
precisava que ela fosse mais cuidadosa.
—…

Ao sair atrás de minha irmã, um pensamento esquisito surgiu em minha


cabeça.

Em uma carta que escreveu há algum tempo, Paul sugeriu que celebrássemos
assim que nossa família se reunisse. Eu pretendia fazer algo nesse sentido,
mas de alguma forma seis meses se passaram sem que isso acontecesse.

Também não tínhamos feito uma festa para Aisha e Norn no quinto ou décimo
aniversário. Me senti culpado por isso, especialmente porque ganhei uma
grande festa na idade delas.

É sempre bom ter alguém comemorando por você, né?

Sim, beleza. Vamos fazer uma festa.

Lendas da Universidade #7: O Chefe é um figurão.

Cap. 08 – Um Homem Sortudo

Certo dia, umas duas semanas depois do casamento de Cliff com Elinalise, fui
para a cidade com Sylphie e Roxy.

Nosso objetivo era comprar presentes de aniversário para Norn e Aisha. Decidi
fazer uma festa surpresa para elas, o que significava que precisávamos
preparar tudo sem que elas descobrissem.

Havia outra razão pela qual arrastei minhas duas esposas comigo, mas
falaremos disso mais tarde.

Estávamos no meio da temporada de colheita, e a cidade fervilhava de


atividade. Cavalos puxando carruagens roncavam pelas ruas em todas as
direções e os vendedores de frutas e vegetais estavam todos sorridentes. A
comida era mais barata nesta época do ano, e também mais fresca e saborosa.

O festival da colheita também estava chegando, como evidenciado pelo grande


palco de madeira que tinha sido erguido no meio da praça central da cidade.

Não era o evento mais bem elaborado. Envolvia fogueiras nas ruas, grandes
panelas de ensopado com todos os tipos de ingredientes e muita bebida
barata. As pessoas se reuniam ao redor do fogo para comer, beber e expressar
sua gratidão pelas bênçãos da terra. Não havia nenhum outro grande evento
que eu conhecesse. Mesmo sem canto ou dança.

Ainda assim, contanto que levasse a própria panela, poderia pegar ensopado de
graça. Aisha aparentemente tinha aproveitado isso no ano passado, enquanto
eu estava fora. Ela não ficou muito impressionada. Eles meio que jogavam as
coisas, então o sabor não era nada demais.

Espero ter a chance de experimentar por mim mesmo este ano. Mesmo se
fosse nojento, ainda poderia ser interessante à sua maneira.

— Parece que hoje o dia está bem animado — disse Roxy, olhando ao redor com
curiosidade.

— Sim, sempre é — disse Sylphie. — Muitas pessoas vêm à cidade nesta época
do ano.

Além dos mercadores que andavam por todo lugar, havia muitos alunos nas
ruas, olhando dentro dos estandes e bancas. Às vezes, passávamos por
fazendeiros empurrando carrinhos de mão cheios de vegetais ou aventureiros
discutindo sobre quem bateu no ombro de quem. Sharia era a maior cidade da
região, mas só era barulhenta nesta época do ano.

Além disso, eu estava percebendo um número incomum de gente-fera nas ruas.


A maioria eram homens que pareciam durões, carregando grandes espadas em
forma de facão. Eles tinham seu próprio “festival” acontecendo no momento,
por acaso. Linia e Pursena estavam entrando no cio ao mesmo tempo, então os
jovens lutadores mais corajosos viajaram de todo o mundo para competir por
elas. Este ano, as duas os enfrentariam de frente. Acho que pensaram que era
hora de encontrarem maridos.

Em uma quebra de tradições do povo-fera, elas declararam que escolheriam


seus companheiros pessoalmente entre aqueles que as vencessem. No
mínimo, queriam um Santo da Espada, um mago de nível Avançado ou um
aventureiro de rank A. Além disso, seu pelo precisaria ser brilhante, suas
orelhas eretas e sua cauda reta. Ah, e teria que ser um guerreiro selvagem e um
cavalheiro atencioso. Sendo sincero, os padrões delas me parecem irrealistas.

Com sorte, encontrariam alguém legal… tipo eu.


À minha direita, estava Sylphie. À minha esquerda, estava Roxy. Uma mulher de
cada lado, o sonho de todo homem!

— Olá, Srta. Sylphiette, Srta. Roxy. Tenho uma proposta para vocês.

— E qual seria, Senhor Rudeus?

— Fale.

— Que tal andarmos de braços dados?

Tive essa ideia de repente, mas era uma espécie de extensão do meu
pensamento anterior. O verdadeiro “sonho” era andar por aí com duas mulheres
agarradas aos seus braços, mostrando o quão popular você era.

Eu tinha visto alguns homens assim na minha vida anterior, e sempre me deu
vontade de vomitar. Mas, no fundo, eu queria ser igual a eles. Eu queria fazer o
que estavam fazendo!

— Tudo bem.

— Claro…

Sylphie imediatamente agarrou meu braço direito. Roxy hesitou um pouco e


então pegou o meu esquerdo.

O dia finalmente havia chegado. Eu renasci! Agora era a minha vez de receber e
suportar os olhares de ciúmes das pessoas. E como era maravilhoso!

Olhando ao redor, porém, percebi que os mercadores estavam ocupados com


seus afazeres, e os guerreiros do povo-fera estavam correndo para a
Universidade. Alguns dos alunos na multidão estavam olhando em nossa
direção, mas desviaram o olhar rapidamente. Os aventureiros locais poderiam
ter me zoado se estivéssemos em uma taverna ou algo do tipo, mas não
pareciam entediados o suficiente para isso. No geral, eu estava recebendo
muito menos atenção do que esperava.

Mesmo assim, fiquei profundamente satisfeito com a experiência.

Por quê, me pergunta? Bem, estava experimentando algumas sensações


agradáveis nos braços. Sylphie estava pressionando algo contra ele, de uma
forma que antes não era capaz. Não precisa de timidez, não é? Estou me
referindo ao peito dela.

Eu, Rudeus Greyrat, estava andando pela cidade com os seios de uma mulher
pressionados contra meu braço. Este simples fato era o suficiente para me
encher de alegria. O solo outrora estéril do meu coração, alvejado por uma
adolescência miserável, estava florescendo com vida!
Eu não poderia ficar neste oásis para sempre. Em breve, essas nuvens
almofadadas de prazer voltariam ao seu tamanho legítimo e mais modesto.
Mas isso não os tornava menos reais. Eram as lendárias ilhas do tesouro, e eu
as havia encontrado!

E essa alegria não vinha apenas de Sylphie. Roxy, à minha esquerda, também
pressionava seu peitinho contra mim. Seus seios eram pequenos,
mas existiam. Eu podia sentir sua maciez distinta contra os músculos do meu
braço. Eles eram suaves o suficiente para herdar a Terra!

Isso era realmente esplêndido. Eu disse algumas palavras silenciosas de


agradecimento aos músculos de meus braços; se não fosse por sua dureza, eu
não teria apreciado essa suavidade tão plenamente.

Ha ha, não fique com ciúmes, Hércules, o Bíceps! Você também é maravilhoso!

— Gnuh huh huh.

Hmm. Eu não queria rir assim, mas acabou acontecendo.

Como já mencionei, o objetivo de nossa saída era escolher presentes para


minhas queridas irmãzinhas. Porém, esse não era meu único objetivo.

Outro dia, Elinalise finalmente deu a notícia que eu esperava ouvir.

— Suavizei as duas para você, Rudeus. Você só precisa levar elas para um
encontro, criar um bom clima e depois as levar para uma pousada elegante.

Isso mesmo, meus amigos. Era o dia. Eu ia dormir com minhas duas esposas
ao mesmo tempo!

Estava fervendo de ansiedade. Eu seria capaz de satisfazê-las? Mal podia


esperar para tentar!

— Rudy? Uh, Rudy?

A voz de Sylphie me trouxe de volta à realidade.

Opa. Acho que estava fantasiando um pouco…

— Você está babando — disse Roxy, enxugando meu rosto com um lenço. —
Você já está com fome?

Eu claramente precisava prestar um pouco mais de atenção. Esperava que


tudo terminasse com um ménage à trois, sim, mas não iria ser descuidado
quanto ao encontro em si.

Escolheríamos os presentes de Norn e Aisha com cuidado. E, depois disso, eu


iria me certificar de que ambas aproveitassem o passeio.
Tudo isso era igualmente importante.

— Desculpa — falei com um sorriso, renovando meu foco nas tarefas em mãos.
— Acho que estava perdido em meus pensamentos.

Escolher os presentes era a principal atividade do dia. Decidimos dar uma volta
por toda a cidade e tomar o tempo necessário para se decidir.

Nossa busca começou no Distrito das Oficinas. Poderia encontrar todos os


tipos de ferramentas e implementos mágicos nesta área da cidade. Claro,
também havia muitos objetos encantados à venda no Distrito do Comércio,
mas eram produtos amplamente testados e refinados com preços muito altos.
No Distrito das Oficinas, teria uma gama mais eclética, incluindo protótipos e
experimentos produzidos por criadores iniciantes.

Na maioria das vezes, seus efeitos não eram grandes coisas, pareciam mais
brinquedos do que qualquer outra coisa. Mas às vezes quando se vasculhava
em uma pilha de lixo pode encontrar uma obra-prima de um inventor que logo
se tornaria famoso.

Ou pelo menos foi o que Roxy me disse. Uma de suas antigas colegas de
classe da Universidade tinha participado de uma dessas oficinas como
aprendiz, então ela sabia algumas coisas sobre a área. Infelizmente, eles se
mudaram para uma cidade diferente.

Roxy não parecia muito otimista sobre nossa missão.

— Para ser honesta, não acho que encontraremos algo que as duas gostariam
aqui — disse ela, mas estava verificando os implementos mágicos com grande
interesse.

Naturalmente, eu também não esperava encontrar um presente adequado para


Norn ou Aisha. O motivo pelo qual fomos ali era para encontrar um presente
para Roxy.

Apesar de sermos formalmente casados, eu nunca celebrei isso com ela. Ela
não queria uma cerimônia de casamento, mas ainda assim poderíamos ter uma
festa. Meu plano era combinar esse evento com a celebração do aniversário de
Aisha e Norn.

Roxy não sabia sobre essa parte, é claro. Também era uma surpresa.

Ela pensou que estava por dentro de tudo, mas eu estava jogando um xadrez de
cinco dimensões! Se ela manifestasse interesse em alguma coisa à venda, eu
planejava sair furtivamente e comprar alguns dias depois.

Claro, implementos mágicos podiam ser muito caros. No momento, o


financiamento de nossa família vinha de quatro fontes principais: os salários
de Sylphie e Roxy, os royalties daquele pergaminho que Nanahoshi me deu e o
dinheiro que ganhamos naquele labirinto.

Em particular, o dinheiro do Labirinto, minha herança de Paul, em certo sentido,


poderia ter me mantido confortável por sólidos trinta anos ou mais se eu fosse
solteiro. Não era o suficiente para me deixar descansar pelo resto da minha
vida, mas era uma garantia muito boa.

Não havia como saber quando precisaríamos gastar muito dinheiro de uma só
vez, então eu estava fazendo o possível para não gastar nosso dinheiro
descuidadamente. Acontece que, para um presente de casamento, eu estava
mais do que disposto a gastar minhas economias.

Porra, se Roxy dissesse algo como “Quero dirigir um Porsche”, eu compraria


um para ela. Não parecia haver nenhuma concessionária de carros de luxo na
Cidade Mágica de Sharia, portanto, talvez eu tenha que me contentar em
desenhar o logotipo na testa do Tu.

— Este pote que congela o que tem dentro quando você o alimenta com mana
parece útil. Talvez Aisha goste disso.

— Hmm. Tenho a sensação de que ela prefere coisas fofas, para ser bem
sincero.

— Ah… é mesmo. Acho que não devemos dar algo que ela vá usar no trabalho…

Observei Roxy como um falcão enquanto ela conversava com Sylphie.

Até o momento, eu não tinha notado seu desejo por nada em particular. Ela
parecia totalmente focada em escolher um presente para minhas irmãs, ao
invés de encontrar algo para si mesma.

— O que você acha, Rudy?

— Acho que seria maravilhoso lamber seu rosto igual um cachorro, Roxy.

— Você pode tentar levar isso a sério? Foi você quem sugeriu o passeio, sabe.

Claro, eu também estava pensando nos presentes de Aisha e Norn. Mas o que
estava à venda nesse lugar simplesmente não fazia o estilo delas.

Depois de um tempo, fomos para o Distrito do Comércio. Nosso destino era a


loja de roupas favorita de Sylphie. Comprei meu robe atual nela, e também era
o meu lugar ideal para encontrar presentes.

— Uou. Você faz compras em algumas lojas bem chiques, entendi…


Roxy hesitou um pouco fora da loja, então olhou para seu próprio robe com
uma expressão incerta. Será que eu devo dizer a ela que não havia um código
de vestimenta?

— Hein? — disse Sylphie. — É realmente tão chique?

Ela parecia genuinamente perplexa. Como regra geral, ela só comprava suas
roupas em estabelecimentos bastante caros. Não era como se Sylphie fosse
descuidada com seu dinheiro ou algo do tipo. Ela passou muitos anos
acompanhando Ariel. As pessoas tendem a adquirir os hábitos de compra de
seus amigos mais próximos, acho.

Eu tinha certeza de que ela entendia que este lugar era de certa forma caro.
Provavelmente parecia a melhor opção entre as lojas que ela conhecia.
Afinal, chiqueza é um termo relativo.

— Bem, não. Acho que a família Greyrat pode fazer compras aqui. É que… eu
não costumo visitar lojas tão legais.

— O-Oh… huh. Então acho que é meio chique — disse Sylphie em um tom
desanimado, suas orelhas ligeiramente caídas. — Hmm, Rudy? Não estou
gastando muito dinheiro, estou?

— Não se preocupe, Sylphie. Está tudo bem.

Além de tudo, ela pagou as roupas que comprou com seu próprio salário. Eu
não tinha o direito de reclamar sobre como ela gastava seu dinheiro.

— Eu realmente não estava tentando sugerir isso! — disse Roxy. — Eu mesma


fazia compras em lojas como esta, quando era uma maga real em Shirone. E
parece um lugar perfeito para encontrar algo especial para um presente de
aniversário.

— Ah, sim. Exato. É uma ocasião especial, então… sim…

Essa sim é a minha mestra. Ela sabe quando mudar para a ofensiva. Melhor
continuar com isso…

— Sabe, na verdade, não acho que haja algo de errado em comprar roupas
caras para você — falei com um sorriso.

Sylphie fez beicinho para isso.

— Então você realmente acha que são caras!

— U-Uh, maldita língua. Eu quis dizer elegantes. Roupas elegantes.

— Ugh. Afinal, devemos ir para outro lugar…? As outras lojas que conheço são
ainda mais caras…
— Não será necessário. Vamos comprar aqui.

Originalmente, Sylphie mal tinha roupas para si. Ela começou a se vestir para
mim. Para não dizer muito, eu não tinha motivo para reclamar disso.

Este lugar era meio caro para meus padrões pessoais, sim. Mas isso era só
porque eu me acostumei a comprar coisas baratas quando era um aventureiro
errante.

Eu estava disposto a ajustar meus padrões para algo superior. Contanto que
ainda pudéssemos pagar, claro.

No momento em que entramos na loja, um funcionário trotou para nos


cumprimentar. Acho que em lugares assim criavam o hábito de se lembrar de
seus clientes.

— Ora, ora, se não são os Greyrats! É tão bom tê-los de volta ao nosso
estabelecimento! O que podemos fazer por vocês hoje?

— Ah, só estamos dando uma olhadinha — falei. — Procurando comprar


presentes para duas crianças, ambas com dez anos.

— Entendi! Por que não vêm por aqui, então?

Instantaneamente, o funcionário nos conduziu a uma seção da loja só de


roupas infantis. Pelo visto, o treinamento dos funcionários deste
estabelecimento era mesmo bom.

A seção infantil não era menos chique do que o resto do lugar. Tinham uma
grande variedade de roupas em exibição, incluindo tudo, desde roupas casuais
a robes e vestidos.

O décimo aniversário era considerado algo bem importante, então as pessoas


provavelmente compravam muitas roupas formais para crianças em torno
dessa idade.

— Meu deus, são tantos estilos diferentes. Eu nem tenho certeza de por onde
começar.

— Bem, logo será inverno, não é? Será que algo quente seria bom?

Roxy e Sylphie começaram a examinar as roupas na mesma hora. Parecia que


estavam se divertindo. Um grande contraste com uma certa ruiva cuja atitude
em relação às roupas era “Ugh, qualquer coisa serve!”

— O que você acha, Rudy? — perguntou Sylphie, voltando-se para mim.

— Bem, o casaco de inverno de Norn está ficando um pouco pequeno para ela.
Ela pode estar procurando por um novo — sugeri.
As duas assentiram com a cabeça.

— Beleza, talvez um casaco para ela, então… Mas o que devemos dar para
Aisha?

— Ah. Ela estava reclamando outro dia que seus sapatos estão ficando
apertados — disse Roxy.

— Sapatos novos! Boa ideia. Vamos ver o que podemos encontrar!

Tendo estreitado consideravelmente nosso foco, começamos a navegar pelas


mercadorias a sério. Graças a todas as diferentes opções em oferta, não
demorou muito para encontrar presentes que se encaixassem no estilo das
minhas irmãs.

Para Norn, optamos por um casaco de cores vivas. Para Aisha, escolhemos um
par de botas com uma estampa de flores lindamente costurada. Ambos eram
um pouco grandes, mas isso não parecia um problema. Afinal, minhas irmãs
eram duas garotas em fase de crescimento.

Com nosso trabalho principal terminado, ficamos andando sem rumo pela loja.
Não era como se tivéssemos que nos limitar a um único presente. E o mais
importante, eu ainda estava procurando um presente perfeito para Roxy,
mesmo que eu mantivesse essa parte em segredo, é claro.

— Esses corsages de tecido são legais. Será que Aisha iria gostar? — falei,
estudando uma cesta de pequenos buquês intrincados.

— Talvez. Ela adora flores — disse Sylphie.

— Sim… mas eu não tenho certeza se uma criança gostaria desse tipo de coisa.

— Pensando bem, eu realmente não sei de que tipo de coisas a Norn gosta…

— Hmm, boa questão. Ela não fala sobre seus gostos com muita frequência.
Pelo menos não perto de mim.

— Norn tem gostos um tanto masculinos, eu acho — disse Roxy. — Ela gosta de
espadas, armaduras, cavalos… esse tipo de coisa.

— Espera, sério? Como sabe disso?

— Bem, tenho tentado conhecê-la melhor, então…

Roxy parou abruptamente em seu caminho, parando no meio da frase.

Seus olhos estavam fixos em uma determinada roupa. Era um robe de mago,
completo e com chapéu, exibido com destaque em um estande próximo. O
robe era do tamanho de um homem adulto, então não tinha chance de caber
nela. Ainda assim, ela olhou fixamente. Mais especificamente, para o chapéu.

Depois de um momento, ela tirou o próprio chapéu e começou a estudá-lo com


uma expressão de conflito.

Era claramente um chapéu velho. Tive a sensação de que era exatamente o


mesmo que ela usava como minha tutora em Buena Village. Não estava
exatamente se desfazendo nas costuras, e sua coloração preta escondia um
pouco do desgaste, mas poderia dizer que havia passado por muitas batalhas.

Depois de colocar o chapéu de volta, Roxy cuidadosamente se espreguiçou e


tirou o outro do suporte. Ela o girou, encontrou uma etiqueta de preço e fez
uma careta; um instante depois, o colocou de volta.

Aparentemente, não era barato.

Com um suspiro audível, ela se virou para se juntar a nós. Estava claro que já
tinha deixado isso de lado.

— Ei, Rudy…

Sylphie em algum momento se aproximou de mim.

— Vamos continuar.

— Boa ideia.

Parecia que nós dois tínhamos pensado o mesmo. Encontramos o presente de


Roxy.

Um pouco depois, compramos o casaco de Norn e as botas de Aisha e saímos


da loja. Eu também comprei o chapéu para Roxy em segredo.

Iríamos buscar a mercadoria no dia da festa. Felizmente, a loja nos prometeu


embrulhar e guardar.

Eu estava realmente começando a ficar ansioso.

Finalmente, nós três fomos para o Distrito de Alojamento, onde muitos dos
aventureiros locais se reuniam.

Estávamos vagando pela cidade a um ritmo vagaroso, então já era começo da


noite.

Era mais ou menos a hora do dia em que os aventureiros voltavam de suas


explorações do labirinto, trazendo novas recompensas. Era também a hora do
dia em que as partes com poucos fundos começavam a vender suas
mercadorias para reabastecer suas reservas. Às vezes, trombaria em algo
grande, se soubesse o que estava fazendo.

Ainda assim, os itens mágicos sempre foram caros e, honestamente, não


precisaríamos deles. Isso estava mais para um passeio para ver as vitrines.

Ou ao menos foi o que pensei…

— Viu, Sylphie? Este é o tipo de roupa que os aventureiros usam. A maioria das
pessoas compra coisas assim quando precisa de uma roupa.

— Certo, tá! Entendi! Mas eu não visto coisas assim com muita frequência,
sabe? Não tenho certeza se vai ficar bom em mim.

— Hmm. Acho que este seria adequado para você, Sylphie. Você é muito
esguia, então as capas ficam bem em você.

Levados pela nossa conversa, acabamos comprando um conjunto de roupas


totalmente novo para Sylphie.

Era o tipo de roupa que um cavaleiro mago poderia usar, completo e com
cotoveleiras. Não era exatamente elegante, mas a fazia parecer uma
aventureira novata, o que eu achei dolorosamente adorável. Agora Sylphie
poderia partir em uma aventura a qualquer hora que quisesse!

Não que ela realmente precisasse. Ou poderia, dado seu trabalho.

Quando estava trabalhando, Sylphie geralmente usava um conjunto de itens


mágicos poderosos. Ela provavelmente não teria muitas chances de usar isso.

— Hee hee hee… Obrigada, gente.

Mesmo assim, ela parecia muito satisfeita com o presente.

Quando terminamos nossas compras, as lojas da região estavam começando a


fechar. As lojas não ficavam abertas a noite toda, como regra geral. Dirigimo-
nos espontaneamente para as tabernas e restaurantes mais próximos.

Bem… parecia espontâneo para Sylphie e Roxy, pelo menos. Estava tudo
correndo de acordo com o plano.

Na verdade, fiz reservas com antecedência, antecipando essa situação.

Estaríamos comendo em uma pousada destinada a aventureiros rank S.


Elinalise havia me recomendado como o lugar perfeito para terminar um
encontro. A comida era boa, o ambiente agradável, as camas grandes e os
quartos quase à prova de som.
— Ah, eu conheço este lugar. Vovó me disse para trazê-lo aqui se alguma vez
precisássemos nos reconciliar depois de uma briga.

— Você também, Sylphie? Ela disse a mesma coisa para mim.

Para minha surpresa, minhas duas esposas reconheceram o nome do lugar. No


final das contas, parecia que éramos apenas peões no jogo de Elinalise.

Bem, tanto faz. Não é grande coisa se elas já ouviram falar.

— Elinalise mencionou outra coisa para mim, na verdade — continuou Roxy. —


Ela disse que Rudy poderia em algum momento trazer nós duas aqui. Com a
intenção de, bem… você sabe.

— Sim, ela também me disse isso… Então é disso que se trata.

— Sinceramente. O que vamos fazer com você, Rudy?

Sylphie e Roxy olharam para mim com os olhos semicerrados.

Porém, não vi nenhuma repulsa ou choque em seus rostos. Elinalise havia feito
seu trabalho muito bem; pareciam receptivas ao meu plano.

Eu devia muito àquela mulher. Obrigado, Senhorita Elinalise. Você é a melhor,


Elinalise!

— Ainda assim, você não mencionou que passaríamos a noite. Estou um pouco
preocupada com Lucie…

A objeção era razoável, mas, é claro, eu também não tinha esquecido esse
pequeno detalhe.

— Não se preocupe, Sylphie. Eu a confiei a Lilia para esta noite.

Quando expliquei a situação, ela balançou a cabeça seriamente e me prometeu


seu total apoio. Era sempre bom ter aliados confiáveis.

— Ainda parece um pouco errado da nossa parte… Mas pelo menos ela está em
boas mãos, eu acho.

Sylphie parecia pensar que pelo menos um de nós deveria estar com nossa
filha todas as noites. Uma perspectiva muito compreensível, mas… nah, eu não
inventaria desculpas para mim mesmo.

Sinto muito, Lucie. Eu te amo, tá? Perdoe seu pai perverso e lascivo!

Roxy interveio em seguida:

— Eu tenho aula amanhã, sabe.


Seu trabalho era importante, é claro. Mas isso também não seria um problema.

— Vamos acordar cedo e voltar para casa antes que você precise sair.

— Você acha que conseguiremos acordar cedo? Não tenho certeza se vou. Isso
é sempre exaustivo para mim.

— Não se preocupe, Roxy. Eu entendi.

— Bem, que seja…

Nossa.

Demorou um pouco mais para ser convincente do que eu esperava, mas


consegui a aprovação de ambas!

— Então tá bom. Seja gentil conosco, por favor.

— Vamos dar o nosso melhor!

Vendo minhas adoráveis esposas inclinando suas cabeças para mim, eu estava
pronto para ir direto aos negócios.

Claro, ir direto para a cama não teria sido adequado.

Precisávamos primeiro ter uma boa refeição, ficar um pouco embriagados e


sussurrar algumas palavras de amor um para o outro. Precisava de um clima
bom, sabe?

Assim, começamos com um jantar no restaurante que ocupava o primeiro


andar da pousada. Afinal, a comida dali, por si só, já era muito boa.

Eu queria ter certeza de que ambas entendiam que luxúria não era a única coisa
que eu sentia por elas. Sentia, é claro. Mas também adorava passar um tempo
com elas.

Quando as duas estavam no quarto ao mesmo tempo, cada uma poderia


receber apenas metade do amor que eu poderia dar individualmente. Eu
pretendia compensar isso por meio de um esforço absoluto.

— Uau, isso parece incrível!

— Acho que não como assim com muita frequência…

Enquanto prato após prato de comida era entregue em nossa mesa, Roxy e
Sylphie arregalaram os olhos de espanto.

Nos Territórios Nortenhos, os ingredientes crus eram caros e difíceis de


comprar a granel, o que significava que as refeições normais tendiam a ser um
pouco escassas. Mas essa era a estação em que a comida era mais
abundante, e também estávamos em um restaurante muito caro.

Entre outras coisas, comemos uma enorme tigela de salada cheia de vegetais
frescos e suculentos; uma sopa apimentada com peixes de água doce; e um
bife preto e azul brilhante e bem temperado. Nada disso era o tipo de coisa que
se comia com muita frequência por essa região.

Além disso, a refeição foi acompanhada de uma garrafa de licor parecido com
uísque com um aroma forte.

— Esta sopa está deliciosa. Fico imaginando, como será que temperaram?

— Hmm. Talvez óleo com infusão de mostarda…?

Sylphie não estava tocando o álcool, provavelmente por causa de Lucie. Ela
ficou encantada com a sopa, e continuou tomando porções adicionais.

— Devo ver se consigo encontrar uma receita. Rudy, você experimentaria se eu


fizesse um pouco?

Ela inclinou a cabeça para mim de uma forma particularmente adorável


enquanto fazia essa pergunta. Realmente alimentou meu apetite, se é que me
entende.

— Vou engolir tudo. E então você vem como acompanhamento.

— Ah, qual é, Rudy!

Finalmente, tivemos a sobremesa. Na verdade, era uma parte normal da


refeição deste lugar.

Ainda assim, a oferta não era exatamente comparável aos bolos e doces mais
complexos que encontraria em um lugar como o País Sagrado de Millis.
Consistia principalmente em frutas que se pareciam muito com maçãs. Eu já
tinha comido isso antes, mas eram muito mais azedas do que as maçãs do
meu antigo mundo.

Nesse restaurante, picaram em pedaços pequenos e mergulharam em uma


calda pegajosa parecida com mel. Tinha gosto de maçã cristalizada, ou talvez
uma variedade mais espessa de ponche de frutas.

Fiquei surpreso com o quanto gostei. Eu esperava que maçãs e mel tivessem
um gosto mais parecido com o doce curry japonês, mas, aparentemente, me
enganei.

— Isso é incrível!
Roxy ficou particularmente satisfeita com o sabor. Com os olhos brilhando de
entusiasmo, ela enfiou rapidamente na boca.

Parecia que minha querida mestra tinha uma queda por doces. Ou isso, ou o
povo Migurd tinha uma preferência arraigada por açúcar.

— É tão bom… Eu não sabia que você poderia conseguir algo assim nos
Territórios Nortenhos!

De qualquer forma, a alegria em seu rosto era muito real. Eu estava começando
a me preocupar que ela pudesse ter um orgasmo culinário no meio do
restaurante.

— Ah…

Rapidamente, sua sobremesa desapareceu. Ela olhou para o prato vazio com
pesar.

— Aqui, Roxy. Você pode comer as minhas.

Enquanto eu empurrava minha parte para ela, Roxy olhou para mim em estado
de choque.

— Sério?! Tem certeza?!

Eu estava gostando da sobremesa, é claro. Mas gostava ainda mais de ver


aquele olhar de puro deleite em seu rosto.

— Sim, tenho certeza. Aqui, diga “aah”.

— Hmph. Não sou criança… Aaaah…

A cada mordida que eu dava a ela, o rosto de Roxy se iluminava e ela levava a
mão ao rosto em êxtase.

Isso me fez querer continuar para sempre, mas, infelizmente, minha parte da
sobremesa também tinha desaparecido. Teríamos que continuar isso na
próxima vez que fizéssemos uma visita.

Então tá bom. Tivemos um bom jantar e eu as suavizei com doces… Acho que
está na hora.

— Sabem, moças…

— O que foi, Rudy?

— Vá em frente.

— Na verdade, por acaso reservei um quarto aqui.


Ah, isso é tão bom. Essa era outra linha que eu queria dizer pelo menos uma vez!

— Certo… Hm, Roxy, sei que conversamos um pouco sobre isso, mas… tem
certeza de que está bem em fazer isso comigo?

— Sim, acho que estou pronta para isso. Vamos fazer.

Roxy e Sylphie acenaram uma para a outra, corando levemente.

Esta seria uma noite para ficar para a história.

Lendas da Universidade #8: O Chefe tem segundas intenções.

Cap. 09 – A Festa

Agendamos a festa surpresa de aniversário para um dia em que Norn ficaria


em casa e Roxy não estivesse trabalhando. Sylphie normalmente estaria
trabalhando como guarda-costas, mas Ariel lhe deu um dia especial de folga.

Todos os preparativos foram concluídos; agora era apenas uma questão de


finalização.

Comecei as coisas chamando Norn, Aisha e Roxy para a sala de estar.

— Ei, planejei algumas coisas para o dia de hoje. Que tal vocês três virem?

— Ir junto… para quê?

Minhas irmãs inclinaram a cabeça com curiosidade.

O objetivo principal dessa saída, é claro, era tirá-las de casa por algumas horas
para que minhas cúmplices pudessem pegar os presentes e preparar toda a
comida.

— Claro, Rudy. Eu ficaria feliz.

Havíamos planejado tudo isso com antecedência, então Roxy não perdeu
tempo em concordar com a proposta.
Mal sabia ela que também iria ficar surpresa! Muahaha!

— Ei, mãe, posso ir? — perguntou Aisha, virando para a mãe. — Eu ainda tenho
trabalho a fazer.

— Você foi convidada pelo próprio Mestre Rudeus. Claro que pode ir —
respondeu Lilia. Aisha acenou com a cabeça, feliz.

Norn, por outro lado, não respondeu de imediato. Ela estava olhando para
Sylphie com uma expressão ansiosa no rosto. Depois de um momento, ela se
virou para mim e falou:

— Você convidou a Roxy, e a Sylphie?

— Hã?! — disse Sylphie, balançando a cabeça em nossa direção. Ela parecia um


pouco nervosa com essa mudança repentina na conversa. — Uh, bem, sabe… eu
tenho que cuidar da Lucie!

— Vocês duas não saíram com Rudeus outro dia? Está realmente bem com
isso?

— Uhhh… — Sylphie olhou para mim incerta. Mas então ela olhou para Roxy e
pareceu ter algum tipo de ideia. — N-Na verdade, isso foi tudo ideia minha.

— Hein? Como assim?

— Bem, Norn… você ainda não gosta da Roxy, não é?

— Acho que não.

— E não é muito divertido ter esse tipo de tensão em casa. Achei que ajudaria
se vocês passassem um tempo juntas, sabe? Não custa nada nos
conhecermos melhor.

— Ah, agora entendi… Então tá bom.

Norn parecia convencida, mas Aisha parecia um pouco duvidosa. Afinal, ela já
se dava bem com Roxy. Eu a tinha visto levando chá e lanches para Roxy
quando ela estava acordada até tarde se preparando para as aulas do dia
seguinte.

Depois de alguns minutos, Aisha pareceu decidir que esses detalhes não eram
muito importantes. Ela deu de ombros ligeiramente e sorriu para si mesma.

Por favor, não me diga que ela já descobriu…

— Então é isso — disse Sylphie com um sorriso satisfeito. — Vocês vão se


divertir, tá?
— Tá! — responderam minhas irmãs.

— Agradeço sua consideração — acrescentou Roxy.

Foi um pouco difícil, mas conseguimos superar o primeiro obstáculo.

Os preparativos para esta festa demorariam um tempo.

Havia apenas duas pessoas para pegar os presentes, cozinhar e arrumar todas
as decorações. Para dar a elas um pouco de espaço para respirar, meu objetivo
era passar o tempo com as meninas até o início da tarde.

No entanto, eu não podia correr o risco de levá-las para o Distrito do Comércio.


Havia uma chance de que encontrassem Sylphie enquanto ela pegava os
presentes.

Ainda faltava o Distrito de Hospedagem, Distrito de Oficinas e a própria


Universidade, mas eu tinha uma ideia diferente em mente.

— Pesca, hein…?

Nós quatro estávamos fora da cidade. Estava quieto o suficiente para ouvir o
pequeno riacho abaixo de nós gorgolejando suavemente. E a água estava clara
o suficiente para ver os peixes.

— Sim. Parece uma boa atividade para melhorar o vínculo familiar, não acha?

— Entendi. Então Sylphie não estava inventando aquilo…

Conversando baixinho com Roxy, comecei a desempacotar o equipamento de


pesca que tinha preparado para esta expedição. Infelizmente não tínhamos
nada tão conveniente quanto um carretel ou isca. Estávamos com simples
varas de madeira, com linhas feitas de seda trançada de aranha gigante.
Também tínhamos boias feitas de papo de Sapo Radiata, anzóis de ferro e
minhocas como isca.

— Eu nunca pesquei, sabe — disse Norn um pouco nervosa.

— Nem eu! — disse Aisha. — Mas sempre tive vontade.

Apesar da inexperiência, as duas não hesitaram em pegar seus equipamentos.


Aisha rapidamente colocou a boia e o anzol em sua linha, pôs uma minhoca e
saiu correndo em direção ao riacho. Em segundos, ela jogou sua linha na água
com um movimento exagerado.

Fiquei um pouco impressionado, apesar de tudo. Esta era realmente a primeira


vez que ela fazia isso?

— Hmm, Rudeus? Como faço para colocá-los direitinho?


Norn, por outro lado, estava olhando para a boia e o gancho com uma
expressão incerta.

— Heh heh. Também não sei! Nunca pesquei na minha vida, sabe.

Em minha encarnação anterior, eu era um tipo de cara muito fechado. Nunca fui
e nunca tive interesse em pescar. E, claro, nunca senti necessidade de tentar
neste mundo também. Quando eu queria peixes, podia pegar facilmente
congelando a água.

— Você gostaria que eu te ensinasse, Norn? — ofereceu Roxy, hesitante.

Parecia que ela tinha um pouco de experiência. Que sorte. Também


poderíamos ter ido pelo caminho de tentativas e erros, mas aprender com
alguém que sabia o que estava fazendo era mais rápido.

— Sim, por favor.

Norn acabou aceitando a oferta de Roxy, mas ela parecia um pouco confusa. A
garota era uma seguidora fiel da Igreja Millis. Tive de presumir que ela se sentia
um pouco estranha perto de Roxy, já que era minha segunda esposa.

Ainda assim, não parecia que ela a odiava. Não em um nível pessoal, pelo
menos.

— Tudo bem, agora tenta…

— Assim?

— Isso mesmo. Você é boa nisso.

— Obrigada…

Roxy a ensinou com paciência e educação. Norn retribuiu o favor ouvindo com
atenção.

Parecia um bom sinal. Eu realmente queria que elas se dessem bem.

Depois disso, nós quatro nos sentamos ao longo do riacho.

A experiência de Roxy era bem clara. Sentada em uma pequena “cadeira” que
eu fiz com minha magia da Terra, ela cerrou os olhos cuidadosamente na água,
segurando sua vara firmemente em uma das mãos. Quando ela sentiu a menor
vibração, puxou a vara rapidamente.

Eu ainda não a tinha visto pegar nada particularmente grande, mas ela pegou
mais peixes do que nós todos.
Sua pose e concentração me lembrava um monge meditando sobre os
mistérios do universo.

— Você realmente é boa nisso, Srta. Roxy.

— Bem, sim. Quando eu estava sozinha na estrada, era importante encontrar


minha própria comida sempre que podia.

— Pensando bem… Ruijerd costumava pescar muitos peixes quando


viajávamos juntos.

— Oh, ele também era pescador?

— Não, ele usava a lança. Ele a lançava na água e, logo em seguida, puxava de
volta com um peixe em todas as três pontas…

Norn se sentou ao lado dela, e elas ficaram conversando por um tempo. A


conversa ainda era um pouco hesitante, mas parecia um progresso.

— Ah! Norn, você fisgou um. Puxe.

— Hein? O qu… T-Tá! Ah…

— Não se preocupe; isso acontece o tempo todo. Vamos colocar outra isca.

Norn estava tendo problemas para se concentrar em sua tarefa. Não era o
primeiro peixe que ela deixou escapar.

Ainda assim, sua expressão era alegre. Ela parecia estar gostando de sua
conversa com Roxy.

— Hee hee hee. Qual é o problema, Rudeus? Você não pegou nada.

Por outro lado, Aisha já estava dando resultados impressionantes. Ela perdeu
algumas iscas, mas também fisgou três peixes.

— Não se esqueça da nossa aposta! O perdedor tem que fazer tudo o que o
vencedor disser, não importa o que aconteça!

Um pouco antes, eu tolamente concordei em competir com ela para ver quem
pegaria mais peixes. No momento, minha pontuação era um grandessíssimo
zero. Isso não parecia promissor.

Nós dois éramos novatos, não é? Por que ela estava se dando muito melhor do
que eu?

— Beleza, criança. Escolha algo que eu realmente consiga fazer, nada de coisas
impossíveis.
— Hmm, o que devo escolher? Talvez eu faça você me abraçar a noite toda
enquanto sussurra como eu sou bonita. Ah, ou você poderia me ensinar
algumas das coisas que você faz com Roxy e Sylphie…

— Nada muito adulto, por favor. Não quero que Papai fique bravo comigo.

— Ei! Não é justo trazer o Papai à tona!

Eu não estava muito preocupado, para ser sincero. Apesar de todas as suas
provocações ultrajantes, ela provavelmente se contentaria em me pedir uma
bugiganga um pouco cara.

Então… perder para minha irmã era mesmo um problema? Não era um pouco
cedo para ela estar me superando assim?

De fato era. Eu tinha minha dignidade como chefe desta família e precisava
defendê-la!

Sim, era bom ser um irmão mais velho amado. Mas era melhor ser um irmão
mais velho temido!

— Tudo bem, Aisha. Agora vai ser sério.

— O quê? Você estava pegando leve comigo?

— Isso mesmo. De agora em diante, vou usar meu Olho Demoníaco!

— Heeeey! Isso não é justo!

Reclame o quanto quiser. É disso que sou realmente capaz! Ao olhar um segundo
no futuro, irei destruir todos os peixes deste riacho!

Com um pequeno sorriso, ativei meu Olho Demoníaco da Previsão e encarei


minha boia.

Nenhum movimento.

Nenhum movimento.

A boia estremeceu ligeiramente.

— Peeeeeixe!

Graças ao meu menu de treino regular, meus braços eram fortes, e


acostumados a balançar as coisas para cima e para baixo. E agora eu tinha o
poder adicional de minha mão artificial. Nenhum peixe conhecido pelo homem
poderia resistir a mim.

Com um movimento rápido e violento, tirei minha presa da água.


— Sim! É um grande…

Minha presa sendo, neste caso, uma bota grande.

—…

A maioria das pessoas deste mundo usava sapatos e botas, é claro. E esse
riacho estava conectado a um rio que passava pela movimentada Cidade
Mágica de Sharia.

Os habitantes da área usavam esse rio regularmente para lavar suas roupas ou
encher seus baldes de água. Os aventureiros também faziam uso dele em toda
a sua extensão. Provavelmente alguém caiu e perdeu as botas.

Assim sendo…

— Rudeus…

Aisha estava olhando para mim com piedade nos olhos.

Hmm. Talvez eu precisasse mudar a maneira como eu via isso. Essa coisa não
era uma bota. Não era mesmo!

Sim, estava começando a parecer algo totalmente diferente. Talvez até um


peixe? Possivelmente! De certa forma, parecia um. E isso não era bom o
suficiente? Isso não o tornava um peixe, em certo sentido?

Claro que sim. Era um peixe!

Acenando para mim mesmo, joguei a bota no balde.

— Tudo bem, Aisha, já foi um. Eu vou te alcançar logo, logo!

— O quê?! Era uma bota, Rudeus!

— Tenho certeza de que parecia assim para você, mas na verdade é um


organismo parecido com uma bota que vive na água. Eu chamo de… Peixe-
bota.

— Nem para ser criativo! Isso não conta, tá? Realmente não conta!

Alcançando o balde, Aisha agarrou meu prêmio e o jogou de volta na água.

— Nããão! — Você não deve jogar lixo no rio!

Bem, que assim seja. Vamos dizer que capturei e liberei. Essa bota ainda era um
filhote, não é? Agora que o devolvemos ao seu habitat natural, ele nadará até o
oceano e voltará bom e gordinho.
Isso. Vamos com isso.

— Ah! Hngh… sim! Esse é o quarto!

Enquanto eu refletia sobre essas questões, Aisha pescou seu quarto peixe do
dia.

Talvez eu não fosse vencer essa batalha, afinal.

Sinto muito, Sylphie, Roxy… Acho que vou ser o brinquedo da minha irmã mais
nova esta noite…

— É isso aí, Norn! Desse jeito mesmo! Puxe! Puxe!

— Ugh… hnngh… Ah!

— Continue! Agora com cuidado!

As coisas estavam ficando barulhentas do meu outro lado. Olhei bem a tempo
de ver Norn pescar um peixe.

Também era grande, do tamanho de uma carpa colorida.

— Sim! Eu consegui! Peguei meu primeiro peixe!

— Uau, olha só! É um dos grandes!

Norn comemorou com um grande sorriso no rosto e Roxy bateu palmas de


alegria.

Era um momento comovente. Deixando todo o resto de lado, fiquei feliz por
termos feito isso.

Nós continuamos por mais algumas horas, mas assim que o sol começou a se
pôr, era hora de encerrar nossa expedição.

— Beleza, pessoal. Acho que é hora de voltarmos para casa.

Porém, minhas irmãs não aceitaram esse anúncio muito bem.

— O quêêê? Já?

— Eu só queria pegar mais um…

O tempo voa quando você está se divertindo. Eu poderia entender como elas se
sentiam. Ainda assim, a verdadeira diversão viria um pouco depois.

— Desculpe, garotas. Monstros podem começar a aparecer ao redor quando


escurecer.
— Você poderia explodi-los para nós!

— Também temos a Srta. Roxy aqui…

Era um ponto justo. Os monstros nesta área não eram fortes, mesmo em
grupos. Com Roxy e eu presentes, era difícil imaginar um cenário em que Norn
ou Aisha pudessem se machucar.

Mas isso não era motivo para ceder às suas exigências. Se eu cedesse,
passaríamos a noite toda ali.

Mesmo se eu não tivesse planejado nada para a noite, já era hora de arrastá-las
para casa.

— Desculpe, mas a resposta é não. Podemos voltar outro dia.

— Hmph. Você só está bravo porque não pegou nenhum.

— Ei, qual foi. Se eu ficasse sério, poderia pegar todos os peixes que eu
quisesse…

Isso era verdade, em certo sentido. Talvez eu não fosse o melhor com uma
vara, mas poderia eletrificar a água ou provocar uma explosão subaquática!

Eu definitivamente não estava sendo um mau perdedor.

— De qualquer forma, já decidi. Vamos indo.

— Tuuudo bem…

— Tá bom.

Antes de sairmos, parei por um momento para congelar com minha magia os
peixes que pegamos. Poderíamos levá-los para casa para mais tarde. Eu pensei
em grelhá-los para um lanche no caminho de volta, mas deveria aparecer em
uma festa com fome, certo? O peixe poderia esperar um ou dois dias.

Enquanto voltávamos para casa, Norn e Aisha tagarelavam alegremente,


gabando-se de quantos peixes tinham pescado e do tamanho deles. Roxy e eu
seguimos logo atrás delas.

Roxy também tinha uma expressão satisfatória no rosto. As coisas vinham


sendo estranhas entre ela e Norn há muito tempo, mas hoje parecia um grande
passo na direção certa.

— Chegamos!

— Parabéns!
No instante em que colocamos os pés dentro de casa, fomos recebidos por
uma explosão de aplausos. Uma ovação esparsa, mas entusiástica. Sylphie,
Lilia e Zenith estavam paradas no saguão, esperando por nós.

Zenith não bateu palmas, mas acho que vi uma sugestão de sorriso em seu
rosto.

— Hein?!

Norn soltou um pequeno grito e Aisha congelou completamente.

Tomando isso como nossa deixa, Roxy e eu nos juntamos aos aplausos.

Norn se virou para olhar para nós, com os olhos arregalados de surpresa, e
murmurou “Hein?” mais uma vez.

Ela claramente ainda não tinha entendido o que estava acontecendo.

— Tudo bem, pessoal! Vamos para a sala de jantar!

Dando um passo à frente com um sorriso, empurrei uma Norn confusa e uma
Aisha duvidosa para frente.

A sala de jantar estava cheia de decorações simples, mas atraentes. Não havia
bandeiras grandes penduradas ou algo assim, mas tínhamos algumas flores
muito bonitas nas paredes, e havia velas brilhando por todo o lugar.

A mesa estava coberta com uma toalha branca muito bonita, com pratos e
vasos de flores em cima dela. As bebidas já tinham sido servidas, mas ainda
não havia comida. Provavelmente colocariam na mesa mais tarde.

Na outra extremidade da mesa, o assento de honra habitual, tinha duas


cadeiras colocadas uma ao lado da outra. Levei Aisha e Norn até elas e lhes
ofereci seus lugares.

— Espera, mas… Hã? O que está acontecendo?

Norn ainda parecia completamente perplexa.

— Ahaha. Então era disso que se tratava…

Aisha, por outro lado, estava sorrindo maliciosamente. A garota era esperta. Ela
devia ter percebido que estávamos tramando algo.

Depois que minhas irmãs se sentaram, Lilia ajudou Zenith a se sentar. Sylphie e
Roxy seguiram o exemplo.

Depois que todas se acomodaram em seus lugares, limpei minha garganta


ruidosamente e comecei a falar:
— Já se passaram sete anos desde o Incidente de Deslocamento. Não foi fácil,
nem um pouco, mas nossa família finalmente está junta novamente. Perdemos
nosso pai, sim, e as memórias de nossa mãe podem nunca mais voltar. Mas
não acho que o Papai ficaria muito satisfeito se ficássemos deprimidos para
sempre. — Fiz uma pequena pausa em que olhei para todas. — E é por isso que
quero que tentemos sorrir novamente. Quando pudermos, pelo menos. Pode
até parecer desrespeitoso, de certa forma… mas o Papai queria que a gente
fizesse uma festa assim que chegássemos em casa, sabe? Acho que essa
comemoração é algo que devemos a ele.

Tudo isso foi ideia de Paul, em certo sentido. Ele até nos mandou uma carta.

Era triste que ele não estivesse conosco para ver isso acontecer. Pensar nisso
fez meu peito doer. Mas para o bem dele, assim como o nosso, eu realmente
queria que nos divertíssemos.

Norn e Aisha tinham toda a vida pela frente. Eu não queria que elas ficassem
presas ao passado para sempre. Claro, dar uma longa palestra sentimental não
era a maneira certa de definir o clima que eu queria. Poderíamos poupar
nossas memórias dos tempos difíceis e dolorosos que passamos, os
momentos mais sombrios que enfrentamos ao longo da vida. No mínimo, pode
ajudar a saber: Já passei por coisas piores antes.

Agora, era hora de olhar para o futuro. E então, parei de falar e levantei meu
copo.

— Saúde, pessoal!

— Saúde!

Todas, exceto Norn, que ainda estava olhando para mim com os olhos
arregalados, silenciosamente levantaram seus copos. Aisha estava sorrindo
ainda mais amplamente do que antes. Ela obviamente tinha descoberto tudo.

Em qualquer caso, eu não tinha certeza de como tinha ido tudo.


Meu objetivo era estabelecer um tom alegre, mas acabou soando um pouco…
emocional.

Isso não era nada bom. Eu precisava de todo mundo sorrindo.

— Sylphie!

— Ah, certo.

Chamei o nome de Sylphie e ela se abaixou para pegar algo debaixo da mesa.
Isso era bom. Estávamos na mesma sintonia.
Um momento depois, Sylphie reapareceu com duas caixas grandes, ambas
lindamente embrulhadas. Ela passou uma para Roxy. Elas prontamente se
levantaram de seus assentos, caminharam até a cabeceira da mesa e
entregaram as caixas, Roxy para Norn e Sylphie para Aisha.

— Feliz décimo aniversário, Norn e Aisha!

— Feliz aniversário!

Nenhuma delas pareceu entender a princípio. Nem mesmo Aisha.

— Hmm, mas… já temos onze, sabe?

Esta devia ser a primeira vez que vi aquela garotinha inteligente parecer
totalmente confusa. Ela podia ter descoberto o plano geral, mas claramente
não esperava um presente.

Essa era exatamente a expressão que eu esperava ver.

— Sim. Nós não comemoramos seu décimo aniversário, não é? Eu sei que é um
pouco tarde para comemorar, mas Rudy disse que um ano a mais não tem
problema.

— Ele disse…?

Aisha agarrou a caixa com força em seus braços. Depois de um momento,


olhou para Lilia, que sorriu e acenou gentilmente com a cabeça.

Um grande sorriso de felicidade se espalhou por seu rosto quando ela se virou
para Sylphie.

— Podemos abrir?!

— É claro que podem.

Aisha estava abrindo antes mesmo de Sylphie terminar a frase. Norn, que
estava olhando de sua caixa para mim com uma expressão atordoada no rosto,
rapidamente seguiu o exemplo.

No início, elas tentaram vigorosamente, prontas para rasgar o papel de


embrulho. Mas então as duas pararam, reconsideraram e começaram a ir mais
devagar. Elas desamarraram as fitas e abriram o papel com cuidado, tentando
não rasgá-lo.

Era um pouco estranho como os seus movimentos estavam sincronizados.


Elas não eram muito parecidas, mas às vezes poderia realmente dizer que eram
irmãs.

— Oooh! É um par de botas novas! O que você ganhou, Norn?!


— Olha, Aisha! Eu ganhei um casaco!

As duas compararam seus presentes alegremente. Era bom ver que tínhamos
feito um trabalho decente ao escolher eles.

— Minha nossa. Vocês duas ganharam presentes muito bons, não é?

Lilia, que estava assistindo de lado com um sorriso, se aproximou das duas
com Zenith ao seu lado.

— Ah, Mamãe! Olha isso!

Norn abriu o casaco para mostrar a Zenith, sorrindo de orelha a orelha. Ela não
reagiu de acordo, é claro. Isso me fez sentir um pouco para baixo, apesar de
tudo.

Zenith sempre foi o tipo de pessoa que ficava toda agitada com esse tipo de
coisa. Eu ainda me lembrava de como ela ficou entusiasmada na minha festa
do quinto aniversário e seu orgulho ao me presentear com um livro
cuidadosamente escolhido. Se não fosse por sua condição, provavelmente
estaria gritando de animação com sua filha. Vê-la tão inexpressiva me deixou
triste.

Claro, se ela se recuperasse e soubesse que Paul estava morto, não havia
garantia de que sorriria como costumava. Ainda assim, era doloroso vê-la
assim, nem triste, nem feliz, apenas sem emoção.

Mas assim que esse pensamento passou pela minha cabeça…

Zenith sorriu.

— O qu…?

A expressão desapareceu rapidamente. Só esteve lá por um instante. Meus


olhos estavam me pregando uma peça?

— Ela… sorriu?

Não. Todo mundo viu.

Lilia, Aisha, Sylphie e Roxy estavam olhando para Zenith com surpresa.

— Mamãe…?

E Norn, a quem o sorriso fora direcionado, estava prestes a desabar em


lágrimas.

—…
Zenith se abaixou e acariciou a cabeça de Norn, então fez o mesmo com Aisha.
Seus movimentos estavam ainda mais suaves do que o normal. Ela estava feliz,
feliz em ver suas meninas crescendo.

— Ah, Senhora… estou tão feliz…

Lilia colocou suavemente os braços em volta dos ombros de Zenith. Seu rosto
estava mais emocionado do que nunca. Com sua expressão vazia de costume,
Zenith estendeu a mão e acariciou suas mãos. Lilia teve que morder o lábio
para não chorar.

Depois de levar Zenith para seu assento, Lilia voltou para oferecer a Norn e
Aisha outro presente.

— Isto… é para vocês duas, meu e da Srta. Zenith.

Era um conjunto de lenços, lindamente bordados com desenhos florais, um


para cada uma delas.

— Muito obrigada, Srta. Lilia — disse Norn, aceitando o dela. — É lindo.

Aisha, por outro lado, hesitou. Provavelmente teve algo a ver com ganhar o
mesmo presente que sua irmã.

— Hmm, Mamãe? Tem certeza de que também posso ficar com um?

— Sim, tenho certeza. Você também é filha de Paul, sabe.

Isso parecia… uma mudança. Lilia não passou anos martelando na cabeça da
filha as palavras você é apenas uma criada?

— Claro, eu ainda espero que você mostre a Madame Norn e Mestre Rudeus o
respeito que merecem. Estamos entendidas?

— Tá, Mamãe…

Hmm. Acho que a Lilia ainda é a Lilia.

Mesmo assim… apesar do que ela estava dizendo, eu não a tinha visto
importunando muito a filha ultimamente. Nem mesmo sobre seu tom de fala.

Eu tinha que presumir que ela mesma tinha pensado um pouco nas coisas nos
últimos meses.

Quando Lilia voltou ao seu lugar, Zenith estendeu sua mão para colocá-la em
seu ombro.

— Senhora…
—…

Lilia apertou aquela mão na sua e suavemente falou a palavra “Obrigada”.

Quase parecia que tinham acabado de ter uma conversa sem palavras.

Roxy parecia particularmente comovida com isso.

Enquanto eu estudava seu rosto, alguém puxou minha manga por trás.

— Hm?

Olhei para trás e descobri que era Sylphie. Ela estava carregando uma terceira
caixa, aquela que não era para minhas irmãs. Certo, não posso esquecer a
próxima parte…

— Roxy.

Quando chamei seu nome, Roxy se virou… e piscou surpresa ao ver Sylphie
parada ao meu lado com a caixa.

— Uh… pois não?

Sylphie falou antes de mim:

— Este é nosso presente para você, Roxy.

— O qu… Uh, por quê? Para quê?

— É um presente de casamento. Parabéns! — disse Sylphie, entregando a caixa


para Roxy antes que ela pudesse protestar. — Vá em frente, abra.

Roxy obedeceu. E quando ela viu o chapéu como seu presente, arregalou seus
olhos o máximo possível.

— Hmm… Sylphie? Rudy? Isto…

— Bem-vinda à família, Roxy. Vamos tentar o nosso melhor para ser como
Zenith e Lilia, viu?

O sorriso no rosto de Sylphie enquanto ela dizia essa frase só poderia ser
descrito como angelical.

Diante de seu poder esmagador, Roxy mordeu o lábio, olhou ligeiramente para
baixo e apertou o chapéu contra o peito. Depois de um momento, ela conseguiu
falar as palavras

— O… obrigada, Sylphie.
Eu podia ver as lágrimas brilhando em seus olhos.
Eu não ouviria sobre isso por um bom tempo, mas de acordo com Roxy, este foi
o momento em que ela sentiu que Sylphie realmente a aceitou em nossas
vidas.

Com o evento principal atrás de nós, o resto da festa correu bem.

Em primeiro lugar, Lilia fez um grande bolo. Era um tipo de bolo fofo, mesmo
que não houvesse creme. Em vez disso, havia frutas secas no recheio. A massa
em si tinha um lado ligeiramente amargo, mas a doçura das frutas equilibrava
lindamente.

Eu já tinha comido bolos assim antes, no Reino Asura. Fizeram um no meu


quinto aniversário, e eu parecia me lembrar dele sendo servido na festa do meu
décimo também.

Ah, isso desperta algumas memórias… Como será que Eris está?

Onde quer que ela estivesse, eu tinha que presumir que estava alegremente
abrindo caminho pela vida. Será que não teria até casado, igual eu?

Nah, provavelmente não. Não havia homem no mundo que pudesse lidar
com aquela garota.

Quando perguntei a Lilia sobre o bolo, ela explicou que era um doce tradicional
de Asura. Muitas famílias faziam um sempre que havia algo que valesse a pena
comemorar. Paul odiava o sabor, então quase nunca fazíamos um. Era um
pouco divertido ouvir que o homem era um comedor exigente na sua idade,
mas isso era a cara dele.

Sylphie ajudou com este bolo e parecia confiante de que poderia fazer um
sozinha na próxima vez. Norn parecia estar realmente gostando, e eu meio que
também gostei.

Porém, Aisha não era tão fã. Eu podia vê-la tirando os pedaços de fruta
enquanto comia seu pedaço de bolo. Lilia a repreendeu um pouco, mas
enfraqueceu ao murmurar “Isso me lembra o Mestre Paul” com um sorriso no
rosto.

Depois de um tempo, Aisha começou a se aninhar em mim e me implorar para


comer o resto para ela. Mas decidi passar o trabalho para Roxy, que
aparentemente gostava de doces. Eu estava meio que esperando que elas
acabassem comendo juntas, ou algo do tipo.

Infelizmente, Roxy levou sua tarefa um pouco mais a sério. Acho que ela pode
ter entendido mal o que eu estava procurando.

— Ouça com atenção, Aisha. Você é uma garota muito sortuda, então pode ser
difícil para você entender isso… mas às vezes, quando você está realmente
desesperada, pode precisar comer tudo o que puder. Até mesmo um escorpião
venenoso.

— Ick! Uh… certo.

Minha pobre irmãzinha acabou levando um sermão.

Isso me lembrou de uma conversa semelhante que tive com Ghislaine em


algum momento, na verdade. Talvez fosse algo pelo que todos os aventureiros
já passaram.

Eu mesmo tinha tolerado uma comida nojenta em minha jornada pelo


Continente Demônio, é claro, mas tinha quase certeza de que nunca recorri a
comer monstros venenosos. Talvez eu também tenha sido “afortunado”.

— Este bolo, por outro lado, é doce e delicioso. Seria errado não comer tudo.
Coma, por favor.

— Tudo bem.

O tom de Roxy não era muito áspero, mas seus argumentos eram intensos o
suficiente para que Aisha realmente parecesse um pouco assustada, pela
primeira vez. Fiel à sua palavra, ela começou a comer seu bolo em um silêncio
solene.

Parecia a primeira vez que eu a via fazer o que mandavam.

Bem, não. Isso não era justo. Ela me ouvia… na maior parte do tempo.

De qualquer forma. Pensando bem nisso, superar a coisa de comedor exigente


provavelmente era importante. Talvez tenha sido eu quem tenha lidado mal
com a situação.

Ainda bem que eu tinha alguém por perto para fazer tudo certo. Muito bem,
Mestra!

— Então, você não precisa se forçar a terminar se estiver tão cheia que não
poderá dar outra mordida. Comerei o resto, se necessário.

Aliás, Roxy já tinha terminado o seu pedaço de bolo. Muito bem, Mestra.

— Estou tão cheia que não posso dar outra mordida!

A resposta de Aisha chegou rapidamente. Bem rápido mesmo.

— Você estava me ouvindo? Coma seu bolo!

Hmm. Talvez isso seja uma coisa boa…


Sylphie e eu não repreendíamos Aisha com muita frequência, e eu sentia que
Lilia estava pegando leve com ela por causa disso. Aisha era uma garota muito
inteligente, mas tinha apenas onze anos. Ela provavelmente precisava de
alguém para dar um sermão de vez em quando.

Em todo o caso. Roxy parecia estar ficando mais amigável com minhas irmãs.
As duas também não brigavam mais uma com a outra. E tínhamos acabado de
ver a prova de que a condição de Zenith estava melhorando. Senti como se
nossa família tivesse se tornado mais próxima.

Em outras palavras, a celebração foi um sucesso. E eu aproveitei cada minuto.

Fiz uma nota mental para dar uma festa ainda mais bem planejada quando as
meninas fizessem quinze anos.

Lendas da Universidade #9: O Chefe é misericordioso na pesca.

Cap. 10 – Catástrofe no Local de Trabalho


A temperatura está caindo a cada semana que se passa e eu começava a
ocasionalmente ver montinhos de neve pela janela. Em breve o inverno
chegaria no Reino de Ranoa.

Os invernos dessa região eram duradouros, frios e rigorosos. Em uma casa


típica, a família precisaria começar a se preparar mais ou menos nessa época
ou correria o risco de morrer congelada. Minha família era relativamente bem
de vida, então não precisávamos nos preocupar muito com isso. Mas, só para
garantir, tive certeza de estocar uma montanha de lenha em nosso quintal e
pilhas de comida em conserva em nosso porão.

Com isso, estávamos prontos para qualquer coisa. Tudo que tínhamos que
fazer era nos fechar em casa e esperar a neve cair. Eu poderia passar o tempo
aproveitando a companhia das minhas esposas.

Mas, justamente quando estava me preparando para hibernar… um certo


alguém do meu passado apareceu para me assombrar.

Em uma manhã, enquanto tomávamos o café da manhã, Roxy me fez uma


proposta surpreendente.

— Rudy, Sylphie e eu sairemos a trabalho amanhã. É possível que não voltemos


por vários dias. Queria saber se você quer vir junto.

— Para vê-las trabalhar?

Roxy me olhou, confusa.

— Hm, não. Todos nós trabalharíamos. Pode haver um bônus se tivermos um


bom desempenho.

Hmm. Eu adoraria se fosse uma chance de torcer por ela dos bastidores, mas
aparentemente essa não era a ideia…

— Que tipo de trabalho?

— Bom, parece que um membro da família real de Ranoa atualmente está em


peregrinação…

Obviamente era uma tradição local. Quando alguém da realeza de Ranoa se


aproximava da maioridade, tinha que partir em uma jornada ao redor do país
como um tipo de exercício prático.
A jornada em si não era muito árdua. Só passavam aproximadamente seis
meses viajando por aí, visitando lugares específicos dos países que estavam
em uma longa lista. No entanto, não era permitido que levassem muitos
guardas e deveriam se preparar e organizar tudo sozinhos.

Isso os forçava a contratar seus próprios empregados, procurar seu próprio


caminho e ver o país com seus próprios olhos. Na teoria isso os iria ajudar a se
tornar governantes melhores. A tradição era muito conhecida pelo país como
“A Peregrinação da Transição”.

Obviamente, já que era tão conhecida, os prefeitos e governadores locais


tinham completa noção de que a realeza passaria por suas cidades de tempos
em tempos. Na verdade, é pesquisado cuidadosamente as idades de cada
príncipe e princesa reais e faziam questão de prever a época e itinerário de
suas jornadas.

De certa forma, soava um pouco assustador, mas eles obviamente não


gostariam que um membro da família real ficasse seriamente ferido no
território deles. Não importava as circunstâncias, um acidente desses
mancharia muito a reputação.

Se pudessem, as autoridades locais alegremente protegeriam as crianças reais


com centenas de guarda-costas, mas não tinham permissão para fazer isso.
Acabaria com todo o propósito da peregrinação. No entanto, se a realeza em
questão requisitasse guardas, eram permitidos providenciá-los. Desta vez, um
grupo de aventureiros tinha sido contratado como escolta, mas o mago e o
curandeiro deles tinham ficado enfermos simultaneamente. O esperado era
que se recuperassem rápido, mas o inverno estava se aproximando
rapidamente. Era quase impossível viajar nessa região uma vez que a neve
começasse a cair, então precisavam terminar a peregrinação agora e voltar
depressa para a capital.

Na verdade, o grupo parou sua viagem aqui mesmo, na Cidade Mágica de


Sharia. Consequentemente, a própria realeza havia formalmente requisitado
alguns guarda-costas da cidade.

Nosso prefeito havia realizado uma conferência com os líderes da Guilda dos
Magos e a Universidade para escolher os melhores candidatos para o trabalho.
Entre eles, uma pessoa havia se destacado muito. Esse indivíduo era um ex-
aventureiro bem experiente, com habilidades práticas em mágica ofensiva e era
um membro novato no corpo docente da faculdade, então tinha poucas
responsabilidades a serem transferidas para outra pessoa.

Em outras palavras, era Roxy. O grupo havia decidido rapidamente que ela era a
melhor opção possível. Pareceu uma conclusão compreensível para mim,
tendo em vista os diversos talentos dela.
— Espera um pouco… Como a Sylphie também acabou fazendo parte desse
trabalho?

— Bom, a Princesa Ariel também irá. Ela estava bem empolgada para conseguir
uma conexão com um membro da família real.

Ariel possuía uma rede de informações excelente. Ela devia ter escutado sobre
a situação e a definiu como uma oportunidade. Era difícil dizer qual era o nível
de conexão que ela ganharia nesse caso, mas a princesa sempre conseguia o
que queria.

— Ah, certo. Então, basicamente, vocês duas irão proteger tanto a Ariel quanto
essa criança?

— Isso mesmo. Ah, e Luke também irá ajudar.

Eu não tinha certeza se ele realmente contava, mas decidi não comentar.

— Acho que ficaremos bem, já que Sylphie virá junto… mas precisamos
proteger duas pessoas muito importantes, e o santuário que iremos visitar é
bem no fundo da floresta. Além de que eu também sou conhecida por cometer
alguns erros bobos nos piores momentos… Acho que estou um pouco ansiosa.

— Eu acho que está se subestimando muito, Roxy.

— Bom, talvez sim; mas eu havia conversado com a Sylphie sobre


como assegurar que esse trabalho prosseguisse tranquilamente, e ela sugeriu
que pedíssemos sua ajuda. Afinal, atualmente você é, sozinho, o mago mais
poderoso dessa cidade…

Deixando de lado a questão sobre eu merecer esse título ou não, eu conseguia


entender o porquê da Roxy estar ansiosa. Elas precisavam proteger tanto Ariel
quanto esse membro da família real de Ranoa, além de que seu grupo central
era relativamente pequeno: um cavaleiro de Ranoa, Sylphie, Luke e Roxy.

Também havia o grupo de aventureiros, claro, mas apenas contavam com duas
pessoas e era difícil saber se teriam alguma utilidade.

Em relação a aliados competentes, Sylphie era a única pessoa com quem Roxy
poderia contar… e, parando para pensar, Roxy nunca a viu em uma luta antes.
Eu conseguia entender seu medo.

— Será que está tudo bem nós três sairmos de casa? E a Lucie?

— Ela ficará bem — disse Sylphie, a qual tinha escutado em silêncio até então.
— Temos a Suzanne, além de que tenho certeza de que Lilia cuidará bem dela.

Isso era verdade. Não era como se eu fosse muito útil ficando aqui sem as
duas, de toda forma. E Lilia e Aisha tentariam ajudar da mesma forma. Era mais
importante trazer Sylphie de volta para Lucie o mais rápido possível, o que
significava que a melhor coisa que eu podia fazer era entrar para o grupo e
garantir que o trabalho prosseguisse sem problemas.

— Então tudo bem, vou junto.

Após chegar a uma conclusão, concordei sem muita demora.

Deixando o resto de lado, Roxy iria melhorar bastante sua reputação se


conseguíssemos terminar o trabalho perfeitamente. Talvez ajudasse ela a
crescer um pouco mais rápido na carreira.

No dia seguinte, Roxy e eu fizemos nosso caminho para uma certa pousada
que atendia, principalmente, aventureiros de rank S. Era um lugar muito bom,
ainda melhor do que aquele em que levei Roxy e Sylphie antes.

Em comparação com outros exercícios práticos, essa peregrinação estava…


mais para o lado luxuoso da coisa. Não que eu esperasse menos da realeza.

— Sério? Eles têm jardins dentro das muralhas do palácio de Asura também?

— Ah, sim. Então vocês também têm aqui em Ranoa?

— Sim! Realmente parece que os palácios são bem parecidos! Que


interessante.

Na hora em que Roxy e eu chegamos, Ariel e seu grupo já estavam na pousada,


tomando chá com as pessoas de Ranoa.

Uma garota que parecia ter por volta de doze anos estava sentada na frente da
Princesa Ariel. Essa peregrinação deveria ser da chegada da maioridade, então
ela presumidamente teria quinze anos, mas definitivamente parecia mais nova.

Sylphie estava de pé atrás das duas, fazendo uma pose equilibrada e


intimidante vestida com suas roupas de trabalho. Luke também estava lá.
Também havia uma outra cavaleira mais velha que eu não reconhecia.
Provavelmente era uma guarda-costas pessoal da princesa de Ranoa.

— Quem são vocês? Se nomeiem.

No instante em que nos viu, caminhou para ficar entre nós e quem ela estava
protegendo. Seu olhar era desafiante, se não abertamente hostil.

— É um prazer conhecê-la. Meu nome é Roxy M. Greyrat e estou aqui para servir
à princesa como guarda-costas.

— Sou Rudeus Greyrat, também irei ajudar. Prazer em conhecê-la, madame.


— Ah, entendo… Me disseram que viriam. Meu nome é Grace e eu sou uma
cavaleira real. Apreciamos sua assistência.

A cavaleira olhou duvidosamente para Roxy por um momento. No entanto,


aceitou sem fazer mais nenhum comentário.

Ela provavelmente queria dizer algo como “Você obviamente é muito nova para
isso. O que a Universidade está pensando?” Eu apreciei que ela manteve esse
pensamento para si, mas eu não tinha certeza do porquê o fez. Talvez só fosse,
surpreendentemente, uma pessoa cuidadosa?

Não… julgando por aquele sorriso assustador no rosto da Ariel, ela


provavelmente havia avisado com antecedência.

Também era uma coisa boa. Se a mulher tivesse começado a gargalhar e


chamado a minha amada mestra de “criança”, eu teria explodido na mesma
hora… ou causado uma explosão. Isso teria acabado com o futuro da carreira
de Roxy.

— Nos foi dito que também contrataram um grupo de aventureiros.

— Sim, eles estão se preparando para a jornada nesse momento. Por favor,
espere aqui por enquanto.

— Tudo bem.

Comecei a caminhar em direção a uma cadeira vazia, mas Roxy se dirigiu para
junto de Sylphie e Luke. A cavaleira retornou para sua posição anterior, onde
ficou com a postura dura e perfeitamente parada.

Aparentemente, só as princesas eram permitidas a se sentar no momento. Eu


teria que ficar de pé também.

— Falando nisso, a quanto tempo está em nosso reino, Princesa Ariel?

— Bom, deixe-me ver… sem contar com a minha jornada, mais ou menos seis
anos. Esse país agora é praticamente minha segunda casa.

— Ah… então isso não significa que irá se graduar no ano que vem? Que pena…
eu acabei de te conhecer e você já irá partir em breve…

— Creio que sim. Mas, desde que nossos países permaneçam em contato,
tenho certeza de que nos encontraremos novamente.

Hmm. Mudando de assunto, essa princesa de Ranoa com certeza era uma
gracinha.
Eu lembrava de ter escutado que a família real desse país estava repleta de
pessoas bonitas. Isso, aparentemente, era verdade. Ela estava quase no nível
de Ariel; não no mesmo, mas quase.

Além disso, Ariel certamente agia rápido. Parecia que, de alguma forma,
elas já eram amigas.

Por um tempo, esperei preguiçosamente, deixando a conversa das princesas


me inundar sem que eu escutasse de verdade.

— Quantas vezes eu preciso dizer, cacete?!

O som de vozes na entrada bruscamente me trouxe de volta à realidade.

— Olha, só lide com isso!

— Está falando sério?! Esqueceu o que aconteceu da última vez?! Esses idiotas
ferraram tanto que quase mataram a Tina e a Melanie! Eu não estou de acordo
com isso!

— O que quer que eu faça? Não somos nós que mandamos aqui.

— Isso não é o suficiente! Realmente está tranquila com isso? Realmente confia
em algum estranho para cuidar das suas costas lá?

— Não é como se eu quisesse isso, ok?

As recém-chegadas entraram no cômodo discutindo alto umas com as outras.


Havia quatro delas, e todas eram mulheres.

A que estava na frente do grupo era uma moça grande e musculosa. Ela
parecia com Ghislaine, mas era ainda mais concreta. Seu corpo parecia ter sido
esculpido em pedra.

A segunda era uma mulher mais magra que deixava seu cabelo castanho-
escuro em um penteado para trás, expondo uma cicatriz em formato de cruz
em sua testa. Ela parecia ser ágil e atenta, além de que seus olhos fundos
sugeriam que já tinha vivido sua cota de batalhas.

Provavelmente ambas estão em seus trinta anos, elas estavam com espadas
em seus quadris. Me senti seguro em saber quem eram as lutadoras da linha
de frente do nosso grupo.

Aparências enganam de vez em quando, mas elas claramente pareciam um par


de veteranas astutas e habilidosas. Isso fazia sentido, já que haviam sido
escolhidas para proteger uma princesa.

Aliás, nenhuma delas estavam participando daquela discussão. A qual estava


ocorrendo por causa das outras duas que entraram após elas.
— Eu sei, tá bom?! Eu preferiria fazer isso sozinha do que com pessoas que
nem mesmo consigo confiar!

A que estava brava era uma mulher mais nova com um olhar carrancudo em
seu rosto. Estava mais para uma garota, na verdade. Talvez tivesse quinze
anos.

Comparada com as duas primeiras, ela parecia inexperiente; mas, se a


permitiram no grupo, devia ser boa no que faz. O cajado que carregava sugeria
que era uma maga ou uma curandeira, ou possivelmente as duas coisas.

— Olha, você não pode ser a única na retaguarda. Não quero deixar nada passar
por mim, mas vai acontecer de vez em quando.

E, então, havia a quarta membra do grupo.

— Mas, mais importante, você tem que aprender a como trabalhar com qualquer
um se quer que as pessoas te respeitem. Aventureiros não têm o luxo de poder
permanecer no mesmo grupo para sempre, sabe?

Ela carregava um arco. Não era uma arma típica para um aventureiro; arcos não
tinham a mesma força que uma espada ou um feitiço. Eu havia passado anos
como um aventureiro viajante e havia conhecido somente uma pessoa que se
dedicava a isso.

— Gah.

Parando para pensar, ela provavelmente era a única em toda a região.

Eu, claramente, a reconheci de imediato.

No instante em que ela deu o primeiro passo no cômodo e viu meu rosto, parou
e me encarou com os olhos arregalados.

— Ah. É você.

Ela murmurou as palavras levemente, mais para si mesma do que para mim.

A garota carrancuda com quem ela estava discutindo antes se virou e falou, em
dúvida:

— Hã? Sara? Conhece aquele homem?

— Bom… sim.

Era a mesma aventureira com quem quase dormi há algum tempo.


Eu não tinha esquecido da Sara, obviamente. Eu não tinha certeza se
conseguiria, caso tentasse.

Quando eu a conheci, não muito depois de Eris me deixar, ela era a mais nova
do grupo Contra-Flecha. Ela era uma garota teimosa e agressiva com uma
língua afiada, mas com uma cabeça boa.

Suzanne, a líder do grupo, havia ido com a minha cara e começou a me


convidar para participar de alguns de seus trabalhos. Lutamos contra uma
horda de monstros juntos e, depois, nos aventuramos em uma antiga fortaleza
subterrânea para conseguirmos escamas de um Drake Nevoso; entre outras
coisas.

Levou um tempo, mas Sara acabou se apaixonando por mim. Pelo menos disso
eu tinha quase certeza.

O mais difícil era dizer como eu me sentia quanto a ela.

As coisas haviam esquentado antes que eu conseguisse descobrir e, então,


meus problemas de performance entraram no meio do caminho. Eu fiquei
bêbado, agi como um idiota e corri para o bordel mais próximo para passar a
noite. E então comecei a falar mal de Sara em público. O que ela ouviu, claro!
Ela me largou na hora.

Eu estava bem confiante de que havia sido uma experiência traumatizante para
nós dois. Mas havia passado um tempo desde aquilo. Havíamos seguido
rumos diferentes e vivido nossas próprias vidas por anos até agora. Eu havia
me convencido de que isso tinha ficado no passado e que, de qualquer
maneira, nunca nos veríamos de novo. Mas parecia que o destino tinha um
plano diferente.

E, então, agora eu estava na interessante posição de ter que trabalhar junto com
a minha ex-namorada. Pelo menos éramos ambos profissionais, certo? Com
sorte, somente nos focaríamos na tarefa que tínhamos. Não é como se
desenterrar o passado fosse fazer muito bem para nós, de toda forma.

— Então tá bom! Por que não preparamos a comida antes da princesa sair?

Após algumas apresentações desconfortáveis, passamos a fazer parte do


grupo e partimos para uma floresta próxima, onde ficava o santuário.

— Ufa. Boa, meninas. Essa foi fácil!


— Parece que os rumores sobre a professora que conseguiu sobreviver ao
Labirinto de Teletransporte eram verdadeiros, hein.

— Desculpa, mas eu tenho que me desculpar! Eu te subestimei muito a


princípio… Mas aquilo que me ensinou sobre dividir seu foco entre cura e magia
ofensiva foi demais! É uma teoria tão simples e pura, além de que realmente é
possível pôr em prática!

Graças aos meus esforços cuidadosos, estávamos conseguindo realizar o


trabalho sem nenhum incidente desconfortável. Estava indo bem demais,
inclusive.

As membras da “Amazonas”, um grupo de rank S composto totalmente por


mulheres, haviam duvidado abertamente a respeito de Roxy no começo. Era
compreensível, já que, possivelmente, foi devido a sua aparência. A pirralha do
grupo tinha ido longe o suficiente para declarar: “Eu não quero trabalhar com
uma criança!” bem na nossa frente, naquele cômodo.

No entanto, após deixarmos a cidade e passarmos pelas primeiras batalhas, a


opinião delas deu uma volta de 180°. Apesar da natureza descuidada do nosso
grupo, Roxy cumpriu perfeitamente a sua função na retaguarda. Ela,
impecavelmente, conjurava suas magias ofensivas no momento certo e curava
suas aliadas com a mesma eficiência.

Graças ao tempo que havia passado explorando labirintos completamente


sozinha, ela era muito mais atenta e habilidosa que um mago comum. Na
verdade, parecia que havia compensado as duas membras faltantes do grupo
completamente sozinha.

Compreensivelmente, elas estavam enchendo ela de elogios já fazia um tempo.


Isso fez com que eu me sentisse feliz e animado por dentro. De vez em quando
tive que resistir ao impulso de estufar meu peito e dizer Ela é minha mestra,
sabia?!

— Uh… Ei, Rud…

— Ah, desculpa! Vou começar a cozinhar! Não fui muito útil nas batalhas, mas
posso lidar com isso. Na verdade, sou um bom cozinheiro!

—…

O único lado negativo era que eu tinha que evitar a Sara de vez em quando.

Ela continuou me encarando enquanto eu cozinhava, mas estava um pouco


óbvio que começar uma conversa somente deixaria as coisas piores.

De vez em quando é melhor ignorar completamente os seus problemas, certo?


Isso. Eu só estava fazendo a minha parte para manter um clima bom. Minha
discrição era a razão para tudo ter seguido tranquilamente!

Tá, isso não era bem a verdade.

Eu não havia contribuído muito com o grupo. Todas das Amazonas eram
altamente habilidosas, além de que Roxy havia se encaixado perfeitamente no
grupo. Então não havia sobrado muito para eu ou Sylphie fazermos durante
nosso caminho para o santuário.

A princesa de Ranoa atualmente se encontrava dentro da construção com sua


cavaleira pessoal; estava realizando algum tipo de oração formal. Depois que
ela terminasse, tudo que tínhamos que fazer era voltar para a cidade e nosso
trabalho estaria acabado. Todos voltariam felizes para suas casas e a
reputação da Roxy daria um bom salto, a deixando mais próxima de sua
primeira promoção na Universidade de Magia.

—…

—…

Mas, claro, Sara não estava muito feliz com isso. Ela estava me encarando
silenciosamente daquele jeito pelo que pareceu dez minutos seguidos até
agora.

Eu não poderia julgar ela. As pessoas tendem a ficar um pouco mal-humoradas


após serem completamente ignoradas. Mas eu tive que assumir que
desenterrar o passado só pioraria as coisas.

Estava pronto para pedir ajuda a Sylphie, a qual estava sentada próxima de
mim… mas ela também ficou terrivelmente quieta por um tempo. Na verdade,
meio que parecia que ela também estava me encarando.

Talvez só estivesse preocupada comigo. Talvez estivesse preocupada


pensando que eu fosse traí-la de novo.

Ou talvez não aprovasse a maneira como eu estava deliberadamente ignorando


a Sara.

Independentemente do que fosse, o silêncio estava começando a pesar. E


muito. Estava pesado demais. Eu estava ficando agoniado.

E então, finalmente, Sylphie se inclinou e sussurrou em meu ouvido:

— Por que você, pelo menos, não fala com ela, Rudy?

Bom, uh… não é como se eu me importasse de ter uma conversa normal com ela.
Quero dizer, a atitude dela pareceu um pouco casual no começo, além de que eu
adoraria deixar o passado para trás…
Mas, mesmo assim, eu não tinha certeza de que conseguiria só rir dessas
lembranças. As feridas ainda doíam. Talvez eu deveria só ter apresentado ela
para Sylphie e para Roxy desde o começo. Mas nesse ponto ela já não estava
nem mesmo tentando falar comigo.

Eu deveria ter feito algo antes das coisas ficarem assim. Agora eu tinha que
consertar o meu erro.

Hmm… talvez eu realmente precise falar algo.

Quanto mais eu pensava sobre isso, mas a minha decisão de ignorar


completamente a Sara parecia um erro. Tudo que eu tinha conseguido era
irritar ela. Eu podia ter mantido a conversa sempre em tom profissional.

Tendo dito isso, era um pouco difícil mudar o meu método a essa altura.

O maior problema era que, basicamente, eu não tinha nada que queria falar
para ela. Os únicos tópicos que passavam pela minha mente eram
relacionados ao nosso passado juntos, o que inevitavelmente levaria à
discussão do nosso terrível término. Isso somente nos deixaria com um clima
ruim. Ouvir isso também não seria muito bom para a Sylphie.

Ficar em silêncio parecia preferível a isso.

Eu também poderia me desculpar com ela por fazer as coisas ficarem


estranhas após voltarmos para a cidade. Eu estava disposto a aguentar um
pouco de sofrimento pelo bem da promoção de Roxy.

— Senhorita Roxy, poderia me ensinar um pouco mais sobre magia antes de


sairmos dessa cidade? Por favor? Por favorzinho?

— Seria um prazer.

— Muito obrigada! Ei, estaria tudo bem se eu te chamasse de Irmãzona?!

— Hã? Er, eu… acho que sim. Se quiser…

— Isso! Obrigada, Irmãzona!

As coisas pareciam tão boas e felizes do outro lado do grupo. Eu queria fazer
parte daquela conversa. Talvez conseguisse convencer Roxy a tentar uma
fantasia de realeza da próxima vez que passássemos a noite juntos…

— Aah… sabe, minha garganta está terrivelmente seca.

De repente, Ariel rompeu o silêncio do nosso lado do grupo.

Eu olhei para ela um pouco confuso. Tínhamos bastante água para tomar,
afinal de contas. Ela olhou para mim um pouco incomodada.
— Havia algumas frutas amarelas boas crescendo um pouco para trás, não?
Odeio incomodar, porém gostaria de prová-las — continuou Ariel, virando seu
olhar para Sara. — Se importaria de pegar algumas para mim?

Sara pareceu suspeitar um pouco do porquê o pedido tinha sido feito para ela,
mas deu de ombros e se levantou.

— Tudo bem. Verei o que consigo fazer.

— Obrigada. No entanto, creio que não seja seguro você caminhar pela floresta
sozinha. Rudeus, Fitz… poderiam escoltá-la, por favor?

Ah, cara. Então era isso que ela queria, huh… Acho que a Princesa já estava sem
paciência com nossa estranheza. Essa era a sua maneira de dizer: “vão logo
resolver isso entre vocês.”

— Acredito que o Rudy possa lidar com isso sozinho. Irei ficar aqui com você,
Princesa Ariel.

Para a minha surpresa, Sylphie havia optado por não ir junto.

— Hm? Acha que ele ficará bem sozinho?

— Sim. Ele não é o tipo de homem que se esconderia do perigo.

Era isso o que eu estava fazendo? Me escondendo?

É, era verdade. Eu me escondi; tanto da Sara, quanto do nosso passado juntos.

Mas não tinha necessidade de continuar com isso. Agora eu tenho Sylphie e
Roxy na minha vida. Meus problemas de performance eram coisas do passado.
Eu tenho uma família, até mesmo uma filha.

— Tudo bem.

Era hora de parar de agir como um covarde.

Sara e eu seguimos até o ponto onde havíamos passado pelas frutas amarelas.
As encontramos facilmente e pegamos algumas que estavam crescendo em
arbustos baixos.

Era hora de arranjar uma maneira de começar a conversa. Sylphie havia me


dado a sua aprovação, então eu não poderia me acovardar.

Certo, vamos recapitular. Somos velhos amigos que se reencontraram por acaso.
Não seria triste se só terminássemos o trabalho sem nem mesmo conversarmos?

É, isso serve.
— Então… você continua sendo aventureira, hein?

Sendo honesto, não foi uma das melhores maneiras de começar a falar.

— O que quis dizer com isso?

Compreensivelmente, a resposta da Sara foi curta. No entanto, eu não poderia


deixar ela me intimidar.

Respire fundo, Rudeus.

Não era como se eu quisesse insinuar algo sobre as habilidades dela como
aventureira. Ela mesma sabia disso. Na verdade, esse só era o jeito dela.

— Bom, o Contra-Flecha se dissolveu quando Suzanne e Timothy se casaram,


não é? Só fiquei me perguntando onde você e o Patrice estavam. Sabe o que
aconteceu com ele?

— Ele entrou em outro grupo quando todos nós nos separamos. Não sei onde
está agora. Ele provavelmente ainda é um aventureiro, se assumirmos que não
esteja morto ou inválido.

Patrice tinha sido um guerreiro da linha de frente no Contra-Flecha. Ele era um


cara descontraído, mas isso era, basicamente, a única coisa que eu lembrava
dele.

— E você, Sara?

— Passei por vários grupos por um tempo. Esse grupo me recrutou logo após
eu chegar no rank A e eu fiquei com elas desde então.

Ela já havia passado um tempo com as Amazonas, pelo que parecia.

Parando para pensar, elas provavelmente eram o grupo mais bonito que eu já
havia encontrado. A líder musculosa tinha um belo rosto e a vice-líder fazia a
cicatriz parecer bonita. A jovem maga era um pouco malcriada, mas
definitivamente também era fofa.

Mas é claro que nenhuma delas chegava aos pés de Sylphie ou de Roxy!

— Sabe, não acho que eu já tenha visto um grupo totalmente feminino.

— Bom, eu acho que tem várias delas nos ranks mais baixos. Mas, após chegar
mais ou menos ao rank C, todos começam a buscar mais a habilidade do que
outras coisas, então não é tão comum.

— Hmm…
Eu não lembrava de ter visto nenhum grupo que se baseava em gênero no
Continente Demônio, nem mesmo nos ranks baixos. Mas aquele lugar era uma
exceção, dado o quão forte os monstros eram por lá.

— Essa foi a primeira vez que entrei em um, mas, falando sério, definitivamente
tem seus pontos positivos. Por exemplo, você passa a ter vantagem com
alguns clientes, como o caso atual.

— Ah, sim. Entendo porque iriam querer um grupo de mulheres para proteger
uma princesa.

Poderia ser um pouco arriscado confiar em um bando de homens agressivos e


fedidos para proteger uma jovem beldade daquelas. Muitos aventureiros
estavam bem próximos de ser criminosos. As pessoas tendiam a ser mais
profissionais conforme subiam de rank, mas um grupo totalmente feminino
passava uma maior garantia de que as coisas não ficariam ruins demais. Não
que as mulheres fossem sempre gentis umas com as outras, claro…

— Também é menos estressante, em geral. Não tem que se preocupar com


dramas de relacionamentos amorosos, sabe?

Eu sorri sem graça com esse exemplo. Se eu tivesse entrado formalmente no


Contra-Flecha e começado a sair com Sara, poderíamos ter deixado as coisas
estranhas para os outros.

Mas eu também acabei pensando na membra mais nova das Amazonas. Toda
vez que nós parávamos para uma pausa, ela se jogava na líder ou na vice-líder
do grupo enquanto soltava gritinhos de afeição. E, após ela perceber o quão
talentosa a Roxy era, passou a não largar dela. Ela tinha um hábito de mostrar a
língua para mim enquanto deslizava seus braços pela minha esposa.

— Sem romance, né…? Mesmo?

— Hã? Ah, ela. Bom, às vezes aparecem garotas como ela; mas são menos
problemáticas — disse Sara enquanto dava de ombros. — É mais fácil porque
ninguém engravida nem nada assim, sabe?

Aah. Bom saber que o grupo se dava bem, pelo menos.

Nós dois tínhamos algumas memórias dolorosas sobre nosso passado, mas
parecia que Sara estava aproveitando bem a vida.

Eu estava feliz por ela. Talvez um pouco aliviado também.

— Enfim, e você?

— Hm… eu?
— Ouvi dizer que está casado e tem uma filha, não é? Parece que está
aproveitando bastante.

— Ah. Quem te disse isso?

— A Suzanne. Ela me enviou uma carta há um tempo atrás, sabe? — Sara estava
começando a soar como se estivesse me julgando.

O principal motivo de termos terminado era pela minha incapacidade de ir para


a cama com ela. E lá estava eu, casado com duas mulheres diferentes e
aproveitando a companhia delas à noite com uma certa frequência. Conseguia
entender como isso poderia acabar com o bom humor de alguém.

Na época eu estava sofrendo com um caso sério de disfunção erétil, mas eu


não tinha certeza se Sara ao menos sabia disso. Eu não achava que havia
passado tantos detalhes assim para a Suzanne também. Além de que isso não
era desculpa para o meu comportamento. Independentemente da causa, eu
havia desfavoravelmente comparado a garota com uma prostituta em público.
Era a pior maneira possível de tratar alguém que sentia algo por você.

Trombar com um babaca desses no trabalho faria até mesmo a pessoa mais
calma do mundo ficar rabugenta. Principalmente se ele tentasse agir como se
você não existisse.

— Bom, uh… desculpa, Sara.

— O quê? Eu não quero que se desculpe!

Com essas palavras, Sara se levantou rapidamente. Seu rosto estava vermelho
enquanto seus lábios estavam cerrados e tremendo.

Merda, agora eu irritei ela. Talvez isso realmente tenha sido uma má ideia… Certo,
chega. Já é tarde demais para isso. O que devo fazer?

— Err…

Antes que eu pudesse encontrar algo para falar, Sara se virou e sentou com as
costas viradas para mim.

Eu levantei lentamente, tentando não a provocar, e dei um passo a frente para


conseguir ver seu rosto.

Ela estava encarando o chão com uma expressão sombria. Para a minha
surpresa, parecia mais triste do que brava.

— Sara…?

— Hm, o quê?
— Eu sei que não quer que eu me desculpe, mas vou fazer isso de toda forma. A
maneira como terminamos não foi… hmm… não foi a melhor, não é? Então… eu
não sabia o que te dizer, eu acho. No entanto, não há desculpa para ter te
ignorado. Eu realmente sinto muito.

Após suspirar como se estivesse cansada, Sara olhou para mim.

— Olha, eu acabei de falar que não quero que se desculpe, certo?

Se ela não queria um pedido de desculpas, o que ela queria? Eu estava


começando a me arrepender de não ter pedido um conselho para Sylphie.

— Se importa se eu sentar do seu lado?

— Hm? Sua esposa não vai ficar brava com você?

— Nah. Vou explicar o que aconteceu para ela, quando voltarmos com as frutas.

— Espera, então é ela…? Aquela garota de óculos escuros?

— Suzanne não descreveu ela na carta?

— Não, só mencionou que o nome dela era Sylphiette. E, também… eu não tinha
pensado que ela seria uma guarda-costas real, sabe?

Então Suzanne havia negligenciado a descrição da beleza dela? Uma


negligência muito grande.

— Acho que isso explica o porquê de vocês dois serem tão próximos —
continuou Sara.

— Mas também não é só ela. Aquela garota-demônio de cabelo azul é minha


outra esposa.

— Hã, ela também?! Hmm. E não é que é interessante mesmo…?

Enquanto Sara pensava nisso, eu me sentei cuidadosamente ao lado dela.


Enquanto eu me sentava, senti um pouco de seu cheiro, que me passava uma
nostalgia do curto momento que passamos juntos anos atrás.

Nenhum de nós falou por um tempo. Dessa vez, foi Sara quem quebrou o
silêncio.

— Sendo sincera, pensei em passar na sua casa enquanto estávamos na


cidade.

— Espera, sério?

— Sim. Quer dizer, eu quis… me desculpar com você. Por muito tempo.
— Você queria pedir desculpas? Para mim?

— É. Depois que você foi embora, eu descobri sobre a sua… condição. E então
percebi o quão idiota tinha sido. Fiz você ser a pessoa ruim, não foi? Fiquei
brava e fiz escândalo. Nem, ao menos, parei para pensar que você devia estar
machucado também… ainda mais do que eu estava.

As memórias ainda eram desconfortavelmente frescas. Eu conseguia me ouvir


gritando várias idiotices enquanto estava completamente bêbado. Eu
conseguia ver a raiva e a humilhação no rosto da Sara conforme ela brigava
comigo.

Esses eventos haviam me machucado muito, mas eu sabia que também havia
ferido ela.

— Então, quando Suzanne escreveu para mim e eu descobri que você estava
em Sharia… falei para mim mesma que iria te ver. Eu sabia que esse trabalho
iria nos trazer até aqui, então eu pensei… em pegar uma folga para me
desculpar. Pela maneira que agi naquela época, sabe…?

—…

— Mas aqui estou eu, ficando brava com você de novo. Nossa. Tem hora que
não consigo me aguentar…

Sara parou por um momento e, então, pressionou seu rosto contra seus
joelhos. Quando ela continuou, quase não era possível escutar a sua voz.

— Desculpa.

Eu queria colocar um braço ao redor dos ombros dela ou algo assim, mas
parecia um pouco inapropriado. Ao invés disso, abracei meus joelhos e os
encostei em meu peito.

— Agora já faz um tempo — falei. — Então vou ser honesto com você.

— Hm?

— Não acho que eu te amava de verdade naquela época.

— Hã? O quê?

— A causa da minha condição era… uma garota chamada Eris. Nós tínhamos
atravessado o Continente Demônio juntos, mas então ela sumiu de vista do
nada. E foi nessa hora que eu te conheci, Sara. Eu pude dizer que você gostava
de mim. Eu não sentia algo tão forte por você, mas eu acho que queria seguir
em frente. Deixar o passado para trás, sabe…? Sendo honesto, eu só estava te
usando. — Parei para engolir a seco, e então continuei: — Então… é. Você
realmente não me deve nenhum pedido de desculpas.
Eu assumi que Sara ficaria brava comigo, mas eu estava bem com isso. Ela
tinha me falado toda a verdade; tinha sido tão honesta quanto pôde. Eu senti
que o justo seria eu fazer o mesmo.

No entanto, por algum motivo, ela não estava brava. Estava apenas me
encarando com um olhar de surpresa em seu rosto.

— Uau. Você mudou mesmo.

— Hm… mudei?

— É. Você nunca se abriu para mim dessa forma. Nem mesmo fingiu tentar.

— Acho que não.

— Você também não conversava com essa casualidade com ninguém. Ou, se
fizesse, ficava um pouco forçado e estranho.

— Espera, sério?

— É. Você parece bem mais… natural.

Parando para pensar, eu não estava falando de forma tão formal com ela, como
eu fazia. Isso provavelmente tinha algo a ver com a mudança da minha mente.
Antigamente, eu tinha certeza de que Eris havia me abandonado, então tinha
pavor de conflito ou rejeição. Eu era cuidadoso para falar da forma mais
educada possível. Dessa forma, não ofenderia ninguém; e também manteria
uma distância das pessoas.

Eu não queria correr o risco de me machucar, simples assim.

Mas agora não tinha esse medo.

— Alguém me deu um pouco de autoconfiança, eu acho…

— Sua esposa, você quer dizer?

— É. Depois daquela noite com você, eu… permaneci com o mesmo problema
por alguns anos. Constantemente.

—…

— Foi Sylphie quem me curou. Era a primeira vez dela, mas… ela fez tudo que
estava ao seu alcance. Até mesmo me deu um afrodisíaco. E, assim, conseguiu
me fazer funcionar de novo.

Contei alguns detalhes específicos. O rosto da Sara ficou vermelho, mas ela
escutou cada palavra, até mesmo se inclinando um pouco para frente. O clima
ficou um pouco vergonhoso por um tempo. Talvez eu tivesse sido
aberto demais.

— Mas, se ela fez tudo isso por você, por que foi atrás da segunda?

— Bom… Roxy fez o mesmo por mim, de seu próprio jeito.

Sara escutou com bastante curiosidade enquanto eu contava aquela história,


colocando uma mão em sua boca. De tempos em tempos, eu pensei ter visto
seu nariz ficar vermelho.

No entanto, quando eu cheguei ao final, ela parecia um pouco triste.

— Sabe… não acho que eu teria conseguido fazer algo assim por você. Mesmo
se tivesse me contado tudo naquela época.

—…

— Talvez essa seja a razão de você nunca ter se apaixonado por mim.

Talvez fosse. Sylphie e Roxy, ambas me amavam. Mas eu as amava ainda


mais. Elas tinham mudado a minha vida para melhor, e eu tinha me apaixonado
por elas por causa disso.

Olhando dessa forma, talvez parecesse algo transacional, mas era só um fato;
elas tinham me conquistado por estarem comigo quando precisei. Talvez isso
fosse o que diferenciava elas da Sara.

— Gah!

De repente, Sara se levantou rapidamente com um ganido de aborrecimento.


Ela desceu o seu olhar até mim e colocou as duas mãos em seu quadril

— Olha, vou deixar uma coisa bem clara agora. Eu posso ter te amado naquela
época, mas isso acabou no dia em que fugiu! Quero dizer, eu queria me
desculpar por ter sido uma idiota com você, mas isso é tudo. Não estou nem
um pouco interessada em tentar novamente depois de todo esse tempo!

Após colocar tudo isso para fora com grande vigor, ela bufou e virou sua
cabeça para o lado antes de continuar:

— E, com isso, pare de olhar para mim com esse olhar arrependido! Somos
apenas velhos companheiros de aventura, não é? Tente agir como tal!

Havia uma pinta de vergonha em seu rosto, mas, ao mesmo tempo, parecia
aliviada. Tinha levado um bom tempo, mas finalmente tínhamos chegado a
uma conclusão. Era um pouco agridoce, mas eu me vi sorrindo do mesmo jeito.
Após nossa conversa, consegui interagir normalmente com a Sara.

O meu jeito era uma mistura do meu modo “Linia e Pursena” com meu modo
“Nanahoshi”, com uma intensidade um pouco menor. Parecia ser o certo. A
performance de Sara também melhorou notavelmente. Ela ajudou o grupo com
uma habilidade incrível, atirando flechas exatamente onde mais precisavam.

No geral, seu papel era ficar um pouco atrás da linha de frente e controlar
tranquilamente o fluxo da batalha. Me lembrou da maneira que Suzanne
costumava gritar ordens amigavelmente para os membros do Contra-Flecha.
Sara tinha um estilo diferente, mas manteve a jovem maga delas sempre na
melhor posição e no seu campo de visão.

Era um bom contraste com a criança impulsiva e talentosa que eu lembrava


dos velhos tempos. Talvez ter alguém mais novo para cuidar havia ajudado ela
a amadurecer? Independentemente do caso, ela agora era a imagem perfeita
de uma aventureira veterana.

No final das contas, a peregrinação prosseguiu sem nenhum problema.


Tivemos que lutar contra grupos de monstros algumas vezes pelo caminho,
mas nenhum deles foi muito perigoso. Conseguimos voltar para Sharia sem
nenhum ferimento muito grande.

Dessa forma, nosso trabalho havia sido completado.

A Princesa de Ranoa e seus guardas passaram a noite em sua pousada em


Sharia, pegaram os dois aventureiros que estavam se recuperando e partiram
para a capital pela manhã. Eles precisavam voltar antes da neve começar a cair
de verdade, então não podiam perder nem um segundo.

O resto de nós partimos em direção à muralha da cidade para nos despedirmos


deles.

— Eu não quero iiiiirrr! Ainda tenho tanto para aprender sobre magia com a
minha querida Senhorita Roxy!

— Se controle, criança.

— Ah, já sei! Por que não entra no nosso grupo, Senhorita Roxy? Não se
preocupe, tenho certeza de que todas ficarão felizes em te receber!

— É bem gentil de sua parte me ofertar isso, mas estou feliz com meu trabalho
aqui. Além de que sou uma mulher casada…
— Não é nada demais! Se você perambular por um tempo, ele irá te tratar como
uma deusa quando voltar!

— Já chega, Alisa! Feche a matraca.

— Aaaaaah. Tá…

Antes que partissem, as Amazonas fizeram um leve esforço para recrutar Roxy,
mas ela recusou gentilmente. Isso foi algo bom. Se ela tivesse mostrado algum
interesse, eu teria partido direto para minha defesa patenteada de “grude e
choradeira.” Dignidade ficava em segundo plano nesse momento. Eu precisava
da minha Roxy exatamente onde ela estava.

— Então, Rudeus, acho que isso é um adeus.

Sara também estava indo, obviamente. No início, eu fiquei horrorizado ao ver


ela, mas agora estava feliz por ela estar junto. Pensei que aquela conversa
havia feito bem para nós dois.

— É. Se cuida lá fora.

— Cuide de si mesmo também. Não faça as suas esposas chorarem, viu?

— Bom, vou me esforçar.

— Parece que elas se dão bem, mas jamais comece a comparar elas em voz
alta. Se você rebaixar uma para elogiar a outra, elas irão lembrar para sempre.

— Ah, sim. Certo. Vou lembrar disso…

— É bom que lembre mesmo. Te vejo por aí!

Após isso, Sara me deu um soco leve no peito e partiu. Foi bem casual,
exatamente do jeito que despedidas devem ser.

Sylphie, Roxy e eu ficamos fora das muralhas da cidade por um tempo, vendo o
grupo seguir pela estrada.

Assim que o grupo desapareceu de vista, Sylphie finalmente falou.

— Hm, Rudy. Tem certeza de que quer deixar ela ir assim?

— Como assim?

— Quer dizer… você amava ela, não é?

Olha só. Parece que houve um leve mal-entendido aqui, Senhorita Sylphiette…
— Nah, não nos amávamos. Somente estávamos um pouco sem graça e
perdidos juntos.

— Hmm. Tá… — Sylphie se inclinou para analisar o meu rosto, parecendo tudo,
menos convencida. — Me diga uma coisa, Rudy. Qual é o seu tipo, afinal?

Roxy moveu um pouco suas orelhas e se aproximou após ouvir isso. Parecia
que ambas estavam bem interessadas nessa pergunta. Será que ficariam
felizes se eu dissesse “garotas com peitos pequenos”? Parecia ser um tiro
terrível no meu próprio pé…

— Hmm, boa pergunta. Eu costumava pensar em todos esses detalhes… tipo


“uma garota dessa altura, com esse penteado e esse corpo.” Mas não acho que
eu estava certo.

Parei por um momento para analisar Sylphie e, depois, Roxy. Levou um tempo,
mas então a resposta surgiu na minha mente.

— Parece que garotas que me ajudam quando estou em apuros conseguem um


lugar especial no meu coração.

Isso gerou um sorriso bobo e grande no rosto da Sylphie.

— Ooh. Então isso significa que eu sou especial, Rudy?

— É claro que sim. Você me curou de algo que me afligiu por anos. Sou muito
feliz agora, e foi você quem tornou isso possível.

— Ah é? Hee hee hee… Então ainda bem que tive coragem naquele tempo.

Roxy estava olhando para mim um pouco insegura. Estava com uma expressão
que parecia dizer: E eu?

Passei meu braço pelo ombro dela e a puxei para um abraço. Claro que você
também é especial, Roxy. Ela havia me tirado daquela casa em que eu me
escondia e havia me ajudado a juntar os pedaços quando a morte de Paul
deixou meu coração despedaçado. Eu devia tudo a ela.

— De toda forma, acho que isso quer dizer que não há muitas garotas especiais
para mim por aí. Não precisa ficar insegura, Sylphie. Não vou tomar mais
ninguém como minha esposa. Eu te prometo.

Nesse momento, Sylphie pegou a minha mão.

— Tá… mas vou dizer mais uma vez, Rudy. Desde que ela seja especial para
você, e você seja especial para ela, não vejo problemas. Mas não acho que Sara
se encaixe nessa categoria.
De repente, me peguei lembrando de uma garota de cabelo vermelho que já
tinha sido especial para mim. Lembrei de seu sorriso, de como havíamos nos
esforçado no nosso caminho para casa partindo de uma terra distante, de
como ela havia chorado quando quase morri; e lembrei da última noite que
havíamos passado juntos.

Eris tinha me abandonado, ou era o que eu acreditava por anos.

Mas um homem com quem eu tinha viajado junto, no qual eu confiava


plenamente, tinha certeza de que eu estava errado.

E se ele estivesse certo? O que aconteceria?

— Uh, Sylphie?

— Sim?

— Não tenho certeza disso, mas… eu posso acabar quebrando essa promessa
de novo.

— Está tudo bem… Desde o começo não me importei com isso, lembra? Só
tenha certeza de trazê-la para eu conhecer antes. Não vou te amarrar, mas
também não vou deixar você casar com uma garota que não te ama.

— Tudo bem.

— Isso é uma promessa, viu? Sem amantes ou filhos secretos. Não esconda as
coisas de mim… a não ser que queira me deixar brava.

— U-Uhum… Tudo bem.

— Então tá! Estou interessada em ver como a terceira é, assumindo que você
consiga conquistá-la.

Hmm… Minha doce Sylphiezinha estava começando a desenvolver uma aura


dominante. A pouco tempo atrás, ela estava dizendo modestamente que só
“tinha sido sortuda”, mas parecia que ela tinha encontrado alguma
autoconfiança.

Isso era um bom sinal. Ela sempre me pareceu um pouco insegura desde que
havia casado comigo, e isso às vezes me preocupava.

Tudo bem, então. Vou ter que garantir mesmo que vou manter essa segunda
promessa, pelo menos…

Lendas da Universidade #10: O Chefe é um mulherengo sem cura.


Cap. 11 – O Dia da Graduação

Logo após Sara deixar a cidade de Sharia, o inverno começou de verdade e eu


fiz dezoito anos. Meus estudos estavam prosseguindo sem nenhum problema,
além de que consegui completar todos os requerimentos para passar de ano
na Universidade. Eu seria um aluno do quarto ano em breve. Tudo estava indo
bem.

Elinalise, por outro lado, tinha repetido de ano. Diferentemente de mim, ela era
uma estudante comum, e sua ausência de seis meses a deixou muito para trás.
Isso não pareceu incomodá-la nem um pouco, mas me senti um pouco culpado
por isso. Afinal de contas, durante esse tempo todo ela ajudou a minha família.

A propósito, Sylphie também não atingiu a frequência mínima do ano.


Entretanto, suas notas ainda eram excelentes e levaram seu dever de guarda-
costas da Princesa Ariel em consideração, então ela acabou conseguindo uma
permissão especial para passar de ano. Às vezes tudo depende de quem você
conhece.

As coisas também iam bem em casa. Lucie estava crescendo rápido. Ela já
perdeu o interesse em ser amamentada, ultimamente tem comido papinha de
bebê ao invés de leite de peito. E, num outro dia, tinha falado comigo pela
primeira vez! Ela tinha olhado bem nos meus olhos e dito “Wudee.”

Eu, aparentemente, era o “Rudy” para ela, não o “Papai”, o “Papa” ou o “Sr.
Bobão”. Mas ninguém me chamava assim em casa, então eu não poderia
culpá-la. Ela estava chamando a Sylphie de “Mama”, mas isso ocorria porque
Sylphie tinha ensinado isso para ela de propósito. Talvez eu devesse fazer o
mesmo e mudar o meu nome para “Papa”.

Nah, não há necessidade de apressar as coisas.

Ela ainda era um bebê. Assim que crescesse um pouco, eu a ensinaria a me


chamar de “Queridíssimo Pai”. De toda forma, não era meio incrível que ela já
estivesse falando? Talvez tivéssemos uma pequena gênia em nossa família!

Tá bom, tá bom. Isso não é nada fora do comum. Algumas crianças começam
a falar cedo e outras demoram um pouco mais. Sylphie e Lilia também ficavam
constantemente falando com ela. Provavelmente tinha algo a ver com isso.

Mas, olha… é incrível quando se vê a sua criança começando a falar, sabe?

Também havia um lado negativo, claro. Assim que crescesse, ela poderia
começar a dizer coisas como: “Não lave minhas roupas de baixo junto com as
do Papai!”

Hmm, na verdade, não. Por algum motivo, eu estava ansioso por isso!

Já que nossa filha não estava mais mamando, os peitos da Sylphie pararam de
produzir leite. Isso foi triste demais. Eu perdi minha chance de desfrutar aquele
líquido doce e excitante. Eles também voltaram ao tamanho normal. Claro que
eu gostava deles do jeito que eram, mas… parecia aquele momento em que o
tempo da fase bônus acabava.

Mudando de assunto, também encerramos nosso contrato com a Suzanne, já


que não precisávamos mais de uma ama de leite. Mas eu ia permanecer em
contato com ela. Ela cuidou muito bem da minha neném, além de ter cuidado
de mim no passado. Eu queria retribuir sua gentileza, se possível. Talvez
pudesse cuidar de seus filhos, caso entrassem para a Universidade. Eu
provavelmente já teria me graduado antes disso, mas poderia pedir para Norn
cuidar deles por mim.

Norn e Aisha também estavam se dando bem ultimamente. Sempre checavam


como Lucie estava e murmuravam sobre o quanto ela era fofa. Ela,
provavelmente, parecia mais uma irmãzinha para elas do que qualquer outra
coisa.

Em certo momento, as escutei conversando na escada. Pelo que parecia,


tinham decidido não brigar na frente da Lucie. Pareciam também ter pensado
em diversos outros planos elaborados. Provavelmente queriam que ela as
admirasse.

Recentemente, não as vi discutindo do jeito que faziam antes. Acho que


algumas crianças tentam agir de forma mais “adulta” quando tem alguém mais
novo na casa. Era um efeito colateral agradável, e inesperado, da chegada de
Lucie.

O primeiro ano de Roxy como parte do corpo docente também parecia estar
prosseguindo tranquilamente.

Eu recentemente vi alguns estudantes a olhando com admiração. Talvez


estivessem começando a perceber sua grandiosidade, ao menos um pouco.
Minha intenção era reeducar à força qualquer um que ousasse zombar dela…
mas parecia que as crianças para quem ela dava aula a escutavam
respeitosamente. Com sorte, continuaria assim.

A rotina da Zenith continuava a mesma. Quando Norn estava por perto, elas
comiam juntas; e quando Aisha ia para o jardim, elas arrancavam ervas
daninhas juntas. De vez em quando, ela segurava os dedos da Lucie
gentilmente e sorria para ela.

Essa foi uma grande mudança: após a festa de aniversário de Norn e Aisha,
Zenith começou a sorrir com certa frequência. Seus sorrisos eram pequenos e
discretos, mas todos os reconheciam pelo que eram.

Ela ainda não estava falando e suas expressões faciais permaneciam bem
limitadas. Mas eu queria acreditar que estava seguindo em direção à
recuperação.

Hoje era o dia da graduação.

A Universidade realizava suas cerimônias na entrada do campus, mas as de


graduação eram realizadas do lado de dentro. Tinham instalado um palco
enorme em um auditório gigante, no qual eu nunca tinha pisado, lá é onde os
estudantes do sétimo ano receberiam, um por um, os seus diplomas.

No total, havia apenas cerca de quinhentas pessoas se graduando. A


Universidade tinha mais de dez mil estudantes, então esse número era
estranhamente baixo. Esta turma provavelmente tinha começado com duas mil
pessoas, mas a maioria devia ter desistido com o passar dos anos.

Era fácil se matricular nessa escola, mas não era tão simples de se graduar. A
magia de nível Avançado e a magia combinada eram particularmente difíceis
de dominar. Poderia até ser impossível para quem tinha uma capacidade de
mana pequena.
Também havia muitas pessoas que tinham algum talento, mas decidiam que
dominar as magias de nível Iniciante era o suficiente. Além daqueles que
desistiam por diversos motivos pessoais ou financeiros. Em comparação, a
Classe Especial tinha uma vida fácil.

Enquanto a maior parte do palco estava ocupado com fileiras de graduandos, o


corpo docente inteiro estava alinhado do outro lado. Devia haver por volta de
duzentos a trezentos deles no total.

Eu não sabia quantos professores esse lugar tinha. No entanto, isso explicava o
porquê utilizavam um prédio separado inteiro como escritório do corpo
docente.

Era fácil encontrar a Roxy no meio da multidão, já que ela era a mais baixa
deles. Mesmo de longe, pude ver seus olhos brilhando de animação.

A propósito, os estudantes em geral ganharam um dia livre. As crianças dos


outros anos não eram obrigadas a participar desse evento ou da cerimônia de
entrada para os novatos. Na verdade, precisavam de uma permissão especial
para participar. Participar disso provavelmente era uma honra que se devia
conquistar.

Eu estava sentado no canto da área de assentos reservados para o Conselho


Estudantil. Todos os membros estavam presentes: Ariel, Luke, as duas
acompanhantes reais e quatro outras pessoas cujos rostos eu reconheci. Além
de Sylphie, claro.

Era sempre bom vê-la em seu modo “equilibrado e profissional”. Há pouco


tempo, ela era indistinguível de um garoto nessas roupas; mas seu cabelo
agora chegava até seus ombros, além de seu corpo ter ficado um pouco mais
feminino após a gravidez.

De alguma forma, ela conseguia ser fofa e legal ao mesmo tempo. Tive que
lutar contra o impulso de me gabar para estranhos de que ela era minha
esposa.

No entanto, mudando de assunto… Por algum motivo, Norn estava sentada no


último assento da seção do Conselho Estudantil. Ela era uma membra ou algo
assim? Eu não tinha ouvido nada sobre isso. Ela não tinha trabalhado com eles
durante o ano, mas talvez fosse entrar no começo do novo semestre.

Eu não queria me intrometer nem nada, mas, com sorte, ela me falaria o que
tinha acontecido antes do novo ano começar.

— Representantes da turma de formandos… Linia Dedoldia e Pursena Adoldia!


Se aproximem para receber seus diplomas e suas credenciais como membras
de rank D da Guilda dos Magos!
Linia e Pursena tinham sido escolhidas como representantes dos formandos.
Elas tinham passado um tempo aprontando, claro, mas também tinham
conseguido conquistar resultados incríveis. Claro que elas também eram
princesas da tribo Doldia, os governantes dos homens-fera; e parecia que a
Universidade preferia conceder essa honra aos estudantes de nascimento
nobre. Caso tivessem um plebeu e um nobre com resultados comparáveis,
escolheriam o nobre para ser representante. Era uma forma de obter favores de
pessoas poderosas sem causar nenhum grande problema.

Assumi que as coisas seriam diferentes se um plebeu fosse o melhor


estudante do ano disparado, mas era difícil saber. Roxy tinha sido uma
excelente estudante na sua época, e não tinham dado essa honra a ela. Não
tinha como saber o quão habilidosa ela era na época, mas parecia que já era
capaz de usar magia de nível Santo… e, mesmo assim, deram essa honra a
outra pessoa.

A Universidade de Magia tinha acertado em cheio ao aceitar qualquer um que


quisesse se matricular, independentemente de sua origem. Mas quem a dirigia
era uma pessoa que, visivelmente, tinha suas tendências.

— Muito obrigada, senhor!

— Muito obrigada, senhor!

— Parabéns. Que vocês possam trilhar o caminho da magia pelo resto de suas
vidas!

Linia e Pursena receberam seus diplomas com postura e dignidade. Foi muito
interessante vê-las crescer até esse ponto. Elas haviam deixado clara a
intenção de procurar namorados durante a época de acasalamento. Mas,
quando os diversos pretendentes surgiram, derrotaram todos e jogaram um por
um para o canto. No final de tudo, ficaram juntas em cima de uma pilha de
corpos murmurando: “Mas que caralho. Ficamos fortes demais” e “Que saco.”

Essas memórias passaram pela minha mente. Nesse momento glorioso, elas
eram a realeza; as duas Rainhas da selva, as quais eram invencíveis e
intocáveis.

Eu também tinha algumas lembranças delas se dirigindo para uma taverna


após aquilo e gritando após se embebedarem: “Miaau! Nunca mais quero saber
de homens!” e “Eu também! Eles são idiotas pra caralho!”, mas eu ia me esforçar
para esquecer dessa parte.
Após a cerimônia de graduação acabar, passei pelo laboratório de Nanahoshi,
onde a encontrei coberta por algo que parecia um roupão grosso enquanto
tossia e fungava constantemente.

— Ficou gripada de novo, Nanahoshi?

— Cof, cof… Acho que sim.

Fazia, mais ou menos, um ano que ela tinha começado a ficar gripada
frequentemente. Isso, normalmente, vinha junto com uma tosse seca ou uma
febre repentina. Eu usava magia de desintoxicação para ajudá-la quando isso
acontecia, mas sempre voltava a acontecer pouco tempo depois.

— Já pensou em cuidar um pouco melhor de si mesma? Sair um pouco, sabe?

Nanahoshi quase não saía de seu laboratório, no geral. Ela emergia quando
acontecia algo importante, mas, tirando isso, tinha passado o ano inteiro
enfurnada no lugar, só saindo para o almoço. Ela contava com seu estoque de
comida em conserva para o café da manhã e para a janta.

Na maior parte de seu tempo estava sozinha nesses cômodos, onde o sol não
a alcançava. Não era surpresa nenhuma que sua imunidade estivesse baixa. Eu
entendia que ela tinha suas prioridades, mas senti como se a garota precisasse
levar a sua saúde mais a sério.

— Por que não tenta descansar, pelo menos até essa tosse chata acabar?

— Não posso parar de trabalhar justo agora. Ultimamente estou conseguindo


avançar muito com a pesquisa…

Após isso, ela voltou aos seus círculos mágicos.

Ela não estava errada; a pesquisa estava prosseguindo bem. Ela tinha
terminado a segunda fase de seu plano vários meses antes ao invocar, com
sucesso, uma tampa que cabia perfeitamente na garrafa pet que tinha obtido
na primeira fase.

Atualmente estávamos na terceira fase, na qual tínhamos que invocar um ser


vivo, como uma planta ou um animal. Esse era um passo enorme e excitante.
Não estávamos muito longe de trazer vegetais de nosso antigo mundo para
este, e ficávamos mais próximos disso a cada dia.

— Hoje vamos continuar trabalhando nos experimentos da fase três.

— Não deveríamos esperar até Cliff e Zanoba estarem disponíveis?

— Acho que sim. Que tal ir buscar eles?

Balancei minha cabeça.


— Infelizmente não estão no campus hoje.

— O quê? Ambos faltaram? Que estranho. Você sabe o motivo?

— Hoje é o dia da graduação, ninguém tem aula.

— Dia da graduação…? Ah, já estamos nessa época do ano?

Nanahoshi fez uma careta enquanto falava. Para ela, isso apenas significava
que mais um ano havia passado; mais um ano que passou presa neste mundo.

— Sim. Linia e Pursena já até pegaram seus diplomas. Parece que vão voltar
para casa em breve, então eu estava pensando em fazer uma festa de
despedida mais tarde. Você vai participar, não vai?

— Creio que sim…

Eu não sabia se Nanahoshi considerava Linia e Pursena suas amigas, mas era
bom saber que estava disposta a ir se despedir. Ela ainda era, essencialmente,
uma reclusa, mas tinha ficado um pouco mais sociável do que antes.

— Acho que elas voltarão a ser princesas após chegarem em casa… Estranho,
né?

— Elas realmente não parecem com uma.

— Não posso discordar.

Para ser honesto, eu estava um pouco preocupado com o futuro da tribo


Doldia. Mas, com sorte, teriam alguém competente o suficiente para manter
tudo em ordem caso uma idiota se tornasse a líder.

No entanto, justamente enquanto eu pensava nisso, alguém bateu à porta.

— Hm? Ah, pode entrar.

— Com licença!

— Estou entrando.

Nossas novas visitantes eram uma gata atrevida e uma cachorra com olhos
sonolentos. As pessoas de quem estávamos falando.

Linia e Pursena entraram no cômodo, ainda vestindo seus uniformes.

— Procuramos você por toda parte, Chefe.

— Tá livre?
Algo parecia diferente nelas, mas era difícil saber o quê. Era por Linia parecer
um pouco nervosa? Ou por Pursena não estar com um pedaço de carne na
boca? Eu pensei ter sentido algo parecido com hostilidade no ar. Isso me fez
lembrar do dia em que nos conhecemos.

Normalmente, já teriam dito: “Miiiiaaau! O chefe está no quarto de uma mulher


solteira de novo! Talvez eu diga para a Fitz ou para a Roxy!” Mas, dessa vez, elas
estavam comportadas.

Então era hora de outro duelo? Elas queriam acertar as contas antes de deixar a
cidade?

— Por favor, Chefe?

— Precisamos disso, cara.

Elas não falaram muito, mas pude sentir o peso de suas palavras. Seus olhos
estavam brilhando de determinação.

Talvez elas não quisessem voltar para casa como “perdedoras.” No fim das
contas, elas ainda tinham seu orgulho.

Bom, então tudo bem. Eu não gosto de lutar, mas vou abrir uma exceção para
vocês duas. Não seria certo recusar isso agora…

— Então tá bom. Desculpa, Nanahoshi, parece que elas precisam de mim.

— O quê? E os experimentos?

Nanahoshi não parecia nada feliz com o que tinha acontecido. Mas Linia foi até
ela e a segurou pelo braço antes que pudesse se opor ainda mais.

— Venha você também. Essa é uma ocasião especial.

— É, nós permitiremos.

— Quê… Ei! O que é isso?!

Aparentemente queriam que Nanahoshi fosse uma testemunha do nosso duelo


ou algo assim. Não era a melhor escolha, levando em conta que ela raramente
falava com alguém… mas essas duas não eram o tipo de pessoa que pensava
bem nisso.

Por outro lado, o nome Silente Setestrelas era relativamente bem conhecido
pelo mundo afora. Seu testemunho teria ao menos alguma credibilidade.

Nós quatro caminhamos até um local entre os dormitórios e o prédio de


Nanahoshi. Havia uma floresta em um lado da via e amontoados de neve no
outro. Seria difícil alguém nos ver de longe.
— Vamos fazer aqui — disse Linia enquanto parava.

— Realmente me faz lembrar daquilo — murmurou Pursena enquanto assentia.

Esse era o local onde Zanoba e eu encurralamos e as sequestramos vários


anos atrás. Em outras palavras, era o lugar onde eu tinha lutado com elas pela
primeira vez. Parecia ser um local apropriado para o último duelo.

Linia e Pursena ficaram na minha frente.

Elas estavam se encarando, aproximadamente a dez passos de distância uma


da outra. Por algum motivo, não estavam olhando para minha direção.

Hã…?

— Chefe, Nanahoshi… queremos que vocês observem bem isso.

— Uh… o que iremos ver?

— Linia e eu iremos descobrir qual das duas é a mais forte.

Ah, elas iam duelar uma contra a outra?

— E por que vão fazer isso? — perguntou Nanahoshi, um pouco surpresa.

— Quem vencer vai ser a próxima líder dos Dedoldia.

— Isso realmente é necessário? Não existem duas tribos lá, os Dedoldia e os


Adoldia?

O lugar onde eu tinha ficado da última vez pertencia aos Dedoldia, mas eu tinha
a impressão de que também tinha escutado algo sobre a vila Adoldia. Não
tinha um segundo líder cuidando de lá?

Hmm. Talvez o líder dos Dedoldia se tornasse, automaticamente, o governante


da tribo inteira ou algo assim…

— Miau… a princípio nós íamos voltar juntas, Chefe.

— Só que pensamos melhor. Tem um mundo grande para caralho por aí, não é?
Além de que a vida é mais do que só mandar nas pessoas.

— Nós temos irmãs mais novas em casa. Uma de nós pode voltar e ensinar
para elas as coisas que aprendemos aqui.

— A que for a mais forte de nós duas vai voltar para ser a chefe. A outra vai
viver a vida que quiser.

Um plano interessante e, com “interessante”, eu quero dizer “ridículo”.


No entanto, elas tinham mudado a maneira como viam o mundo. O que tinha
acontecido com toda aquela sede por poder?

— Se nós duas voltássemos, acabaríamos duelando de qualquer maneira, miau.

— E se lutássemos na Grande Floresta, a perdedora teria uma vida entediante


demais. Ela seria obrigada a casar com o melhor guerreiro da vila ou algo
assim.

— É melhor resolvermos isso aqui e agora, e depois seguirmos nosso próprio


caminho.

— É. Sem rancor de nenhum lado, sabe?

Ah. Agora estava começando a fazer sentido.

Ambas queriam ser a número um na Grande Floresta. Mas quem não


alcançasse esse objetivo, preferiria viver em um lugar totalmente diferente.
Talvez conseguisse chegar ao topo em outro lugar que não fosse em casa.

O plano tinha algumas falhas, por assim dizer. Eu estava morrendo de vontade
de perguntar algumas coisinhas, como por exemplo: Vocês realmente podem
tomar essa decisão sozinhas? Sem nem perguntar para as pessoas de lá? Mas,
no final das contas, não era meu dever convencê-las. Elas claramente tinham
pensado bastante nisso, além de que eu conseguia entender o desejo de ter
controle sobre a própria vida.

— Certo, entendi. Não vou interferir. Fiquem à vontade.

— Quê? Vai ajudar elas a brigar? Tem certeza disso? — disse Nanahoshi com
um tom de desaprovação.

— Está tudo bem. Elas vão lutar de toda forma, comigo olhando ou não.

Pelo que eu conseguia dizer, Linia e Pursena estavam empatadas em relação a


força. A não ser que tivessem alguém para julgar o resultado, havia uma
chance da luta não ter uma vencedora definida. Ou, no pior caso, poderiam
acabar exagerando e se ferindo. Nossa presença como testemunhas era uma
precaução necessária.

Além disso, eu não ia chamar a atenção para isso, mas isso não era
uma luta; era um duelo. Elas não estavam bravas uma com a outra, somente
estavam competindo pela superioridade.

— Nós agradecemos, miau.

— Valeu, Chefe.
Linia e Pursena disseram algumas palavras de gratidão antes de voltar a focar
no que tinham que fazer.

Elas respiraram profundamente e demoradamente… e, então, se encararam


ferozmente.

— Hissss!

— Grrrrrr!

De repente, começaram a emitir sons agressivos e não muito elegantes.

O ar aparentava estar cheio de tensão. Era como se a batalha pudesse começar


a qualquer momento.

Ativei meu Olho Demoníaco e vi que Nanahoshi também tinha colocado um de


seus anéis de autodefesa. Estávamos prestes a presenciar uma luta séria entre
duas pessoas do povo-fera. Não tinha como saber o que poderia voar em
nossa direção.

— Pursena, eu queria te falar isso já faz um tempo, mas eu cansei de você,


miau!

— É? Bom, eu que cansei de você. Antes você corria feito uma bebezona atrás
de mim e, agora, está agindo como se fosse importante!

— Miau?! Eu era praticamente a sua babá! Não lembra daquela vez que eu te
acobertei quando você fez xixi na cama?! O que aconteceu com aquilo de que
“os Adoldia nunca abandonam quem os ajuda”, hein?!

— Eu te recompensei quando te puxei para fora do rio! Inclusive, que coisa


patética foi aquela? A tribo Dedoldia não deveria ser habilidosa na natação?!

— Para começo de conversa, aquilo foi tudo culpa sua! Você que tinha
derrubado aquele brinquedo que o Vovô tinha te dado na água! Igual uma
idiota!

— Eu derrubei por culpa sua!

Bom, isso era interessante. Eu nunca tinha escutado uma discussão tão feroz,
mas que não tinha maldade nenhuma. Elas tinham se irritado bastante, mas eu
não conseguia perceber nem um pouco de ódio em suas palavras.

— Você é uma imbecil estúpida, Pursena!

— E você é idiota para caralho, Linia!

E, agora, tinham começado com os xingamentos infantis…


— Você é fedida!

— Você tem pernas curtas!

— Quê… Bom, você é gorda!

— Não sou não!

No final, foi Pursena quem perdeu a paciência primeiro. Uma única palavra,
“gorda”, tinha sido a gota d’água.

— Grrrrraaaaah!

Ela avançou para cima de Linia enquanto jogava o punho para trás e se
preparava para dar um golpe poderoso.

— Hissssss!

Linia reagiu com a agilidade de uma pantera, atacando com o seu próprio
punho…

— Guh…

— Ugh…

E acabaram acertando uma à outra com um contra-ataque duplo.


As duas cambalearam para trás… e, então, o duelo começou de verdade.
— Olha só! Pursena avança ferozmente, mas Linia desviou perfeitamente!
Pursena está avançando nela igual um tanque, mas… acaba sendo afastada!
Linia está usando a tática de bater e correr, meus amigos. Pursena está a
perseguindo! Ela tem a vantagem na força bruta, mas a sua oponente é só um
pouco mais rápida! Se fosse uma briga de bate-rebate, a Linia não teria chance!
Mas força bruta não é a única coisa que importa! Você tem que pegá-la
primeiro, ou sua força não servirá de nada!

“Olhe para essa agilidade! Um belo gancho! E outro! E um direto! Uau, a Pursena
não liga para as defesas! Linia não consegue nem se aproximar. Se afastou um
pouco demais! Nooooossa! Um golpe brutal da Pursena! Que deus tenha
piedade da Linia!

“Linia cambaleou! Senhoras e senhores, ela parece ter sentido bastante! E


Pursena não dá pausa! E agora, Linia? Vai fugir disso? Não, ela arrisca ficar! Um
gancho de esquerda! Mais um! Aah, isso foi esplêndido! Pursena está levando
um dano considerável! Os socos tenazes de Linia estão acertando! Ela pode
não ter a força de Pursena, mas cansou de fugir!

“Pursena recua. Mas, ainda assim, seus olhos estão brilhando. Meus amigos,
ela é uma caçadora que está de olho em sua presa! Linia parte para o ataque
com seu punho direito enquanto Pursena dá um passo para a frente…

“Meu Deus! Viu esse tanto de sangue?! Linia a cortou com uma faca?!

“Não, foram suas garras! Ela estendeu suas garras e arranhou Pursena
enquanto dava aquele soco! É o mortífero soco gatuno, polido à perfeição! E
isso é permitido, meus amigos. Não há regras para essa luta!

“Linia bate e arranha! Bate e arranha! É uma sequência de cada um dos dois
lados! Ela está fazendo Pursena sofrer! Esse é um tipo totalmente novo de dor,
o qual ela não estava esperando! Santo deus! Linia acabou de abrir um buraco
no uniforme dela! Acabamos de chegar ao território da nudez acidental! Talvez
tenhamos que cortar para os comerciais, meus amigos!

“Olha só, a Pursena está partindo para o ataque do mesmo jeito! Ela não liga!
Agora ela é uma boxeadora, não uma adolescente envergonhada! Boom! E
acertou um gancho em cheio no corpo da Linia! Será que vai acabar assim?
Pursena irá finalizar?!”

— Se não tem regras, por que não estão usando magia? — perguntou
Nanahoshi.

— Ah, boa pergunta. Após a Pursena começar a briga corpo a corpo, a magia se
tornou irrelevante. Elas não estão dando tempo o suficiente para a outra
terminar o cântico. Sylphie ou eu ainda conseguiríamos lançar algumas magias
não verbais nessa situação, mas essas duas são guerreiras de natureza. E com
uma movimentação intensa dessas, seria difícil dizerem uma única palavra que
fosse. Um maratonista conseguiria recitar um poema enquanto corre pela
estrada? Não, isso seria impo…

— Tá bom, eu entendi. Desculpa por ter te interrompido. Agora pode continuar.

— Linia parou de se mover! Talvez seja o fim, pessoal! Elas estão trocando
socos! Acabaram as esperanças? Os socos de Pursena conseguiram
neutralizar a velocidade de Linia! Ela não pode mais usar o “bate-e-corre!” A
borboleta perdeu suas asas? Ela caiu nas presas de sua adversária?

“Não! Ainda não acabou! Ela está desviando dos socos! Ela realmente está
desviando! Com seus reflexos de gato, se abaixa e esquiva! Está se esquivando
de tudo com a sua técnica apurada ao máximo! Ela ainda não levou um dano
sólido! E, agora, um contra-ataque! Um soco gatuno brutal! Pingos de sangue!
Acertou a bochecha da Pursena e a fez cambalear para trás!

“Linia deu um passo para frente para continuar com a vantagem. Meu deus, um
chute circular! Ela quer deixar aquela garota inconsciente! Aah!
Pursena… Pursena faz uma investida! Ela se joga no ataque! Meu Deus, ela
mordeu a perna da Linia! Ela mordeu enquanto ia em direção ao seu pescoço!
Ela é um cão de caça, meus amigos! Ela é uma máquina, uma besta enjaulada
com ódio! Seus punhos não são sua única arma!

“Pursena a pressiona e… derruba sua presa no chão! Linia chegou perto


demais?! Mas Pursena não é a única com dentes mortais! Ela foi mordida de
volta! Olhe para esses dentes! Agora já é uma luta livre que só tende a piorar!”

— Sendo honesta, para mim só parece que estão caindo e esbofeteando uma à
outra…

— Bom, sim. Também poderíamos falar isso.

— Olha, eu odeio ser estraga-prazeres, mas posso te perguntar uma coisa?

— Claro. O que foi?

— Elas parecem estar levando essa luta a sério, então por que você está
fazendo parecer uma grande piada?

— Desculpa…

O duelo durou um bom tempo.

De alguma maneira, começou com uma troca de insultos e, depois, seguiu para
a troca de socos. No início parecia uma luta de boxe de alto nível, mas no final
já tinha virado algo mais parecido com uma briga de criança, que só utilizava
arranhões e mordidas.
Pelo que pareceram horas, ambas ficaram rolando na neve, brigando uma com
a outra… mas, então, finalmente pararam.

Somente uma delas se levantou.

— Eu consegui, porra…

Foi Pursena.

Ela estava com arranhões, mordidas e hematomas dos pés à cabeça. Sua
roupa estava em farrapos, molhada com neve e manchada de sangue. Algumas
de suas feridas ainda estavam sangrando.

Era uma visão admirável.

Essa era uma mulher que tinha lutado pela vida… e triunfou.

—…

Pursena olhou para sua adversária caída e pareceu estar em um dilema por um
momento. Mas então virou o seu rosto de forma arrogante.

Um tempo depois, cambaleou em nossa direção.

— Eu venci, Chefe.

— Hm, é. Parabéns… Senta um pouco que eu vou te curar, tá?

Ergui minha mão para tocar a ferida aberta em seu ombro, mas ela afastou a
minha mão.

— Obrigada, mas não precisa. Essas são cicatrizes de honra. Eu prefiro mantê-
las.

— Ah… certo.

Cicatrizes de honra, né?

Elas estavam extremamente sérias sobre isso. Me senti um pouco


envergonhado por assumir que ninguém iria se ferir.

— Eu não sei se vou ver a Linia de novo, sabe? Então quero, pelo menos,
manter isso para lembrar dela.

— Hm, mas… vocês não vão ficar juntas pelo menos até deixar a cidade?

— Não, vamos nos separar aqui e agora. Já arrumamos nossas malas e tudo
mais.
Elas deviam ter combinado essas coisas antecipadamente, já que esse era o
lugar onde seus caminhos começariam a se divergir, então também deveria ser
onde se despediriam. Isso era meio poético.

Aparentemente eu teria que cancelar os meus planos para uma festa de


despedida. Se não, estragaria tudo.

— Só tenta pedir para alguém te ajudar com as feridas, tá? Mesmo que não seja
um mago.

— Certo, pode deixar.

Após isso, Pursena começou a cambalear em direção aos dormitórios.

Enquanto eu observava, Nanahoshi correu até ela. Ela colocou sua capa sobre
os ombros de Pursena para cobri-la e partiram para os dormitórios enquanto
Pursena se apoiava nela para caminhar. Ela realmente tinha um lado gentil.

Bom, agora…

Caminhei para onde Linia estava e a observei de cima.

— Está viva?

Ela não estava inconsciente nem nada assim, só estava olhando para o céu
com um olhar vazio em seu rosto.

— É — disse ela após um momento. — Acho que sim.

Ela parecia estar tão mal quanto Pursena, se não estivesse pior. Suas roupas
estavam rasgadas e esfarrapadas, um de seus ombros estava sangrando
profundamente deixando a neve vermelha, além de que seu rosto estava
inchado por todos os socos que tinha levado. Havia um pouco de sangue
saindo de sua boca. Parecia ser mais um corte dentro da boca do que uma
ferida interna.

— Você não está muito sexy agora, sabia?

— Eu também não estou me sentindo sexy.

Olhando de perto, percebi que a roupa da Linia não estava mais cobrindo
adequadamente certas partes de sua anatomia. Tirei o meu casaco e coloquei
em cima dela. Não queria me distrair nessa hora. Ficou um pouco frio sem ele.
Com sorte, o resfriado da Nanahoshi não pioraria.

— Valeu, Chefe.
Linia moveu lentamente as suas mãos, que estavam tremendo, e as juntou
debaixo de sua cabeça. Ela também cruzou as pernas. Parecia que estava
deitada em um sofá, ao invés de um monte sujo de neve.

— Cara… acho que eu perdi, miau.

Suas palavras flutuaram pelo ar e se dissiparam, como uma nuvem de vapor.

— Mas foi uma luta e tanto — falei.

— Me poupe disso, Chefe. Eu ouvi os seus comentários. Você parecia estar se


divertindo bastante.

Ela tinha razão. Talvez eu não tivesse levado isso muito a sério.

Mas, ainda assim, a luta delas tinha sido, de fato, interessante. Era quase
como… uma luta feroz entre gatos? Ou uma batalha ardente entre dois
candidatos ao título?

É… Na verdade, vamos tentar evitar as metáforas de boxe. Provavelmente só a


irritaria…

— Pelo menos eu te fiz rir um pouco para lembrar de mim, né?

— Desculpa. Estou arrependido.

— Tá tudo bem. Tenho certeza de que só pareceu uma rixa maluca para quem
via, não foi? Além disso, a vida se trata de se divertir mesmo.

Enquanto falava isso, Linia fez careta. Ela se virou para lamber um corte feio
em seu braço.

— Você também não vai querer a magia de cura? — perguntei cuidadosamente.

— Bom, falando a verdade, eu não gosto de carregar as lembranças das minhas


derrotas… mas, é, acho que vou abrir uma exceção para essas. Talvez eu possa
me gabar sobre elas daqui a alguns anos.

Eu também já tinha deixado algumas cicatrizes em alguns guerreiros do povo-


fera. Me perguntei se algum deles as mostrou com orgulho.

—…

Linia ficou em silêncio e olhou para o céu.

Eu também olhei para cima. Era um dia cinza; um céu típico dos Territórios
Nortenhos. Teríamos mais neve durante a noite, sem dúvidas.

— O que planeja fazer agora, Linia?


— Hmm. O que quer dizer?

— Bom, você disse algo sobre viver da maneira que quiser. Tem algo em
mente?

— Sim, claro. Pensei em viajar um pouco por aí e, depois, abrir a minha própria
loja.

Era… bem difícil de imaginar a Linia conseguindo manter um negócio aberto. Eu


conseguia ver ela como uma aventureira, talvez, mas…

— Espero que tenha pensado em um plano.

— Claro que sim!

Bom, ela parecia confiante, pelo menos. Com um plano conseguiria, né?

Eu ainda não confiava muito nisso. Tinha essa sensação de que ela iria se
enrolar no meio de ideias mal pensadas e acabar entrando em problemas.

— Do jeito que pensei, vou rolar em dinheiro daqui a, mais ou menos, cinco
anos.

— Hmm… Ah, tá. Mas só para deixar claro, você pode vir pedir ajuda para mim,
caso precise.

— Miahaha. Quando eu ficar rica, vou deixar você pegar meu dinheiro
emprestado!

Sem considerar que ela tinha acabado de perder o duelo mais importante de
sua vida, Linia não parecia estar muito triste. Talvez estivesse feliz em ter se
libertado das responsabilidades da tribo Doldia, pelo menos por enquanto. Ou
talvez só estivesse fingindo.

De toda forma, parecia que ela tinha aceitado que esse capítulo de sua vida
tinha chegado ao fim.

Linia e Pursena não se despediram dos outros.

Após o duelo foram direto para o dormitório, uma um pouco depois da outra.
Lá, desinfectaram e enfaixaram suas feridas, pegaram suas malas e deixaram
o campus em horários diferentes.

Observei Linia enquanto partia, e Nanahoshi fez o mesmo com Pursena.

Nenhuma delas queria conversar muito. Elas nos pediram para dizer adeus
para Cliff e Zanoba por elas, mas somente isso. Nossos amigos provavelmente
ficariam tristes por não poder se despedir.
Pursena presumidamente voltaria direto para a Grande Floresta, onde iria
treinar exaustivamente para assumir a liderança da tribo. O futuro de Linia era
mais incerto, mas eu queria acreditar que ela encontraria seu próprio caminho.

Parecia que elas estavam decididas a nunca mais se ver. Isso era uma pena, se
levarmos em conta o quão próximas eram. Ainda assim, não pude deixar de
admirar suas decisões e determinações.

Fugindo um pouco do assunto, mas naquela mesma noite escutei uma


conversa na rua.

Alguém disse: “É, eu vi duas mulheres do povo-fera, totalmente enfaixadas,


discutindo algo na parte de trás da carruagem.”

Elas provavelmente negligenciaram a checagem de horários das carruagens


que levavam para fora da cidade e acabaram na mesma.

Isso tudo depois daquela luta dramática.

Lendas da Universidade #11: O Chefe sempre acertas as contas.

Cap. 12 – Quarta Fase

Vários dias após a cerimônia de formatura, voltei ao trabalho.

Havia um grande círculo mágico espalhado diante dos meus olhos. À primeira
vista, quase parecia que estava impresso em uma placa de pedra.

A “placa”, no entanto, era na verdade composta por mais de cem folhas de


papel superdimensionado empilhadas umas sobre as outras. Cada página foi
coberta com outra parte do design geral. Uma moldura de madeira mantinha
tudo bem fixo no lugar. Também havia círculos mágicos esculpidos
em sua superfície.

Não era exagero chamar essa coisa de instrumento mágico completo.


Obviamente, sua criação demorou bastante. Eu ajudei quando pude, mas na
maior parte foi trabalho exclusivamente da Nanahoshi.

— Então tá bom. Por favor, comece.


Nanahoshi estava agachada na minha frente, olhando para sua criação. Cliff e
Zanoba a flanqueavam de cada lado.

Eles têm nos ajudando com essa pesquisa há algum tempo, então eu pedi que
observassem sempre que estivéssemos à beira de um grande avanço.

Nanahoshi não gostou da ideia, mas acabou cedendo quando argumentei que
eles ganharam o direito de estar presentes.

Claro, a presença deles não era realmente uma recompensa. Eles estavam ali
no caso de o experimento falhar e Nanahoshi começar a se debater
novamente. Eu queria alguém ali para contê-la… e me ajudar a consolá-la
depois, por falar nisso.

Ter alguém de um gênero diferente para confortá-la era muito eficaz. Pode não
ser uma regra universal, mas era verdade na minha experiência, pelo menos.
Poderíamos levá-la a uma boa taverna e dar-lhe muita atenção. Pagar um
champanhe caro, esse tipo de coisa. Nós três não fazíamos exatamente o perfil
de atendentes de um host club, mas é a intenção que conta, certo?

Dito isso, eu estava me sentindo confiante sobre isso.

Cliff deu aos esboços do projeto seu selo de aprovação. E graças à Prótese
Zaliff, Zanoba estava se tornando cada vez melhor na execução desse tipo de
trabalho de detalhe. Não vi nenhuma razão para fracassar.

É tudo ou nada…

— Estou começando a alimentar com mana… agora.

Coloquei minha mão na borda do círculo mágico de várias camadas.

—…

Assim que coloquei um pouco de mana nele, senti que a coisa começou a
sugar cada vez mais de mim.

Não foi nenhuma surpresa real, mas essa coisa era seriamente ávida por poder.
Eu não tinha certeza se outra pessoa além de mim poderia satisfazê-la.

Mas isso fazia sentido. Sylphie uma vez me disse que ativar um único círculo
mágico consome tanta mana quanto lançar um feitiço avançado. Essa coisa
era composta por mais de uma centena desses círculos.

Graças à ajuda de Cliff, conseguimos tornar nosso design significativamente


mais eficiente, então não estava tão sedento quanto poderia ser…, mas ainda
estava devorando pelo menos vinte vezes mais mana do que um círculo
mágico normal.
— Certamente leva um tempo — murmurou Cliff. — Talvez possamos encontrar
uma maneira de acelerar o…

— Shh! — sibilou Nanahoshi.

Minha mana pulsava continuamente no “tablete”, como o sangue bombeado de


um coração. E conforme eu o alimentava mais, ele começou a emitir um brilho
perceptível.

Nada parecia estranho. A mana estava fluindo suavemente em nossa criação.


Lentamente, os círculos brilhantes e intrincados começaram a mudar de cor.
Amarelo, laranja, azul, branco… o padrão era distinto. E familiar.

Eu tinha visto flashes de luz exatamente como estes antes do Incidente de


Deslocamento.

Droga, devo parar? Essa coisa pode nos teletransportar para o meio do nada.

E se for um efeito de grande escala? Sylphie e Norn estão no campus hoje, não
estão? Espere, pode até levar a cidade inteira… e Lucie junto com ela…

Por outro lado, não parecia que algo muito dramático estivesse para acontecer.
E os círculos mágicos que criamos não eram capazes de produzir tais efeitos,
de qualquer maneira.

Tínhamos feito nosso dever de casa. Eu tinha certeza de que não erramos tanto
assim. Simplesmente não era possível.

Tudo ia ficar bem. Isso iria funcionar!

— …!

A luz ficou cada vez mais forte… e então desmoronou em um único ponto.

Naquele momento, ouvi um pequeno baque.

Minha mana parou abruptamente de fluir para o círculo mágico e ele também
parou de brilhar.

—…

Havia algo verde bem no centro do círculo. Algo verde, preto e redondo – do
tamanho de um globo, mas de aparência muito mais suculenta.

Era uma melancia.

— Parece que funcionou.

— Siiiiim!!!
Nanahoshi levantou-se em um salto e cerrou os punhos em triunfo.
— Parabéns, Mestre Rudeus!

— Muito bem, Nanahoshi!

Zanoba e Cliff aplaudiram. Eles pareciam quase tão jubilosos quanto ela.

— Devo dizer, entretanto…

Zanoba se aproximou da melancia com curiosidade e deu algumas cutucadas.

— Este padrão verde e preto me parece bastante ameaçador. Seria seguro para
mim segurar essa coisa? Não vai morder, vai?

— Você vai ficar bem, Zanoba. Só não deixe cair, por favor. Elas quebram mais
facilmente do que você imagina.

— Tudo bem… Oh! É bastante pesado, pelo que vejo.

Pegando a melancia, ele começou a estudá-la de muitos ângulos diferentes.

Pessoalmente, não vi nada de “sinistro” nisso. Talvez verde e preto


simplesmente não fossem uma combinação de cores apetitosa para os nativos
deste mundo. Seria vermelho brilhante por dentro, mas isso pode parecer
assustadora à sua maneira.

Pensando nisso, no entanto… este mundo tinha muitos vegetais de cores e


formatos estranhos por si só. Poderia encontrar uma variedade de cabaças em
qualquer mercado. Não me surpreenderia se houvesse melancias em algum
lugar por aí.

— Ei, Nanahoshi, acabei de pensar…

— Sim?

— Eu sei que já é um pouco tarde, mas não deveríamos ter convocado algo
como um melão Yubari em vez disso? Tiveram que produzir essas coisas
seletivamente, então definitivamente não existem neste mundo.

— Diga-me uma coisa, Rudeus… Você poderia realmente dizer a diferença entre
um melão normal e um especial?

Certo, ela tinha um ponto. Eu diferenciaria um melão Prince de um melão


almiscarado, mas essa era a extensão da minha experiência.

— De toda forma, ainda não podemos ser tão seletivos — continuou Nanahoshi
com uma ligeira carranca. — Na verdade, eu estava tentando invocar um
repolho desta vez.
Este mundo tinha um vegetal folhoso muito semelhante ao repolho. Me
pergunto se poderíamos ter diferenciado um repolho invocado daquele que já
tem aqui. Eu não era um fazendeiro nem nada, nem Nanahoshi. Talvez o
conceito de invocar um vegetal fosse falho desde o início.

—…

Nah, está tudo bem. Fizemos um experimento com base em um desenho teórico
e obtivemos o resultado que esperávamos. Essa coisa é uma melancia autêntica.
Não podemos provar exatamente de onde veio, mas está aqui porque nós a
invocamos. Uma melancia é uma melancia, certo? Estou disposto a considerar
isso um sucesso.

— Hrm. Bem, dado que o experimento foi bem-sucedido, acho que devemos
comemorar esta noite.

Zanoba já parecia ter perdido o interesse na melancia. Nenhuma surpresa


nisso, uma vez que não era uma estatueta.

— Sim, parece bom.

Badigadi, Linia e Pursena não estavam mais por perto. Nossas festas tinham
ficado um pouco menos animadas com a ausência deles. No entanto, não
podia deixar que isso nos impedisse de nos divertir.

Naquela noite, realizamos uma pequena celebração agradável. Perdemos Linia


e Pursena desde a última vez, mas desta vez Roxy e Norn se juntaram a nós.
Em termos de números líquidos, faltava apenas um Rei Demônio de seis
braços.

Não era exatamente a mesma coisa, é claro. Havia menos pessoas gritando
alto e mais membros da minha família. Não que isso fosse realmente um
problema.

Nanahoshi estava bebendo aos montes. Em pouco tempo, ela começou a


apertar Julie em seus braços como uma boneca, enquanto conversava com
Elinalise sobre uma coisa ou outra. Pela primeira vez, sua expressão estava
alegre e falava alto.

Isso era definitivamente incomum. O modo padrão de comunicação da garota


era um murmúrio taciturno, afinal. O sucesso da experiência do dia a deixou de
muito bom humor.

Elinalise a ouviu tagarelar com um sorriso benevolente no rosto. Zanoba e Cliff


iniciaram uma conversa separada com Roxy. A julgar por suas expressões
sérias, provavelmente era sobre suas pesquisas. Afinal, aqueles três eram
viciados em trabalho.
— Aqui está, Rudy.

— Ah. Obrigado.

Sylphie tinha parado ao meu lado e enchia meu copo toda vez que ele baixava
de volume.

— Você não vai beber esta noite, Sylphie?

— Bem, eu fico um pouco boba quando estou bêbada, sabe? Eu estava


pensando em me abster.

— Ah… Saquei.

— E esta noite não vamos ficar fora. Quero ter certeza de que posso colocar
Lucie na cama.

— Sim, entendo perfeitamente.

Mas isso era uma pena. Sylphie fica muito fofa quando bebe. Ela se torna
incrivelmente afetuosa quando suas inibições diminuíam. Por outro lado, toda a
coisa de “ser responsável” era atraente à sua maneira. Eu tinha uma boa
esposa em minhas mãos.

Nós dois começamos a nos envolver em algumas demonstrações públicas


moderadas de afeto. E depois de um tempo, Roxy resolveu se juntar a nós.

— Você se importaria de me deixar participar também, Rudy?

— De quê?

— Puxe a cadeira um pouco para trás, por favor.

Quando eu fiz isso, ela pulou direto no meu colo. De repente, eu tinha a nuca de
Roxy bem diante dos meus olhos e sua bunda pressionando minhas coxas. Que
esplêndido! Que benção!

Parecia um pouco… além dos limites, no entanto.

— Você está bêbada, Roxy? — perguntou Sylphie com um pequeno sorriso


entretido.

— Só um pouco.

Com um olhar mais atento, vi o rosto de Roxy um pouco corado. Isso era
estranho. Como regra geral, ela não bebia muito álcool. Hmm… esta é a minha
chance de vê-la perder o autocontrole?

— Uff…
Roxy se recostou para descansar no meu peito. Eu podia sentir o peso de seu
corpo, e ouvir as batidas de seu coração.

Ah, uau. Poderia ver totalmente por baixo de seu manto se puxasse um pouco…

Certo, realmente quero isso. Devo ir em frente? Espere, talvez deva esperar até
que ela fique ainda mais bêbada.

— Ah, isso parece bom… Hmm. Rudy, deixe-me tentar mais tarde, tá?

— Claro, Sylphie.

Na verdade, eu estava mais do que disposto a deixá-las no meu colo ao mesmo


tempo. Vamos ver… eu poderia dar meu joelho esquerdo para Roxy e meu
direito para Sylphie. Esses foram os lados que elas tomaram na cama na outra
noite, pelo que me lembro.

Foi tão bom quando coloquei meus braços em volta das duas ao mesmo
tempo. Me fez sentir como se estivesse me afogando em felicidade.

— Rudeus…?

Hmm. Norn parecia estar me encarando do outro lado da mesa.

Certo, certo. Não deveria tê-la negligenciado assim. Ela não conhecia muito
bem a maioria das pessoas neste grupo. Nenhum deles era estranho para ela,
mas manter uma conversa provavelmente seria difícil. A garota estava sentada
em silêncio na minha frente há algum tempo.

— Desculpe, Norn. Isso é muito estranho para você?

— Não, estou bem. Mas há algo que gostaria de discutir com você. Se não se
importar.

— Certo. O que é?

Coloquei Roxy na cadeira vazia ao meu lado e voltei minha atenção para minha
irmãzinha.

— Bem… é sobre o Conselho Estudantil.

— Ah, certo. Estava me perguntando sobre isso.

No dia da cerimônia de formatura, Norn estava sentada na última cadeira da


seção do Conselho. E quando nossos olhos se encontraram, desviou o olhar
desconfortavelmente.

— A Senhorita Ariel me convidou para entrar. Ela sabe que minhas notas não
são particularmente boas, mas acha que tenho “carisma natural”, suponho.
— Não brinca… Você sabia sobre isso, Sylphie?

— Sim, ouvi alguma coisa — disse Sylphie com um pequeno aceno de cabeça.

Também olhei para Roxy, mas ela evitou meu olhar. Aparentemente, eu era o
único que ainda não tinha ouvido falar disso.

— Desculpe por isso. Norn disse que queria te contar pessoalmente, então
mantivemos isso para nós mesmas.

— Ah, certo.

Não era grande coisa, mas Sylphie parecia genuinamente arrependida. Talvez
parte do motivo pelo qual ela permaneceu sóbria foi para ajudar Norn com essa
conversa.

Com a expressão um pouco incerta, Norn continuou de onde havia parado:

— Hm, Rudeus? Estaria tudo bem se eu oficialmente ingressasse no Conselho


Estudantil?

Por reflexo, quis dizer “Claro”, mas me contive no último segundo. No


momento, Norn tinha dois grandes projetos em suas mãos: nosso treinamento
com a espada e seu trabalho naquele livro.

Este último não era uma prioridade urgente. Era o tipo de coisa que ela poderia
trabalhar uma vez por semana ou algo assim, e eu não me importaria se ela
decidisse apenas colocá-lo em espera por alguns anos, mas seu treinamento
era algo que precisava manter todos os dias.

Precisava, no mínimo, fazer suas tarefas escolares e praticar com a espada


diariamente. Se adicionássemos as atividades do Conselho Estudantil a essa
lista, ela seria capaz de acompanhar os afazeres?

Norn não era uma má aluna, de forma alguma, mas também não era
particularmente talentosa. Eu não tinha certeza se ela se sairia bem com três
ou quatro responsabilidades distintas.

— Diga-me uma coisa, Norn.

— Sim?

— Você acha que consegue fazer todas essas coisas diferentes de uma só vez?

Ela mordeu o lábio e ficou em silêncio. Provavelmente era algo com que estava
se preocupando.

— Não me oponho a você se juntar ao Conselho Estudantil ou algo assim. Só


estou me perguntando se você será capaz de dar atenção suficiente a isso.
— Vou ficar bem.

— Tudo bem, mas você tem sua prática de espada e seu livro para trabalhar
também, certo? E essas eram as duas coisas que você queria fazer. Quer dizer,
o livro era originalmente meu trabalho, então não é tão importante… mas e
quanto ao seu treinamento? Suas aulas também ficarão mais difíceis no
terceiro ano.

— Vou acompanhar minhas aulas. E meu treinamento. Eu prometo.

Bem, ela estava decidida, pelo menos. Mas eu sabia, por experiência própria,
que era difícil se concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo. Quando
alguém tenta fazer duas tarefas simultaneamente, uma delas inevitavelmente
acaba sendo negligenciada.

Nesse ponto, Sylphie interveio, parecendo um pouco preocupada.

— Hm, Rudy… Norn tem lidado com as coisas muito bem até agora.

Isso foi definitivamente bom de ouvir, mas o que aconteceria se ela


continuasse assim por meses? E se a pressão fosse demais?

— Há quanto tempo ela tem ajudado no Conselho?

— Já faz… mais de um ano, na verdade. Acho que começou enquanto você


estava viajando.

— Espera, sério? Huh. Isso é muito tempo… — Isso significa que ela começou
isso antes mesmo de começarmos nosso treinamento de espada juntos.

— Vai ficar tudo bem, Rudy. Vou garantir isso. Norn ficará bem como membro
do Conselho Estudantil e não negligenciará nenhuma de suas outras
responsabilidades.

Fiquei surpreso com a firmeza do tom de Sylphie. Mas, bem, ela tinha uma boa
justificativa para sua confiança. Norn já estava conseguindo fazer tudo isso de
uma vez. Não vi nenhuma razão para continuar bancando o advogado do diabo.

— Bem, uau… Claro, parece que você tem trabalhado muito, Norn.

Fiquei muito feliz em saber que ela estava lá, tentando o seu melhor, mesmo
quando eu não estava por perto para ficar de olho nela. Havia esse…
sentimento em meu peito que eu não conseguia encontrar palavras para
descrever. Quente e confuso, talvez?

— Então tudo bem. Não tenho certeza se você realmente precisava da minha
permissão em primeiro lugar, mas, ainda assim, você conseguiu. Boa sorte com
o Conselho Estudantil, Norn.
— Obrigada, Rudeus! — disse Norn alegremente. — Eu realmente aprecio isso!

No final, como isso acabaria dependia apenas dela. Ainda assim, os adultos em
sua vida tinham a responsabilidade de apoiá-la e incentivá-la. Eu estava mais
do que disposto a torcer por ela.

Assim que nossa conversa chegou ao fim, Nanahoshi ergueu a voz do outro
lado da mesa:

— Vamos cortar a melancia!

Começamos a dividir a melancia que havíamos convocado e servimos uma


grande fatia para cada um dos presentes. Era um pouco menos doce e
suculenta do que as que me lembrava da minha vida anterior. Provavelmente
uma daqueles da Califórnia.

Deixando o sabor de lado, descobrimos algo interessante no processo de


divisão: era uma variedade sem sementes.

As técnicas agrícolas neste mundo não eram sofisticadas o suficiente para


produzir algo assim. Em outras palavras, o experimento foi um sucesso, sem
sombra de dúvida.

A festa havia chegado ao clímax… ou talvez passado dele, na verdade.

Nanahoshi estava cantando. Norn estava dançando. Zanoba estava


tagarelando com Julie sobre estatuetas. Sylphie estava cuidando de Roxy, que
ficou muito bêbada. E Cliff estava flertando com Elinalise em um canto.

Todos estavam se sentindo um pouco cansados, mas era do tipo agradável


que se chega perto do fim de uma noitada divertida. Eu estava recostado na
cadeira e sorrindo bêbado para os outros.

— Ei, Rudeus…

Nanahoshi se aproximou de mim, depois de terminar sua música. Ela começou


a me dizer algo, mas logo começou a tossir.

A garota não parecia quente o suficiente. Provavelmente porque bebeu muito


enquanto sentia um forte resfriado.

— Quer que eu te desintoxique?

— Sim, por favor…

Depois que lancei alguns feitiços de Desintoxicação e Cura nela, Nanahoshi


ficou com suas bochechas um pouco coradas de novo. Parecendo um pouco
aliviada, ela soltou um pequeno suspiro.
— De qualquer forma, queria te agradecer novamente. Agora podemos
finalmente passar para a próxima fase.

— Sim, acho que sim.

Nanahoshi e eu começamos com este projeto por uns bons três anos atrás,
pensando bem. Mas parecia que foi ontem.

Em comparação com a fase um, avançamos pelas fases dois e três com
relativa facilidade.

Em parte, porque Zanoba e Cliff estavam ajudando. Mesmo assim, as coisas


estavam indo muito melhor do que eu esperava no início.

— A fase quatro era… convocar uma coisa viva que atende a critérios
específicos, certo?

— Correto. Conheço alguém que tem muito conhecimento sobre essa parte,
então estou planejando pedir orientação a ele.

Ah, certo. Tinha que ser aquela “autoridade” em magia de Invocação que ela
menciona de vez em quando…

— Não é o Orsted, é?

— Não, não é. Ele também pode usar magia de invocação, mas é outra pessoa
totalmente diferente.

Isso era um alívio.

Mas descobri que Orsted poderia usar magia de invocação. Havia algo que
aquele cara não pudesse fazer?

Ah, certo. O Deus-Homem disse que era capaz de usar todas as técnicas
conhecidas no mundo, não disse…?

Ainda assim, presumivelmente havia uma diferença entre ser “capaz” de usar
um feitiço e ser um especialista em todo o campo da magia. Para inventar
coisas novas, é necessário um conjunto diferente de habilidades.

— Por falar nisso, tenho uma proposta para você.

— Oh? Qual seria?

— Bem… eu ainda não te dei uma recompensa por ajudar com o experimento da
tampa de garrafa, certo?

— Sim, acho que não.


Na verdade, tinha me esquecido de pedir algo a ela. Estava muito ocupado
cuidando de Lucie naquela época.

Acho que as pessoas ficam um pouco menos gananciosas quando estão se


sentindo satisfeitas com a vida.

— Estava pensando que poderia apresentá-lo ao homem de quem estou


falando, como uma recompensa combinada para ambas as fases.

— Oh. Hmm…

— Eu sei que você quer aprender um tipo diferente de magia de Invocação. Para
ser honesta, acho que é melhor aprender diretamente com alguém como ele.

Bem, sim. Eu não precisava aprender a convocar coisas de outro mundo, que
era o foco da pesquisa de Nanahoshi.

Pode ser conveniente às vezes, é claro. Não me importaria de convocar uma


mamadeira ou um carrinho para minha filha, mas coisas assim eram mais um
luxo do que algo de que eu realmente precisava. Estou satisfeito com a minha
vida do jeito que ela está.

Tinha algum interesse em aprender mais feitiços de Invocação convencionais,


eu não conseguia me imaginar precisando deles com frequência, então era
principalmente uma questão de curiosidade pessoal.

Eu também estava interessado em descobrir o porquê do Incidente de


Deslocamento ter ocorrido, mas, bem, não senti uma necessidade urgente de
encontrar essas respostas.

— Mas isso contaria como duas recompensas? Esse cara é tão incrível no que
faz?

— Definitivamente. Ele pode até ser capaz de consertar a memória de sua mãe,
por falar nisso.

— Espere, o quê? — Reflexivamente me inclinei para frente na minha cadeira


naquele momento.

Norn também se aproximou. Ela devia ter ouvido.

— Isso é verdade, Nanahoshi? — perguntei.

— Não posso dizer com certeza, mas o homem está vivo há muito tempo. Há
uma boa chance de que ele saiba algo útil.

Eu sentia que a condição de Zenith estava melhorando constantemente, mas


era muito difícil dizer se todas suas memórias voltariam.
Eu não queria ter esperanças de uma solução rápida. Ainda assim, havia uma
chance desse homem nos dar um nome para sua condição ou descrever
alguns casos semelhantes. Em combinação com meu conhecimento da minha
vida anterior, poderia nos apontar para algumas novas possibilidades.

Não é como se eu tivesse aprendido muito sobre esse tipo de coisa no meu
antigo mundo, mas ainda havia uma chance de me lembrar de algo útil.

— Ah, vocês estão discutindo sobre o mestre da Lady Nanahoshi?

— Eu adoraria conhecer o homem pessoalmente, se você estiver aberta à


ideia…

Em algum momento, Cliff e Zanoba também se aproximaram para ouvir nossa


conversa.

Elinalise também estava parada atrás de Cliff. No entanto, ela estava ocupada
brincando com as orelhas dele. Eu não tinha certeza de qual era o apelo, mas
ela parecia estar se divertindo.

— Bem… vocês dois também ajudaram, então acho que está tudo bem.

Nanahoshi parecia um pouco confusa com esse desenrolar. Eu me lembrei de


que ela não se sentia muito confortável nem mesmo de dizer o nome do
homem, então fazia sentido.

— Ah, também estou meio interessada — disse Sylphie, inclinando-se para


participar.

Roxy não a seguiu, mas apenas porque estava deitada em algumas cadeiras e
roncando.

Norn estava sentada ao lado dela, um pouco longe do resto de nós, mas estava
olhando em nossa direção. Era difícil dizer se ela estava interessada nisso ou
não.

Se todos decidissem se juntar, seria um grupo de sete, incluindo Nanahoshi.

— Está tudo bem para nós aparecer com um grande grupo, Nanahoshi? Não
seremos um incômodo?

— Eu não me preocuparia com isso — respondeu ela em um tom de voz


resignado. — O velho disse que pode acomodar até doze convidados a qualquer
momento. Não deve ser um problema que todos visitem juntos.

No mínimo, parecia que Cliff e Zanoba estavam dentro. Nanahoshi estava


obviamente disposta, mas eu ainda não tinha tanta certeza sobre a ideia.

— Mas não vai demorar algum tempo para ir ver esse cara?
De quantos meses de viagem estávamos falando? Talvez pudéssemos
economizar algum tempo na jornada com aqueles antigos círculos de
teletransporte… mas até chegar ao mais próximo exigia cinco dias na estrada.

No mínimo, era uma viagem de ida e volta de dez dias, e provavelmente havia
mais viagens esperando do outro lado, então tive que presumir que seria mais
ou menos um mês. Eu não queria deixar Lucie sozinha por tanto tempo.

— Não muito. Não vai demorar mais do que um único dia de viagem, na
verdade.

— Uau, ele está bem perto, hein? Você aparece lá às vezes ou o quê?

Então era uma viagem de ida e volta de dois dias. Poderíamos ficar alguns dias
e ainda estar de volta em uma semana. Considerando o quão curta a viagem
era, talvez pudéssemos até levar Lucie junto.

— Ele não está na vizinhança, e eu não o vejo há algum tempo, mas há uma
maneira de chegarmos até ele.

Interessante. Ela se comunicava com ele usando um item mágico ou algo


assim? Eu nunca tinha visto o equivalente mágico de um telefone, mas dado
que existiam teletransportadores, provavelmente havia algum método de
comunicação de longa distância também.

Tive a sensação de que enviar mensagens levaria um bom tempo, mas talvez
tivessem elaborado algum tipo de sistema de sinalização básica com
antecedência – algo como um sinalizador mágico.

— Então tudo bem. A propósito, qual é o nome do homem, afinal?

Nanahoshi franziu a testa e olhou ao redor da taverna. Havia muitos outros


clientes no local, então ela sinalizou para que levássemos nossas cabeças para
perto. Todos nós nos reunimos em um pequeno círculo e nos inclinamos
curiosamente para ouvir.

— Gostaria que todos guardassem segredo, por favor. Tudo bem?

Nanahoshi esperou até que todos nós assentíssemos e então continuou bem
baixinho:

— É Perugius. O Rei Dragão Blindado.

Ela falou o nome de um herói lendário – um dos três Matadores de Deuses, e o


homem que guiou a humanidade à vitória na Guerra de Laplace, quatrocentos
anos atrás.
Cap. 13 – Capítulo Extra: O Cão Louco Afia a
Sua Espada

O Santuário da Espada, localizado no extremo oeste dos Territórios Nortenhos,


em uma terra onde ocorreram inúmeras batalhas famosas. No momento, era o
lar do estilo Deus da Espada, mas houve um tempo em que o estilo Deus da
Água o dominava.

Apenas um século atrás, os líderes dos dois estilos duelaram neste local, e o
Deus da Água ganhou o Santuário de seu dono. Aquele Deus da Água foi mais
tarde derrotado por um Deus da Espada diferente e, por sua vez, perdeu o
Santuário; mas, desde então, este local pertence ao único espadachim mais
forte de cada geração sucessiva, que ganhou o direito de ensinar os de sua
escola as suas técnicas.

Os alunos que conseguiam uma vaga no Santuário eram ensinados pelo melhor
professor possível e tinham a chance de suplantar-se como os mais fortes.
Este era um fato que atraia muitos jovens espadachins ambiciosos a este lugar
frio e isolado, apenas para vê-lo com seus próprios olhos.

No momento, porém, dois visitantes de um tipo mais incomum estavam se


aproximando de seu salão principal.

Uma era uma mulher idosa, talvez com sessenta e poucos anos. A expressão
em seu rosto sugeria que era meio mesquinha; senão, era a imagem de uma
senhora gentil e inofensiva. No momento estava vestida para viajar, mas era
fácil imaginá-la com roupas mais casuais, recostada em uma poltrona
enquanto tricotava algo de lã.

Apenas um detalhe parecia incongruente: A velha usava uma espada


ligeiramente curta no quadril. Vendo isso, um espadachim habilidoso poderia
ter visto que sua postura relaxada era apenas uma fachada, e que mesmo seus
ataques mais rápidos não conseguiriam tocá-la.

Mas chega de rodeios. O nome da mulher era Reida Lia, e era a Deusa da Água
reinante. Ela aperfeiçoou a técnica definitiva de seu estilo, a Lâmina da
Privação, e se classificou entre os guerreiros mais fortes da geração.

Acompanhando Reida estava uma mulher jovem, talvez com 20 anos de idade,
cujo rosto tinha certa semelhança com o dela. Também estava vestida para
viajar e também carregava uma espada no quadril.

— Este é o Santuário, Mestra Reida?


— É, minha querida. Dê uma boa olhada, este é o covil de bestas que você
esteve tão ansiosa para visitar por todos esses anos.

— Oh, agora estou ficando nervosa…

— Tenha um pouco de confiança em suas habilidades. A menos que elas a


coloquem contra o Deus da Espada, você se sairá bem.

— Obrigada, Mestra Reida.

Falando baixinho uma com a outra, as duas colocaram os pés no Santuário da


Espada.

À primeira vista, esse lugar “sagrado” parecia uma cidade comum. Havia uma
pousada, uma loja de armas e uma guilda de aventureiros. Nas ruas estavam
os aventureiros e mercadores habituais, apressando-se em suas tarefas
particulares.

No entanto, havia uma coisa incomum nesta cidade. Praticamente todos os


que residiam aqui eram membros treinados no Estilo Deus da Espada. Neste
lugar, uma esguia garota da aldeia, às vezes, era mais forte do que o mais
corpulento dos aventureiros.

— Devemos reservar um quarto na pousada primeiro?

— Não será necessário. Vamos ficar na casa de Gall.

Reida avançou com dificuldade, fazendo um caminho mais curto para o outro
lado da cidade.

Depois de certo ponto, os aventureiros e mercadores tornaram-se menos


comuns e começaram a passar por mais pessoas em uniformes de artes
marciais que carregavam espadas de madeira. Ao mesmo tempo, as lojas
deram lugar a salas de treinamento.

A jovem companheira de Reida olhou em volta para tudo isso com óbvia
curiosidade. Parecia particularmente intrigada com os uniformes finos que
muitos usavam, apesar do frio cortante.

— Mestra Reida… todos estão vestidos com roupas leves, mesmo estando tão
frio.

— Bem, o pessoal do estilo Deus da Espada tem que correr em combate, ou se


tornam alvos fáceis. Eles não gostam de usar nada que os retarde, não importa
o quão frio esteja.

— Isso é exatamente o oposto de nós! Nós nos agasalhamos mesmo quando


está quente, não é? Que curioso!
— Se me perguntar, não vejo nada de curioso nisso.

Sem ao menos lançar um olhar para as várias salas de treinamento, Reida


seguiu em frente.

Em pouco tempo, as casas, salas de treinamento e noviços uniformizados


desapareceram por completo.

A única coisa à frente delas agora era uma vasta planície de neve com uma
única estrada correndo por ela como um vale. No final da estrada havia um
único edifício de tamanho considerável cercado por um muro.

Este era o núcleo do Santuário da Espada e a sede do Estilo Deus da Espada –


o grande salão onde o próprio Deus da Espada mantinha sua corte.

Assim que Reida e sua jovem companheira chegaram à entrada do complexo,


uma jovem surgiu por acaso lá de dentro.

A mulher tinha um rosto forte e digno, e seus longos cabelos azul-escuros


estavam presos em um rabo de cavalo. A julgar pelo balde em sua mão, estava
saindo para tirar água de um poço.

Ao ver Reida, no entanto, imediatamente jogou o balde de lado e estendeu a


mão para o punho de sua espada.

— Você tem algum negócio com o nosso salão, senhora? — perguntou, seu tom
abertamente cauteloso.

Reida estudou o rosto da jovem de perto. E depois de um momento, a


expressão mal-humorada em seu rosto suavizou significativamente.

— Nossa. É você, Nina? Veja como você ficou grande.

A jovem apenas olhou para ela em dúvida, mantendo a mão onde estava.

— Ah, você não se lembra de mim, lembra? Bem, eu acho que não. Você era
muito pequena da última vez que estive aqui…

Havia uma luz nostálgica nos olhos de Reida, mas a jovem, Nina Falion, não
tinha nenhuma memória dela. A única coisa de que tinha certeza era que esta
velhinha era uma terrível ameaça.
A garota ao seu lado também não era desleixada. Nina percebeu que ela estava
pelo menos no mesmo nível que o seu.

— Bem, estou aqui porque seu chefe me chamou, querida. Importa-se de me


levar até ele?

— Meu chefe?

— Sim. Gall Falion.

Nina hesitou com essas palavras.

Muitos vieram a este lugar procurando encontrar Gall Falion. Mas a maioria
eram tolos presunçosos que se convenceram de que poderiam tirar o título
dele. Afastar essas pessoas era uma das responsabilidades atribuídas a Nina e
para seus colegas de treinamento.

— Primeiro, poderia fazer a gentileza de me dizer seu nome?

— Me chamo Reida. Reida Lia. Não acho que preciso dizer mais, não é?

— M-Minhas desculpas. Por favor, venha por aqui.

No instante em que ouviu o nome da velha, Nina curvou-se respeitosamente e a


convidou para entrar no complexo.

Apenas uma pessoa no mundo poderia se apresentar como Reida Lia. Era um
nome reservado para a líder do Estilo Deus da Água. Ninguém mais tinha
permissão para reivindicá-lo.

Por um breve momento, Nina considerou a possibilidade de que esta mulher


fosse uma impostora. Mas ela sentiu, em um nível instintivo, que a superfície
plácida da velha senhora escondia profundezas insondáveis, então afastou o
pensamento de sua mente. Mesmo que a mulher não fosse quem afirma ser,
era, sem dúvida, uma força a ser reconhecida.

Reida e sua companheira seguiram Nina para dentro do complexo do Estilo


Deus da Espada. Nina os conduziu direto para o corredor principal, onde
tiveram que subir para entrar – uma característica comum à maioria dos
edifícios desta região nevada.

Na entrada, pararam para limpar a neve de suas roupas, em seguida, seguiram


ao longo do corredor de madeira que rangia.

Observando Nina por trás enquanto ela caminhava, Reida falou com uma voz
pensativa:

— Devo dizer, querida, você é bastante inteligente para a sua idade. E educada,
por falar nisso! Você já chegou ao nível Rei da Espada?
— Não, ainda tenho um longo caminho a percorrer, infelizmente.

— Sabe? Tenho certeza que você é a mais forte dos jovens, pelo menos. Não
precisa ser muito modesta.

— Bem, eu posso ser a mais rápida, suponho, mas não a mais forte.

— Oho! Essa é uma boa atitude que você tem aí, querida. É uma pena que os
outros jovens do seu estilo não sejam mais parecidos com você.

Enquanto falavam, as três chegaram ao Salão Efêmero.

Um único homem estava sentado lá. Seus olhos estavam fechados, como se
estivesse meditando. A mera visão dele, no entanto, fez Reida sentir como se
uma lâmina nua estivesse em sua garganta.

Reida era a Deusa da Água e a líder de um Grande Estilo – uma das três únicas
pessoas desse tipo no mundo. Apesar de sua idade avançada, não se sentia
menos poderosa do que no seu apogeu. Ela poderia virar qualquer espada de
lado sem qualquer esforço.

Mas este homem era a única exceção à regra. Seu nome era Gall Falion, e ele
era o Deus da Espada reinante.

— Mestre, trouxe Reida Lia aqui para vê-lo.

— Ah. Você está aqui. — Abrindo um pouco os olhos, Gall Falion estudou o
rosto de Reida. Ele também olhou brevemente para a garota ao lado dela, mas
pareceu perder o interesse nela rapidamente. — Obrigado por marchar até aqui,
Reida. Não deve ter sido fácil com esses seus ossos cansados, tenho certeza.

— Certamente não foi. Mesmo assim, não é todo dia que você me pede um
favor, certo? Você despertou minha curiosidade, suponho. Uff…

Reida se aproximou do Deus da Espada e sentou-se à sua frente. Apesar do


indigno uff que ela emitiu ao fazê-lo, seus movimentos eram tão claros e
naturais quanto o fluxo de névoa de uma montanha.

Nina, assim como a companheira de viagem de Reida, sentaram-se um pouco


mais para trás em um gesto de humildade.

— Então, para quem eu vou ensinar, e o quê? Você quer que eu ensine àquela
garota as técnicas secretas do Deus da Água ou algo assim? — Ao falar essas
palavras, Reida puxou o queixo para trás para indicar Nina Falion. — Parece
uma criança que sabe ouvir. Ela pode ser um tipo natural de Deus da Espada,
mas tenho certeza de que também poderia colocar algumas habilidades do
Deus da Água em sua cabeça.

A carta que trouxe Reida a esta terra foi breve.


Em essência, dizia apenas: Quero que você venha treinar um de meus alunos.

Reida quase rasgou a coisa em pedaços no momento em que leu essas


palavras. E, no entanto, achou intrigante que Gall Falion tivesse se dado ao
trabalho de escrever para ela uma carta de qualquer tipo. O homem odiava
pedir qualquer coisa a alguém.

Essa não foi a única razão pela qual veio, entretanto. Mera curiosidade não
teria sido suficiente para fazê-la ir da capital do Reino Asura até tal lugar.

— Em qualquer caso, tenho uma condição.

— O que é?

— Você quer que eu ensine algumas coisas a um de seus alunos, certo? Bem,
eu quero que você mostre a um dos meus o estilo Deus da Espada. Mas não há
necessidade de ensiná-la.

Reida vinha se preocupando há algum tempo que sua aluna estrela tivesse
ficado muito satisfeita consigo mesma. O estilo Deus da Água era o estilo
oficial ensinado no Reino Asura, o que significa que contava com muitos
alunos. Mas era raro para eles refinarem seus talentos além de um certo ponto.

A garota que Reida trouxe era uma das exceções, mas ela não tinha outros
alunos com habilidades comparáveis para se testar, assim sua confiança se
tornou excessiva. Ela manteve seu treinamento com dedicação suficiente, mas
sem um verdadeiro rival para levá-la adiante, falhou em fazer um progresso real
no último ano.

Reida a levou a este lugar para lhe dar um gostinho de derrota, convencida de
que isso a beneficiaria enormemente a longo prazo. Mesmo que os jovens do
estilo Deus da Espada provassem ser inadequados para a tarefa, se ela tivesse
a chance de treinar com o próprio Gall Falion, a experiência ainda seria
profundamente valiosa. A natureza do Estilo Deus da Água era tal que quanto
mais forte seu oponente, mais você melhoraria treinando com ele.

Reida achou provável que Gall Falion tivesse a chamado aqui pelo mesmo
motivo – para ela esmagar algum aluno arrogante com os contra-ataques mais
violentos do Estilo Deus da Água, motivando-os a melhorar ainda mais.

— Oh, isso é tudo? Claro.

— Heh heh. Sabe, nós poderíamos até mesmo ter minha pupila contra a sua, se
você quiser.

Esta não foi uma proposta espontânea, é claro. Reida esperava que Nina desse
uma lição de humildade à sua aluna. Jogá-la direto contra o Deus da Espada
era uma ideia, mas ela percebeu que seria mais humilhante perder para uma
garota de sua idade.

— Por que não? Nina, vá buscar Eris para mim.

— Sim, Mestre.

Com essas palavras, Reida inclinou a cabeça curiosamente. Desde o momento


em que conheceu a garota na entrada do complexo, assumiu que Nina era a
aluna que foi ali para ensinar.

— Hm, Mestre… — disse Nina.

— O que é? Apresse-se, garota.

— Eu estava… esperando que você me desse a oportunidade de treinar com


nossa visitante também. Estou muito interessada em ver o que o Estilo Deus da
Água pode fazer.

— Huh? Isso sempre fez parte do plano.

— O-Oh! Obrigada! Vou buscar Eris de uma vez!

Uma expressão feliz e aliviada passou brevemente pelo rosto de Nina antes
que ela saísse correndo pelo corredor.

No instante em que viu a garota, Reida sentiu arrepios nas costas. Parecia que
ela tinha acabado de encontrar um monstro selvagem na beira da estrada. Ela
quase alcançou sua espada por puro reflexo. A única razão pela qual evitou
esse constrangimento em particular foi por sua.

Os praticantes do Estilo Deus da Água deveriam permanecer calmos e serenos


durante o tempo todo. Ficar muito nervoso é um fracasso por si só.

— Ei, você aí, Eris. Essa velha senhora é quem vai te ensinar tudo sobre o Estilo
Deus da Água.

— Prazer em conhecê-la…

Eris não fez nenhum esforço para esconder a carranca em seu rosto, mas ainda
assim baixou a cabeça.

Minha nossa, a garota é algum tipo de gato selvagem…


Emoção intensa ardia profundamente no fundo dos olhos de Eris. Ela tinha todo
espírito e fúria de um animal faminto. O Estilo Deus da Água era uma
abordagem passiva e flexível para o combate. Mesmo o melhor dos
professores não poderia esperar ensinar uma garota com olhos assim. Para
começar, ninguém assim jamais procurou aprender seu estilo.

— Odeio te desapontar, Gall, mas essa garota não foi feita para o Estilo Deus da
Água. Tentar com ela seria perda de tempo.

— Você acha que não sei disso? — disse Gall Falion com um aceno enfático.

— Então o que eu devo ensinar a ela?

— Você não tem que ensinar nada a ela. Apenas a treine usando seu estilo.

— Hmm…

Essa breve conversa foi suficiente para Reida discernir as intenções do Deus da
Espada. Ele queria que essa garota, Eris, aprendesse a lutar contra o Estilo
Deus da Água da maneira mais prática possível. Reida não entendeu o porquê,
no entanto. Não faria mal para a garota obter um pouco de experiência contra
um estilo diferente, mas chamar Reida aqui para isso era simplesmente um
exagero.

Um estudante talentoso e experiente do estilo Deus da Espada poderia lançar


um ataque rápido demais para que um praticante comum do Estilo Deus da
Água desviasse. Comparado a aprender as complexidades do estilo de Reida, a
garota ficaria melhor simplesmente dominando o seu próprio.

Ao contrário do Estilo Deus da Água, que exigia até mesmo de um oponente


para praticar, o Estilo Deus da Espada tratava de acertar o primeiro golpe com
velocidade e poder esmagadores. Não havia necessidade de conhecer seu
inimigo se o abatesse antes que pudesse reagir.

Do jeito que Reida via, a única razão de Falion querer que a garota ganhasse
experiência contra o Estilo Deus da Água, especificamente, era se ele esperava
que ela enfrentasse um praticante verdadeiramente poderoso do estilo –
alguém habilidoso demais para ser dominado apenas pela velocidade.

E houve apenas um desses praticantes que surgiu à mente.

— Estou um pouco confusa aqui, Gall. Você está planejando que esta pequena
besta me assassine, ou o quê?

— Ah, por favor! Você já está com um pé na cova. Por que eu ainda me
incomodaria?
— Bem, me esclareça, então. Por que você precisa que eu a ensine como
funciona o Estilo Deus da Água? Em quem você está planejando jogá-la?

Um sorriso feroz se espalhou pelo rosto de Gall Falion.

— Nossa garota Eris aqui quer derrotar o Deus Dragão.

— O quê? Está falando de Orsted…?

Reida ficou genuinamente abalada com o simples pensamento. Ela também


estava muito familiarizada com Orsted dos Grandes Poderes. Ela sabia de sua
força – e que ele usava o Estilo Deus da Água livremente.

— O Deus Dragão, não é? Ora, ora… alguém com certeza tem, é…, ambição.
Você acha que ela pode fazer isso?

— Sim. E Eris também.

— Ah, bem, isso é bom. Que bom que você está confiante.

Era difícil dizer se isso era verdade. O Deus Dragão ficava em segundo lugar
entre os Sete Grandes Poderes. A ideia de tentar derrotá-lo pareceu a Reida
totalmente ridícula. E, ainda assim, havia confiança no rosto do Deus da
Espada, e a garota Eris parecia não ter nenhuma dúvida. Isso era
estranhamente atraente.

Reida se pegou pensando que isso poderia ser divertido, pelo menos –
supondo que estivessem sérios.

— Mas é o seguinte, Gall. Não estou interessada em perder tempo com alguém
sem talento. Vamos começar com ela contra minha pupila aqui, certo? Vou
brincar com ela assim que ela dominar a criança. E se ela se mantiver firme
comigo, então vou pensar em ensiná-la algumas coisas.

Era um plano do tipo “três pássaros, uma pedra”.

O orgulho de sua pupila estrela sofreria um golpe, mas ela também teria
bastante prática contra o Estilo Deus da Espada. E Reida iria participar de algo
muito… interessante.

Pela primeira vez em muito tempo, ela podia sentir seu coração dançando de
excitação. Ela era uma mestra do Estilo Deus da Água, sim, mas também era
uma espadachim comum no coração.

— Você ouviu isso, Isolde? Vá em frente e lute contra essas duas.

Ao som de seu nome, a discípula de Reida se levantou.


— Acredito que entendo a situação. Meu nome é Isolde Cluel e sou uma Rei da
Água. Prazer em conhecê-las.

— Sou Nina Falion, uma Santa da Espada. Prazer em conhecê-la.

— Sou Eris Greyrat…

Com essas breves apresentações concluídas, as três jovens caminharam


silenciosamente para o canto da sala onde as espadas de madeira estavam
localizadas.

Enquanto pegavam as armas, Isolde levou a mão à boca e sussurrou para que
apenas Eris e Nina pudessem ouvir:

— Vou pegar duro, já que minha mestra me pediu… mas se você for apenas de
nível Santo, temo que isso não vai ser uma grande luta.

— Talvez não. Acho que teremos que ver o que acontece.

— Hmph…

Foi uma tentativa de provocação barata, claro… mas não demorou muito para
incendiar as jovens prodígios do Estilo Deus da Espada.

Uma hora depois, Eris estava deitada de costas no meio do corredor.

— Haa… haa…

Seus olhos estavam abertos e ela estava ofegando ruidosamente por mais ar.

Isolde a derrotou por completo. Sua espada não tinha sequer raspado sua
oponente.

No momento, a lâmina de Eris estava entre as dez mais rápidas em todo o


salão. Seus golpes, aprimorados por anos de balanços de prática solitária,
ostentavam velocidade e poder se aproximando dos de Ghislaine, e o ritmo
peculiar de seus ataques os tornavam particularmente difíceis de evitar. Ela
também usou alguns truques do Estilo Deus do Norte, tornando-a ainda mais
imprevisível. Ao todo, tinha se tornado muito mais temível do que a média dos
Santos da Espada.

No entanto, Isolde evitou tudo que Eris usou contra ela, e respondeu a eles com
contra-ataques afiados. Durante a luta, que durou menos de trinta minutos, Eris
“morreu” quase cem vezes.

—…

E, ainda assim, Isolde também estava deitada no chão, bem ao lado dela.
Seu prazer em esmagar Eris durou pouco. Nina Falion a derrotou.

Isolde sempre acreditou que o Estilo Deus da Espada nada mais era do que
uma confiança bruta e impensada na velocidade e no impulso. Ela pensava que
não representava uma ameaça real para um especialista nas técnicas refinadas
do Deus da Água.

Nina expôs esses pensamentos pelo absurdo arrogante que eles eram. Isolde
foi incapaz de reagir ao primeiro ataque que atingiu a lateral de sua cabeça
com força suficiente para deixá-la inconsciente.

A luta terminou antes mesmo de começar.

— Bem, isso não é um resultado interessante! — disse Gall Falion, sentado no


lugar de honra do salão.

Sem responder, Nina curvou-se profundamente ao Deus da Espada.

A palavra que ele usou era interessante. Isso sugeria que não esperava que
Nina fosse a última de pé. Ela sentiu um pouco de decepção, mas isso foi
superado por seu prazer em demonstrar a seu mestre o progresso que havia
feito. Ela vivia pela emoção da vitória, não menos do que qualquer outro neste
salão.

— Não posso dizer que concordo, Gall — disse Reida em um tom de voz
indiferente.

Ela havia antecipado esse mesmo resultado desde o início. Uma fera furiosa,
incapaz de esconder suas emoções era a presa mais fácil possível para um
especialista no Estilo Deus da Água.

Eris era forte, com certeza, e tinha um enorme potencial de crescimento. Mas a
força não foi suficiente. Uma bola de pura fúria não tinha chance alguma contra
a abordagem do Deus da Água.

Reida também esperava a vitória de Nina, com não menos certeza. A garota era
profundamente habilidosa para sua idade, mas não tinha deixado isso subir à
sua cabeça. Muito provavelmente, a presença desta criança, Eris, manteve seu
orgulho sob controle. Nina, em sua humildade, dedicou-se ao treinamento. E
Isolde, em seu orgulho, havia negligenciado o dela. Foi por isso que perdeu a
luta.

Os ataques de Nina não foram particularmente rápidos em comparação com


os de Eris. Na verdade, eram um pouco mais lentos. E a força por trás dos
balanços de Eris foram muito maiores.

No entanto, não havia emoção nos ataques de Nina. Não havia ódio em seus
olhos, nenhuma hostilidade em seu rosto, nem mesmo um reflexo em suas
bochechas. Para Isolde, foi como um raio vindo do nada. Ela provavelmente
acabou inconsciente antes mesmo de sentir que a garota estava indo em sua
direção.

— Ainda assim, parece um começo favorável. O que você diz, querida? Quer
aprender alguns truques do Deus da Água comigo?

Nina considerou a oferta por um momento, mas acabou balançando a cabeça.

— Não. Quero manter meu foco em dominar o Estilo Deus da Espada.

— Bom, bom. Você está certa — disse Reida com um sorriso satisfeito. — Tudo
bem então, Gall. Que tal fazermos essas três treinarem em grupo por um
tempo? Isso deve aguçá-las um pouco.

— Sim, parece bom. Não adianta perder seu tempo se Eris não consegue lidar
com gente como uma Rei da Água.

— Sim. Também deve fazer maravilhas para a motivação da minha aluna. A


garota está precisando de alguém para treinar.

O Deus da Espada e a Deusa da Água discutiram o assunto um pouco mais e


chegaram a um acordo: Eris seria incumbida de derrotar Isolde, e Isolde de
derrotar Nina.

Até que isso acontecesse, as três treinariam juntas como iguais, apontando as
deficiências uma da outra. Em teoria, seria benéfico para todas.

— Você está bem com isso, Nina…?

Nina concordou facilmente com a proposta de seu mestre.

— Não me importo.

Para ter certeza, ela entrou nesta sessão por nada mais do que curiosidade.
Ainda assim, a oportunidade de praticar extensivamente com uma talentosa
aluna do Estilo Deus da Água parecia de fato valiosa. Nina derrotou Isolde de
forma decisiva. Mas ela não pensava nela, ou Eris, como abaixo de seu nível. E
aprendeu com a experiência em primeira mão o valor de competir de perto com
seus colegas.

Se não fosse pela presença de Eris no Santuário da Espada, Nina tinha certeza
de que teria ficado parecida com Isolde.

— Tudo bem. Então vamos com isso. Você trabalhará com seus professores
habituais pela manhã, mas à tarde vocês três podem se agrupar e treinar umas
com as outras.

Nina assentiu baixinho. E Eris também respondeu do chão.


— Sim, Mestre.

— Entendi…

Isolde ainda estava inconsciente, mas Reida não tinha intenção de permitir que
ela recusasse.

Daquele dia em diante, Eris começou suas aulas de luta contra o Estilo Deus da
Água.

Um mês depois, as três haviam se estabelecido em um peculiar impasse de


três vias. Eris vencia Nina de forma consistente. Nina vencia Isolde. E Isolde
vencia Eris.

As três mantiveram suas programações de treinamento individuais, é claro,


mas também reservavam um tempo para várias partidas de treino todos os
dias e trocavam suas opiniões depois.

Não demorou muito para Isolde identificar as fraquezas de Eris.

— Eris, você irradia hostilidade. Os praticantes do meu estilo são muito bons em
captar esse tipo de coisa. Isso denuncia exatamente quando você vai atacar, o
que torna fácil de reagir.

— Tá, certo. Mas o que devo fazer sobre isso?

Para a surpresa de Isolde, Eris aceitou prontamente suas críticas. A maioria


das pessoas parecia pensar na garota como uma maníaca violenta e obstinada,
mas ela estava genuinamente faminta por maneiras de melhorar.

— Vejamos… Nina, você não mostra muita coisa antes de atacar. Como você
controla sua hostilidade tão bem?

— Não tenho certeza do que te dizer. Um duelo é apenas uma questão de


mover sua espada mais rápido que seu oponente, certo? Não consigo ver o que
hostilidade tem a ver com isso.

Com toda a honestidade, Nina sempre achou estranho que o humor padrão de
Eris fosse “furiosa”. Fazia sentido ficar constantemente agitada, mesmo
quando não tinha nenhum inimigo real com quem lutar? Relaxar quando tinha a
chance parecia ser a jogada mais inteligente.

— Bem, eu também não sei — resmungou Eris.

— Certo. Por que você não tenta mudar sua rotina diária, para começar? Tome
um banho demorado, coma uma boa refeição, deite-se em uma cama
quentinha e pense naquele seu amado namorado até cair no sono.

— Com licença? O que Rudeus tem a ver com isso?


— Ah, qual é… essa parte foi só uma piada. Mas tente o resto, sério. Para ser
honesta, não parece que você cuida bem de si mesma. Isso pode ser meio
alarmante.

— Tudo bem…

Eris teria preferido manter seu estado atual de tensão constante. Havia uma
razão para isso: quanto mais ela treinava, mais conseguia entender o
quão incrivelmente poderoso o Deus Dragão Orsted era.

Ele tinha usado as mesmas técnicas de Isolde, mas as dele eram muito mais
precisas e habilmente executadas. E ela era uma Rei da Água, enquanto ele
nem era membro da escola.

Nina deixou escapar um suspiro exagerado.

— Honestamente, por que nunca consigo vencer essa garota ridícula? Isso está
começando a prejudicar minha autoconfiança…

Ela passou todos os dias seguindo um sistema eficiente e lógico de


treinamento desenvolvido pelo próprio Deus da Espada. Ela fortalecia seu
corpo da maneira mais proveitosa possível, comia refeições cuidadosamente
balanceadas e mantinha uma programação bem organizada.

E, ainda assim, não podia vencer Eris – cuja rotina era


decididamente não racional.

— É porque estou fazendo você se mover depois de mim…

— Huh?!

Nina não esperava que a garota realmente respondesse sua pergunta. A Eris
que ela conhecia era a definição de egoísmo. Ela nunca tinha mostrado
nenhum interesse em ajudar ninguém além de si mesma a melhorar.

— Ruijerd me ensinou isso. Você pode usar coisas como contato visual para
fazer as pessoas se moverem primeiro ou hesitar um pouco.

— Ruijerd…? Quem é esse?

— Meu professor.

Nina ficou intrigada principalmente com as palavras de Eris. Ela não entendia
do que a garota estava falando, mas a técnica era, na verdade, uma habilidade
altamente avançada que Eris aprendeu com Ruijerd. Foi desenvolvida pelos
guerreiros do povo Demoníaco como uma aplicação consciente de certas
ações sutis que espadachins verdadeiramente experientes executavam por
reflexo.
Claro, isso significava que Eris não poderia começar a explicar como
funcionava.

— Em outras palavras, Eris, você está deliberadamente guiando as ações de


seus oponentes?

— Isso mesmo.

—…

O esclarecimento de Isolde ajudou Nina a entender o conceito básico. Ela agora


entendia a ideia, mas isso só tornava mais difícil de acreditar. Ela se encontrou
olhando para Eris duvidosamente. Ao que tudo indicava, a garota tinah sido
criada por uma matilha de lobos na floresta. Nina nunca teria suspeitado que
ela era capaz de usar uma habilidade tão sofisticada.

Isolde, por outro lado, achou a ideia muito mais compreensível. O Estilo Deus
da Água era focado principalmente no contra-ataque, então tinha seu próprio
conjunto de técnicas destinadas a encorajar o oponente a atacar primeiro.

— Entendo. E você tem usado as mesmas técnicas quando me enfrenta?

— Bem, sim, mas você nunca se move.

— Sim, fui treinada para isso. Da próxima vez que nos enfrentarmos, talvez você
deva parar de se preocupar com isso e deve se concentrar em suprimir sua
hostilidade. Isso pode mudar um pouco as coisas.

Eris franziu a testa, mas acenou com a cabeça.

— Vou tentar.

Ela estava disposta o suficiente para tentar isso, mas ainda não sabia como
“suprimir” sua hostilidade. Controlar seus sentimentos não era algo que
realmente tinha feito antes.

Claro, ela tinha ouvido comentários como este muitas vezes. No entanto,
Ruijerd a encorajou a fazer uso de sua agressão natural, e seus métodos de
treinamento levaram isso em consideração. Como resultado, ela nunca sentiu a
necessidade de mudar.

Embora sua hostilidade pudesse normalmente ser uma desvantagem, ela tinha
mais disso do que a maioria das pessoas. Ela preferiu usá-la como um recurso,
em vez de fingir que isso não estava lá.

— Então me pergunto o que devo tentar — murmurou Nina. — Isolde, como você
lida com ela?
— Deixe-me ver. No Estilo Deus da Água, treinamos para esse tipo de coisa
cobrindo nossos olhos e aprendendo a sentir quando um ataque está
realmente chegando, mas… acredito que a técnica de Eris é bastante comum
entre os guerreiros Demoníacos, então imagino que o Estilo Deus da Espada
tenha sua própria maneira de lidar com isso. Por que você não pergunta ao seu
mestre sobre isso?

Isolde era talentosa e profundamente inteligente. O Estilo Deus da Água tendia


a atrair tipos pacientes e estudiosos como ela.

— Vou tentar. Isso às vezes é frustrante… Oh. Parece que o sol está se pondo.

Com essas palavras de Nina, a sessão de revisão do dia chegou ao fim.

— Acho que então vejo vocês duas amanhã — disse Isolde com um sorriso. —
Sabe, tenho me divertido muito recentemente. Esta é a primeira vez que tenho a
chance de conversar sobre essas coisas com alguém que tenha mais ou
menos a minha idade.

— O sentimento é mútuo, Isolde — respondeu Nina.

Ela também queria dizer isso. Agora que Eris estava realmente falando com ela,
Nina percebeu que a garota tinha um conhecimento vasto e variado de
combate. Além de sua experiência prática, ela evidentemente tinha um
conhecimento superficial das técnicas do Deus do Norte e do povo Demoníaco
à sua disposição.

Era difícil se livrar de sua impressão geral de Eris como um cão selvagem em
roupas humanas, mas ela ganhou um respeito relutante por suas habilidades. A
garota não estava recorrendo a “truques baratos”, estava simplesmente usando
habilidades de outras escolas de combate.

— Hmph…

A atitude de Eris não mudou muito. Normalmente, ela não teria sequer dado
suas opiniões em um grupo como este, mesmo quando forçada a comparecer.
Mas esta noite, se lembrou do período em que estava aprendendo a espada
com Rudeus quando criança. Os dois sempre conversavam sobre seu
progresso e descobriam novas maneiras de melhorar, assim como Nina e
Isolde estavam fazendo.

Não pode ser uma má ideia se Rudeus costumava fazer isso.

A lógica era muito simples, quase infantil. Mas para Eris, foi poderosa o
suficiente para convencê-la a realmente se comunicar pela primeira vez.

— Bem, então já vou embora. Tenho mais treinamento com meu mestre esta
noite.
— Obrigada por sua ajuda hoje, Isolde.

— Não me agradeça, Nina. Você também está me ajudando. Posso sentir que
estou melhorando a cada dia.

Enquanto as três se aproximavam do ponto em que o caminho para os quartos


de hóspedes divergia daquele que levava à pousada, Isolde e Nina pararam
para algumas gentilezas finais.

Eris, por outro lado, continuou descendo o caminho que levava à pousada.

— Obrigada também, Eris — falou Isolde.

— Amanhã vou te acertar uma vez…

— Fico ansiosa por isso.

— Hmph.

Sem nem mesmo se virar, Eris marchou para frente. Com um aceno final para
Isolde, Nina correu atrás dela.

— Eris? Presumo que você continuará treinando por um tempo, mas assim que
terminar, lembre-se de pelo menos se enxaguar.

Normalmente, essas palavras teriam passado por um dos ouvidos de Eris e


saído pelo outro. Nina não esperava que ela ouvisse, mas dizia isso quase
todos os dias, independentemente. Afinal, a garota ficava terrivelmente fedida.

Desta vez, entretanto, Eris não apenas a ignorou. Em vez disso, se virou para
encarar Nina com uma expressão ligeiramente irritada no rosto.

— O que você disse antes é realmente verdade…?

— Hm? Do que você está falando?

— Você disse que eu poderia esconder minha hostilidade se eu tomasse um


banho demorado, comesse uma boa refeição e pensasse em Rudeus na cama
todos os dias.

— Uh…

Nina ficou sem palavras. Com toda a honestidade, ela disse isso
principalmente em uma tentativa de enganar Eris para agir de forma um pouco
mais civilizada. Mas, em teoria, a capacidade de relaxar era uma parte crucial
do controle de suas emoções. E então, ela decidiu seguir com isso.

— S-Sim, isso mesmo! E por outro lado, aquele seu namorado não ficará
interessado em você por muito tempo se estiver constantemente fedorenta.
— Isso não será um problema. Eu costumava pegar Rudeus abraçando minhas
camisas velhas e suadas o tempo todo.

— Uh, o quê…?

Lembrando-se do jovem que conheceu brevemente antes, Nina tentou imaginá-


lo enterrando o rosto nas roupas fedorentas dessa garota estranha. Era uma
imagem mental terrível. No entanto, ela viu que Eris estava ficando cada vez
mais irritada com sua reação, e sabiamente optou por não comentar mais.

— Olha, esquece. Tudo o que sei é que os homens não gostam de mulheres
sujas, certo?

— Hmm… Bem, acho que Rudeus era meio exigente em manter as coisas
limpas…

— Ai está! E é por isso que você deve prestar mais atenção à sua higiene.

Eris parou para pensar por um momento. Memórias de Rudeus inundaram sua
mente. Ela geralmente fazia um esforço consciente para não relembrar o
passado… mas quando baixava a guarda, sempre acabava pensando nele. E
quando pensava nele, seus lábios se curvavam em um sorriso por conta
própria.

Enquanto ela considerava isso, Eris percebeu algo interessante.

Provavelmente não estou emitindo nenhuma hostilidade agora, estou?

— Então tá. Acho que vou me lavar.

— Sim, não esperava nada melhor de você. Não se preocupe, quase desisti
disso… Espere. O que você acabou de dizer?

Eris caminhou em direção a seu quarto sem responder à pergunta.

E Nina apenas a observou partir com um olhar de descrença congelado em seu


rosto.

Demorou mais um ano para Eris chegar a uma posição de igualdade com a Rei
da Água Isolde.

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