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Certa manhã, fui despertado do sono pelo mais delicioso dos cheiros. Flutuou
em minhas narinas enquanto eu dormia, enchendo meu coração de calorosas e
maravilhosas emoções.
— O qu…?!
Assustado com este aroma sedutor, abri meus olhos… e me deparei com uma
deusa na cama, ao meu lado, dormindo profundamente. Seu rosto angelical
estava a centímetros de meus olhos. Eu podia até mesmo ouvir sua respiração
suave através de seu narizinho encantador.
— Ooh…
Com a mão trêmula, a estendi para puxar o cobertor de cima da deusa. Era
exatamente como eu esperava! Por incrível que pareça, seu corpo todo se
manifestou ao meu lado!
— Ooooh!
Não, provavelmente não. Ainda assim, era algo não menos sagrado.
— Gulp…
Mas era permitido que eu fizesse isso enquanto seu espírito vagava por outro
lugar? Havia o risco de sobrecarregar minha alma com o pecado e me barrar
diante dos portões do Nirvana. No momento em que estendesse minha mão,
ela poderia inundar o quarto com uma luz brilhante, gritar: “Suma, maldito
Mara!” e me purificar até não restar nada.
Que dilema cruel. Eu não pude evitar que meu pequeno apóstolo estivesse se
sentindo particularmente fervoroso nesta manhã!
— Oooh…
Ah, é mesmo… Não temos muito tempo pela manhã, temos? Melhor acordá-la…
— Hm…?
Minha deusa abriu os olhos e se sentou lentamente. Enquanto ela fazia isso, o
cobertor escorregou, revelando suas lindas costas nuas. Era o alvorecer de
uma nova era.
— Bom dia…
— Oh…
— Existe uma razão para você parecer tão abatido? — perguntou ela
secamente.
— Ah, não é nada. Eu só queria dar uma boa olhada em seu corpo à luz do dia,
Mestra.
— De qualquer forma, não acho que tenha muito para olhar…
— Não fale bobagens! Vamos, tire esse cobertor. Aqueça-me com seu
esplendor!
— Minha nossa, esta manhã você está mesmo cheio de energia… Bem, tanto
faz. Suponho que não haja mais motivos para ser tímida…
— Uhm, Rudy?
— Sim, querida?
A noite passada foi algo especial para nós. Foi algo que construímos ao longo
de algumas semanas. Concordamos que Roxy se tornaria oficialmente minha
segunda esposa, assim que Sylphie desse à luz. Isso tinha acontecido há um
tempo. Mas, até o dia anterior, Roxy e eu não tínhamos dormido realmente
juntos, desde nossa chegada em Sharia. Parte disso era porque todos estavam
ocupados se ajustando à chegada de Lucie, mas eu poderia dizer que Roxy
também estava ansiosa com nosso acordo. Isso era compreensível, mas eu
queria fazer algo a respeito.
E, então, fiz um esforço especial para aliviá-la. Na noite passada tratei Roxy
como uma princesa. Nesta manhã minha mandíbula ainda estava meio
dolorida – fiz um trabalho e tanto.
— Para ser sincera, eu nem sabia que existiam… técnicas assim. — Seus olhos
se desviaram dos meus, Roxy corou um pouco.
Porém, não foi exatamente como o esperado. Principalmente porque Roxy fazia
perguntas em cada etapa do processo – geralmente algo como “O que eu faço
agora?” Ela parecia ser bem aplicada, mesmo na cama. A guiei com breves
dicas e explicações, seguidas por extensas demonstrações práticas.
— Você pode só deitar e deixar tudo comigo, Roxy. Vou garantir que você se
divirta.
Para ser sincero, não era isso que imaginei quando estava planejando as coisas
de antemão. Mas, à sua maneira, não foi tão ruim. Sylphie tinha uma
abordagem para o sexo, e Roxy outra. Achei as duas muito satisfatórias, então
não iria reclamar.
Com o rosto ainda um pouco vermelho, Roxy virou a cara e saiu da cama.
Fiquei exatamente onde estava – sentado formalmente na cama – banhado
pela radiância de sua bunda enquanto ela caminhava pelo quarto.
Sentindo meu olhar, Roxy olhou para mim. Virei e fingi que estava o tempo todo
me vestindo.
—…
— Hm?
Quando virei a cabeça para dar uma olhada, pude ver apenas quatro vergões
longos e finos em um lado das minhas costas. Doeu um pouco quando os
toquei. Roxy os fez em mim ontem à noite. Em outras palavras, eram uma
medalha de honra.
Gah, agora ela me fez lembrar da expressão que tinha no rosto enquanto fazia
isso… Calma, garoto! Calma! Não temos tempo para suas palhaçadas agora!
Eu, porém, não poderia aceitar isso. Acabaríamos de novo na cama dentro de
dez segundos. Então me contive em acariciar afetuosamente sua bochecha.
Depois de colocar suas vestes, Roxy ficou na minha frente para que eu pudesse
conferir tudo por ela.
— Sim.
— Sério?
— Bem, tá bom. É meu primeiro dia de trabalho, sabe? Não posso acabar com
tudo!
Passou mais ou menos uma semana desde que voltei da minha jornada. As
coisas passaram algum tempo agitadas, mas finalmente estavam começando
a se acalmar novamente.
— Huh?
No começo eu não entendi muito bem o que ela queria dizer. Roxy olhou para
mim com a expressão estável de sempre, fixando seus olhos nos meus.
— Sinto que tenho muito tempo livre, então queria ser um pouco mais útil.
— Hm, então… está dizendo que quer ser professora ou algo assim?
Isso fazia sentido. Ela parecia um pouco inquieta desde que chegamos.
Roxy não era exatamente o tipo de dona de casa. Ela passou a maior parte da
vida como uma aventureira solitária pela estrada, então podia lidar com quase
qualquer trabalho quando precisava… mas quando se tratava de serviços
domésticos, não era tão eficiente quanto Aisha, Sylphie ou Lilia.
Além disso, já tínhamos duas criadas dedicadas vivendo em casa, então não
havia muito para ela fazer.
Às vezes ela ocupava o lugar da minha mão esquerda. Eu ainda não estava
acostumado a ser um maneta, e isso tornava as coisas realmente
inconvenientes. Ter Roxy por perto para me auxiliar a me vestir e fazer minhas
refeições era de grande ajuda.
Ainda assim, não era como se eu precisasse dela por perto o tempo todo.
Poderia andar sozinho quando fosse necessário.
— Hmm…
De qualquer forma… Roxy queria ser professora, não é? Ela era uma professora
incrível, é claro. Eu sabia, pessoalmente, que bênção poderia ser aprender
magia com ela.
Dados seus talentos e sabedoria, mantê-la por perto como nada mais do que
uma substituta para a minha mão perdida seria um crime da minha parte.
Mantê-la só para mim tinha seus apelos, mas, pelo bem de todas as outras
pessoas no mundo, ela deveria estar lá, enriquecendo nossa sociedade com
sua presença.
— Tenho certeza de que isso te parece um pouco arrogante, já que não sou
nada especial como maga… mas sempre gostei de ensinar o que sei aos
outros.
— Você deveria ir em frente, Roxy. Com certeza. Você será uma ótima
professora!
Agora que o assunto estava resolvido, não havia motivo para perder tempo.
— Então tá bom. Por que não vamos falar com o Vice-Diretor Jenius?
Roxy, por alguma razão, hesitou por um momento com algo parecido com uma
careta no rosto.
Oh? Jenius então é um Mago de Água de nível Santo? Achei que a especialidade
dele fosse magia de fogo… Será que eu estava equivocado?
Mas, bem, não era incomum que um mago estudasse mais de um elemento.
Jenius, presumivelmente, também era um Mago de Água, e acabou
esquecendo de mencionar isso para mim.
— Receio ter dito algumas coisas muito duras da última vez que o vi. Agora me
arrependo disso, mas eu era uma jovem de cabeça quente…
Pelo que ela me disse, o mestre de Roxy era um tolo orgulhoso e pomposo.
Mas o Jenius que eu conhecia era um cara diligente e educado que passava a
maior parte do tempo vendo documentos. Ela provavelmente mudou muito
com o passar do tempo.
— Vou me certificar de que ele deixe tudo para trás. Quer ele queira ou não.
Eu já devia muito a Jenius por sua ajuda ao longo dos anos, mas, pelo bem de
Roxy, não hesitaria em aumentar ainda mais a minha dívida.
Ao ver Roxy, ele nos recepcionou com um sorriso que mais parecia uma careta.
Sorrisos estranhos eram a expressão padrão dele, mas este era definitivamente
mais estranho do que o normal.
Quando foi a última vez que estive aqui? Depois de meu duelo com Badigadi?
Já fazia um bom tempo desde aquilo.
— Primeiro… é bom te ver de novo, Roxy.
— Hm. Você não disse que eu, ah… não era digno desse título?
— Acho que isso vale para nós dois. Eu era orgulhoso demais.
Eu não tinha como saber sobre o que discutiram no passado, mas depois
desse tempo todo, pareciam ser águas passadas. Uma ou duas décadas são
suficientes para mudar a maioria das pessoas.
Ficando um pouco nervoso, lancei um olhar para Roxy, apenas para notar que
ela também estava sorrindo um pouco. Os dois talvez tivessem visto algo de
engraçado na situação. Me senti um pouco excluído.
Isso me deixou um pouco triste, mas me pareceu que sair dali seria melhor.
Falei para ele que poderia ficar fora por dois anos, e consegui voltar em apenas
seis meses. Ele provavelmente ficaria surpreso em me ver.
O resultado da minha viagem não foi necessariamente bom, é claro, mas não
havia motivos para também deixá-lo deprimido. Eu teria que tentar agir o mais
alegremente possível.
— Certo…
— O qu…?!
—…
—…
O que Zanoba estava sentindo neste instante? Que emoções estavam tomando
sua mente?
—…
Desviando o olhar, fechei a porta sem dizer uma palavra.
— Estou pronto.
Nós dois nos alegramos com nosso reencontro e nos abraçamos como se
nada tivesse acontecido. Não havia motivo para nenhum de nós agir estranho.
Éramos melhores amigos. Eu não vi nada. Não aconteceu nada.
— Você realmente voltou rápido, Mestre! Achei que ficaria fora por dois anos!
— Ah, então você cumpriu uma missão de dois anos em menos da metade do
tempo! Você nunca para de me surpreender!
Dei uma olhada ao redor. Estava cheio de bonecos e estátuas, muitos dos quais
pareciam ser algum tipo de arte popular. Eu já tinha estado neste quarto muitas
vezes, é claro, mas estar de volta era quase nostálgico. Ele com certeza
acumulou muitos brinquedos novos enquanto estive fora. A mesa de Julie, em
particular, estava virtualmente coberta por bonecos de argila e estatuetas. Ela
esteve obviamente trabalhando duro durante minha ausência.
— As duas estão fazendo compras no momento. Algumas das coisas que pedi
não estarão disponíveis até a noite, então levarão algum tempo para retornar.
Entendo. Então é por isso que ele sentiu que seria seguro ter um “encontro”
com sua amada amiga boneca.
Quando parei para pensar naquela batalha, tornou-se óbvio que estávamos
com pouco dano físico. Se Zanoba estivesse conosco, talvez pudéssemos ter
derrotado a hidra com mais facilidade. Talvez devêssemos ter voltado
temporariamente para recrutá-lo, ou outra pessoa, para nos ajudar.
— Se a besta era resistente à magia, posso ver porque até mesmo você sofreu
para derrotá-la.
— Sim. Ah, e mesmo quando conseguimos cortar uma de suas cabeças, ela
voltava a crescer. Não foi brincadeira, com certeza.
— Meu… Nosso espadachim cortou suas cabeças e queimei os tocos com fogo.
— Ah, agora entendo. A carne era vulnerável, mesmo a pele não sendo! Devo
presumir que você mesmo pensou nessa estratégia, Mestre?
— Acabei lembrando que ouvi dizerem que essa era a melhor maneira de fazer
isso.
Pensar nessa batalha não estava fazendo bem para o meu humor. Descobri
como matar aquele monstro, mas Paul acabou morrendo. Quanto mais Zanoba
elogiava nossa vitória, mais deprimido eu ficava.
— Ah, entendo. — Olhando para minha mão, Zanoba balançou a cabeça para si
mesmo. — Por falar nisso, acho que tenho uma ideia.
Sorrindo, ele trotou até sua mesa de trabalho e começou a vasculhar a última
gaveta. Alguns momentos depois, puxou um modelo de uma mão.
Talvez essa não seja a maneira correta de descrever. Era um pouco desajeitado
para ser uma “mão”. Talvez fosse um protótipo de algum tipo de luva.
— Oh?
Verdade. Você também tem feito amor com objetos inanimados… Opa. Não, eu
não vi aquilo. Eu não vi nada!
— Observe!
—…
—…
— Heh heh heh. Ah, mas ainda não cheguei na melhor parte. Ao usar este
dispositivo, sou capaz de controlar minha força terrível!
— Espera, sério?
— De fato.
Zanoba assentiu com um sorriso de genuína alegria no rosto. Sua felicidade era
evidente e contagiante.
Se Zanoba podia controlar sua força, significava que ele mesmo poderia fazer
estatuetas. Finalmente encontrou uma forma de criar as coisas que mais
amava. Era difícil para mim imaginar o quanto isso significava para ele.
— Então…
— Certo.
Aceitando a mão de Zanoba, a empurrei contra meu pulso esquerdo. A coisa foi
feita para ter espaço para uma mão fechada dentro dela, é claro; como me
faltava a mão, parecia capaz de cair a qualquer momento.
Não puxou muita. Mas é claro que não iria, já que Zanoba podia usar.
— Whoa!
Assim que absorveu minha mana, senti o dispositivo pressionar com força
contra meu coto.
— O que acha…?
Cautelosamente, tentei mover minha mão esquerda. Abri e fechei, estiquei cada
dedo, começando pelo polegar e dobrando até o dedo mindinho. A argila de
aparência bruta respondeu como se fosse apenas outra parte do meu corpo.
— Está se movendo! Está se mexendo de verdade!
— Ah, mas isso não é tudo. Por que não tenta tocar em algo?
— Certo…
Estendi a mão para pegar uma pequena estatueta de madeira da mesa mais
próxima. Era a estatueta de um cavalo, mais ou menos do tamanho do meu
punho.
Verdade. Era preciso ser bastante preciso com a quantia de força usada ao
esculpir algo. Já que Zanoba fez isso com seus próprios objetivos em mente,
essa sensação de toque seria uma característica essencial.
Só para ver o que poderia acontecer, tentei lançar um feitiço por meio dos
meus novos “dedos”. Uma pequena bola de água apareceu na frente deles.
Parecia que minha magia também não enfrentaria problemas.
Zanoba criou mesmo essa coisa em apenas meio ano? Não deve ter sido fácil.
Sua paixão por estatuetas deve tê-lo mantido incrivelmente motivado.
— Eu não tinha certeza se você seria capaz de usar sem a mão, mas parece que
não há grandes problemas — disse Zanoba com um sorriso satisfeito.
— Sim, se move muito bem. Também posso sentir os dedos. E usar magia.
— Se deseja aumentar sua força, só precisa o alimentar com mais mana. Seu
poder aumentará de acordo com isso.
— Ah, sério?
— Claro, se você usasse toda sua mana, imagino que acabaria quebrando
devido à tensão. É mais resistente do que uma mão humana normal, mas tome
cuidado.
— Bem, vejamos…
— Ah.
— Aaah!
— Aaaagh… Mestre, como você pôde…? — Zanoba olhou para mim com um
olhar de reprovação no rosto.
— U-Uh, bem, e se eu fizer algo novo para você? Seria apenas uma escultura
feita com magia de Terra, mas…
— Pode ficar com essa mão, Mestre Rudeus. Ainda é apenas um protótipo, é
claro, mas tenho certeza de que é melhor do que nada.
— Com você e Cliff me ajudando, tenho certeza que posso fazer outra de
qualidade semelhante em um instante.
Seria bom tornar essa coisa mais sensível. Dessa forma, eu poderia usá-la para
carícias recreativas.
Regenerar uma parte que faltava no corpo, por outro lado, era extremamente
caro. A menos que fosse muito rico, provavelmente não conseguiria. E não
existiam muitos magos capazes de restaurar um braço ou perna inteiros.
Poderia encontrar alguns no País Sagrado de Millis, mas mesmo por lá eram
bem raros. Um simples aventureiro não poderia esperar contratar seus
serviços.
Os Curandeiros de Millis podiam não ficar muito satisfeitos com isso, mas,
felizmente, estavam do outro lado do mundo, bem longe de nós. Contanto que
conseguíssemos o apoio de uma organização maior, como a Universidade ou a
Guilda dos Magos, provavelmente funcionaria muito bem.
— Não, ainda não dei um. Infelizmente, nem Cliff nem eu temos muito talento
para nomear as coisas.
— Ah, é? — Isso não era tão legal. Com certeza poderíamos inventar algum,
certo?
Olhando para a coisa que agora servia como minha mão esquerda, parei para
pensar por um momento.
O segundo termo que passou pela minha mente foi “Mão da Glória”. Como na
mão decepada e conservada de um criminoso executado, que supostamente
tinha poderes mágicos – não o movimento especial de um personagem de
anime pervertido que usava uma bandana.
Essa coisa era uma invenção completamente nova – algo que este mundo
nunca tinha visto. Os inventores talvez merecessem algum crédito.
— Não creio que seja completamente verdade, mas que seja. A partir de agora,
vamos chamar esse dispositivo de Prótese Zaliff, Protótipo Um. — Zanoba
sorriu com orgulho enquanto falava.
Meu objetivo era chegar ao ponto em que poderia apertar os seios de Roxy e
Sylphie suavemente.
— Hmm, vejamos…
Aparentemente, este protótipo tinha alguns problemas fundamentais. Por um
lado, seu consumo de mana não era ideal. Eu poderia usar sem parar, mas
passadas duas ou três horas Zanoba já não tinha nada sobrando.
Os dedos também eram meio grossos, o que não era esteticamente agradável.
E, claro, seu sentido de toque ainda não era perfeito. Se conseguíssemos
resolver todos esses problemas, seria uma invenção ainda mais surpreendente.
Dito isso, a prótese não era o foco principal da nossa pesquisa. Era apenas um
subproduto dela.
Nosso objetivo era fazer um autômato próprio, com nossas próprias mãos.
Esta prótese definitivamente teria um preço elevado e era uma ferramenta
muito conveniente. Provavelmente poderíamos inseri-la no mercado. Mas eu
não queria que isso tomasse todo o nosso tempo de pesquisa.
— Realmente.
— Muito bem. Outro dia, ela terminou uma estatueta de um certo cavalheiro.
Acredito que ela queria te mostrar, Mestre Rudeus.
Hm? Ela já tinha terminado a estatueta de Ruijerd? Eu queria ver isso o quanto
antes, mas…
— É bom ouvir isso. Mas se ela não vai voltar até de noite, acho que não poderei
vê-la hoje.
— Sua mestra?
— Perdão…
Roxy hesitantemente entrou no cômodo. Ela parou para olhar ao redor da sala
por um momento, então cautelosamente caminhou até o meu lado.
— Não seja boba, Roxy. Não há um único lugar neste campus onde você não
possa entrar.
— É bom te ver de novo, Príncipe Zanoba. Fico feliz em te ver com tanto vigor e
boa saúde.
Zanoba, por sua vez, apenas olhou para ela e tremeu ainda mais do que antes.
Por fim, ergueu os braços trêmulos acima da cabeça. De repente, soltou um
tipo de rugido estranho.
— Ohhhhhhh!!!
Depois de pular no ar igual a um sapo, caiu no chão, prostrando-se com as
mãos estendidas para frente.
— Que bom te ver de novo, Lady Roxy! Minhas mais profundas desculpas pela
grosseria com que te tratei no passado! Na época eu não fazia ideia de que
você era a mestra do meu mestre!
O rosto dele ainda estava firmemente pressionado contra o chão, mas Zanoba
balançou a cabeça com respeito.
— Você não precisa de um “motivo” para o que é natural, certo? Apenas aceite o
gesto com graça, por que não?
— Mas…
O homem era alto, então, assim que ficasse de pé de novo, provavelmente teria
uma visão clara do topo da adorável cabeça de Roxy.
Isso me parecia decididamente atrevido, mas eu teria que deixar passar. Afinal,
ele não conseguia controlar sua própria altura.
— Sim. Mestre Jenius, o vice-diretor, digo, achou que minhas habilidades como
maga são adequadas.
— Bem, é claro que são — interrompi. — Afinal, foi você quem me ensinou
magia!
— Você aprendeu muita coisa sozinho, Rudy. Não tenho certeza do quanto isso
diz sobre meu potencial como educadora.
Roxy, pelo visto, estaria começando seu novo trabalho como instrutora assim
que o próximo semestre começasse.
Também não era a única coisa que tínhamos para comemorar. Em breve nos
casaríamos, minhas irmãs fariam dez anos em pouco tempo e tínhamos mais
um membro da família a caminho.
Pode ser mais fácil juntar todos os eventos em uma grande festa ou algo
assim.
Além de tudo, a carta de Paul sugeria uma celebração assim que todos
voltassem para casa. Porém, não havia pressa. Todos estávamos de mãos
cheias no momento. Seria melhor esperar até que as coisas estivessem um
pouco menos agitadas.
— Ah, quase esqueci. Eu estava planejando sair por aí dizendo olá para todo
mundo.
— Bastante razoável, Mestre. Tenho certeza de que ficarão muito felizes em vê-
lo de volta tão cedo.
Zanoba sorriu tão brilhantemente que não pude deixar de sorrir também.
— Por favor, passe por aqui quando tiver tempo, Mestre. Julie ficará feliz em te
ver.
— Claro.
— Ah, uma última coisa. Se sua mão nova começar a causar problemas, pode
ser melhor mostrar primeiro a Cliff, em vez de vir até mim.
— Entendido.
Suponho que não era razoável esperar que um protótipo fosse projetado para
operar em silêncio.
— Sim, é mesmo. Dado o quão bem funciona, acho que poderei viver muito bem
de agora em diante. Mesmo sem ter você por perto o tempo todo.
— Sinto muito, Rudy. Suponho que não estava levando sua situação em
consideração. Fiquei tão ansiosa para me tornar professora que nem pensei
nos problemas que isso poderia te causar…
— Está falando da minha mão perdida? Sério, isso não é grande coisa.
Ter Roxy por perto era de grande ajuda, mas não era como se eu tivesse pedido
a ela para assumir o papel de minha assistente pessoal. Obviamente, queria
que ela colocasse seus próprios objetivos em primeiro lugar.
Por um lado, há muita gente na minha vida que estão dispostos a me ajudar
quando necessário. Não que eu fosse dizer isso, já que soaria como se eu
estivesse chamando Roxy de substituível.
— Em qualquer caso, estou feliz por você voltar a ter uma mão esquerda.
Pude sentir seu calor e a suavidade de seu corpo, mesmo através de seu robe.
Pelo visto, essa coisa também era sensível à temperatura. Era realmente bem
feita.
Continuei acariciando Roxy por um longo período de tempo, mas ela aceitou
tudo sem reclamar.
Pelo resto da tarde, percorri o campus apresentando Roxy aos meus amigos e
conhecidos. Conseguimos ver Linia, Pursena, Ariel, Luke e Nanahoshi. Eu
planejava visitar Cliff também, mas ouvi gemidos apaixonados dentro de seu
laboratório quando nos aproximamos, então decidi voltar em outra ocasião.
Acho que o povo-fera é rápido em reconhecer pessoas com quem não devem
mexer. Desta vez seus instintos estavam certos.
Quando apareci para dizer olá, as primeiras palavras que saíram da boca de
Ariel foram: “Vejo que se lembrou de passar por aqui ao menos depois da
viagem.”
Ela não parecia realmente chateada, mas explicou que poderia ter me oferecido
ajuda caso eu fosse vê-la antes de partir. Considerando que meus preparativos
inadequados acabaram me custando caro, ouvir isso me deixou um pouco
envergonhado. Acabei me desculpando por minha omissão.
Ainda assim, Ariel era uma princesa, com todas as habilidades diplomáticas a
isso implicadas. Ela cumprimentou Roxy com muita educação, sem qualquer
sinal de confusão em sua voz. O autocontrole dessa mulher era
impressionante.
Suponho que esperar que uma garota comum do colégio pudesse compreender
a grandeza de Roxy era querer demais.
A essa altura, já era noite e tínhamos passado por todos que eu queria visitar.
Porém, quando eu estava prestes a sugerir que fôssemos para casa, Roxy falou
com uma expressão ligeiramente descontente no rosto:
— Rudy?
— Sim, Roxy?
— Estou muito feliz que você tenha reservado um tempo para me apresentar
aos seus amigos, mas sinto que você está sendo… um pouco exagerado em
seus elogios.
— Bem, no que me diz respeito, nenhuma palavra que pudesse oferecer seria o
suficiente para expressar o quão maravilhosa você realmente é. Na verdade,
pensei que estava te fazendo passar por menos do que é.
Franzindo a testa, Roxy apontou um dedo para mim.
— Não seja ridícula. Meu respeito e admiração por você é o mais real possível.
— Ah, fala sério… Sabe, sempre que você começa a me chamar de Mestra, não
consigo deixar de lado a sensação de que você está tirando sarro de mim.
— Oh!
Roxy estava perfeitamente certa. Ela não era mais Roxy Migurdia. Agora era
Roxy M. Greyrat.
Eu, no mínimo, estava confiante de que uma pessoa tão astuta quanto Ariel
teria percebido.
Ainda assim, isso não era desculpa. Roxy tinha todo o direito de ficar furiosa.
Acho que eu queria enfatizar, acima de qualquer coisa, a sua grandeza. E uma
parte de mim ainda achava que ela era boa demais para se casar com alguém
como eu. Mas ela claramente queria que eu a apresentasse como minha
esposa.
Foi um erro imperdoável da minha parte. Roxy era minha segunda esposa, sim,
mas isso não a tornava menos minha esposa. Passaríamos o resto de nossas
vidas juntos. Talvez até teríamos filhos.
— Sinto muito, Roxy, querida. Mas você sabe o quanto te amo, certo? Como
posso te compensar por isso? Quer que eu me apresente aos seus pais?
— Uh… n-não, não acho que isso seja necessário. Afinal, é uma viagem bem
longa. Eventualmente faremos isso.
Eventualmente? Hmm.
Afastando o pensamento para o fundo da minha mente, fui para casa com
minha nova esposa ao meu lado.
Lendas da Universidade #1: O Chefe pode disparar sua mão igual a um foguete.
Cap. 02 – Terceiro Ano
Quando acordei e desci para a sala, me deparei com Sylphie lá, amamentando
Lucie.
Lucie tinha apenas alguns meses de idade, mas já parecia ser forte e saudável.
Sylphie também estava bem. A única diferença era que eu sentia como se ela
tivesse ficado de alguma forma mais feminina. Será que era por ter deixado o
cabelo crescer? Ou era aquela coisa de “aura de mãe”? Ou apenas o fato de ter
ficado um pouco mais velha?
Seja lá qual fosse o caso, ela estava desabrochando em uma beldade ao estilo
de Hollywood. Podia se sentar em silêncio no sofá, sem fazer nada em
particular, e ainda parecia que estava posando para um retrato. Às vezes, eu
até mesmo hesitava em falar com ela, de tão hipnotizado que ficava.
— Hoje Lucie está cheia de energia de novo — disse ela, sorrindo para mim.
Olhei para nosso bebê, que furiosamente chupava o seio de minha esposa. Ela
estava fazendo isso com tanto vigor quanto eu fazia na cama. Tal pai tal filha.
Lucie era um bebê saudável, mas um pouco calada. Ela não chorava muito. Por
um tempo, fiquei ansioso pensando que poderia estar doente ou ter algum
problema físico. Sempre que eu tocava nesse assunto, porém, Sylphie apenas
sorria e me chamava de “preocupado demais”. Eu não lembrava de ter ficado
tão nervoso quando minhas irmãs nasceram, mas acho que quando o bebê é
seu as coisas são diferentes.
Qualquer um que passasse por ali me veria murmurando coisas como “Você já
descobriu, né? Este é um universo paralelo…” e “Você é meu raio de sol! Eu sou
uma caneta!”
Tenho certeza de que deve ter sido uma visão cômica. Lembro de Aisha nas
sombras rindo de mim.
Meus métodos não eram exatamente os melhores, mas comecei a pensar que
minha filha provavelmente não era a reencarnação de ninguém. Quando eu
conversava com ela, tudo que ela fazia era sorrir e balbuciar incoerentemente.
Era possível que ela estivesse apenas escondendo sua verdadeira natureza, é
claro, mas não sei quantos adultos conseguiriam manter uma imitação perfeita
de um bebê por tanto tempo. E mesmo que fosse esse o caso, era meio fofo
imaginar alguém desesperadamente fingindo ser um bebê.
Sim. De uma forma ou de outra, Lucie definitivamente era fofa. Eu poderia ficar
o dia todo ao lado de seu berço, sem nunca me cansar de vê-la. No final das
contas, eu realmente não me importava sobre ela ser a reencarnação de
alguém. Cuidaria bem dela de qualquer maneira. Afinal, Paul fez o mesmo por
mim.
Deslizando meus braços por trás dos ombros de Sylphie, a abracei suavemente
contra mim. Abaixei minha cabeça, como se fosse dar um beijo em sua nuca…
mas depois continuei, enterrando meu rosto em seu cabelo.
Ela tinha um leve cheiro de leite. Era uma espécie de perfume natural.
— Sério? Sei que às vezes ele pode ser bem grosso. Ele não te assustou nem
nada?
— Não, na verdade não. Afinal, era a segunda vez e ele foi gentil comigo… Ah,
sinto muito. Talvez eu não devesse estar falando isso…
— Não…?
— Não mesmo.
As duas ainda eram um pouco estranhas uma com a outra, mas ao menos não
demonstravam hostilidade entre si. Poderia dizer que estavam tentando ser
respeitosas e atenciosas. Isso me denunciava que queriam fazer isso.
Um relacionamento a três como esse não era algo tão simples quanto um
relacionamento monogâmico. Provavelmente exigiria algum esforço de todas
as partes envolvidas. Estaríamos, em particular, dependendo muito de Sylphie.
Sua mente aberta era a única coisa que tornava isso possível.
Voltei atrás em minha palavra com ela e tomei Roxy como segunda esposa. Ela
teria justificativa para bater com os papéis do divórcio na minha cara.
Sinceramente, era uma música horrível. Ela talvez tivesse acabado de inventar.
Acho que até mesmo gênios têm seus pontos fracos.
— Bom dia, Rudeus! Bom dia, Senhorita Sylphie e Senhorita Roxy! O café da
manhã de hoje é praticamente o mesmo de sempre!
Ela estava carregando pão branco, sopa verde e leite quente de égua. Nessa
região, a tradição era de que novas mães tomassem muito disso.
Supostamente ajudava a amamentar.
— Isso não vai dar certo, Aisha. Diga a todos o que você está servindo.
Lilia entrou na sala atrás da filha. Pelo visto, também estava na cozinha.
— Temos sopa de batata e feijão Yoko, servida com pão branco e leite de égua
altamente nutritivo! — tagarelou Aisha obedientemente.
Claro, já sabíamos disso, pois era o que comíamos meio que todas as manhãs.
Mas acho que manter as formalidades menores vale a pena.
Minha mãe entrou na sala de estar, parou para olhar para mim e, logo depois,
silenciosamente se dirigiu ao seu lugar habitual à mesa.
Norn às vezes parecia perturbada com isso, mas aceitava a atenção de Zenith.
Não sei exatamente no que ela estava pensando. Mas eu presumia que seus
sentimentos a respeito disso eram confusos.
—…
Mas era difícil saber o que isso significava para o lado de Zenith.
Ela sentia uma conexão com sua filha, em algum nível instintivo? Ou estava
lentamente começando a recuperar fragmentos de sua memória?
Todos nós tomamos nosso café da manhã juntos. Sylphie estava sentada à
minha direita e Roxy à esquerda. Do outro lado da mesa estavam Aisha, Lilia e
Zenith, nessa ordem. Norn costumava sentar ao lado de sua mãe, mas desta
vez não estava presente.
Eu não lembrava de ninguém ter organizado isso, mas acabamos chegando a
esse arranjo nos assentos.
— Tenho certeza que você lembra, mas a partir de hoje estarei de volta à
Universidade. Cuide bem de Lucie para mim, viu?
Mas Lucie ainda era uma criança. Ela não poderia sobreviver sem acesso aos
seios de sua mãe.
Deixando isso de lado por um tempo, decidimos contratar uma ama de leite.
Era uma moça chamada Suzanne que morava na vizinhança – uma ex-
aventureira e mãe de dois. Ela era uma velha conhecida minha, mas não há
necessidade de tocar no assunto agora.
— Yo!
— Dia, senhor!
Pensando bem, acho que era porque virei um pai de família. Não que eu me
sentisse diferente.
— Ei, Chefe!
Enquanto eu pensava nisso tudo, as alunas com a aparência mais perigosa de
todas apareceram diante de nós.
— Dia, Chefe!
Eram Linia e Pursena, é claro. Essas duas estavam agora no último ano de
estudo, mas não tinham mudado muito.
— Você não é um cara de sorte, Chefe? Chegando na escola com uma garota
de cada lado!
— Qual é a sua, nos largando e depois arranjando uma segunda esposa? Injusto
pra caralho, é isso que é.
— Vamos nos formar este ano, sabe. Acho que também teremos que arrumar
alguém.
— Boa sorte para vocês duas — disse Sylphie com um sorriso agradável.
Foi a resposta provocadora de uma mulher que tinha alguma confiança em sua
própria posição. Para ser sincero, fiquei um pouco surpreso.
Mas, bem, Sylphie conhecia essas duas há mais tempo do que eu. Acho que
fazia sentido que se sentisse confortável lidando com elas.
Roxy, por outro lado, parecia ter interpretado suas palavras ao pé da letra. Ela
baixou a cabeça para elas com uma expressão de desculpas.
— Sinto muito por isso. Suponho que cortei a fila, não foi?
— Mya?!
— Huh?!
— Sim, só estamos bravas com nossa maldita falta de apelo sexual. Não
estamos fazendo pouco de você, Senhorita Roxy!
Para ser sincero, eu meio que esperava que essas duas dissessem algo como
“Somos muito mais sensuais do que essa pequenina, mew!” ou “Você se casou
com um maldito demônio?!” Não que eu fosse tolerar tal desrespeito.
— Isso também deve ser difícil para você, hein? Aguente firme, Fitz!
— Não vai ser fácil acompanhá-la, mas sei que você consegue!
— Huh?
— O quê…?
Sylphie parou para pensar por um momento, então murmurou “Oh” e seu rosto
assumiu uma expressão um pouco estranha.
— Estou quase chorando! Vamos lá, Fitz! Uma pessoa quieta como você com
certeza vai acabar em segundo plano assim que o Chefe pegar a número três e
quatro, certo? Isso é tão triste!
Não que eu tivesse retribuído isso muito bem até o momento, com Roxy e tal.
Não consegui distinguir a expressão de Sylphie por baixo dos óculos escuros,
mas sua voz parecia ansiosa. Eu precisava me aproximar e dar a ela um pouco
de segurança.
— EU TE AMO, SYLPHIE!
— B-Bem, se você quer fazer um grande gesto, então deve fazer o mesmo pela
Roxy!
Sem mais hesitação, abracei Roxy com o braço esquerdo, mantendo Sylphie
pressionada contra mim com o direito.
Desta vez, recebi um coro de vaias de alguns dos alunos que estavam
assistindo. Provavelmente eram seguidores da Igreja Millis ou algo assim.
— Ah, meu deus! Estou indo me encontrar com a Princesa Ariel, tá?
Não via as aulas há quase um ano, então acho que simplesmente esqueci. Para
ser sincero, porém, não parecia que havia muito sentido em continuar com a
farsa. Ela já estava bonita demais para ser convincente que era um garoto.
Bem, tanto faz. Ela era bonita de qualquer jeito, e como se apresentava era
escolha dela.
— Suponho que então irei para os escritórios do corpo docente — disse Roxy
após vermos Sylphie sair trotando.
Por mim tudo bem, é claro. Mas, o mais importante… Roxy realmente
era professora, não era? Isso era meio… picante. Me vi pensando na noite
anterior.
Imagino até que horas te deixam ficar com as chaves do depósito de Educação
Física…
— Sim, Rudeus? — disse Roxy, olhando para mim com um sorriso calmo e
profissional.
— Este é o primeiro dia do novo período, certo? O corpo docente não tem uma
reunião antecipada ou algo assim?
— Gah!
Hmm. A cor desapareceu do rosto dela. Isso não era um bom sinal.
— S-Sinto muito, preciso ir! Agora! Com licença!
Acho que não tínhamos calculado o tempo. Um membro do corpo docente não
seguiria a mesma programação que um simples aluno, é claro.
— Meow!
Eu, particularmente, fui para a sala especial com minhas subordinadas leais no
meu encalço. Desta vez tínhamos uma classe obrigatória.
Não que eu fosse colocar as mãos em Linia ou Pursena ou algo assim. Ah, às
vezes é difícil ser homem…
Linia se virou para mim, suas orelhas de pé. Eu podia ver a curiosidade
brilhando em seus olhos.
— Sério?
— Aham. Estão dizendo que você travou uma batalha realmente épica. Tão
épica que perdeu a mão esquerda.
— Ah…
Pensando bem, tudo que eu disse para as duas foi que tinha voltado da minha
jornada e que Roxy começaria a lecionar na Universidade. Zanoba era o único
amigo para quem eu tinha falado sobre os detalhes.
Então ele espalhou os rumores? Ou podia ser Cliff. Afinal, ele provavelmente
tinha ouvido a história por Elinalise.
— Esse é o nosso chefe, mew! Voa para o Continente Demônio para lutar contra
um dos Sete Grandes Poderes e sacrifica a própria mão para vencer!
— O qu…?
Isso era bizarro demais! Como diabos o boato se distorceu a esse ponto? Eu
realmente não gostei disso. E se circulasse o suficiente para que todos
começassem a acreditar que eu derrotei um dos Sete Grandes Poderes? E se
um dos Poderes ouvisse esse boato?
— Bem, de qualquer forma, fui eu quem acabou de inventar essa história. Não
se preocupe, vou me certificar de espalhar por todos os… myaaa!
Antes que Linia pudesse terminar de falar, a agarrei pelo rabo e dei um puxão
feroz. Ela me atacou com as garras para fora, mas evitei seus golpes usando
meu Olho Demoníaco. Depois de algumas tentativas fracassadas, ela
pressionou a mão contra a bunda e olhou para mim com os olhos cheios de
lágrimas.
— Não espalhe nenhum boato exagerado, entendeu? Senão vou arrancar essa
coisa de você!
Essas duas tinham uma fixação por espalhar boatos. Elas espalharam aqueles
sobre meus problemas na cama por todo o campus, mas disso poderia perdoá-
las, já que era verdade. Mas este era um caso totalmente diferente. Isso
poderia me causar problemas reais. Poderia acabar até mesmo morto.
Esse era o tipo de boato que precisava ser cortado pela raiz.
— Zanoba nos disse o que aconteceu. Você lutou contra uma hidra imune à
magia, certo? Ele estava dizendo que deveria ter ido junto. Acredita que poderia
ter evitado que você se machucasse.
— Isso mesmo, mew. Mas ficamos impressionadas por você ter conseguido
derrotar aquela coisa. Então, eu estava imaginando que precisávamos nos
assegurar de que todos soubessem o quão fodão você é…
— Isso mesmo, mew. Não fará muita diferença se jogarmos nossa história no
meio disso.
—…
Nada disso parecia particularmente confiável, então presumi que com o tempo
esses boatos sumiriam.
— Hmm…
— Vocês, humanos, não conseguem imaginar o quanto isso dói, mew. Puxar a
cauda de uma moça é imperdoável!
Já fazia muito tempo desde que estive nesta sala, mas tudo parecia bem
familiar. Era difícil imaginar que perderíamos dois dos nossos em apenas um
ano. Assumindo que Linia e Pursena conseguissem se formar, é claro.
— Foi mal por isso, Cliff. Passei pelo seu quarto depois de voltar, mas parecia
que você e Elinalise estavam ocupados com alguma coisa.
— Uh… entendo. Suponho que naquela noite estava com ela, sim. Tudo bem,
deixa pra lá. Minhas desculpas.
Por sorte, Cliff recuou bem rápido. Mas, ainda assim, eu estava começando a
ter a sensação de que as pessoas nesse espectro social eram muito exigentes
em relação a esse tipo de formalidade. Ariel também ficou descontente pela
forma como saí sem dizer qualquer coisa.
Quando eu era aventureiro, todo mundo era mais casual sobre essas coisas.
— Porém, sua primeira criança nasceu, sim? Você poderia ter falado ao menos
isso. Ainda estou treinando, mas poderia ter ao menos oferecido uma bênção a
ela.
— Ah, é mesmo. Você não segue a Igreja Millis, então suponho que isso não
seja necessário. Ainda assim, quase parece que você está me evitando. Tenho
certeza de que está preocupado com sua filha, mas não poderia ter encontrado
tempo para passar pelo meu laboratório ao menos uma vez?
— Será que há algum motivo para você não querer me ver? Se sim, gostaria de
ouvir diretamente de você, caso não se importe.
Neste dia ele estava estranhamente tenaz a respeito disso. Tive a sensação de
que Elinalise já tinha contado. Conhecendo-a, ela provavelmente também o
aborreceu um pouco. Eu podia vê-la dizendo algo como “Sei que você é
apaixonado pela sua fé, Cliff, mas se perdoá-lo pelas ofensas, vai mostrar a todos
o quão gentil e tolerante você é!”
Claro, eu não precisava do perdão ou permissão de Cliff para casar com Roxy.
Mas isso não significava que também queria arruinar nossa amizade.
Provavelmente era melhor eu entrar no jogo. Poderia confessar toda a verdade,
deixar Cliff me perdoar e depois elogiar sua mente aberta por um bom tempo.
Ele ficaria com o ego inflado e esqueceria do assunto. Sério, era uma situação
em que todos ganham.
Então tá bom. Acho que vou dançar nas suas cordas, Elinalise…
— Na verdade, Cliff…
— Perdão.
A outra era uma adorável jovem vestindo um robe, seus olhos sonolentos e
uma expressão séria, que parecia um pouco nervosa. O tipo de garota que
obviamente faria o melhor em todos os momentos, e que ninguém poderia
deixar de querer abraçar. Com isso, quero dizer… Roxy.
— A Professora Roxy pode parecer muito jovem, mas isso é uma simples
característica particular de seu povo. Ela, na verdade, tem mais de cinquenta
anos. Parece que já possui conexões com alguns de vocês, então decidimos
colocá-la aqui. Ela, no momento, atuará como minha assistente, mas
pretendemos que no próximo ano assuma inteiramente a classe.
O professor acenou com a cabeça para esta pergunta. O nome dele era
Samson? Isso era novidade para mim. Era quase impressionante o quão
despercebido ele passava.
— Voltarei para minha terra natal no ano que vem. Afinal, não tenho mais
qualquer parente nesta classe.
— Ah, sim. Afinal, para onde Ren foi depois que se formou?
— Ooh. Entendi.
Eu só ficaria sabendo disso mais tarde, mas, aparentemente, era comum que o
orientador da classe especial fosse um instrutor com alguma conexão especial
com um ou mais alunos. Provavelmente tinha algo a ver com o quão
imprevisíveis eles eram. Gostariam de alguém que pudesse controlá-los um
pouco, ou ao menos servir como uma voz de contenção.
O Professor Samson, que estava encarregado de nós até o momento, era irmão
de uma estudante que se formou um ano antes de Cliff se matricular. Ela fazia
parte da família ducal de Neris, uma das três Nações Mágicas, e supostamente
tinha notável talento para a magia.
Em qualquer caso, Roxy tinha conexões pessoais comigo e com Zanoba. Ela
era, essencialmente, a escolha perfeita para o trabalho.
Voltando a dar um passo à frente, Roxy olhou pela sala e então começou a
falar.
— Sei que já fui apresentada a alguns de vocês, mas, novamente, meu nome é
Roxy M. Greyrat. Sou a segunda esposa do Rudeus Greyrat ali. Vou tentar não
deixar que isso influencie minhas ações como professora, mas espero que
entendam.
—…
— Hm, Cliff…
— Hmm. Uma segunda esposa, não é? A palavra fidelidade não faz parte do seu
vocabulário, Rudeus?
Quando falei com ele, ele partiu para o modo de sermão na mesma hora.
— Abençoei seu casamento com Sylphie porque você me disse que a amaria, e
apenas ela. Você lembra disso, não?
— Bem, suponho que desde o início eu sabia que você não segue a minha fé.
Não vou continuar insistindo neste ponto. Se der certo, você tem meus
parabéns. Espero que sejam felizes juntos.
— Obrigado, Cliff.
— Sabe, encontrei sua irmã Norn várias vezes na cidade. Ela me disse que
esperava algum dia ter um casamento feliz como o seu. Ela te disse alguma
coisa quando você apareceu com uma segunda esposa em sua casa?
— Imagino que sim. Ela orou quase todos os dias na igreja pelo retorno seguro
seu e de seu pai. Normalmente, sua volta para casa deveria ser uma ocasião
alegre para ela.
— Bem, claro que sim. Ela deve ter ficado com muito medo de ser expulsa de
casa em caso de teimar muito no assunto.
— Claro, sei que não faria. Mas coloque-se no lugar da parte mais vulnerável. A
garota acabou de perder o pai. Você é a única pessoa com quem ela pode
contar agora, entende? Acho que você realmente deveria tentar ser mais
atencioso aos sentimentos dela, assim como uma família.
Cara, ele estava cutucando onde doía. Parecia que eu estava sendo interrogado
por um sacerdote severo ou algo assim. Esse homem podia ser intenso quando
queria.
Mesmo assim, havia uma parte dessa história que era novidade para mim, e eu
devia alguma gratidão a ele.
— Você estava cuidando de Norn enquanto estive fora, não é? Obrigado. Fico
grato por isso.
— Pois bem. Parece que você está devidamente arrependido, então suponho
que irei perdoá-lo por seus erros. Afinal, São Millis nos ensinou a ser tolerantes.
Bem, eu fui perdoado. Talvez isso tenha sido mais uma confissão do que uma
conversa.
Joguei um beijo para ela, o que me rendeu uma risadinha, seguida por uma
carranca de desaprovação.
Durante o resto do tempo, minha vida prosseguiu ao longo dos velhos hábitos
familiares.
Eu visitava Zanoba e Cliff regularmente, aparecia para ajudar Nanahoshi com
sua pesquisa e usava meu tempo livre para trabalhar em meu livro ou estudar
as pedras que absorvem magia que consegui durante minha última viagem.
Como sempre, eu tinha muito com que ocupar meu tempo. Sentia uma certa
saudade dos dias em que podia dedicar meu dia todo a uma única tarefa, ou
talvez duas.
Uma coisa que mudou foi a forma como eu usava meu tempo logo após o
término das aulas. Antes, ajudava Norn com seus estudos, mas agora eu a
estava treinando para o uso da espada.
— Chegamos.
No momento em que entrei pela porta, Aisha saltou para frente e jogou os
braços ao meu redor.
Onde ela aprendeu isso? Que clichê. Ah, espera, fui eu quem ensinou isso?
Não… eu lembrava de ter ensinado isso para Sylphie, mas não para minha
própria irmãzinha.
Declarando “Sua…!”, comecei a fazer cócegas nas axilas de Aisha, sem
qualquer piedade, até que ela fugiu, gargalhando, e levou um golpe de Lilia na
cabeça.
Aisha o incluiu em sua lista de opções, mas não estava pronto e à minha
espera nem nada assim. Ainda deviam estar trabalhando no jantar. Em outras
palavras, “Ela” era a única opção realmente disponível.
Ah, bom, que seja. Felizmente, Aisha sempre limpava a banheira durante o dia,
então tudo que eu precisava fazer era colocar água.
Neste dia, Aisha me acompanhou até o banho. A garota já tinha onze anos, mas
ainda não parecia ter nenhum senso de vergonha. Se ela alguma vez
conversasse com um garoto com os hormônios em alta, o pobre garoto
provavelmente teria a ideia errada em questão de minutos.
— Sempre digo para você se cobrir com uma toalha quando for entrar no banho,
Aisha.
— Por quê?
— Por educação.
— Tuuudo bem.
Ainda assim, era bom ter uma irmãzinha. Ela gostava de se contorcer por entre
minhas pernas e exigir que eu lavasse suas costas ou enxaguasse sua cabeça,
e era sempre muito fofa. Que bom que ela era minha irmã – e também apenas
uma garotinha magricela – ou eu poderia acabar com outra esposa em minhas
mãos.
Quando saímos do banho, Roxy estava chegando em casa, então fomos direto
para o jantar.
Desta vez comemos um ensopado de peixe de água doce, pão, feijão e batata.
Mais ou menos o mesmo de sempre.
Por um tempo, após o jantar, relaxamos como uma família. Ensinei um pouco
de magia para Aisha e Roxy subiu para o quarto dela para preparar suas aulas
do dia seguinte.
Sylphie estava ocupada cuidando de Lucie, mas às vezes arrumava tempo para
praticar um pouco de magia.
Tu, nosso tatu de estimação, foi até mim, então dei um pouco de atenção a ele.
Aliás, Aisha era responsável por cuidar dele. Ela o treinou por completo, e ele
estava começando a agir igual a um cão de guarda leal.
— Então tá bom, acho que está na hora de irmos para a cama. Boa noite a
todos.
— Boa noite!
Aisha também ia para a cama cedo. Uma vez que eu terminava sua sessão de
tutoria, ela costumava ir direto para a cama.
E depois que a casa ficou em silêncio, convidei minha esposa para o nosso
quarto.
Desci até o porão na ponta dos pés, o mais silenciosamente que pude. Uma vez
lá, olhei para trás várias vezes, cauteloso, antes de abrir uma certa porta
escondida.
Para os não iniciados, podiam parecer nada mais do que pequenos pacotes de
tecido. Mas eu sabia que os espíritos divinos de Roxy e Sylphie habitam neles.
Outro mês passou. Ainda estava frio, mas a neve estava começando a derreter
e dava para ver trechos do solo aqui e ali.
Era uma coisa grossa e de aparência tosca. Eu mesmo a fiz com minha magia
de terra. A lâmina não tinha fio, mas era excepcionalmente pesada. Essa era
uma boa forma de praticar com a força da minha nova mão esquerda artificial.
Pensando bem, eu não comi nada parecido com sashimi desde que cheguei a
este mundo. Ninguém comia peixe cru ou o quê?
—…
— Hee hee…
Volte logo.
Atualmente, ela se juntava a mim em meu treino matinal. Quando ela estava em
casa, fazíamos isso no quintal; quando estava no dormitório, nos
encontrávamos no pátio. Este era um de seus dias em casa.
— Gah! Rud…
— Opa. Lamento.
Ainda assim, o pensamento de que Norn algum dia se casaria inspirava uma
sensação desconfortável na boca do meu estômago. Será que era isso que um
pai sentia ao ver sua filha crescer?
Não era tão ruim. Eu teria que tomar o lugar de Paul e repreender o primeiro
namorado dela. Não vou entregar a Norn para um vadio feito você! Suma!
— Sinceramente. De que adianta bater se você não espera por uma resposta?
Enquanto eu pensava nessas coisas, Norn saiu de seu quarto com suas roupas
de exercícios, carregando uma espada de madeira em uma das mãos. Sua
roupa era simples e funcional, com mangas compridas e longa. Era o
equipamento de exercícios padrão da Universidade; comprei alguns pares para
ela na loja da escola.
Olhando rapidamente para além de Norn, para seu quarto, vi a espada de Paul
colocada no alto da parede. No meu velho mundo, ela provavelmente teria
montado um altar com uma foto do rosto dele, mas não existiam câmeras
neste. Era possível que alguém tivesse criado uma ferramenta mágica capaz de
capturar uma imagem, mas, se fosse assim, não tinha uso facilitado. Sem
fotos, as pessoas tendem a usar lembranças para recordar do que perderam.
Eu entrei. O quarto tinha o cheiro de sua ocupante, do jeito que as coisas ficam
pela manhã. Se eu tivesse pulado na cama e pressionado meu rosto contra
seus lençóis amassados, poderia ter preenchido meus pulmões com o cheiro
de Norn. Não que eu fosse fazer isso.
— Pai, Norn e eu vamos treinar novamente nesta manhã. Pode ficar de olho em
nós para que não nos machuquemos muito?
Assim que terminei minha breve prece, inclinei ligeiramente a cabeça para o
lado.
De qualquer forma, como Paul responderia a isso? Poderia ser algo como “Você
nunca vai melhorar sem se machucar um pouco, sabe.” Ou apenas “Caramba, é
melhor não deixar Norn se machucar.”
De relance, vi Norn ajoelhada ao meu lado com as mãos juntas, ao estilo Millis.
Tive uma boa visão de seu belo coque de cabelo em sua cabeça.
—…
Sério, não importava o que Paul teria dito. Ele não estava mais presente. Agora
eu tinha que desempenhar seu papel. Eu tinha a responsabilidade de cuidar da
Norn com o melhor de minhas habilidades. Afinal, ela não tinha mais ninguém a
quem recorrer.
Quando digo rigidamente, não quero dizer que ela seguia a mesma rotina que
eu. Isso seria demais para lidar. Comecei com um quinto do meu regime de
treinamento. Norn tinha apenas onze anos e nunca foi muito fisicamente ativa,
então não havia muito que eu pudesse esperar que ela suportasse.
Eu estava orgulhoso dela por isso. A garota era mais forte do que parecia.
— Cinquenta…!
— Já estou.
— Hmm, vejamos…
Mas a garota já estava nisso há meses. Ela provavelmente tinha feito algum
progresso.
Dei uma olhada em Norn. Ela tinha o corpo esguio de uma criança em
crescimento, mas em comparação com quando estávamos no começo, os
músculos de seus braços e pernas estavam um pouco mais definidos. Era
difícil dizer que ela estava “em forma” neste momento, mas um pouco de
esforço provavelmente não acabaria lhe machucando. Talvez fosse hora de
começar a ensinar as posturas mais básicas.
— Acho que você está certa. Vamos começar a coisa de verdade depois das
aulas de hoje, pode ser?
— S-Sério? Certo!
Não tínhamos a área só para nós. Alguns alunos com robes estavam treinando
nas proximidades e outros pareciam ter saído para caminhar um pouco.
Também atraímos alguns espectadores, que estavam obviamente curiosos
para saber o porquê de estarmos usando nossas roupas de treinamento
naquele horário.
— Sim senhor!
Ainda assim, brandir uma espada em uma batalha não era um jogo. Primeiro
era necessário aprender os fundamentos.
— Só para você saber, estou planejando ser bem rigoroso com você.
— Certo.
— Para ser sincero, não quero fazer você me odiar. Mas um instrutor indiferente
acaba machucando seus alunos. Se eu pegasse leve com você no treinamento
e você acabasse morrendo em sua primeira luta real, eu jamais seria capaz de
encarar nosso pai no céu.
Norn não tinha nenhum talento com a espada. Ao menos não quando
comparada a Eris na mesma idade. Eu não diria que ela era pior do que a média
de onze anos de idade, mas a “força” só pode ser medida por termos relativos.
— Em algum ponto, isso pode começar a deixá-la infeliz. Você pode ficar
frustrada com a falta de progresso. Pode ver alguém com mais talento te
superando rapidamente. Chegará o dia em que sentirá vontade de desistir.
—…
— Só para você saber, eu sei como é isso. E não poderia te culpar, ou qualquer
outra pessoa, por desistir diante das adversidades.
—…
Mais do que qualquer coisa, eu queria manter Norn a salvo de qualquer perigo.
— Dito isso, não quero que você desista da espada, não importa o que
aconteça. Se fizer isso, nunca mais vou te ensinar, e jamais deixarei você usar a
espada do Papai.
—…
— Mas, contanto que você continue assim, também não vou desistir de você.
Bem… desisti de melhorar com a espada, mas continuei com meu treinamento
diário. Queria acreditar que não era um completo hipócrita.
— Sim, é claro. Desta vez você correrá com a espada em mãos. Afinal, terá que
carregá-la por toda parte no campo de batalha.
—…
Desta vez, nosso regime consistiria em corrida, uma revisão das três formas
básicas e uma breve sessão de treino. Minha intenção era dificultar bastante a
vida dela. Ela precisava entender que isso poderia ser doloroso e assustador.
Não acho que a dor seja uma parte essencial do processo de aprendizagem
nem qualquer bobeira dessas, mas achei que seria melhor que ela percebesse
logo de cara o quanto isso poderia ser difícil.
— Sim senhor!
Enquanto o sol poente brilhava sobre nós, Norn desabou no chão, sentindo falta
de ar.
— Quero que você pratique as três formas básicas que te ensinei assim que
tiver tempo! De manhã, na hora do almoço, a qualquer hora! Mesmo quando
não estou por perto!
— S-Sim senhor!
Norn parecia bem relutante em realmente golpear alguém com uma espada de
madeira, então comecei deixando-a balançar livremente para que superasse
isso. Nem me defendi, só movi meu corpo para que não me machucasse. Ela
fazia uma careta toda vez que sentia a espada atingindo o alvo, mas tentei de
tudo para manter um olhar calmo e composto no rosto. Eu queria que ela
acreditasse que eu poderia suportar seus golpes sem problemas.
Acho que funcionou. Provavelmente. Desde que ela passou os últimos meses
fazendo muitos balanços de prática, seus golpes tinham uma força decente por
trás deles. Eu provavelmente ficaria com alguns hematomas feios.
Depois disso, chegamos ao treino real. Bati em Norn com minha espada por
algum tempo e, depois, encerrei a sessão. Peguei leve com ela, é claro, mas
seus braços e pernas definitivamente ficariam pretos ou azulados em pouco
tempo.
— Sim…
— Certo.
Para ser sincero, eu não estava muito confiante em minha própria habilidade
como professor.
Eu pretendia colocar Norn no chão e usar minha magia para aliviar sua dor. Se
ela tivesse algum hematoma sob as roupas, eu teria que pedir para Sylphie
fazer as honras depois.
Então, de novo, Norn voltaria para casa para passar a noite conosco, então
talvez eu pudesse fazer isso enquanto tomássemos banho juntos.
Me aproximei de minha irmã e tirei sua jaqueta para ver melhor os seus braços.
Mas então, senti que estávamos sendo observados.
— Hm?
Virando, vi um grupo de alunos olhando para nós, iluminados pelo sol poente.
Há quanto tempo aqueles caras estão lá? Hmm… será que desde o início?
Presumi que eram apenas espectadores curiosos, mas se tinham ficado por
tanto tempo, então provavelmente tinham algum motivo para toda essa
vadiagem. Talvez quisessem algo de mim.
— Norn, vista-se e me espere, tá? Hoje vou para casa com você.
A essa altura, eu era um “normie” com duas esposas e uma criança. Mas isso
não significa que senti desprezo por esses caras. Afinal, não fui muito diferente
deles em minha vida. Não que isso os impedisse de se sentirem intimidados.
O garoto parecia ter uns dezoito anos. Ele era quase tão alto quanto eu, mas
parecia desengonçado e fora de forma. Suas bochechas eram ossudas e seus
olhos meio astutos. O “mago” clássico, acho. Se colocasse um par de óculos
em sua cara, poderia parecer um pouco com Zanoba.
Mas, claro, Zanoba era cheio daquela confiança bizarra. Esse cara estava mais
para o tipo auto-aversivo e ressentido.
— Por que você está intimidando a Norn? — ele cuspiu, olhando para mim.
— Hm…?
Intimidando?
— Em primeiro lugar, Norn nunca segurou uma espada. Ela não sabe nem como
se defender! Não sei o que ela fez, mas obrigá-la a lutar contra você foi
maldade.
— Hrm.
Pelo rumo das coisas, pareciam acreditar que eu tinha forçado aquela espada
nas mãos de Norn, então batido nela por puro prazer sob o pretexto de “treiná-
la”. Era basicamente o oposto da verdade, mas era possível entender a razão
de chegarem a essa conclusão. Para começo de conversa, eu não era um
instrutor muito habilidoso.
— Bem, sabe…
— Sei que você é o mago mais poderoso de toda a escola. Mas se for maltratar
a Norn assim, vamos lutar contra você pelo bem dela.
Este cara estava completamente louco. Havia clara determinação em sua voz.
Mas o coro de aprovação de seus amigos dessa vez foi muito mais fraco.
Na verdade, ouvi alguém da parte de trás murmurando algo como “Acho que
não concordei com isso.”
É triste, mas caras como nós também são problemáticos quando estão em
grupo.
Ah, certo… Antes de me explicar, havia uma coisa que eu precisava entender.
— Huh?!
Com a voz embargada, o jovem mago voltou a olhar para seus amigos em
busca de orientação. Um momento depois, virou para mim de novo, agora com
um olhar estranho.
— E-Er, não, só… notamos ela no ano passado, quando era uma caloura… Ela
sempre, uh, dá o seu melhor em tudo, então… acho que estamos meio que
torcendo por ela…
O cara começou a gaguejar, mas assim que ele disse essas palavras, seus
amigos também começaram a concordar.
— Estou no mesmo ano que Norn. Tínhamos aulas práticas juntos, e ela sempre
errava o feitiço, mas…
Pensando bem, senti como se Sylphie já tivesse mencionado algo do tipo para
mim. Isso era compreensível. Afinal, Norn era adorável. Eu podia entender o
ponto de vista deles. Como irmão de Norn, queria encorajar seus esforços.
— Acho que agora entendo a situação. Todos vocês, obrigado por cuidar de
Norn. Me chamo Rudeus Greyrat, sou o irmão mais velho dela.
Esses caras estavam do lado de Norn. Alguns deles podiam ser capazes de
levar as coisas longe demais, mas, como grupo, pareciam ter apenas boas
intenções. O correto seria tratá-los com respeito.
Primeiro, expliquei que foi tudo ideia de Norn. Depois, disse a eles que aprender
esgrima era perigoso, a menos que levasse isso muito a sério. E, por fim,
enfatizei que Norn precisava se esforçar muito mais nisso do que a maioria das
pessoas precisaria.
Era uma pergunta justa. Eu também não tinha certeza se meus métodos
estavam corretos. Tudo o que eu queria era que entendessem que eu não
estava judiando de Norn.
— Oh! É a Norn!
— H-Hm, Rudeus, acho que esqueci algo no meu quarto. Vou lá pegar, então me
espere nos portões da escola, tá?
Assim sendo, Norn se virou e correu em direção aos dormitórios. Antes que ela
chegasse longe demais, porém, tropeçou e caiu.
— Guh…
Ela demorou um pouco para se levantar. E uma vez que ficou de pé, olhou para
mim por um momento. Seus olhos estavam brilhando.
Suprimi um suspiro. Criança, você talvez não devesse correr logo depois de se
exercitar…
Quando voltássemos para casa, eu teria que fazer uma massagem para ajudar
a controlar as dores musculares. Ela também precisaria de um banho longo e
relaxante.
— No começo pensei no uniforme escolar como uma ideia estúpida, mas acho
que agora entendo o apelo…
Hmm… sim, eu também compraria a Norn. Então a levaria de volta para casa e
comeria algo bom com ela. A daria uma boa comida e insistiria para que limpasse
o prato… Ah, posso vê-la sofrendo para comer tudo…
Norn era minha irmã mais nova. Eu não deixaria ninguém comprá-la no maldito
mercado de escravos. Se alguém ousasse sequestrá-la, eu caçaria essa pessoa
e a mataria dolorosamente.
— Ahem!
— Gah!
Limpei minha garganta fazendo barulho, isso fez com que os membros do fã-
clube abandonassem suas fantasias perturbadoras.
— Gente, preciso que não falem sobre escravizar minha irmãzinha, obrigado.
— S-Sinto muito…
— Está tudo bem, eu sei que ela é adorável. Ao menos alguns devaneios vocês
podem ter. Contanto que mantenham uma distância segura dela.
— Ah. Sério?
— Eek!
Ser claro a respeito dessas coisas não machucava. Não achei que algum dos
presentes fosse capaz de fazer alguma travessura, e grupos como este
tendiam a ter um efeito moderador sobre seus membros… mas nunca se sabe
o que alguém pode acabar fazendo por impulso. A última coisa que eu
precisava era de um deles passando dos limites e tentando agarrar Norn no
meio da rua.
— Por outro lado, quais regras seu clube segue até agora?
— Sim. Este é o fã-clube da Norn, certo? Qual é a política de interação com ela?
— O que da Norn…?
— O que é um fã-clube?
— Hã…?
Para minha surpresa, porém, os caras pareciam não entender do que eu estava
falando. Era quase como se nunca tivessem ouvido falar desses conceitos. Que
estranho.
Estranhamente, descobri que o grupo não tinha sido formado por ninguém em
particular. Eles foram naturalmente atraídos pela apreciação compartilhada
pela fofura de Norn. Muitos deles nem sabiam os nomes uns dos outros.
— Entendo…
— Sinto muito, mas sei que estou certo sobre isso — falei categoricamente. —
Um de vocês vai acabar cruzando a linha.
— Digo, gostamos muito dela, mas é mais como se fosse nossa irmãzinha ou
algo assim…
O que você disse, seu punk? Ela é minha irmã, e não vou dividir com ninguém!
— Acredito que vocês têm boas intenções, mas acho que precisamos deixar
algumas regras bem claras.
Quando alguém quer evitar que um grupo de pessoas fique fora de controle, é
necessário estabelecer alguns regulamentos básicos. Depois de estabelecidas
as regras, os membros do grupo começariam a ficar de olho uns nos outros.
Após dar às pessoas um conjunto de regras, até aquelas tão sem sentido como
usar as mesmas roupas e o mesmo lenço enquanto esperava para ver a idol
começaria a fazer sentido.
Regras surgem o tempo todo com naturalidade. Passam a existir quando são
necessárias e desaparecem quando não são. Esse fã-clube ainda não tinha
muita história. Não teve tempo suficiente para que suas regras se
desenvolvessem organicamente.
Mas até que criassem algumas, Norn estaria em perigo. Eu precisava acelerar o
processo artificialmente. Não iria esperar até que a machucassem.
Definitivamente não.
Eu. Óbvio.
— Então tá bom.
No ano 425 da Era do Dragão Blindado, uma certa organização foi fundada na
Universidade de Magia de Ranoa.
Este grupo, com cerca de trinta membros, deixaria uma marca inapagável na
história da Universidade.
Lendas da Universidade #3: O Chefe pode convocar trinta lacaios com uma única
palavra.
Cap. 04 – Posso Ficar Com Ele?
A garota estava indo bem. Apesar das tragédias que abateram sobre nossa
família, ela parecia tão brilhante e enérgica como sempre. Nunca a vi olhando
para fora da janela com tristeza, assim como sua mãe às vezes fazia. Ela não
mordia o lábio quando olhava para a espada de Paul, igual Norn. Ela cuidava do
trabalho doméstico com alegria, como se nada tivesse mudado. Durante o dia,
cuidava de suas flores no jardim e em seu quarto; à noite, se dedicava às
minhas aulas de magia e se aninhava feliz comigo.
Às vezes, quase parecia como se não estivesse de luto por Paul. Não pude
deixar de me perguntar se ele não significava muito para ela.
Dito isso, Norn não lembrava muito de nosso tempo em Buena Village, então
parecia possível que Aisha também não tivesse muitas memórias com Paul ou
Zenith. Assim como Norn passou muitos anos na estrada com Paul, Aisha
passou a maior parte de sua infância com Lilia.
Considerando tudo, não era justo que eu esperasse que ela ficasse cabisbaixa.
Sua alegria pelo retorno seguro de Lilia talvez superasse sua tristeza pela
morte de Paul. Assim sendo, provavelmente era melhor.
Afinal, não era como se eu quisesse que minha irmã ficasse deprimida em vez
de curtir a vida.
Senti um pouco de culpa por vadiar por aí enquanto minhas duas esposas
trabalhavam duro… mas adultos precisam descansar quando podem, certo?
Hmm. Mas não estou ganhando nenhum dinheiro no momento. Está mesmo tudo
bem? Considerando que tenho um bebê e tal? Bem… estudar é a melhor maneira
de conseguir algum dinheiro, certo? Sim, está tudo bem.
Quando nos mudamos para esta casa, não havia nada aqui além de um pedaço
de terra estéril e abandonado. Mas, no momento, após poucos anos, foi
completamente transformado.
Em primeiro lugar, agora tínhamos três grandes árvores lá nos fundos. Uma
delas floresce na primavera, a segunda no verão e a terceira no outono. Não
que eu já tivesse as visto florescer.
Quando perguntei a Aisha onde as conseguiu, ela explicou que fez um pedido à
Guilda dos Aventureiros que as trouxe da floresta mais próxima.
Neste instante, Aisha estava agachada perto daquele pequeno campo. Para
minha surpresa, Zenith estava sentado ao seu lado.
— Ah, oi, Rudeus! — disse Aisha, olhando para mim. — Estamos tirando as ervas
daninhas do arroz!
—…
Algo sobre essa coisa de Senhorita Zenith não me pareceu muito certo.
— Nah. A Mãe Lilia disse que não posso. Ela sempre diz que devo chamá-la
de Senhorita Zenith ou Madame.
Ah, então era mais um dos mandamentos de Lilia. Ela era rigorosa com relação
a essas coisas.
Mas, bem, senti que, de qualquer forma, Aisha não pensava em Zenith como
uma mãe. Só para registrar, Zenith a tratou como um de seus próprios filhos
quando ela era um bebê, mas Aisha obviamente não era capaz de lembrar
disso.
Zenith também se esforçava muito para manter nosso jardim em Buena Village.
Talvez tivesse algo a ver com isso.
Enquanto eu as observava trabalhando, Aisha se virou para olhar para mim. Sua
bochecha estava suja de lama.
— Ótimo! Tenho que te mostrar algo. Pode passar no meu quarto depois?
— Claro — falei, me abaixando para limpar seu rosto. Aisha sorriu
estupidamente enquanto eu a limpava.
Aisha era uma criança muito precoce. Existia a possibilidade de levantar a saia
e tentar me mostrar suas partes íntimas ou algo assim.
Mesmo assim, a garota era tão sem vergonha que eu estava começando a me
preocupar com seu futuro. Talvez eu devesse dar algumas lições básicas de
educação sexual para ela.
Espera, ela não disse que Lilia já tinha ensinado isso tudo?
Ela me disse para passar “depois”, mas não especificou um horário. Então
esperar por ela aqui não deveria ser problema.
Não era como se eu só quisesse dar uma olhada no quarto de uma garota ou
algo assim. Embora eu talvez estivesse um pouco curioso.
Pelo que eu sabia não vendiam brinquedos como esse nesta cidade. Será que
ela comprou de um mascate viajante? Acho que nem Zanoba tinha algo assim
em sua coleção, e isso significava que devia ser um achado muito raro.
Será que ela mesma tinha feito? Nah, claro que não.
Aisha também tinha alguns vasos de plantas perto da janela – tudo, desde
tulipas a aloés e um cactozinho. Tinha mais ou menos uns dez vasos alinhados
de vários tamanhos. Comparado com o quarto de Norn, o lugar parecia um
pouco mais com o que se esperaria de um quarto de uma garota.
Vagando até um canto, abri o armário de Aisha e dei uma olhada. Havia três
trajes de criada completos. Foi nítido perceber que todos estavam bem usados,
com alguns remendos aqui e ali. Pareciam mais as roupas de uma criada
veterana do que as de uma criança de onze anos. Aisha estava crescendo bem
rápido, então logo deveriam ficar pequenos para ela. A menos que Lilia
pudesse modificá-los de alguma forma.
Voltando a olhar ao redor, percebi uma única e bela roupa feminina pendurada
do outro lado do armário. Tinha um monte de babados e tal. Será que estava
guardando para uma ocasião especial?
Com alguma sorte, não seria isso que ela queria me mostrar. Eu teria que fingir
que não vi isso.
Ao lado das calcinhas estavam várias camisas… e assim que olhei mais de
perto, também vi alguns sutiãs. Minha irmãzinha era bem desenvolvida para
sua idade, já sendo capaz de equipar uma “armadura torácica”. Ainda assim, no
momento, devia ter o equivalente ao tamanho P. O Sábio Velho Eremita já a
classificava como uma joia rara em formação, mas ainda era cedo demais.
Aisha e Zenith ainda deviam estar ocupadas com o jardim, e Lilia devia estar
ocupada preparando o almoço.
Então era nosso tatu de estimação? Não, ele se juntou a Roxy quando ela foi
para a Universidade. Provavelmente estava tirando uma soneca por algum
estábulo de lá.
Matsukaze, o cavalo que comprei antes de ir para Begaritt, estava alojado em
um estábulo na cidade. Às vezes eu ia até lá para verificá-lo, mas duvidava que
ele poderia chegar em casa sozinho.
Me abaixei com cuidado até ficar agachado, olhei pelo quarto todo.
Ainda assim, algo parecia estranho. Minha intuição aguçada estava me dizendo
que eu não estava sozinho.
Seria um inimigo invisível? Será que era alguém com um implemento mágico
que fornecia uma camuflagem perfeita? Nesse caso, o efeito teria que passar
mais cedo ou mais tarde.
— Acho que então teremos que ver quem pisca primeiro… — murmurei baixinho.
Olhe mais de perto, Rudeus. O que mudou aqui? O que está fora do lugar?
A porta continua fechada. A cama ainda está feita. O teto está impecável como
sempre.
Então sobram… os vasos de plantas. Sim. Existem mais deles do que antes?
Acho que não. Mas sinto que aqui está ficando mais quente…
—…
Thump! Thump!
— Gaaaah!
A planta do vaso menor reagiu instantaneamente. Ela estava
se contorcendo toda, tentando obter mais do raio de sol para si, torcendo suas
folhas em direção à janela.
Dei uma cutucada cautelosa na planta, e ela estremeceu com algo parecido
com surpresa. Um momento depois, porém, se inclinou para se esfregar no
meu dedo e começou a lentamente se enrolar nele, como um broto.
Que esquisito. Espero que ela não comece a dançar e cantar pelo quarto ou
algo assim.
—…
Pensando seriamente, porém, eu tinha alguma ideia do que essa coisa poderia
ser. Afinal, já tinha visto esse tipo muitas vezes.
Ainda assim, eu nunca tinha visto um Ente tão pequeno assim. A coisa tinha
cerca de quinze centímetros de altura. Talvez vinte, se contasse suas raízes.
Tinha quatro folhas grandes e dois brotos parecidos com gavinhas. Eu não vi
flores ou frutos. Talvez fosse uma muda muito jovem. Consequentemente,
decidi me referir a ele como Ente Bebê.
Pois bem. Minha principal pergunta no momento era o que nosso Ente Bebê
estava fazendo no quarto de Aisha.
Aisha, que apareceu correndo após meu grito de alarme, não parecia se sentir
particularmente culpada pela situação.
— Logo depois que você voltou de sua viagem, na verdade. O que acha? É bem
legal, né?
— Eu queria! Mas você tem estado tão ocupado, sabe? Achei que isso poderia
esperar um pouco. E agora você descobriu por conta própria!
— Bem, de qualquer forma… não acredito que uma daquelas sementes que
trouxe era na verdade de um Ente. Quais são as chances disso?
— Huh? Não, não. Tenho certeza de que isso cresceu de algumas sementes de
Vatirus que conseguimos em Asura.
— Ah. Sério?
— Sim. Tem folhas e gavinhas, vê? Deve dar belas flores roxas em breve.
Eu reconheci o nome da planta. Suas flores eram o ingrediente principal de um
poderoso afrodisíaco e também podem ser usadas para fazer certos perfumes.
A cultivavam em certas partes do Reino Asura.
Mas isso não explicava por que esta tinha se transformado em um Ente.
— Mas o que foi que a fez se mover? Foi assim desde o começo?
— Hrm.
— Não; tratei igual todas as outras. Estou usando o solo que você preparou
para mim. Parece ter mais nutrientes do que a terra daqui.
— Ah, espera. Acho que às vezes eu regava com a água que sobrava da
banheira.
Restos da água da banheira! Hmm. Eu não estava por perto na época, então
deveria estar impregnado com o suor de Sylphie e Aisha… talvez com um pouco
do suor de Nanahoshi.
Intrigante. Pude ver como isso poderia levar uma planta a desenvolver alguns
tentáculos pegajosos.
— Hmm…
Então o que poderia ter causado isso? Ela plantou uma semente normal e a
cultivou normalmente, mas de alguma forma se transformou em um monstro.
Era algo que simplesmente… acontecia de vez em quando?
Parecia mais provável que uma semente de Ente tivesse sido acidentalmente
misturada com as normais. Entes eram mímicos naturais. Talvez fingiu ser
uma Vatirus normal no começo para continuar discreto. Bem, parecia uma
teoria coerente.
— Bom, de qualquer forma, acho que devemos matar a coisa — murmurei para
mim mesmo. — Talvez eu possa queimar ou algo assim.
— Quêêêêê?! — guinchou Aisha. — Por quê?! Passei esse tempo todo criando
esse garotinho! Por que você o queimaria?!
Fiquei um pouco surpreso com a ferocidade de sua oposição. Mas, bem, ela me
chamou para mostrar seu Ente. Acho que fazia sentido que não ficasse muito
feliz em se livrar dele.
— Aisha, você sabe o que é essa coisa, certo? É um Ente. É um tipo de monstro.
— Sim, por agora. Mas, quando ficar maior, pode começar a atacar as pessoas.
Isso é perigoso.
— Mas ele é um bom garoto, é sério! Ele é bom com todos os outros e faz tudo
que eu mando!
— Agora você está inventando coisas, Aisha. Como um Ente faria o que você
manda? Isso nem tem ouvidos.
— Olha!
— Dedo médio.
— Certo, solte. — Ela continuou brincando com o Ente desse jeito por algum
tempo, então se virou para me encarar. — Viu? Ele ouve o que eu digo, certo?
Para minha surpresa, era claramente possível se comunicar com essa coisa. E,
pelo andar da carruagem, isso era bem apegado à minha irmãzinha.
Entes eram monstros. Isso era um fato. De acordo com minhas experiências,
se disfarçavam de árvores ou outras plantas e, depois, lançavam ataques
surpresa violentos contra qualquer viajante que passasse.
Ainda assim, eu sabia que existiam algumas espécies de monstros por aí que
poderiam ser domesticadas.
Este Ente Bebê parecia domesticado o bastante, então eu talvez não precisasse
classificá-lo como um monstro.
— Acho que deve ficar tudo bem, Rudeus. Mesmo as Vatirus totalmente
crescidas ficam com no máximo o dobro desse tamanho.
— Se ele machucar alguém, qualquer vez, farei o que você disser! Prometo!
— Grr…
Aisha estufou as bochechas, de mau humor por causa disso, mas então
pareceu reconsiderar sua estratégia. Abrindo bem os olhos, entrelaçou as
mãos na frente do peito e olhou para mim com sua expressão mais doce e
inocente.
Certo, vejamos…
Aisha tinha criado essa coisa desde que era semente, então isso estava
acostumado a ter humanos por perto. Esse fato tornava menos provável que
atacasse um de nós… presumindo que nesse aspecto fosse como um animal
comum.
Hmm…
— Seu trunfo?
Eu estava guardando algum segredo terrível das duas? Não passava nada pela
minha mente…
Mas, então, sorrindo arrogantemente, Aisha jogou uma bomba no meu colo.
— Gah!
A fé, em si, tem valor, sabe? O ato de orar nos acalma e centra, ajudando-nos a
viver cada dia plenamente. Mantive essa rotina por anos. Era parte da minha
vida.
Mas o que aconteceria se meu altar fosse descoberto? O que Sylphie pensaria?
O que Roxy diria? Eu queria pensar que ao menos Lilia entenderia. Aisha
evidentemente não comentaria sobre o assunto, mas e quanto a Norn? Tive a
sensação de que ela reagiria com claro desgosto.
Agh! Que garota implacável! Só estou tentando cuidar dela, e agora está me
chantageando!
— Hm, acho que acabei de ouvir meu nome. Precisa de alguma coisa?
— Gah!
— Guh!
— O-O que você está fazendo aqui, Roxy?! — gaguejei. — Você não acabou de
sair?
— Voltei para pegar uma coisa que esqueci. Felizmente, não tenho aula no
momento.
—…
—…
Certo, talvez eu possa tirar vantagem disso. Ela deve ficar do meu lado nisso,
certo? Tenho certeza de que ela sabia bem o quão perigosos são os Entes.
— Isso mesmo! — falei. — Aisha acabou de me dizer que quer criar essa coisa
como um animal de estimação! Mas Entes são monstros, sabe? Isso pode ser
perigoso. Pode me ajudar a convencê-la a se livrar disso?
Aisha agarrou minha mão, que continuava abafando seus gritos de protesto, e
tentou afastá-la. Garota tola. Você não pode me vencer em uma competição de
força! Pode morder meus dedos se quiser, não vou soltar!
— Claro. Não parece ser algo muito comum neste continente, mas a tribo
Migurd usa Entes para afugentar os pássaros de seus campos.
Eles faziam mesmo isso? Hmm… talvez. Minhas memórias daquela visita já
estavam um pouco confusas a esta altura.
Ah, sim! Tinham aquelas coisas que pareciam Plantas Piranhas no meio da
plantação. Mas eu não tinha percebido que eram Entes.
De qualquer forma, parecia que Aisha estava certa, então a soltei de minhas
garras.
Ela me olhou duvidosamente por um momento, mas por fim sorriu de alívio.
— Sim, é claro. Você precisa admitir, criar um monstro parece que pode ser
perigoso.
— Vou sim!
Indo para longe de mim, Aisha prontamente correu até Roxy e jogou os braços
ao redor dela.
A partir de então, o Ente Bebê passou a fazer parte da casa como nosso
segundo mascote. Naturalmente, estabeleci algumas regras e condições.
Primeiro e mais importante: se alguma vez isso machucasse alguém, nos
livraríamos na mesma hora.
Terceiro, ela teria que explicar a todos exatamente que tipo de “planta” era.
Passei essas regras para Aisha em um sermão inflexível, mas ela acenou com
a cabeça concordando com tudo, sem nenhuma carranca. A garota mantinha
suas promessas, ainda bem, então isso provavelmente daria certo.
Mas como diabos a garota descobriu sobre meu altar secreto…? É realmente
necessário manter o olho aberto para essas criadas.
Por isso, pretendia ser um pai severo. Sabe – rígido, mas justo. Esse tipo de
coisa.
A certa altura, pensei que Paul era desprezível, ou até patético. Mas, agora,
sabia melhor das coisas. Ele foi um pai magnífico. Tinha seus defeitos, muitos,
mas, ainda assim, era maravilhoso.
Claro, ele não era o mais fiel dos maridos, mas eu não tinha mais o direito de
criticá-lo a respeito disso. Era melhor se concentrar nos aspectos positivos.
Neste ponto, eu poderia dizer, cheio de confiança, que queria seguir os passos
de meu pai…
— Aaah, aaah!
Hoje eu não tinha Sylphie para tomar o comando, então tive que assumir o
controle sozinho.
— Aqui vamos nóóóóós, Lucie! É o papai! Abluhbluhbluh!
Ah, senhor, que fofa. Existe algo no mundo tão adorável quanto o sorriso deste
bebê?
Minha esposa, de alguma forma, deu à luz um verdadeiro anjo. Não existe outra
explicação para isso!
Ao meu ver, o pai ideal era próximo o suficiente de seus filhos para ser
atencioso, mas distante o suficiente para guiá-los adiante. Normalmente,
deveria ser gentil e bondoso com seus filhos. Quando necessário, porém, não
deveria hesitar em repreendê-los com firmeza. E quando realmente
precisassem de seu apoio, deveria se apresentar de imediato. Ao meu ver, esse
era o pai ideal.
Hmm. Para ser honesto, eu não queria que meus filhos me considerassem
“patético”. Mas, bem, foram meio que as fraquezas de Paul que me tornaram
querido para ele. Pude aprender muitas lições com seu exemplo. Além disso,
embora ele às vezes pudesse parecer lamentável, foi sempre um pai
maravilhoso para Norn. Isso era óbvio, considerando o quanto ela o adorava.
— Oiii, Lucie! O papai voltou! Vou te pegar, viu? Aqui vamos nóóóós!
Assim que tirei Lucie de seu berço e comecei a balançá-la para lá e para cá, ela
começou a gargalhar alto. A julgar pelo sorriso angelical em seu rosto, gostava
bastante de ser embalada em meus braços grandes e fortes. Meu coração não
aguentava tanta fofura.
— Uh, Rudeus…
— Sim, Suzanne?
Enquanto eu confortava Lucie, sua ama de leite, Suzanne, falou do outro lado
do cômodo. Ela era uma aventureira aposentada e uma velha amiga minha.
— Huh. Bem, se você realmente quer fazer isso por conta própria, então fique à
vontade.
— Existe algum homem no mundo que não queira acalmar sua filha recém-
nascida?
— Não posso dizer que meu marido fica muito ansioso para lidar com isso.
— Que vergonha. Parece que ele precisa ser guiado nas alegrias da
paternidade.
Eu tinha só doze anos, recém-deixado por Eris e estava indo sozinho para os
Territórios Nortenhos, sentindo extrema pena de mim mesmo. Palavras não
podem descrever o quão infeliz fiquei ao ter que dissolver nosso antigo grupo,
“Fim da Linha”, na guilda em Basherant. Como forma de me distrair dos meus
sentimentos, tentei assumir uma tarefa extremamente difícil e perigosa
sozinho.
Seu grupo tinha dois guerreiros, uma arqueira, um curandeiro e um mago. Eram
um grupo de rank B, mas eram todos veteranos experientes. Suzanne era uma
das guerreiras da vanguarda. Para ser sincero, ela não era uma espadachim
das melhores ou coisa assim. Em termos de habilidade de combate, estava
mais perto da base do Rank B do que do topo.
Porém, tinha uma reputação de ser bondosa e sabia como manter um grupo
trabalhando bem. Quando ela me percebeu tentando partir em uma missão
suicida, se aproximou e disse algo como “Que tal fazermos esse trabalho
juntos?”
Protestei, falando que queria fazer um nome para mim como um aventureiro
solo, mas ela argumentou que eu precisava trabalhar com outras pessoas para
construir uma reputação. No final, deixei ela me convencer e trabalhamos
juntos.
Na época, Suzanne ficou alarmada com o quão rude eu parecia ser. Meus olhos
estavam opacos e sem vida, e ela percebeu que eu não estava dormindo o
suficiente. Quando falei em um tom cuidadosamente educado, ela achou isso
mais assustador do que reconfortante.
Ainda assim, me acolheu e me ajudou. Até o dia em que deixei aquela primeira
cidade para trás, seu grupo me levou em todos os tipos de missões. Até
mesmo me convidaram para me juntar a eles permanentemente.
Acabei rejeitando a oferta, mas sempre foram amigáveis comigo quando nos
esbarrávamos. Às vezes, até mesmo me levavam para uma taverna para
comer.
Olhando para o passado, ficava óbvio que estavam cuidando de mim de todas
as formas possíveis. Eu era grato a todos eles.
Depois que nos separamos, Suzanne casou com Timothy, o mago e líder do
grupo. Foram para Sharia juntos, já que era a cidade natal de Timothy.
O corpo de Suzanne ainda estava produzindo leite, mesmo com a morte de sua
criança, então ela decidiu vender seus serviços como ama de leite. Ela estava
verificando as ofertas de emprego quando acabou vendo meu nome.
— Hmm. Mudei?
— Uh, sim. Nos velhos tempos, você nunca teria insultado o marido de uma
mulher na frente dela.
Se possível, ainda não queria ofender ninguém, mas acho que não ficava mais
pisando em ovos. Aconteceu muita coisa desde então.
Isso provavelmente tinha algo a ver com os amigos que fiz na Universidade.
Atualmente eu tinha mais gente com quem poderia conversar casualmente.
Zanoba e Cliff preferem as coisas assim, e também era mais fácil para mim.
— Nossa, você poderia ser um pouco mais casual perto de mim — continuou
Suzanne. — Você é tecnicamente meu empregador, sabe?
— Suponho que sim, mas isso não é motivo para tratá-la indelicadamente.
Eu devia muito a ela. No final das contas, foi ela quem me ensinou o básico das
aventuras nos Territórios Nortenhos. Eu não conseguia ser muito casual com
ela.
— Bem, acho que está tudo bem para mim, desde que eu receba meu salário.
A mulher falava como se estivesse fazendo tudo pelo dinheiro, mas estava
sendo maravilhosa.
Claro, tínhamos Lilia e Aisha o tempo todo em casa para ficar de olho nas
coisas. E eu sabia desde o começo que ela não era o tipo de pessoa que
maltrataria uma criança.
— Ah, os meninos continuam com tudo, como sempre. Agora estão dando
trabalho para a Vovó e para o Vovô.
Ela costumava reclamar com Lilia sobre como era difícil viver sob o mesmo
teto que a sogra. Lilia provavelmente estava mais inclinada a se identificar com
a sogra, mas acho que ela tinha mais ou menos a idade de Suzanne. Pareciam
estar se dando bem; eu às vezes via elas tomando chá juntas.
— Ah. Claro.
Tive algumas discussões do tipo quando minha filha nasceu. Zanoba e Ariel
também tocaram no assunto. Obviamente era uma questão importante para
famílias reais e casas nobres – em Asura, ouvi até mesmo histórias de garotos
recém-nascidos sendo levados por parentes distantes para serem adotados
pelo ramo principal da família Boreas.
E até fiquei feliz por ter conseguido a opção mais fofa. Eu estava em um
número significativamente menor nesta casa, sim… mas não posso dizer que
me importava em ficar cercado por garotas adoráveis e mulheres charmosas. E
também não era como se estivessem me intimidando. Eram quase
boas demais.
— Ei, esse é o espírito. Gostaria que meu marido aprendesse algumas coisas
com você. Assim que engravidei, ele começou a falar sobre as coisas que
gostaria de fazer se tivéssemos um garoto. Não parou nem pra pensar em
outra opção!
— Bem, no final você conseguiu seus garotos, então acho que acabou tudo
bem.
— É, acho que sim. Mas tenho alguns sentimentos confusos a respeito disso. A
terceira era uma menina, sabe?
— Ah, certo… sinto muito. Isso foi algo estúpido para se dizer…
Mas Suzanne parecia quase indiferente a isso. Perder um bebê era realmente
algo tão corriqueiro assim? Eu sabia que ao menos eu teria levado isso muito a
sério. Não foi fácil para Sylphie engravidar, então não havia como dizer quanto
tempo levaríamos para conseguirmos outro tiro certeiro.
E, mais importante, Sylphie ficaria arrasada. Era fácil imaginá-la chorando e me
pedindo desculpas por perder nossa criança.
Mas não fazia sentido ficar pensando nessas coisas, certo? Lucie estava bem,
assim como Sylphie. Já tinha passado tempo suficiente para que eu me
sentisse relativamente confiante de que não era só um sonho.
Em vez de pensar em como as coisas podiam ter dado errado, eu deveria estar
curtindo a minha boa sorte.
— Sim, não muito depois de você deixar a cidade. Quando se é tão medíocre
quanto nós éramos, fica bem difícil quando se perde um membro importante
do grupo, sabe? Patrice disse que voltaria para Asura para virar um soldado, e
meio que nos afastamos lá mesmo.
— Sim, um pouco.
Sara era o nome de uma arqueira que fazia parte do grupo de Suzanne. Era raro
que um aventureiro confiasse em arco e flechas, mas ela tinha talento natural
para acertar disparos oportunos e precisos em batalha, o que a tornava
bastante eficiente em sua função. Tínhamos idade relativamente semelhante, e
no começo ela foi abertamente hostil comigo… mas, com o tempo, ficamos
cada vez mais amigáveis.
— Bem, ela continua por aí, ganhando a vida como aventureira. Não se vê
muitos arqueiros por aí, já que é bem mais fácil aprender a lançar uma bola de
fogo, mas ela agora tem habilidades e experiência. Ela ficará bem em qualquer
lugar que for.
— Ah. Certo.
— Se houver algo que você não disse, então deveria ir procurá-la em algum
momento. Nunca se sabe quando um aventureiro pode acabar morto.
E era difícil pensar que Sara quisesse se lembrar daquela bagunça toda.
Quando virei, vi Zenith parada ali, em silêncio. Lilia estava à espreita logo atrás
dela.
— Mamãe?
Isso não resultou em nenhuma reação. Zenith ficou olhando para o bebê tão
atentamente que parecia ter esquecido que havia mais gente no quarto.
Depois de sua chegada à minha casa, senti que ela se tornou visivelmente mais
ativa. Quando Norn estava por perto, tentava alimentá-la na mesa de jantar;
quando avistava Aisha, iam para o jardim e começavam a arrancar as ervas
daninhas juntas. E quanto eu estava cuidando de Lucie, ela fazia essas visitas
para checar como estávamos. Também existiam diferenças sutis em como
reagia a Roxy e Sylphie.
Sua expressão facial nunca parecia mudar, e ela ainda não falava nada.
Mas estava se movendo. Estava mudando. Talvez estivesse lentamente
avançando para algo semelhante a uma recuperação.
—…
Me senti meio culpado por ter duvidado dela no começo. Não era como se ela
já tivesse se tornado violenta com alguém.
— Ahaha! Gyaaaha!
De certa forma, parecia que Lucie também entendia que suas intenções eram
boas. A garota fica toda sorridente sempre que Zenith visitava. Sinceramente,
era muito reconfortante.
Mas, claro, havia muito que não sabíamos sobre a condição de Zenith e sobre
como ela poderia se desenvolver. Era difícil imaginar algo de ruim acontecendo
nessas visitas, mas dado o quanto continuava incerto, provavelmente era
melhor que fossem sempre supervisionadas.
—…
Zenith, de repente, olhou para mim. Parecia quase como se estivesse tentando
me passar alguma mensagem com o olhar… não que eu fizesse ideia do que
pudesse ser.
— Waaah! Waaaaah!
Já era essa hora? Sylphie a amamentou antes de sair, mas já deviam ter
passado algumas horas desde então. Huh.
Saí para o corredor e olhei pela janela mais próxima. Infelizmente, era um dia
cinzento e chuvoso. Era difícil adivinhar exatamente que horas eram, mas como
Lucie estava com fome, devia ser perto do meio-dia.
Eu, de alguma forma, consegui passar minha manhã toda com o bebê. Mas, na
minha opinião, foi um tempo bem gasto. Não existia nada mais importante do
que passar um tempo com sua criança.
No momento, porém, fui para meu escritório – uma pequena sala no primeiro
andar que reservei para minhas pesquisas.
Eu não passei os últimos seis meses apenas brincando com minha filha e
minhas irmãs, esquecendo de todo o resto. Também estive estudando os
prêmios que trouxe do Continente Begaritt.
Foram essas pedras que deram à hidra sua capacidade de ignorar feitiços, nos
forçando a um perigoso combate a curta distância. Elas absorviam qualquer
magia que entrasse em contato. À primeira vista, pareciam escamas verde-
claras comuns. Se não fosse pela transparência, sequer seriam identificáveis
como pedras.
Os efeitos dessas pedras variam muito, mas boa parte delas tinham aplicações
mágicas diretas de algum tipo. Algumas podiam aumentar a capacidade
mágica ou diminuir a quantidade de mana necessária para lançar feitiços;
outras tornavam os feitiços duas vezes mais poderosos sem aumento no custo
de mana. Não era tão surpreendente que também houvesse algo capaz de
absorver magia.
A parte complicada era descobrir exatamente como essas pedras faziam isso.
Parecia que a hidra contra a qual lutamos estava ativando sua “armadura”
absorvente de magia ao ver os feitiços serem disparados, tornando meus
ataques inúteis no último instante.
Era difícil imaginar que muita gente pudesse reagir tão rapidamente, mas
animais selvagens costumam ter uma visão dinâmica e reflexos muito
melhores do que qualquer ser humano.
Ainda havia muita coisa que essa teoria por si só não poderia explicar, é claro.
Por exemplo, as estatuetas que criei com magia não eram afetadas pelas
pedras, mesmo quando muito próximas.
Estatuetas de barro eram imunes às ondas, mas o projétil do meu Canhão de
Pedra não era. Eu não fazia ideia do motivo para isso. Será que a mana das
estatuetas tinha se estabilizado com o tempo, tornando-as imunes a
interrupções? Hmm.
Mas não fazia muito sentido ficar insistindo nesse mesmo ponto. Eu nem tinha
uma boa noção do que “mana” realmente era. Em vez de procurar uma
explicação abrangente, eu queria me concentrar em como poderia usar essas
coisas. E em como poderia neutralizá-las no futuro.
Tive a sensação de que poderia usar essas pedras para destruir algumas
coisas que o Atrapalhar Magia não poderia. Círculos mágicos, por exemplo.
Isso faria sentido. Pensando em nossa batalha contra a hidra, notei que ela
nunca desativou o círculo mágico em seu covil, apesar de se debater pelo lugar
todo.
De qualquer forma, a lição mais importante era que essas escamas não podiam
destruir tudo que fosse de natureza mágica.
Dito isso, elas provavelmente eram mais do que eficazes o bastante para lidar
com a maioria das ameaças que eu pudesse encontrar. Com uma dessas no
bolso de trás, poderia me libertar da próxima vez que caísse em uma armadilha
e acabasse preso dentro de um feitiço de Barreira. O ideal seria evitar de cair
em armadilhas, mas ter algo para segurança não faria mal.
Podia ser complicado usar essa mão para ativar a pedra e lançar magia, mas
imaginei que pegaria o jeito com um pouco de prática.
Não que eu me importasse com ele visitando por puro capricho, é claro… Talvez
só queira um pouco de companhia.
Enfim. Agora que tínhamos uma boa compreensão dos membros, Zanoba
estava finalmente começando a investigar o corpo do autômato. Isso envolvia
localizar as pequenas costuras entre suas seções e, depois, cortá-las
cuidadosamente para estudar as “entranhas”.
Bem no meio do peito da coisa, ele encontrou uma pedra mágica. Era uma
coisa cristalina vermelha e bonita, com um tamanho incomum. Após estudá-la,
entretanto, percebeu que não era apenas uma simples pedra. Era uma
combinação de várias outras menores, cada uma delas coberta por minúsculos
círculos mágicos.
Entender isso tudo seria muito mais difícil do que qualquer desafio que
enfrentamos até o momento. Mas Zanoba não se intimidou. Ele parecia, no
máximo, ainda mais determinado do que antes para cumprir a “missão da sua
vida”.
Para qualquer coisa que valesse a pena, ele tinha meu apoio moral.
Quando cheguei na sala de estar, ele saltou do sofá, onde estava tomando chá
até um momento antes.
— Eu só estava pela vizinhança, então pensei em passar por aqui e dizer olá.
Esse era um comportamento bastante incomum para Zanoba, mas eu não iria
mandá-lo embora nem nada do tipo.
Ela estendeu uma estatueta para eu examinar. Foi sua mais recente tentativa
de realizar a estatueta de Ruijerd que pedi para que ela produzisse como tarefa.
Quando o mostrei para Norn, ela não pôde deixar de murmurar “Eu quero um”
bem baixinho, então dei o original de presente para ela. No momento, ela o
mantinha em uma prateleira em seu dormitório.
Norn, por acaso, tinha recentemente terminado seu livro sobre Ruijerd. Mesmo
após começar a praticar com a espada comigo, ela continuou escrevendo. O
livro era curto e a prosa um pouco estranha e desajeitada. Também cobria
apenas uma parte da vida de Ruijerd: a história daquelas lanças amaldiçoadas,
começando com o serviço leal de Ruijerd ao seu lorde e terminando com sua
vingança.
Para testar essa teoria, li o rascunho para Julie, que o adorou. Ela me fez ler
três vezes seguidas e provavelmente teria continuado caso Ginger não tivesse
intervindo.
Pelo visto, ninguém nunca tinha lido histórias assim para Julie quando era
pequena. Talvez fosse cultural. Os anões aparentemente tinham alguns tipos
de contos de fadas tradicionais, mas talvez não escrevessem livros infantis. Ou
seus pais talvez estivessem ocupados demais para gastar muito tempo
entretendo-a. Bem, não que isso realmente importasse.
Sempre haverá alguém melhor por aí. Talvez no momento eu fosse o melhor
mago da Universidade, mas o mundo estava repleto de pessoas incrivelmente
poderosas.
A teoria disso parecia boa. Mas, claro, às vezes é possível acabar se deparando
com uma Hidra Manatita. Eu queria me tornar poderoso o suficiente para
proteger minha família. Lutar não era a minha especialidade, mas eu teria que
encontrar maneiras de ficar mais forte.
— Suponho que não! No entanto, acredito que há certos países onde a tradição
é esperar até que uma criança faça cinco anos antes de permitir que alguém de
fora da família a veja.
— Sério? Huh. Pessoalmente, prefiro exibi-la a todos que puder…
De qualquer forma, não havia razão para pensar muito nesse assunto. Eu só
tinha que continuar lentamente me movendo, sempre em frente.
Substituí minha mão por uma prótese. Minha pesquisa estava indo muito bem.
Meu relacionamento com minhas esposas era excelente, minhas irmãs e minha
filha estavam bem e nossa família tinha uma sólida segurança financeira.
Talvez já fosse hora de pedir para Roxy me ensinar um pouco de magia de água
de nível Rei.
Na frente da porta, um jovem agarrou uma garota de cabelo azul pelo braço.
— Não é não!
A atitude da garota foi de brusca rejeição. Seu rosto estava virado para o lado, e
ela estava fazendo beicinho de desagrado.
Estava claro que ele não tinha intenção de libertá-la. A garota olhou para os
lados, via-se preocupação em sua expressão.
Este era um canto tranquilo do campus, mas isso não significava que fosse
deserto. Havia bastante gente na área.
Havia uma razão simples para isso: sentiam medo do jovem que a assediava.
Ele era o delinquente mais infame de toda a cidade.
Não é que não quisessem ajudar a garota. Mas todos sabiam que qualquer
tentativa de intervenção seria inútil e que isso poderia custar caro. Ninguém era
corajoso o suficiente para arriscar.
— Ei, que tal isso? Se você fizer isso por mim, em troca farei o que você quiser.
— Bem, Rudeus… estamos aqui porque alguém relatou que você estava
agredindo uma aluna, mas…
Luke parou no meio da frase para soltar um suspiro pesado. Ele conhecia as
duas pessoas envolvidas nessa pequena farsa: Rudeus Greyrat e sua segunda
esposa, Roxy.
A “garota”, em outras palavras, não era uma estudante. E Rudeus não estava a
agredindo.
Tendo confirmado esses fatos, Luke se virou e começou a retornar por onde
tinha aparecido.
— Certo.
— Olha, Rudy. Sei que Roxy é sua esposa, mas isso não significa que pode
forçá-la a fazer algo que ela não quer. Às vezes, a garota simplesmente não
está afim, sabe?
— Sinceramente… — murmurou Fitz. — Ela pode ser melhor nessas coisas, mas
você poderia tentar me pedir…
Com esta exclamação, ele jogou os braços ao redor de Fitz e a apertou com
força. Ela não parecia totalmente aborrecida, nem emburrada.
— S-Sério, eu não diria que estou com ciúme. Isso está mais para decepção!
— Não se preocupe, querida! Não vou te deixar de fora! Faremos isso juntos!
— Sim, isso mesmo. Podemos fazer com que Roxy ensine a nós dois ao mesmo
tempo.
Fitz olhou para Roxy, que virou o rosto para o lado, amuada.
— Vamos lá, não diga isso. Sylphie também quer aprender. Não é verdade,
Sylphie?
— E-Eu não sei… Isso parece meio constrangedor… — Ainda envolvida pelos
braços de Rudeus, Fitz se contorceu inquieta. Os óculos de sol que ela usava
como disfarce deixavam seus olhos fora de vista, mas era óbvio que estavam
brilhando de emoção. — Mas acho que vou fazer isso… por você, Rudy…
— Oh, Sylphie!
Dominado pelo afeto, Rudeus enterrou o rosto no cabelo de Fitz. Seu cheiro e
suavidade agradáveis o deixaram ainda mais animado, e seu abraço ficou
ainda mais intenso. Fitz, por sua vez, ficou encantada com esse abraço
poderoso e logo parou de apresentar qualquer resistência.
Era exatamente disso que Rudeus precisava. Era hora de voltar ao ataque.
— Por que você não quer me ensinar, Roxy? Você não gosta mais de mim?
Desta vez, ele assumiu um tom profundamente magoado. Foi o suficiente para
fazer Roxy estremecer.
— Bem… se eu te ensinar isso, então não terei mais nada em que serei melhor
do que você…
— O quê? Não seja boba, Roxy! Você está em um plano de existência mais
elevado do que eu!
— Tá, olha. Faz um tempo que quero dizer isso, mas acho que sua opinião a
meu respeito é um pouco exagerada. Sou uma pessoa mesquinha, sério… o tipo
de mulher que fica chateada porque seu aluno a superou.
— Enfim, gastei meses da minha vida para aprender isso, sabe? Você e Sylphie
são mais talentosos do que eu jamais fui, então provavelmente vão dominar
isso bem rápido…
Neste ponto, Fitz finalmente percebeu que tinha entendido a situação de forma
equivocada e seu sorriso sonhador deu lugar a uma expressão confusa.
Eu também estava com meus braços em volta da cintura dela, com as mãos
cruzadas bem perto de seu umbigo. Meu corpo estava pressionado contra o
dela; era capaz de sentir as batidas de seu coração no meu peito.
Além disso, eu tinha visto várias notícias sobre acidentes de carro causadas
por passageiras apalpando os motoristas. No momento estávamos em um
cavalo, o que não era exatamente a mesma coisa, mas ainda não seria boa
ideia distrair a pessoa que segurava as rédeas.
Inclinei-me para olhar por cima do ombro de Sylphie e as costas de uma garota
de cabelo azul apareceram. Era Roxy; ela estava sentada bem na frente de
Sylphie.
— Ginger não o escolheu para você, Rudy? — perguntou Sylphie. — Ela tem um
bom olho para cavalos.
— Hein? Hm, eu não diria isso… mas cheguei a ver alguns dos melhores cavalos
do Reino Asura algumas vezes. Como aquele em que o capitão dos cavaleiros
reais cavalga.
— Entendo. Tenho certeza de que deve ser um animal esplêndido…
Cada vez que encontrávamos alguém vindo da direção oposta, Roxy corava e
puxava o chapéu sobre o rosto. Suponho que sentar na frente da pessoa que
segura as rédeas era comparável a andar na cadeirinha de bebê em um carro.
— Boa tentativa, Roxy — disse Sylphie com um sorriso. — Aposto que você
estava planejando fugir no instante em que tirássemos os olhos de você.
Até alguns minutos antes, passávamos por campos de trigo e batata, mas
agora estávamos cercados por uma região vazia e subdesenvolvida. Eu não
tinha certeza de quantas horas já estávamos cavalgando, mas claramente
tínhamos ido longe o bastante para ter um pouco de privacidade.
Podia ser bom sair da cidade para pescar em um dia ensolarado, mesmo que
não viajasse até tão longe. Não que eu já tivesse pescado antes.
— Falei para vocês que iria ensiná-los, e pretendo fazer um bom trabalho.
O motivo para esse deslocamento todo era bem simples: Roxy cedeu. Meus
insistentes apelos e pedidos finalmente a esgotaram.
— Vou ensinar um único feitiço de Água de nível Rei que dominei: Tempestade
de Relâmpagos.
E, além disso, era um feitiço de nível Rei. Tive que presumir que seria
dramático.
Depois de mais algum tempo na estrada, Roxy falou para pararmos e saltou de
Matsukaze. Ela começou a amarrá-lo a uma arvorezinha quase tão grossa
quanto a perna do cavalo.
— Ah, sim. Esse era o nome do cavalo de Paul, não? Isso realmente desperta
algumas memórias… — Roxy sorriu, parecendo um pouco nostálgica.
Passaram doze anos desde que ela me ajudou a me tornar um Santo da Água.
Consegui um monte de outras habilidades nesse meio tempo, mas só agora
estava dando o passo para o nível Rei. Parecia que eu tinha feito muitos
desvios pelo caminho até chegar neste momento.
— Existe algum risco de outro acidente como o que tivemos naquela época?
— Não, acho que não. Mas não queremos que Matsukaze se resfrie com a
chuva, então é melhor fazer uma Fortaleza de Terra para abrigá-lo.
— Entendido.
Até mesmo um feitiço de nível Santo seria o suficiente para deixar qualquer um
encharcado, então propus que trouxéssemos isso como uma medida de
precaução. Também coloquei a minha.
— Sim.
Roxy acenou com a cabeça e apontou para uma árvore bem longe. Era uma
coisa enorme. Mesmo de longe, eu poderia dizer que seu tronco era
incrivelmente grosso.
— Usarei aquela árvore como alvo. Só posso usar isso uma vez por dia, então
observem com bastante atenção.
— Entendido.
Com outro pequeno aceno sinalizando minha resposta, Roxy fechou os olhos e
começou a respirar profundamente. Suas mãos agarraram seu cajado com
força enquanto ela se concentrava intensamente na tarefa em mãos.
Isso durou mais tempo do que eu esperava. Ela podia lançar um feitiço de nível
Santo rapidamente, mas parecia que esse não seria tão fácil assim. Embora eu
não tivesse um Olho do Poder Mágico ou coisa assim, me senti bastante
confiante sobre ela estar usando esse tempo para reunir uma grande
quantidade de mana para o feitiço.
Foi tudo muito impressionante, mas eu já tinha visto isso antes. Era o feitiço de
nível Santo, Cumulonimbus.
Com cada palavra que saía de sua boca, o céu acima de nós
era comprimido. As nuvens negras que se estendiam pelo horizonte desabaram
sobre si mesmas, formando um círculo que se tornava menor e mais denso a
cada segundo. Eletricidade crepitante espalhou-se e formou um arco ao redor
da massa escura.
— Relâmpago!
Era um relâmpago, sim. Mas não era nada parecido com qualquer coisa que eu
já tivesse visto.
Eu, por outro lado, estava ocupado demais ficando boquiaberto. Não consegui
encontrar nada para dizer. Nem mesmo uma única palavra.
O céu acima de nós estava claro e azul. A terra ao nosso redor estava úmida,
mas essa era a única pista remanescente do que tinha acabado de acontecer.
— Uau…
Perdendo as forças para segurar seu cajado, Roxy cambaleou para o lado. Corri
para segurá-la antes que caísse.
— Ah, fico feliz por ter conseguido isso. Com minha capacidade de mana, só
posso usar uma vez, mesmo com meu cajado… Você deu uma boa olhada no
feitiço, Rudy?
Não fui capaz de desviar meus olhos daquilo por um único segundo que fosse.
E também lembrava de cada palavra do encantamento.
— Vou tentar!
Depois de entregar Roxy para Sylphie, me virei, estendi meu próprio cajado e o
segurei bem forte.
Aqua Heartia estava comigo desde o dia em que fiz dez anos, apoiando-me em
todas as turbulências da minha vida. Eu tinha confiança de que poderia lançar
esse feitiço sem sua ajuda, mas ainda assim queria usá-lo.
Tentei lembrar do que tinha acabado de ver com a maior precisão possível,
olhei para o céu e comecei a entoar.
Mas eu não faria isso. E pensei ter entendido o motivo. Se desse ao feitiço uma
forma coerente, provavelmente seria impossível conseguir aquela compressão
das nuvens. Eu precisava passar para o próximo estágio sem estabilizar o
feitiço.
A cada frase que eu falava, a magia no ar ficava cada vez mais intensa. Eu não
tive escolha a não ser colocar mais mana no feitiço para evitar que ficasse
totalmente fora de controle. Eu estava forçando as nuvens a se comprimirem,
apertando-as com todas as minhas forças.
Este feitiço exigia poder. Poder bruto e cru. Essa era a única coisa que tornava
isso possível. Eu nunca lancei nada que exigisse uma força tão feroz.
Não, isso não era verdade. Algo nisso me parecia familiar. Não era muito
diferente do que senti quando estava lançando meu Canhão de Pedra ao seu
potencial máximo.
No momento em que percebi isso, o feitiço de repente pareceu muito mais fácil
de controlar.
— Relâmpago!
Quando falei a palavra final, pude sentir algo como um buraco vazio se abrindo
sob minha bola de mana comprimida.
KRA-KOOM!
Mais uma vez, um grande pilar de relâmpago atingiu a terra e seu rugido
passou por nós. Não usei nenhum alvo em particular, mas o feitiço atingiu o
solo exatamente onde eu queria.
Mais uma vez, não sobrou nada em seu rastro. Não havia nuvens negras acima
de nós, apenas um céu azul claro. Mas o solo estava um pouco mais
encharcado do que antes e nossos casacos pingavam água.
A imagem residual do relâmpago ainda estava piscando diante dos meus
olhos. Meus ouvidos ainda zumbiam com seu rugido.
Eu consegui.
Sylphie foi a primeira a falar. Tudo o que ela conseguiu, no entanto, foi um
assustado: “Oh, uau.”
Ainda assim, Sylphie aprendia rápido. Tive a sensação de que ela descobriria se
tentasse mais algumas vezes.
— Não se sinta mal, Sylphie — disse Roxy com um sorriso. — Eu ainda erro mais
ou menos uma vez a cada cinco.
De certa forma, fiquei um pouco feliz por Sylphie ter falhado dessa vez. Se nós
dois tivéssemos conseguido na primeira tentativa, Roxy poderia ter seu orgulho
ferido.
Entretanto, isso foi bem interessante. Com base no que vi, Sylphie parecia ter
uma capacidade de mana maior do que Roxy. E a de Roxy não era nada
pequena, pelo que percebi.
— Sim, isso foi certamente impressionante. Tenho que admitir que esperava
que isso acontecesse, mas foi um pouco deprimente que você tenha
conseguido tão facilmente.
—…
Claro, comecei a usar magia por volta dos dois anos de idade e me esforcei
para expandir minha capacidade de mana. Mas dado o tamanho da minha,
provavelmente também nasci com um suprimento anormalmente grande. Eu
me esforcei, mas também tive sorte. Isso deixava a discussão a respeito de
minhas habilidades como mago um pouco complicada.
Olhei para o oeste, onde o sol estava começando a descer pelo horizonte. O
céu ao redor adotava um tom brilhante de vermelho.
A natureza é tão bela aqui quanto no meu antigo mundo. Isso era algo que não
tinha mudado.
— Sim, é lindo.
— Um sonho?
— Isso mesmo. Talvez eu ainda esteja presa naquele labirinto, e esta é uma
pequena ilusão feliz que estou tendo antes de morrer.
— Estou muito mais feliz agora do que há seis meses. Eu me casei, para
começar, e fui contratada como professora na Universidade. Acho que pareço
uma espécie de intrusa para você, Sylphie… mas estou feliz por estar aqui,
montada neste cavalo com vocês dois.
Senti Sylphie estremecer um pouco quando Roxy disse a palavra intrusa. Ela
então balançou a cabeça em negação.
— Você não é uma intrusa, Roxy. E fico feliz que você tenha sido tão gentil e
atenciosa com tudo isso. Não acho que eu venceria caso você transformasse
isso em algum tipo de competição…
A voz de Sylphie estava tão incerta que senti a necessidade de interromper este
momento com um abraço. Ela tirou uma das mãos das rédeas para dar um
tapinha no meu braço; era sua forma de dizer “Eu sei”.
— Acho que você está sendo modesta demais… — disse Roxy com a voz um
pouco perturbada.
— Ele me ensinou magia quando eu era jovem, sabe? É a única coisa que me
manteve viva.
Ela teve o azar de cair do céu acima do palácio real em Asura. Ao lançar um
feitiço rapidamente, ela mal conseguiu pousar com segurança. Mas, naquele
momento, seu cabelo perdeu a cor original – possivelmente um efeito colateral
por gastar muita mana em um momento de terror.
A Princesa Ariel gostou dela, mas foi sua rara habilidade de lançar feitiços não
verbais que lhe rendeu um lugar na corte real. E quando Ariel foi derrotada por
seus rivais políticos, essa mesma habilidade permitiu que Sylphie lutasse
contra dezenas de assassinos enquanto fugiam.
Da forma como ela disse, minha magia era a única coisa que a manteve viva
durante esse tempo todo.
Enquanto ela falava, imaginei o quão diferente minha vida teria sido se eu não
tivesse conhecido Roxy ou Sylphie quando ainda era jovem.
Se não fosse por Roxy, eu não teria coragem de deixar aquela casa por vários
anos. Eu estava muito confiante disso. Se eu nunca tivesse dado um passo
para fora – nunca tivesse conhecido Sylphie – poderia ter sobrevivido ao
Incidente de Deslocamento? Eu poderia ter feito meu caminho através do
Continente Demônio?
Bem, se eu nunca tivesse conhecido Sylphie, não teria sido enviado para a
cidade de Roa. Ou seja, não teria conhecido Eris ou Ghislaine. Meus pais talvez
acabassem me enviando para a escola. Eu em algum momento chegaria a um
limite com minha magia, então poderia acabar pedindo para que me
mandassem para a Universidade de Magia de Ranoa.
Ainda assim… não pude deixar de sentir que teria topado com Sylphie em algum
lugar. E me apaixonaria por ela, é claro.
— Tudo bem — disse Roxy calmamente. — Bem, entendo o que você está
tentando dizer. E fico… muito feliz por você ter uma opinião tão elevada a meu
respeito.
Não pude ver o rosto de Roxy, já que ela estava sentada na frente. Mas pude
ver que seus ombros tremiam um pouco.
— Rudy…
Dado meu histórico nada ideal como marido, prometer que as amaria para
sempre soaria como algo vazio.
Assim que chegamos em casa naquela noite, reservei um tempo para repassar
o que tinha aprendido na lição do dia sobre magia de nível Rei.
Seu poder destrutivo era o maior dentre todos aqueles que eu conhecia. Mas
isso era natural. Eu não conhecia nenhuma magia que exigisse mais mana
bruta do que Cumulonimbus, e Relâmpago concentrava toda essa energia em
um único ponto.
Até o momento, meu Canhão de Pedra costumava ser o feitiço mais letal em
meu arsenal, mas desta vez podia ter sido superado. Com tantos quebra-
cabeças na ponta dos dedos, poderia me lançar ao futuro que quisesse.
Mas, sério.
Embora o nome desse feitiço fosse Relâmpago, o verdadeiro segredo por trás
de seu poder estava na etapa de compressão de mana. Fiquei curioso para
saber se quaisquer feitiços de nível Rei de outras disciplinas poderiam ser
aplicações da mesma técnica básica.
De qualquer forma, agora que tinha lançado o feitiço uma vez, seria capaz de
usá-lo não verbalmente no futuro.
Na próxima vez que o usasse, tinha quase certeza de que poderia acelerar as
fases de formação e compressão de nuvens e soltar o relâmpago muito mais
rápido do que antes. Mas, embora eu estivesse planejando praticar, não tinha
certeza se teria muitas chances de colocar esse feitiço em uso prático. Afinal,
se eu estivesse contra um único alvo, meu Canhão de Pedra geralmente seria
mais do que suficiente.
Eu não tinha certeza de como isso funcionava, mas poderia ser útil.
Provavelmente não seria adequado para combates a curto alcance. Poderia
acabar tomando um choque junto com o alvo. Vendo pelo lado bom, não
causaria nenhum dano duradouro. Na pior das hipóteses, ficaria incapacitado
por um tempo. Mas existiam muitos outros feitiços mágicos de ataque
que não apresentavam o risco de ferir o próprio lançador.
Ainda assim, parecia que valia a pena tentar refinar isso. Eu poderia usar um
feitiço projetado para atordoar alguém, e não para matar. Relâmpago se
ramificaria no ar para atingir o alvo, então seria impossível evitá-lo. E o choque
poderia até ser eficaz em incapacitar alguém protegido por uma aura de
batalha. Eu não tinha ninguém em quem testar isso no momento, mas se
Badigadi voltasse, eu poderia pedir a ele para ser minha cobaia.
Quando mencionei isso a Aisha, porém, ela insistiu em dormir comigo. Esse
tipo de coisa já aconteceu muitas vezes antes. Nunca a convidei ativamente,
mas quando ela pedia para dormir comigo, eu não recusava. Não havia nenhum
motivo para negar, então dei minha permissão a ela.
Essa foi minha suposição, pelo menos. Mas quando perguntei por educação,
Norn realmente aceitou.
Acabei imprensado entre minhas irmãs naquela noite. Aisha estava deitada à
minha direita e Norn ficou à minha esquerda. Em pouco tempo, estavam
roncando com a cabeça apoiada em meus braços.
Aisha era uma coisa, mas fiquei um pouco perplexo por Norn ter concordado.
Seu rostinho pacífico também não estava me dando nenhuma pista. Talvez
fosse sua maneira de me dizer que me aceitou como uma espécie de pai
substituto. Eu confio em você o suficiente para dormir com você, ou algo assim.
Talvez.
Era quase como se eu tivesse encontrado uma parte de mim que estava
faltando. Assim como um pássaro precisa de duas asas, talvez um homem
precise de duas irmãs em seus braços.
Esse pensamento deu origem a uma ideia que me deu um choque na espinha.
Era a voz do demônio, sem dúvida, sussurrando essas palavras em meu ouvido.
Alguma cobra malvada, com a língua tremulando sugestivamente, estava
fazendo o possível para me desencaminhar.
Eu não poderia me permitir continuar pensando sobre isso.
Em teoria, era algo que me interessava há muitos anos. Mas, na prática, não
tinha ideia de como começaria a conversa. Ambas me amavam, mas isso não
significava que ficariam confortáveis com um pedido como esse.
Não achei que fosse possível, mas não pude deixar de me preocupar com isso.
Não era como se eu estivesse insatisfeito com nosso acordo atual. Afinal, eu
estava passando noites alternadas com duas mulheres lindas.
Além do mais, eu estou apaixonado pelas duas. Uma já tinha me dado um filho.
Do que eu tenho para reclamar? Nada, é isso.
Parte disso era porque ambas abordam a questão de maneira muito diferente.
Sylphie era um pouco submissa. Como regra geral, ela fazia tudo que eu pedia
na cama. Quando sugeria que tentássemos algo novo, ela costumava abaixar
os olhos ansiosamente, mas nunca se opunha.
Isso não quer dizer que era um peixe morto. Assim que começávamos, ela
sempre se divertia. Dentro de alguns minutos estaria ofegante e se agarrando a
mim desesperadamente. Era óbvio o quanto ela queria me agradar, e isso era
adorável.
Roxy, por outro lado, era uma espécie de técnica. Ela estava constantemente
fazendo uso das coisas que aprendeu com Elinalise, tentando aumentar suas
habilidades. Quando eu pedia a ela para tentar algo, ela pensava na melhor
maneira de fazer. Quando me ofereci para fazer algo eu mesmo, ela deu todo
tipo de sugestões. Dada a diferença entre nossos tamanhos, tínhamos alguns
desafios físicos a superar, mas ela era criativa e trabalhadora o suficiente para
encontrar maneiras de contorná-los. E isso era tão adorável, à sua maneira.
Certo. Eu amava as duas igualmente. Então era realmente tão errado pensar em
dormir com as duas ao mesmo tempo?
Claro que a resposta era não. Qualquer homem de verdade tem interesse
nessas coisas. É simplesmente da nossa natureza!
Esta era a razão pela qual eu nunca me permiti tocar no assunto antes.
A partir deste momento, pelo menos, eu estava confiante de que isso não iria
mudar.
Ele insistiu que eu poderia visitá-lo a qualquer momento, mas sempre que eu
aparecia, fazia questão de ouvir atentamente à porta. Dependendo dos
barulhos que ouvia lá dentro, às vezes eu me virava e saía.
Desta vez, não parecia haver nada de problemático acontecendo, então bati na
porta.
A mulher com certeza era digna quando não estava falando. Mas eu a conhecia
muito bem para ficar impressionado, ela provavelmente estava tendo
pensamentos indescritivelmente sujos.
— Isso mesmo.
Cliff estava muito ocupado ultimamente e não tinha feito muito progresso em
suas pesquisas. Havíamos conversado por meses sobre encontrar tempo para
melhorar seus protótipos existentes usando as pedras de absorção, mas isso
ainda não tinha acontecido.
Porém, Cliff era o tipo de cara que levava suas promessas a sério. Com notável
foco e teimosia, ele organizou tudo nos últimos meses. Em primeiro lugar,
encontrou um lugar para morar, comprou os móveis e planejou tudo de que
precisavam para se mudar. Na maior parte do tempo, cuidou de tudo por conta
própria, embora eu tenha ajudado um pouco com a caça ao imóvel. Ao
contrário de mim, ele não estava interessado em comprar uma casa; acabou
concordando em alugar um apartamento no distrito estudantil. Se ficasse
muito apertado para eles, imaginou que poderiam se mudar para um lugar
maior.
Fiquei um pouco surpreso com essa atitude, considerando que Cliff era uma
espécie de exibicionista por natureza. Mas, por outro lado, ele não estava
nadando em dinheiro no momento, então era perfeitamente razoável. Ele não
poderia ter comprado uma casa cara. Não sem a ajuda financeira de Elinalise,
pelo menos. Eu sabia que ela estava muito bem de vida.
Eles estavam nos estágios finais. O casamento estava marcado para o próximo
mês. Algo sobre Elinalise usando um vestido todo branco parecia um pouco
estranho, mas contanto que os dois estivessem felizes, isso era tudo o que
realmente importava.
— Não me importo.
Elinalise estava respondendo, mas ainda nem tinha olhado na minha direção. E
então, ainda olhando pela janela, soltou um suspiro longo e profundo.
Era o tipo de suspiro que saía com suas próprias legendas: Estou muito
preocupada. Ninguém vai me perguntar o que há de errado?
— Claro que não. Cliff é tão doce e dedicado que quase sinto que não o mereço.
Eu não poderia estar mais feliz por nos casarmos.
Justo. Eu era apenas um espectador aqui, mas, pelo que pude ver, Cliff não era
nada além de amoroso e leal a Elinalise. Isso não quer dizer que fosse uma
pessoa perfeita. Ele tinha muitas falhas. Mas ainda era jovem, não tinha nem
vinte anos, na verdade. Quando se levava em consideração seu potencial de
crescimento futuro, o cara era uma verdadeira charada.
— Ah, entendi.
— Cliff tem estado tão ocupado que só dorme comigo duas vezes por semana!
— Isso é muito ruim, mas o que você pode fazer? Ele está fazendo tudo por
você, Elinalise.
— Sim, mas você pode brincar com Sylphie e Roxy ao mesmo tempo, não é?
Estou satisfeita com Cliff, é claro, mas tenho certeza de que vocês três se
divertem muito quando estão juntos.
— O quê, sério? É uma pena. É muito bom, te garanto. Por que você não tenta?
Ah, não! O diabo está me tentando de novo! Não dê ouvidos a ela, Rudeus. Vá
embora, Mara! Amém!
— Escandalosa! Vergonhosa! Vou fazer com que você seja banida da biblioteca,
Elinalise!
— Eu não acho que Sylphie ou Roxy se importariam, sabe.
— Hmm. Suponho que Roxy às vezes pode ser um pouco cabeça dura. Ela pode
não reagir muito bem se você aparecer com a ideia do nada.
Sylphie tendia a concordar com qualquer coisa que eu propusesse. Era difícil
saber como ela se sentia a respeito das coisas, e às vezes eu me perguntava se
ela estava sacrificando seus próprios desejos para me agradar… mas se eu
dissesse que queria tentar, tinha certeza de que concordaria.
Roxy poderia não reagir bem se eu aparecesse com isso do nada, mas ela
estava ativamente aprendendo novas técnicas com Elinalise. Elinalise poderia
facilmente começar a inserir algumas lições sobre sexo a três no currículo. E
Sylphie também seguia cegamente os seus conselhos.
Isso era perfeito. Quase perfeito demais! Estaríamos agarrados juntos na cama
em um piscar de olhos, e eu nem teria que me sentir estranho com isso!
Era uma auréola que vi acima de sua cabeça? Dominado pela emoção, me
curvei profundamente diante de minha salvadora.
— Ora, ora. Quanta bajulação. Porém, não tenho certeza se realmente quero
ajudá-lo. Não é como se eu estivesse ganhando alguma coisa com a barganha.
— Guh!
Ela apareceu com a ideia e agora se recusava a me ajudar? Que mulher terrível.
Mas eu não voltaria atrás. Ela me tinha na palma da mão e sabia disso. Eu tinha
toda a força de vontade de um cavalo com uma cenoura balançando na frente
do nariz.
— Existe… alguma coisa… que eu possa fazer por você, Elinalise?
A mulher era mesmo uma vilã. Mesmo meus sorrisos não pareciam tão
malvados. Provavelmente.
— Bem, parece que me lembro de ouvir algo sobre um afrodisíaco raro do Reino
Asura.
Ela devia estar falando sobre aquele pequeno frasco de poção que recebi de
Luke.
Para ser honesto, nunca senti a necessidade de confiar nessas coisas. Eu tinha
mais resistência do que qualquer uma das minhas esposas, então tinha medo
de acabar as machucando se o tomasse. A ideia de fazê-las tomar aquilo
também parecia um pouco errada. Nunca descobri uma boa maneira de usá-lo.
— É uma ocasião especial, querido. Eu prefiro ter Cliff em cima de mim feito
uma besta selvagem durante a noite toda.
— De jeito nenhum. Para começar, não teríamos acabado juntos se ele não
pudesse lidar com isso.
— Certo, tudo bem então. Temos um acordo. Vou trazer da próxima vez que
passar por aqui.
— Você é muito gentil, querido. Mal posso esperar para ver como o Cliff fica
quando não consegue mais controlar a paixão…
Era um lugar majestoso e solene; não muito diferente de uma catedral cristã.
Fileiras de bancos simples ocupavam a maior parte do espaço. Na frente, o
símbolo sagrado da fé Millis estava sob um raio de luz do sol que entrava por
uma enorme janela de vidro. E diante desse símbolo, um sacerdote estava
falando de louvor a Deus.
— Se alguém tentar dividir você, seu escudo sagrado irá protegê-lo. Se alguém
tentar prejudicá-lo, sua espada sagrada o julgará. E se o seu amor se provar
uma mentira, sua tristeza ardente perfurará os céus.
Ariel e Luke estavam do outro lado de Sylphie, vestindo o que pareciam ser
roupas muito caras. Atrás de nós estava outra fileira de VIPs, incluindo Zanoba,
Linia e Pursena. E atrás deles, havia uma fila de convidados diversos: Ginger,
Julie e duas meninas que aparentemente eram atendentes de Ariel, entre
outros. Eu não conseguia vê-las de onde estava, mas Norn e Aisha também
estavam em algum lugar por ali.
As duas também estavam usando vestidos bonitos, mas optei por alugá-los.
Ambas eram garotas em fase de crescimento, então parecia prematuro
comprar qualquer coisa. Elas não ficaram muito satisfeitas com isso, é claro.
Havia alguns convidados que também não reconheci. Mas, sem surpresa,
Nanahoshi não apareceu.
Roxy, porém, estava em uma situação pior do que a minha. Ela estava ali como
minha segunda esposa, e a Igreja Millis não aceitava bigamia. Creio que ela
achou a situação um pouco embaraçosa, já que estava parada rigidamente no
lugar desde o início da cerimônia.
Luke disse que não havia necessidade para ficar constrangido, já que muitos
nobres Asuranos tinham várias esposas, apesar das doutrinas de sua igreja.
Eu também não acho que Roxy tinha algo pelo que se sentir culpada, só para
constar.
— Cliff Grimoire. Você jura amar Elinalise Dragonroad, e apenas ela, enquanto
vocês dois viverem?
— Elinalise Dragonroad. Você jura amar Cliff Grimoire, e apenas ele, enquanto
vocês dois viverem?
— Eu juro amá-lo por toda a minha vida.
Eu sabia que ela tentaria manter sua palavra. Mas ela tinha que enfrentar sua
maldição, e também havia a questão de sua longevidade. Cliff provavelmente
morreria antes dela, e eu senti que ela eventualmente procuraria por outra
pessoa para amar. E ninguém poderia culpá-la por isso, com certeza.
Mesmo assim… era meio bizarro vê-la se casar, considerando que todo o
motivo pelo qual ela se matriculou na universidade foi para dormir com um
bando de jovens vigorosos. A vida é uma caixinha de surpresas, não é?
— Ah, perdão.
Elinalise abaixou ligeiramente a cabeça e Cliff ficou na ponta dos pés para
colocar o colar em seu pescoço. Não foi o momento mais gracioso. O pobre
coitado não parecia estar ficando mais alto.
— É claro.
No dia de sua partida para o campo de batalha, Millis concedeu seu colar à sua
“Mais Amada”. Em troca, ela o beijou na testa, rezando por seu retorno em
segurança.
Mais tarde, quando Millis estava em grave perigo, sua Mais Amada ergueu o
colar dela para os céus. Comovido por sua beleza e pelas profundezas de seu
amor, Deus então intercedeu para salvar Millis.
Dizem que a história se baseia em eventos históricos reais, mas era difícil dizer
o quanto disso era literalmente verdade.
— Deus do céu, ouça meu apelo! Conceda a esses dois o dom do amor eterno e
da felicidade!
Quase me senti culpado por pensar “Huh. Então esse cajado é um instrumento
mágico, certo?” em vez de aproveitar o espetáculo. Talvez eu estivesse ficando
um pouco pragmático demais.
— Foi incrível!
Eu podia ver Norn se apaixonando por alguém e algum dia colocando seu
próprio vestido todo branco. Não era o mais agradável dos pensamentos. Eu
teria que dar ao sortudo um soco no rosto como seu presente de casamento.
Aisha, porém… eu não tinha tanta certeza sobre ela. Era difícil imaginá-la
fugindo para se casar. Talvez passasse a vida inteira como criada da família.
— Acho que garotas sonham com esse tipo de cerimônia, hein? — falei, virando-
me para Sylphie.
— Bem, claro. Mas não estou reclamando! — respondeu ela com um sorriso. —
O nosso foi bom da sua própria maneira. Eu gostei de como foi íntimo.
—…
Ela tinha colocado um pouco de maquiagem para a ocasião, o que realçava sua
beleza. O rubor em suas bochechas parecia ser puramente natural.
Ainda assim, não teria me surpreendido se ela tivesse mudado de ideia depois
de hoje.
— Não, isso não será necessário. Mas, uh… tente ler nas entrelinhas, pode ser?
Eu não tinha certeza do que motivou isso, mas não estava prestes a deixar
passar um convite tão delicioso. Pegando Roxy pelos ombros, puxei-a para
perto e beijei-a na testa.
— O qu…
A mulher era realmente fácil de manipular. Mas isso era apenas outra parte do
que a tornava charmosa.
Beleza, acho que já me decidi. Esta noite tem que ser a Roxy…
Eu, naturalmente, não iria desapontá-la. Por que hesitaria em dar um beijo na
testa de uma linda mulher?
Apesar de ter iniciado o beijo, Sylphie pressionou a mão na testa e soltou uma
risadinha envergonhada.
Ela tem que ser tão fofa o tempo todo? Gah. Agora eu quero dormir com ela esta
noite! Mas a Roxy também…
Eu não tinha certeza se Elinalise já tinha preparado o terreno para mim. Fazia
um tempo desde que conversei com ela, e já fazia algum tempo que eu tinha
entregue o afrodisíaco.
—…
Aisha percebeu tudo isso com uma expressão extremamente invejosa. Era
óbvio que ela queria ser incluída, mas temia que eu pudesse recusar. Não que
ela tivesse motivos para se preocupar, é claro.
— Aisha!
— Rudeus!
Entretanto, eu não poderia dizer que aprovava ela entrelaçar as pernas nas
minhas assim em público. Ela estava usando um vestido, então provavelmente
estava expondo sua calcinha.
— Aisha, solte a minha perna. Você está de vestido, lembra? Estou supondo que
você não queira mostrar para todo mundo na rua.
— Tá! Entendi!
Pulando para longe de mim com um sorriso satisfeito, Aisha voltou a trotar pela
rua.
O que eu faria com ela? É verdade que ela tinha apenas onze anos, o que a
tornava uma criança. Mas, infelizmente, existem alguns cavalheiros por aí que
consideram qualquer pessoa com mais de dez anos como zona neutra. Eu
precisava que ela fosse mais cuidadosa.
—…
Em uma carta que escreveu há algum tempo, Paul sugeriu que celebrássemos
assim que nossa família se reunisse. Eu pretendia fazer algo nesse sentido,
mas de alguma forma seis meses se passaram sem que isso acontecesse.
Também não tínhamos feito uma festa para Aisha e Norn no quinto ou décimo
aniversário. Me senti culpado por isso, especialmente porque ganhei uma
grande festa na idade delas.
Certo dia, umas duas semanas depois do casamento de Cliff com Elinalise, fui
para a cidade com Sylphie e Roxy.
Nosso objetivo era comprar presentes de aniversário para Norn e Aisha. Decidi
fazer uma festa surpresa para elas, o que significava que precisávamos
preparar tudo sem que elas descobrissem.
Havia outra razão pela qual arrastei minhas duas esposas comigo, mas
falaremos disso mais tarde.
Não era o evento mais bem elaborado. Envolvia fogueiras nas ruas, grandes
panelas de ensopado com todos os tipos de ingredientes e muita bebida
barata. As pessoas se reuniam ao redor do fogo para comer, beber e expressar
sua gratidão pelas bênçãos da terra. Não havia nenhum outro grande evento
que eu conhecesse. Mesmo sem canto ou dança.
Ainda assim, contanto que levasse a própria panela, poderia pegar ensopado de
graça. Aisha aparentemente tinha aproveitado isso no ano passado, enquanto
eu estava fora. Ela não ficou muito impressionada. Eles meio que jogavam as
coisas, então o sabor não era nada demais.
Espero ter a chance de experimentar por mim mesmo este ano. Mesmo se
fosse nojento, ainda poderia ser interessante à sua maneira.
— Parece que hoje o dia está bem animado — disse Roxy, olhando ao redor com
curiosidade.
— Sim, sempre é — disse Sylphie. — Muitas pessoas vêm à cidade nesta época
do ano.
Além dos mercadores que andavam por todo lugar, havia muitos alunos nas
ruas, olhando dentro dos estandes e bancas. Às vezes, passávamos por
fazendeiros empurrando carrinhos de mão cheios de vegetais ou aventureiros
discutindo sobre quem bateu no ombro de quem. Sharia era a maior cidade da
região, mas só era barulhenta nesta época do ano.
— Olá, Srta. Sylphiette, Srta. Roxy. Tenho uma proposta para vocês.
— Fale.
Tive essa ideia de repente, mas era uma espécie de extensão do meu
pensamento anterior. O verdadeiro “sonho” era andar por aí com duas mulheres
agarradas aos seus braços, mostrando o quão popular você era.
Eu tinha visto alguns homens assim na minha vida anterior, e sempre me deu
vontade de vomitar. Mas, no fundo, eu queria ser igual a eles. Eu queria fazer o
que estavam fazendo!
— Tudo bem.
— Claro…
O dia finalmente havia chegado. Eu renasci! Agora era a minha vez de receber e
suportar os olhares de ciúmes das pessoas. E como era maravilhoso!
Eu, Rudeus Greyrat, estava andando pela cidade com os seios de uma mulher
pressionados contra meu braço. Este simples fato era o suficiente para me
encher de alegria. O solo outrora estéril do meu coração, alvejado por uma
adolescência miserável, estava florescendo com vida!
Eu não poderia ficar neste oásis para sempre. Em breve, essas nuvens
almofadadas de prazer voltariam ao seu tamanho legítimo e mais modesto.
Mas isso não os tornava menos reais. Eram as lendárias ilhas do tesouro, e eu
as havia encontrado!
E essa alegria não vinha apenas de Sylphie. Roxy, à minha esquerda, também
pressionava seu peitinho contra mim. Seus seios eram pequenos,
mas existiam. Eu podia sentir sua maciez distinta contra os músculos do meu
braço. Eles eram suaves o suficiente para herdar a Terra!
Ha ha, não fique com ciúmes, Hércules, o Bíceps! Você também é maravilhoso!
— Suavizei as duas para você, Rudeus. Você só precisa levar elas para um
encontro, criar um bom clima e depois as levar para uma pousada elegante.
Isso mesmo, meus amigos. Era o dia. Eu ia dormir com minhas duas esposas
ao mesmo tempo!
— Você está babando — disse Roxy, enxugando meu rosto com um lenço. —
Você já está com fome?
— Desculpa — falei com um sorriso, renovando meu foco nas tarefas em mãos.
— Acho que estava perdido em meus pensamentos.
Escolher os presentes era a principal atividade do dia. Decidimos dar uma volta
por toda a cidade e tomar o tempo necessário para se decidir.
Na maioria das vezes, seus efeitos não eram grandes coisas, pareciam mais
brinquedos do que qualquer outra coisa. Mas às vezes quando se vasculhava
em uma pilha de lixo pode encontrar uma obra-prima de um inventor que logo
se tornaria famoso.
Ou pelo menos foi o que Roxy me disse. Uma de suas antigas colegas de
classe da Universidade tinha participado de uma dessas oficinas como
aprendiz, então ela sabia algumas coisas sobre a área. Infelizmente, eles se
mudaram para uma cidade diferente.
— Para ser honesta, não acho que encontraremos algo que as duas gostariam
aqui — disse ela, mas estava verificando os implementos mágicos com grande
interesse.
Apesar de sermos formalmente casados, eu nunca celebrei isso com ela. Ela
não queria uma cerimônia de casamento, mas ainda assim poderíamos ter uma
festa. Meu plano era combinar esse evento com a celebração do aniversário de
Aisha e Norn.
Roxy não sabia sobre essa parte, é claro. Também era uma surpresa.
Ela pensou que estava por dentro de tudo, mas eu estava jogando um xadrez de
cinco dimensões! Se ela manifestasse interesse em alguma coisa à venda, eu
planejava sair furtivamente e comprar alguns dias depois.
Não havia como saber quando precisaríamos gastar muito dinheiro de uma só
vez, então eu estava fazendo o possível para não gastar nosso dinheiro
descuidadamente. Acontece que, para um presente de casamento, eu estava
mais do que disposto a gastar minhas economias.
— Este pote que congela o que tem dentro quando você o alimenta com mana
parece útil. Talvez Aisha goste disso.
— Hmm. Tenho a sensação de que ela prefere coisas fofas, para ser bem
sincero.
— Ah… é mesmo. Acho que não devemos dar algo que ela vá usar no trabalho…
Até o momento, eu não tinha notado seu desejo por nada em particular. Ela
parecia totalmente focada em escolher um presente para minhas irmãs, ao
invés de encontrar algo para si mesma.
— Acho que seria maravilhoso lamber seu rosto igual um cachorro, Roxy.
— Você pode tentar levar isso a sério? Foi você quem sugeriu o passeio, sabe.
Claro, eu também estava pensando nos presentes de Aisha e Norn. Mas o que
estava à venda nesse lugar simplesmente não fazia o estilo delas.
Ela parecia genuinamente perplexa. Como regra geral, ela só comprava suas
roupas em estabelecimentos bastante caros. Não era como se Sylphie fosse
descuidada com seu dinheiro ou algo do tipo. Ela passou muitos anos
acompanhando Ariel. As pessoas tendem a adquirir os hábitos de compra de
seus amigos mais próximos, acho.
Eu tinha certeza de que ela entendia que este lugar era de certa forma caro.
Provavelmente parecia a melhor opção entre as lojas que ela conhecia.
Afinal, chiqueza é um termo relativo.
— Bem, não. Acho que a família Greyrat pode fazer compras aqui. É que… eu
não costumo visitar lojas tão legais.
— O-Oh… huh. Então acho que é meio chique — disse Sylphie em um tom
desanimado, suas orelhas ligeiramente caídas. — Hmm, Rudy? Não estou
gastando muito dinheiro, estou?
Além de tudo, ela pagou as roupas que comprou com seu próprio salário. Eu
não tinha o direito de reclamar sobre como ela gastava seu dinheiro.
Essa sim é a minha mestra. Ela sabe quando mudar para a ofensiva. Melhor
continuar com isso…
— Sabe, na verdade, não acho que haja algo de errado em comprar roupas
caras para você — falei com um sorriso.
— Ugh. Afinal, devemos ir para outro lugar…? As outras lojas que conheço são
ainda mais caras…
— Não será necessário. Vamos comprar aqui.
Originalmente, Sylphie mal tinha roupas para si. Ela começou a se vestir para
mim. Para não dizer muito, eu não tinha motivo para reclamar disso.
Este lugar era meio caro para meus padrões pessoais, sim. Mas isso era só
porque eu me acostumei a comprar coisas baratas quando era um aventureiro
errante.
Eu estava disposto a ajustar meus padrões para algo superior. Contanto que
ainda pudéssemos pagar, claro.
— Ora, ora, se não são os Greyrats! É tão bom tê-los de volta ao nosso
estabelecimento! O que podemos fazer por vocês hoje?
A seção infantil não era menos chique do que o resto do lugar. Tinham uma
grande variedade de roupas em exibição, incluindo tudo, desde roupas casuais
a robes e vestidos.
— Meu deus, são tantos estilos diferentes. Eu nem tenho certeza de por onde
começar.
— Bem, logo será inverno, não é? Será que algo quente seria bom?
— Bem, o casaco de inverno de Norn está ficando um pouco pequeno para ela.
Ela pode estar procurando por um novo — sugeri.
As duas assentiram com a cabeça.
— Beleza, talvez um casaco para ela, então… Mas o que devemos dar para
Aisha?
— Ah. Ela estava reclamando outro dia que seus sapatos estão ficando
apertados — disse Roxy.
Para Norn, optamos por um casaco de cores vivas. Para Aisha, escolhemos um
par de botas com uma estampa de flores lindamente costurada. Ambos eram
um pouco grandes, mas isso não parecia um problema. Afinal, minhas irmãs
eram duas garotas em fase de crescimento.
Com nosso trabalho principal terminado, ficamos andando sem rumo pela loja.
Não era como se tivéssemos que nos limitar a um único presente. E o mais
importante, eu ainda estava procurando um presente perfeito para Roxy,
mesmo que eu mantivesse essa parte em segredo, é claro.
— Esses corsages de tecido são legais. Será que Aisha iria gostar? — falei,
estudando uma cesta de pequenos buquês intrincados.
— Sim… mas eu não tenho certeza se uma criança gostaria desse tipo de coisa.
— Pensando bem, eu realmente não sei de que tipo de coisas a Norn gosta…
— Hmm, boa questão. Ela não fala sobre seus gostos com muita frequência.
Pelo menos não perto de mim.
— Norn tem gostos um tanto masculinos, eu acho — disse Roxy. — Ela gosta de
espadas, armaduras, cavalos… esse tipo de coisa.
Seus olhos estavam fixos em uma determinada roupa. Era um robe de mago,
completo e com chapéu, exibido com destaque em um estande próximo. O
robe era do tamanho de um homem adulto, então não tinha chance de caber
nela. Ainda assim, ela olhou fixamente. Mais especificamente, para o chapéu.
Com um suspiro audível, ela se virou para se juntar a nós. Estava claro que já
tinha deixado isso de lado.
— Ei, Rudy…
— Vamos continuar.
— Boa ideia.
Finalmente, nós três fomos para o Distrito de Alojamento, onde muitos dos
aventureiros locais se reuniam.
— Viu, Sylphie? Este é o tipo de roupa que os aventureiros usam. A maioria das
pessoas compra coisas assim quando precisa de uma roupa.
— Certo, tá! Entendi! Mas eu não visto coisas assim com muita frequência,
sabe? Não tenho certeza se vai ficar bom em mim.
— Hmm. Acho que este seria adequado para você, Sylphie. Você é muito
esguia, então as capas ficam bem em você.
Era o tipo de roupa que um cavaleiro mago poderia usar, completo e com
cotoveleiras. Não era exatamente elegante, mas a fazia parecer uma
aventureira novata, o que eu achei dolorosamente adorável. Agora Sylphie
poderia partir em uma aventura a qualquer hora que quisesse!
Bem… parecia espontâneo para Sylphie e Roxy, pelo menos. Estava tudo
correndo de acordo com o plano.
Porém, não vi nenhuma repulsa ou choque em seus rostos. Elinalise havia feito
seu trabalho muito bem; pareciam receptivas ao meu plano.
— Ainda assim, você não mencionou que passaríamos a noite. Estou um pouco
preocupada com Lucie…
A objeção era razoável, mas, é claro, eu também não tinha esquecido esse
pequeno detalhe.
— Ainda parece um pouco errado da nossa parte… Mas pelo menos ela está em
boas mãos, eu acho.
Sylphie parecia pensar que pelo menos um de nós deveria estar com nossa
filha todas as noites. Uma perspectiva muito compreensível, mas… nah, eu não
inventaria desculpas para mim mesmo.
Sinto muito, Lucie. Eu te amo, tá? Perdoe seu pai perverso e lascivo!
— Vamos acordar cedo e voltar para casa antes que você precise sair.
— Você acha que conseguiremos acordar cedo? Não tenho certeza se vou. Isso
é sempre exaustivo para mim.
Nossa.
Vendo minhas adoráveis esposas inclinando suas cabeças para mim, eu estava
pronto para ir direto aos negócios.
Eu queria ter certeza de que ambas entendiam que luxúria não era a única coisa
que eu sentia por elas. Sentia, é claro. Mas também adorava passar um tempo
com elas.
Enquanto prato após prato de comida era entregue em nossa mesa, Roxy e
Sylphie arregalaram os olhos de espanto.
Entre outras coisas, comemos uma enorme tigela de salada cheia de vegetais
frescos e suculentos; uma sopa apimentada com peixes de água doce; e um
bife preto e azul brilhante e bem temperado. Nada disso era o tipo de coisa que
se comia com muita frequência por essa região.
Além disso, a refeição foi acompanhada de uma garrafa de licor parecido com
uísque com um aroma forte.
— Esta sopa está deliciosa. Fico imaginando, como será que temperaram?
Sylphie não estava tocando o álcool, provavelmente por causa de Lucie. Ela
ficou encantada com a sopa, e continuou tomando porções adicionais.
Ainda assim, a oferta não era exatamente comparável aos bolos e doces mais
complexos que encontraria em um lugar como o País Sagrado de Millis.
Consistia principalmente em frutas que se pareciam muito com maçãs. Eu já
tinha comido isso antes, mas eram muito mais azedas do que as maçãs do
meu antigo mundo.
Fiquei surpreso com o quanto gostei. Eu esperava que maçãs e mel tivessem
um gosto mais parecido com o doce curry japonês, mas, aparentemente, me
enganei.
— Isso é incrível!
Roxy ficou particularmente satisfeita com o sabor. Com os olhos brilhando de
entusiasmo, ela enfiou rapidamente na boca.
Parecia que minha querida mestra tinha uma queda por doces. Ou isso, ou o
povo Migurd tinha uma preferência arraigada por açúcar.
— É tão bom… Eu não sabia que você poderia conseguir algo assim nos
Territórios Nortenhos!
De qualquer forma, a alegria em seu rosto era muito real. Eu estava começando
a me preocupar que ela pudesse ter um orgasmo culinário no meio do
restaurante.
— Ah…
Rapidamente, sua sobremesa desapareceu. Ela olhou para o prato vazio com
pesar.
Enquanto eu empurrava minha parte para ela, Roxy olhou para mim em estado
de choque.
A cada mordida que eu dava a ela, o rosto de Roxy se iluminava e ela levava a
mão ao rosto em êxtase.
Isso me fez querer continuar para sempre, mas, infelizmente, minha parte da
sobremesa também tinha desaparecido. Teríamos que continuar isso na
próxima vez que fizéssemos uma visita.
Então tá bom. Tivemos um bom jantar e eu as suavizei com doces… Acho que
está na hora.
— Sabem, moças…
— Vá em frente.
— Certo… Hm, Roxy, sei que conversamos um pouco sobre isso, mas… tem
certeza de que está bem em fazer isso comigo?
Cap. 09 – A Festa
— Ei, planejei algumas coisas para o dia de hoje. Que tal vocês três virem?
O objetivo principal dessa saída, é claro, era tirá-las de casa por algumas horas
para que minhas cúmplices pudessem pegar os presentes e preparar toda a
comida.
Havíamos planejado tudo isso com antecedência, então Roxy não perdeu
tempo em concordar com a proposta.
Mal sabia ela que também iria ficar surpresa! Muahaha!
— Ei, mãe, posso ir? — perguntou Aisha, virando para a mãe. — Eu ainda tenho
trabalho a fazer.
— Você foi convidada pelo próprio Mestre Rudeus. Claro que pode ir —
respondeu Lilia. Aisha acenou com a cabeça, feliz.
Norn, por outro lado, não respondeu de imediato. Ela estava olhando para
Sylphie com uma expressão ansiosa no rosto. Depois de um momento, ela se
virou para mim e falou:
— Vocês duas não saíram com Rudeus outro dia? Está realmente bem com
isso?
— Uhhh… — Sylphie olhou para mim incerta. Mas então ela olhou para Roxy e
pareceu ter algum tipo de ideia. — N-Na verdade, isso foi tudo ideia minha.
— E não é muito divertido ter esse tipo de tensão em casa. Achei que ajudaria
se vocês passassem um tempo juntas, sabe? Não custa nada nos
conhecermos melhor.
Norn parecia convencida, mas Aisha parecia um pouco duvidosa. Afinal, ela já
se dava bem com Roxy. Eu a tinha visto levando chá e lanches para Roxy
quando ela estava acordada até tarde se preparando para as aulas do dia
seguinte.
Depois de alguns minutos, Aisha pareceu decidir que esses detalhes não eram
muito importantes. Ela deu de ombros ligeiramente e sorriu para si mesma.
Havia apenas duas pessoas para pegar os presentes, cozinhar e arrumar todas
as decorações. Para dar a elas um pouco de espaço para respirar, meu objetivo
era passar o tempo com as meninas até o início da tarde.
— Pesca, hein…?
Nós quatro estávamos fora da cidade. Estava quieto o suficiente para ouvir o
pequeno riacho abaixo de nós gorgolejando suavemente. E a água estava clara
o suficiente para ver os peixes.
— Sim. Parece uma boa atividade para melhorar o vínculo familiar, não acha?
— Heh heh. Também não sei! Nunca pesquei na minha vida, sabe.
Em minha encarnação anterior, eu era um tipo de cara muito fechado. Nunca fui
e nunca tive interesse em pescar. E, claro, nunca senti necessidade de tentar
neste mundo também. Quando eu queria peixes, podia pegar facilmente
congelando a água.
Norn acabou aceitando a oferta de Roxy, mas ela parecia um pouco confusa. A
garota era uma seguidora fiel da Igreja Millis. Tive de presumir que ela se sentia
um pouco estranha perto de Roxy, já que era minha segunda esposa.
Ainda assim, não parecia que ela a odiava. Não em um nível pessoal, pelo
menos.
— Assim?
— Obrigada…
Roxy a ensinou com paciência e educação. Norn retribuiu o favor ouvindo com
atenção.
A experiência de Roxy era bem clara. Sentada em uma pequena “cadeira” que
eu fiz com minha magia da Terra, ela cerrou os olhos cuidadosamente na água,
segurando sua vara firmemente em uma das mãos. Quando ela sentiu a menor
vibração, puxou a vara rapidamente.
Eu ainda não a tinha visto pegar nada particularmente grande, mas ela pegou
mais peixes do que nós todos.
Sua pose e concentração me lembrava um monge meditando sobre os
mistérios do universo.
— Não, ele usava a lança. Ele a lançava na água e, logo em seguida, puxava de
volta com um peixe em todas as três pontas…
— Não se preocupe; isso acontece o tempo todo. Vamos colocar outra isca.
Norn estava tendo problemas para se concentrar em sua tarefa. Não era o
primeiro peixe que ela deixou escapar.
Ainda assim, sua expressão era alegre. Ela parecia estar gostando de sua
conversa com Roxy.
— Hee hee hee. Qual é o problema, Rudeus? Você não pegou nada.
Por outro lado, Aisha já estava dando resultados impressionantes. Ela perdeu
algumas iscas, mas também fisgou três peixes.
— Não se esqueça da nossa aposta! O perdedor tem que fazer tudo o que o
vencedor disser, não importa o que aconteça!
Um pouco antes, eu tolamente concordei em competir com ela para ver quem
pegaria mais peixes. No momento, minha pontuação era um grandessíssimo
zero. Isso não parecia promissor.
Nós dois éramos novatos, não é? Por que ela estava se dando muito melhor do
que eu?
— Beleza, criança. Escolha algo que eu realmente consiga fazer, nada de coisas
impossíveis.
— Hmm, o que devo escolher? Talvez eu faça você me abraçar a noite toda
enquanto sussurra como eu sou bonita. Ah, ou você poderia me ensinar
algumas das coisas que você faz com Roxy e Sylphie…
— Nada muito adulto, por favor. Não quero que Papai fique bravo comigo.
Eu não estava muito preocupado, para ser sincero. Apesar de todas as suas
provocações ultrajantes, ela provavelmente se contentaria em me pedir uma
bugiganga um pouco cara.
Então… perder para minha irmã era mesmo um problema? Não era um pouco
cedo para ela estar me superando assim?
De fato era. Eu tinha minha dignidade como chefe desta família e precisava
defendê-la!
Sim, era bom ser um irmão mais velho amado. Mas era melhor ser um irmão
mais velho temido!
Reclame o quanto quiser. É disso que sou realmente capaz! Ao olhar um segundo
no futuro, irei destruir todos os peixes deste riacho!
Nenhum movimento.
Nenhum movimento.
— Peeeeeixe!
—…
A maioria das pessoas deste mundo usava sapatos e botas, é claro. E esse
riacho estava conectado a um rio que passava pela movimentada Cidade
Mágica de Sharia.
Os habitantes da área usavam esse rio regularmente para lavar suas roupas ou
encher seus baldes de água. Os aventureiros também faziam uso dele em toda
a sua extensão. Provavelmente alguém caiu e perdeu as botas.
Assim sendo…
— Rudeus…
Hmm. Talvez eu precisasse mudar a maneira como eu via isso. Essa coisa não
era uma bota. Não era mesmo!
— Nem para ser criativo! Isso não conta, tá? Realmente não conta!
Bem, que assim seja. Vamos dizer que capturei e liberei. Essa bota ainda era um
filhote, não é? Agora que o devolvemos ao seu habitat natural, ele nadará até o
oceano e voltará bom e gordinho.
Isso. Vamos com isso.
Enquanto eu refletia sobre essas questões, Aisha pescou seu quarto peixe do
dia.
Sinto muito, Sylphie, Roxy… Acho que vou ser o brinquedo da minha irmã mais
nova esta noite…
As coisas estavam ficando barulhentas do meu outro lado. Olhei bem a tempo
de ver Norn pescar um peixe.
Era um momento comovente. Deixando todo o resto de lado, fiquei feliz por
termos feito isso.
Nós continuamos por mais algumas horas, mas assim que o sol começou a se
pôr, era hora de encerrar nossa expedição.
— O quêêê? Já?
O tempo voa quando você está se divertindo. Eu poderia entender como elas se
sentiam. Ainda assim, a verdadeira diversão viria um pouco depois.
Era um ponto justo. Os monstros nesta área não eram fortes, mesmo em
grupos. Com Roxy e eu presentes, era difícil imaginar um cenário em que Norn
ou Aisha pudessem se machucar.
Mas isso não era motivo para ceder às suas exigências. Se eu cedesse,
passaríamos a noite toda ali.
Mesmo se eu não tivesse planejado nada para a noite, já era hora de arrastá-las
para casa.
— Ei, qual foi. Se eu ficasse sério, poderia pegar todos os peixes que eu
quisesse…
Isso era verdade, em certo sentido. Talvez eu não fosse o melhor com uma
vara, mas poderia eletrificar a água ou provocar uma explosão subaquática!
— Tuuudo bem…
— Tá bom.
Antes de sairmos, parei por um momento para congelar com minha magia os
peixes que pegamos. Poderíamos levá-los para casa para mais tarde. Eu pensei
em grelhá-los para um lanche no caminho de volta, mas deveria aparecer em
uma festa com fome, certo? O peixe poderia esperar um ou dois dias.
— Chegamos!
— Parabéns!
No instante em que colocamos os pés dentro de casa, fomos recebidos por
uma explosão de aplausos. Uma ovação esparsa, mas entusiástica. Sylphie,
Lilia e Zenith estavam paradas no saguão, esperando por nós.
Zenith não bateu palmas, mas acho que vi uma sugestão de sorriso em seu
rosto.
— Hein?!
Tomando isso como nossa deixa, Roxy e eu nos juntamos aos aplausos.
Norn se virou para olhar para nós, com os olhos arregalados de surpresa, e
murmurou “Hein?” mais uma vez.
Dando um passo à frente com um sorriso, empurrei uma Norn confusa e uma
Aisha duvidosa para frente.
A sala de jantar estava cheia de decorações simples, mas atraentes. Não havia
bandeiras grandes penduradas ou algo assim, mas tínhamos algumas flores
muito bonitas nas paredes, e havia velas brilhando por todo o lugar.
A mesa estava coberta com uma toalha branca muito bonita, com pratos e
vasos de flores em cima dela. As bebidas já tinham sido servidas, mas ainda
não havia comida. Provavelmente colocariam na mesa mais tarde.
Aisha, por outro lado, estava sorrindo maliciosamente. A garota era esperta. Ela
devia ter percebido que estávamos tramando algo.
Depois que minhas irmãs se sentaram, Lilia ajudou Zenith a se sentar. Sylphie e
Roxy seguiram o exemplo.
Tudo isso foi ideia de Paul, em certo sentido. Ele até nos mandou uma carta.
Era triste que ele não estivesse conosco para ver isso acontecer. Pensar nisso
fez meu peito doer. Mas para o bem dele, assim como o nosso, eu realmente
queria que nos divertíssemos.
Norn e Aisha tinham toda a vida pela frente. Eu não queria que elas ficassem
presas ao passado para sempre. Claro, dar uma longa palestra sentimental não
era a maneira certa de definir o clima que eu queria. Poderíamos poupar
nossas memórias dos tempos difíceis e dolorosos que passamos, os
momentos mais sombrios que enfrentamos ao longo da vida. No mínimo, pode
ajudar a saber: Já passei por coisas piores antes.
Agora, era hora de olhar para o futuro. E então, parei de falar e levantei meu
copo.
— Saúde, pessoal!
— Saúde!
Todas, exceto Norn, que ainda estava olhando para mim com os olhos
arregalados, silenciosamente levantaram seus copos. Aisha estava sorrindo
ainda mais amplamente do que antes. Ela obviamente tinha descoberto tudo.
— Sylphie!
— Ah, certo.
Chamei o nome de Sylphie e ela se abaixou para pegar algo debaixo da mesa.
Isso era bom. Estávamos na mesma sintonia.
Um momento depois, Sylphie reapareceu com duas caixas grandes, ambas
lindamente embrulhadas. Ela passou uma para Roxy. Elas prontamente se
levantaram de seus assentos, caminharam até a cabeceira da mesa e
entregaram as caixas, Roxy para Norn e Sylphie para Aisha.
— Feliz aniversário!
Esta devia ser a primeira vez que vi aquela garotinha inteligente parecer
totalmente confusa. Ela podia ter descoberto o plano geral, mas claramente
não esperava um presente.
— Sim. Nós não comemoramos seu décimo aniversário, não é? Eu sei que é um
pouco tarde para comemorar, mas Rudy disse que um ano a mais não tem
problema.
— Ele disse…?
Um grande sorriso de felicidade se espalhou por seu rosto quando ela se virou
para Sylphie.
— Podemos abrir?!
Aisha estava abrindo antes mesmo de Sylphie terminar a frase. Norn, que
estava olhando de sua caixa para mim com uma expressão atordoada no rosto,
rapidamente seguiu o exemplo.
As duas compararam seus presentes alegremente. Era bom ver que tínhamos
feito um trabalho decente ao escolher eles.
Lilia, que estava assistindo de lado com um sorriso, se aproximou das duas
com Zenith ao seu lado.
Norn abriu o casaco para mostrar a Zenith, sorrindo de orelha a orelha. Ela não
reagiu de acordo, é claro. Isso me fez sentir um pouco para baixo, apesar de
tudo.
Zenith sempre foi o tipo de pessoa que ficava toda agitada com esse tipo de
coisa. Eu ainda me lembrava de como ela ficou entusiasmada na minha festa
do quinto aniversário e seu orgulho ao me presentear com um livro
cuidadosamente escolhido. Se não fosse por sua condição, provavelmente
estaria gritando de animação com sua filha. Vê-la tão inexpressiva me deixou
triste.
Claro, se ela se recuperasse e soubesse que Paul estava morto, não havia
garantia de que sorriria como costumava. Ainda assim, era doloroso vê-la
assim, nem triste, nem feliz, apenas sem emoção.
Zenith sorriu.
— O qu…?
— Ela… sorriu?
Lilia, Aisha, Sylphie e Roxy estavam olhando para Zenith com surpresa.
— Mamãe…?
—…
Zenith se abaixou e acariciou a cabeça de Norn, então fez o mesmo com Aisha.
Seus movimentos estavam ainda mais suaves do que o normal. Ela estava feliz,
feliz em ver suas meninas crescendo.
Lilia colocou suavemente os braços em volta dos ombros de Zenith. Seu rosto
estava mais emocionado do que nunca. Com sua expressão vazia de costume,
Zenith estendeu a mão e acariciou suas mãos. Lilia teve que morder o lábio
para não chorar.
Depois de levar Zenith para seu assento, Lilia voltou para oferecer a Norn e
Aisha outro presente.
Aisha, por outro lado, hesitou. Provavelmente teve algo a ver com ganhar o
mesmo presente que sua irmã.
— Hmm, Mamãe? Tem certeza de que também posso ficar com um?
Isso parecia… uma mudança. Lilia não passou anos martelando na cabeça da
filha as palavras você é apenas uma criada?
— Claro, eu ainda espero que você mostre a Madame Norn e Mestre Rudeus o
respeito que merecem. Estamos entendidas?
— Tá, Mamãe…
Mesmo assim… apesar do que ela estava dizendo, eu não a tinha visto
importunando muito a filha ultimamente. Nem mesmo sobre seu tom de fala.
Eu tinha que presumir que ela mesma tinha pensado um pouco nas coisas nos
últimos meses.
Quando Lilia voltou ao seu lugar, Zenith estendeu sua mão para colocá-la em
seu ombro.
— Senhora…
—…
Quase parecia que tinham acabado de ter uma conversa sem palavras.
Enquanto eu estudava seu rosto, alguém puxou minha manga por trás.
— Hm?
Olhei para trás e descobri que era Sylphie. Ela estava carregando uma terceira
caixa, aquela que não era para minhas irmãs. Certo, não posso esquecer a
próxima parte…
— Roxy.
Quando chamei seu nome, Roxy se virou… e piscou surpresa ao ver Sylphie
parada ao meu lado com a caixa.
Roxy obedeceu. E quando ela viu o chapéu como seu presente, arregalou seus
olhos o máximo possível.
— Bem-vinda à família, Roxy. Vamos tentar o nosso melhor para ser como
Zenith e Lilia, viu?
O sorriso no rosto de Sylphie enquanto ela dizia essa frase só poderia ser
descrito como angelical.
Diante de seu poder esmagador, Roxy mordeu o lábio, olhou ligeiramente para
baixo e apertou o chapéu contra o peito. Depois de um momento, ela conseguiu
falar as palavras
— O… obrigada, Sylphie.
Eu podia ver as lágrimas brilhando em seus olhos.
Eu não ouviria sobre isso por um bom tempo, mas de acordo com Roxy, este foi
o momento em que ela sentiu que Sylphie realmente a aceitou em nossas
vidas.
Em primeiro lugar, Lilia fez um grande bolo. Era um tipo de bolo fofo, mesmo
que não houvesse creme. Em vez disso, havia frutas secas no recheio. A massa
em si tinha um lado ligeiramente amargo, mas a doçura das frutas equilibrava
lindamente.
Ah, isso desperta algumas memórias… Como será que Eris está?
Onde quer que ela estivesse, eu tinha que presumir que estava alegremente
abrindo caminho pela vida. Será que não teria até casado, igual eu?
Nah, provavelmente não. Não havia homem no mundo que pudesse lidar
com aquela garota.
Quando perguntei a Lilia sobre o bolo, ela explicou que era um doce tradicional
de Asura. Muitas famílias faziam um sempre que havia algo que valesse a pena
comemorar. Paul odiava o sabor, então quase nunca fazíamos um. Era um
pouco divertido ouvir que o homem era um comedor exigente na sua idade,
mas isso era a cara dele.
Sylphie ajudou com este bolo e parecia confiante de que poderia fazer um
sozinha na próxima vez. Norn parecia estar realmente gostando, e eu meio que
também gostei.
Porém, Aisha não era tão fã. Eu podia vê-la tirando os pedaços de fruta
enquanto comia seu pedaço de bolo. Lilia a repreendeu um pouco, mas
enfraqueceu ao murmurar “Isso me lembra o Mestre Paul” com um sorriso no
rosto.
Infelizmente, Roxy levou sua tarefa um pouco mais a sério. Acho que ela pode
ter entendido mal o que eu estava procurando.
— Ouça com atenção, Aisha. Você é uma garota muito sortuda, então pode ser
difícil para você entender isso… mas às vezes, quando você está realmente
desesperada, pode precisar comer tudo o que puder. Até mesmo um escorpião
venenoso.
— Este bolo, por outro lado, é doce e delicioso. Seria errado não comer tudo.
Coma, por favor.
— Tudo bem.
O tom de Roxy não era muito áspero, mas seus argumentos eram intensos o
suficiente para que Aisha realmente parecesse um pouco assustada, pela
primeira vez. Fiel à sua palavra, ela começou a comer seu bolo em um silêncio
solene.
Bem, não. Isso não era justo. Ela me ouvia… na maior parte do tempo.
Ainda bem que eu tinha alguém por perto para fazer tudo certo. Muito bem,
Mestra!
— Então, você não precisa se forçar a terminar se estiver tão cheia que não
poderá dar outra mordida. Comerei o resto, se necessário.
Aliás, Roxy já tinha terminado o seu pedaço de bolo. Muito bem, Mestra.
Em todo o caso. Roxy parecia estar ficando mais amigável com minhas irmãs.
As duas também não brigavam mais uma com a outra. E tínhamos acabado de
ver a prova de que a condição de Zenith estava melhorando. Senti como se
nossa família tivesse se tornado mais próxima.
Fiz uma nota mental para dar uma festa ainda mais bem planejada quando as
meninas fizessem quinze anos.
Com isso, estávamos prontos para qualquer coisa. Tudo que tínhamos que
fazer era nos fechar em casa e esperar a neve cair. Eu poderia passar o tempo
aproveitando a companhia das minhas esposas.
Hmm. Eu adoraria se fosse uma chance de torcer por ela dos bastidores, mas
aparentemente essa não era a ideia…
Nosso prefeito havia realizado uma conferência com os líderes da Guilda dos
Magos e a Universidade para escolher os melhores candidatos para o trabalho.
Entre eles, uma pessoa havia se destacado muito. Esse indivíduo era um ex-
aventureiro bem experiente, com habilidades práticas em mágica ofensiva e era
um membro novato no corpo docente da faculdade, então tinha poucas
responsabilidades a serem transferidas para outra pessoa.
Em outras palavras, era Roxy. O grupo havia decidido rapidamente que ela era a
melhor opção possível. Pareceu uma conclusão compreensível para mim,
tendo em vista os diversos talentos dela.
— Espera um pouco… Como a Sylphie também acabou fazendo parte desse
trabalho?
— Bom, a Princesa Ariel também irá. Ela estava bem empolgada para conseguir
uma conexão com um membro da família real.
Ariel possuía uma rede de informações excelente. Ela devia ter escutado sobre
a situação e a definiu como uma oportunidade. Era difícil dizer qual era o nível
de conexão que ela ganharia nesse caso, mas a princesa sempre conseguia o
que queria.
— Ah, certo. Então, basicamente, vocês duas irão proteger tanto a Ariel quanto
essa criança?
Eu não tinha certeza se ele realmente contava, mas decidi não comentar.
— Acho que ficaremos bem, já que Sylphie virá junto… mas precisamos
proteger duas pessoas muito importantes, e o santuário que iremos visitar é
bem no fundo da floresta. Além de que eu também sou conhecida por cometer
alguns erros bobos nos piores momentos… Acho que estou um pouco ansiosa.
Também havia o grupo de aventureiros, claro, mas apenas contavam com duas
pessoas e era difícil saber se teriam alguma utilidade.
Em relação a aliados competentes, Sylphie era a única pessoa com quem Roxy
poderia contar… e, parando para pensar, Roxy nunca a viu em uma luta antes.
Eu conseguia entender seu medo.
— Será que está tudo bem nós três sairmos de casa? E a Lucie?
— Ela ficará bem — disse Sylphie, a qual tinha escutado em silêncio até então.
— Temos a Suzanne, além de que tenho certeza de que Lilia cuidará bem dela.
Isso era verdade. Não era como se eu fosse muito útil ficando aqui sem as
duas, de toda forma. E Lilia e Aisha tentariam ajudar da mesma forma. Era mais
importante trazer Sylphie de volta para Lucie o mais rápido possível, o que
significava que a melhor coisa que eu podia fazer era entrar para o grupo e
garantir que o trabalho prosseguisse sem problemas.
No dia seguinte, Roxy e eu fizemos nosso caminho para uma certa pousada
que atendia, principalmente, aventureiros de rank S. Era um lugar muito bom,
ainda melhor do que aquele em que levei Roxy e Sylphie antes.
— Sério? Eles têm jardins dentro das muralhas do palácio de Asura também?
Uma garota que parecia ter por volta de doze anos estava sentada na frente da
Princesa Ariel. Essa peregrinação deveria ser da chegada da maioridade, então
ela presumidamente teria quinze anos, mas definitivamente parecia mais nova.
No instante em que nos viu, caminhou para ficar entre nós e quem ela estava
protegendo. Seu olhar era desafiante, se não abertamente hostil.
— É um prazer conhecê-la. Meu nome é Roxy M. Greyrat e estou aqui para servir
à princesa como guarda-costas.
Ela provavelmente queria dizer algo como “Você obviamente é muito nova para
isso. O que a Universidade está pensando?” Eu apreciei que ela manteve esse
pensamento para si, mas eu não tinha certeza do porquê o fez. Talvez só fosse,
surpreendentemente, uma pessoa cuidadosa?
— Sim, eles estão se preparando para a jornada nesse momento. Por favor,
espere aqui por enquanto.
— Tudo bem.
Comecei a caminhar em direção a uma cadeira vazia, mas Roxy se dirigiu para
junto de Sylphie e Luke. A cavaleira retornou para sua posição anterior, onde
ficou com a postura dura e perfeitamente parada.
— Bom, deixe-me ver… sem contar com a minha jornada, mais ou menos seis
anos. Esse país agora é praticamente minha segunda casa.
— Ah… então isso não significa que irá se graduar no ano que vem? Que pena…
eu acabei de te conhecer e você já irá partir em breve…
— Creio que sim. Mas, desde que nossos países permaneçam em contato,
tenho certeza de que nos encontraremos novamente.
Hmm. Mudando de assunto, essa princesa de Ranoa com certeza era uma
gracinha.
Eu lembrava de ter escutado que a família real desse país estava repleta de
pessoas bonitas. Isso, aparentemente, era verdade. Ela estava quase no nível
de Ariel; não no mesmo, mas quase.
Além disso, Ariel certamente agia rápido. Parecia que, de alguma forma,
elas já eram amigas.
— Está falando sério?! Esqueceu o que aconteceu da última vez?! Esses idiotas
ferraram tanto que quase mataram a Tina e a Melanie! Eu não estou de acordo
com isso!
— O que quer que eu faça? Não somos nós que mandamos aqui.
— Isso não é o suficiente! Realmente está tranquila com isso? Realmente confia
em algum estranho para cuidar das suas costas lá?
A que estava na frente do grupo era uma moça grande e musculosa. Ela
parecia com Ghislaine, mas era ainda mais concreta. Seu corpo parecia ter sido
esculpido em pedra.
A segunda era uma mulher mais magra que deixava seu cabelo castanho-
escuro em um penteado para trás, expondo uma cicatriz em formato de cruz
em sua testa. Ela parecia ser ágil e atenta, além de que seus olhos fundos
sugeriam que já tinha vivido sua cota de batalhas.
Provavelmente ambas estão em seus trinta anos, elas estavam com espadas
em seus quadris. Me senti seguro em saber quem eram as lutadoras da linha
de frente do nosso grupo.
A que estava brava era uma mulher mais nova com um olhar carrancudo em
seu rosto. Estava mais para uma garota, na verdade. Talvez tivesse quinze
anos.
— Olha, você não pode ser a única na retaguarda. Não quero deixar nada passar
por mim, mas vai acontecer de vez em quando.
— Mas, mais importante, você tem que aprender a como trabalhar com qualquer
um se quer que as pessoas te respeitem. Aventureiros não têm o luxo de poder
permanecer no mesmo grupo para sempre, sabe?
Ela carregava um arco. Não era uma arma típica para um aventureiro; arcos não
tinham a mesma força que uma espada ou um feitiço. Eu havia passado anos
como um aventureiro viajante e havia conhecido somente uma pessoa que se
dedicava a isso.
— Gah.
No instante em que ela deu o primeiro passo no cômodo e viu meu rosto, parou
e me encarou com os olhos arregalados.
— Ah. É você.
Ela murmurou as palavras levemente, mais para si mesma do que para mim.
A garota carrancuda com quem ela estava discutindo antes se virou e falou, em
dúvida:
— Bom… sim.
Quando eu a conheci, não muito depois de Eris me deixar, ela era a mais nova
do grupo Contra-Flecha. Ela era uma garota teimosa e agressiva com uma
língua afiada, mas com uma cabeça boa.
Levou um tempo, mas Sara acabou se apaixonando por mim. Pelo menos disso
eu tinha quase certeza.
Eu estava bem confiante de que havia sido uma experiência traumatizante para
nós dois. Mas havia passado um tempo desde aquilo. Havíamos seguido
rumos diferentes e vivido nossas próprias vidas por anos até agora. Eu havia
me convencido de que isso tinha ficado no passado e que, de qualquer
maneira, nunca nos veríamos de novo. Mas parecia que o destino tinha um
plano diferente.
E, então, agora eu estava na interessante posição de ter que trabalhar junto com
a minha ex-namorada. Pelo menos éramos ambos profissionais, certo? Com
sorte, somente nos focaríamos na tarefa que tínhamos. Não é como se
desenterrar o passado fosse fazer muito bem para nós, de toda forma.
— Então tá bom! Por que não preparamos a comida antes da princesa sair?
— Ah, desculpa! Vou começar a cozinhar! Não fui muito útil nas batalhas, mas
posso lidar com isso. Na verdade, sou um bom cozinheiro!
—…
O único lado negativo era que eu tinha que evitar a Sara de vez em quando.
Eu não havia contribuído muito com o grupo. Todas das Amazonas eram
altamente habilidosas, além de que Roxy havia se encaixado perfeitamente no
grupo. Então não havia sobrado muito para eu ou Sylphie fazermos durante
nosso caminho para o santuário.
—…
—…
Mas, claro, Sara não estava muito feliz com isso. Ela estava me encarando
silenciosamente daquele jeito pelo que pareceu dez minutos seguidos até
agora.
Estava pronto para pedir ajuda a Sylphie, a qual estava sentada próxima de
mim… mas ela também ficou terrivelmente quieta por um tempo. Na verdade,
meio que parecia que ela também estava me encarando.
— Por que você, pelo menos, não fala com ela, Rudy?
Bom, uh… não é como se eu me importasse de ter uma conversa normal com ela.
Quero dizer, a atitude dela pareceu um pouco casual no começo, além de que eu
adoraria deixar o passado para trás…
Mas, mesmo assim, eu não tinha certeza de que conseguiria só rir dessas
lembranças. As feridas ainda doíam. Talvez eu deveria só ter apresentado ela
para Sylphie e para Roxy desde o começo. Mas nesse ponto ela já não estava
nem mesmo tentando falar comigo.
Eu deveria ter feito algo antes das coisas ficarem assim. Agora eu tinha que
consertar o meu erro.
Tendo dito isso, era um pouco difícil mudar o meu método a essa altura.
O maior problema era que, basicamente, eu não tinha nada que queria falar
para ela. Os únicos tópicos que passavam pela minha mente eram
relacionados ao nosso passado juntos, o que inevitavelmente levaria à
discussão do nosso terrível término. Isso somente nos deixaria com um clima
ruim. Ouvir isso também não seria muito bom para a Sylphie.
— Seria um prazer.
As coisas pareciam tão boas e felizes do outro lado do grupo. Eu queria fazer
parte daquela conversa. Talvez conseguisse convencer Roxy a tentar uma
fantasia de realeza da próxima vez que passássemos a noite juntos…
Eu olhei para ela um pouco confuso. Tínhamos bastante água para tomar,
afinal de contas. Ela olhou para mim um pouco incomodada.
— Havia algumas frutas amarelas boas crescendo um pouco para trás, não?
Odeio incomodar, porém gostaria de prová-las — continuou Ariel, virando seu
olhar para Sara. — Se importaria de pegar algumas para mim?
Sara pareceu suspeitar um pouco do porquê o pedido tinha sido feito para ela,
mas deu de ombros e se levantou.
— Obrigada. No entanto, creio que não seja seguro você caminhar pela floresta
sozinha. Rudeus, Fitz… poderiam escoltá-la, por favor?
Ah, cara. Então era isso que ela queria, huh… Acho que a Princesa já estava sem
paciência com nossa estranheza. Essa era a sua maneira de dizer: “vão logo
resolver isso entre vocês.”
— Acredito que o Rudy possa lidar com isso sozinho. Irei ficar aqui com você,
Princesa Ariel.
Mas não tinha necessidade de continuar com isso. Agora eu tenho Sylphie e
Roxy na minha vida. Meus problemas de performance eram coisas do passado.
Eu tenho uma família, até mesmo uma filha.
— Tudo bem.
Sara e eu seguimos até o ponto onde havíamos passado pelas frutas amarelas.
As encontramos facilmente e pegamos algumas que estavam crescendo em
arbustos baixos.
Certo, vamos recapitular. Somos velhos amigos que se reencontraram por acaso.
Não seria triste se só terminássemos o trabalho sem nem mesmo conversarmos?
É, isso serve.
— Então… você continua sendo aventureira, hein?
Sendo honesto, não foi uma das melhores maneiras de começar a falar.
Não era como se eu quisesse insinuar algo sobre as habilidades dela como
aventureira. Ela mesma sabia disso. Na verdade, esse só era o jeito dela.
— Ele entrou em outro grupo quando todos nós nos separamos. Não sei onde
está agora. Ele provavelmente ainda é um aventureiro, se assumirmos que não
esteja morto ou inválido.
— E você, Sara?
— Passei por vários grupos por um tempo. Esse grupo me recrutou logo após
eu chegar no rank A e eu fiquei com elas desde então.
Parando para pensar, elas provavelmente eram o grupo mais bonito que eu já
havia encontrado. A líder musculosa tinha um belo rosto e a vice-líder fazia a
cicatriz parecer bonita. A jovem maga era um pouco malcriada, mas
definitivamente também era fofa.
Mas é claro que nenhuma delas chegava aos pés de Sylphie ou de Roxy!
— Bom, eu acho que tem várias delas nos ranks mais baixos. Mas, após chegar
mais ou menos ao rank C, todos começam a buscar mais a habilidade do que
outras coisas, então não é tão comum.
— Hmm…
Eu não lembrava de ter visto nenhum grupo que se baseava em gênero no
Continente Demônio, nem mesmo nos ranks baixos. Mas aquele lugar era uma
exceção, dado o quão forte os monstros eram por lá.
— Essa foi a primeira vez que entrei em um, mas, falando sério, definitivamente
tem seus pontos positivos. Por exemplo, você passa a ter vantagem com
alguns clientes, como o caso atual.
— Ah, sim. Entendo porque iriam querer um grupo de mulheres para proteger
uma princesa.
Mas eu também acabei pensando na membra mais nova das Amazonas. Toda
vez que nós parávamos para uma pausa, ela se jogava na líder ou na vice-líder
do grupo enquanto soltava gritinhos de afeição. E, após ela perceber o quão
talentosa a Roxy era, passou a não largar dela. Ela tinha um hábito de mostrar a
língua para mim enquanto deslizava seus braços pela minha esposa.
— Hã? Ah, ela. Bom, às vezes aparecem garotas como ela; mas são menos
problemáticas — disse Sara enquanto dava de ombros. — É mais fácil porque
ninguém engravida nem nada assim, sabe?
Nós dois tínhamos algumas memórias dolorosas sobre nosso passado, mas
parecia que Sara estava aproveitando bem a vida.
— Enfim, e você?
— Hm… eu?
— Ouvi dizer que está casado e tem uma filha, não é? Parece que está
aproveitando bastante.
— A Suzanne. Ela me enviou uma carta há um tempo atrás, sabe? — Sara estava
começando a soar como se estivesse me julgando.
Trombar com um babaca desses no trabalho faria até mesmo a pessoa mais
calma do mundo ficar rabugenta. Principalmente se ele tentasse agir como se
você não existisse.
Com essas palavras, Sara se levantou rapidamente. Seu rosto estava vermelho
enquanto seus lábios estavam cerrados e tremendo.
Merda, agora eu irritei ela. Talvez isso realmente tenha sido uma má ideia… Certo,
chega. Já é tarde demais para isso. O que devo fazer?
— Err…
Antes que eu pudesse encontrar algo para falar, Sara se virou e sentou com as
costas viradas para mim.
Ela estava encarando o chão com uma expressão sombria. Para a minha
surpresa, parecia mais triste do que brava.
— Sara…?
— Hm, o quê?
— Eu sei que não quer que eu me desculpe, mas vou fazer isso de toda forma. A
maneira como terminamos não foi… hmm… não foi a melhor, não é? Então… eu
não sabia o que te dizer, eu acho. No entanto, não há desculpa para ter te
ignorado. Eu realmente sinto muito.
— Nah. Vou explicar o que aconteceu para ela, quando voltarmos com as frutas.
— Não, só mencionou que o nome dela era Sylphiette. E, também… eu não tinha
pensado que ela seria uma guarda-costas real, sabe?
— Acho que isso explica o porquê de vocês dois serem tão próximos —
continuou Sara.
Nenhum de nós falou por um tempo. Dessa vez, foi Sara quem quebrou o
silêncio.
— Espera, sério?
— Sim. Quer dizer, eu quis… me desculpar com você. Por muito tempo.
— Você queria pedir desculpas? Para mim?
— É. Depois que você foi embora, eu descobri sobre a sua… condição. E então
percebi o quão idiota tinha sido. Fiz você ser a pessoa ruim, não foi? Fiquei
brava e fiz escândalo. Nem, ao menos, parei para pensar que você devia estar
machucado também… ainda mais do que eu estava.
Esses eventos haviam me machucado muito, mas eu sabia que também havia
ferido ela.
— Então, quando Suzanne escreveu para mim e eu descobri que você estava
em Sharia… falei para mim mesma que iria te ver. Eu sabia que esse trabalho
iria nos trazer até aqui, então eu pensei… em pegar uma folga para me
desculpar. Pela maneira que agi naquela época, sabe…?
—…
— Mas aqui estou eu, ficando brava com você de novo. Nossa. Tem hora que
não consigo me aguentar…
Sara parou por um momento e, então, pressionou seu rosto contra seus
joelhos. Quando ela continuou, quase não era possível escutar a sua voz.
— Desculpa.
Eu queria colocar um braço ao redor dos ombros dela ou algo assim, mas
parecia um pouco inapropriado. Ao invés disso, abracei meus joelhos e os
encostei em meu peito.
— Agora já faz um tempo — falei. — Então vou ser honesto com você.
— Hm?
— Hã? O quê?
— A causa da minha condição era… uma garota chamada Eris. Nós tínhamos
atravessado o Continente Demônio juntos, mas então ela sumiu de vista do
nada. E foi nessa hora que eu te conheci, Sara. Eu pude dizer que você gostava
de mim. Eu não sentia algo tão forte por você, mas eu acho que queria seguir
em frente. Deixar o passado para trás, sabe…? Sendo honesto, eu só estava te
usando. — Parei para engolir a seco, e então continuei: — Então… é. Você
realmente não me deve nenhum pedido de desculpas.
Eu assumi que Sara ficaria brava comigo, mas eu estava bem com isso. Ela
tinha me falado toda a verdade; tinha sido tão honesta quanto pôde. Eu senti
que o justo seria eu fazer o mesmo.
No entanto, por algum motivo, ela não estava brava. Estava apenas me
encarando com um olhar de surpresa em seu rosto.
— Hm… mudei?
— É. Você nunca se abriu para mim dessa forma. Nem mesmo fingiu tentar.
— Você também não conversava com essa casualidade com ninguém. Ou, se
fizesse, ficava um pouco forçado e estranho.
— Espera, sério?
Parando para pensar, eu não estava falando de forma tão formal com ela, como
eu fazia. Isso provavelmente tinha algo a ver com a mudança da minha mente.
Antigamente, eu tinha certeza de que Eris havia me abandonado, então tinha
pavor de conflito ou rejeição. Eu era cuidadoso para falar da forma mais
educada possível. Dessa forma, não ofenderia ninguém; e também manteria
uma distância das pessoas.
— É. Depois daquela noite com você, eu… permaneci com o mesmo problema
por alguns anos. Constantemente.
—…
— Foi Sylphie quem me curou. Era a primeira vez dela, mas… ela fez tudo que
estava ao seu alcance. Até mesmo me deu um afrodisíaco. E, assim, conseguiu
me fazer funcionar de novo.
Contei alguns detalhes específicos. O rosto da Sara ficou vermelho, mas ela
escutou cada palavra, até mesmo se inclinando um pouco para frente. O clima
ficou um pouco vergonhoso por um tempo. Talvez eu tivesse sido
aberto demais.
— Mas, se ela fez tudo isso por você, por que foi atrás da segunda?
— Sabe… não acho que eu teria conseguido fazer algo assim por você. Mesmo
se tivesse me contado tudo naquela época.
—…
— Talvez essa seja a razão de você nunca ter se apaixonado por mim.
Olhando dessa forma, talvez parecesse algo transacional, mas era só um fato;
elas tinham me conquistado por estarem comigo quando precisei. Talvez isso
fosse o que diferenciava elas da Sara.
— Gah!
— Olha, vou deixar uma coisa bem clara agora. Eu posso ter te amado naquela
época, mas isso acabou no dia em que fugiu! Quero dizer, eu queria me
desculpar por ter sido uma idiota com você, mas isso é tudo. Não estou nem
um pouco interessada em tentar novamente depois de todo esse tempo!
Após colocar tudo isso para fora com grande vigor, ela bufou e virou sua
cabeça para o lado antes de continuar:
— E, com isso, pare de olhar para mim com esse olhar arrependido! Somos
apenas velhos companheiros de aventura, não é? Tente agir como tal!
Havia uma pinta de vergonha em seu rosto, mas, ao mesmo tempo, parecia
aliviada. Tinha levado um bom tempo, mas finalmente tínhamos chegado a
uma conclusão. Era um pouco agridoce, mas eu me vi sorrindo do mesmo jeito.
Após nossa conversa, consegui interagir normalmente com a Sara.
O meu jeito era uma mistura do meu modo “Linia e Pursena” com meu modo
“Nanahoshi”, com uma intensidade um pouco menor. Parecia ser o certo. A
performance de Sara também melhorou notavelmente. Ela ajudou o grupo com
uma habilidade incrível, atirando flechas exatamente onde mais precisavam.
No geral, seu papel era ficar um pouco atrás da linha de frente e controlar
tranquilamente o fluxo da batalha. Me lembrou da maneira que Suzanne
costumava gritar ordens amigavelmente para os membros do Contra-Flecha.
Sara tinha um estilo diferente, mas manteve a jovem maga delas sempre na
melhor posição e no seu campo de visão.
— Eu não quero iiiiirrr! Ainda tenho tanto para aprender sobre magia com a
minha querida Senhorita Roxy!
— Se controle, criança.
— Ah, já sei! Por que não entra no nosso grupo, Senhorita Roxy? Não se
preocupe, tenho certeza de que todas ficarão felizes em te receber!
— É bem gentil de sua parte me ofertar isso, mas estou feliz com meu trabalho
aqui. Além de que sou uma mulher casada…
— Não é nada demais! Se você perambular por um tempo, ele irá te tratar como
uma deusa quando voltar!
— Aaaaaah. Tá…
Antes que partissem, as Amazonas fizeram um leve esforço para recrutar Roxy,
mas ela recusou gentilmente. Isso foi algo bom. Se ela tivesse mostrado algum
interesse, eu teria partido direto para minha defesa patenteada de “grude e
choradeira.” Dignidade ficava em segundo plano nesse momento. Eu precisava
da minha Roxy exatamente onde ela estava.
— É. Se cuida lá fora.
— Parece que elas se dão bem, mas jamais comece a comparar elas em voz
alta. Se você rebaixar uma para elogiar a outra, elas irão lembrar para sempre.
Após isso, Sara me deu um soco leve no peito e partiu. Foi bem casual,
exatamente do jeito que despedidas devem ser.
Sylphie, Roxy e eu ficamos fora das muralhas da cidade por um tempo, vendo o
grupo seguir pela estrada.
— Como assim?
Olha só. Parece que houve um leve mal-entendido aqui, Senhorita Sylphiette…
— Nah, não nos amávamos. Somente estávamos um pouco sem graça e
perdidos juntos.
— Hmm. Tá… — Sylphie se inclinou para analisar o meu rosto, parecendo tudo,
menos convencida. — Me diga uma coisa, Rudy. Qual é o seu tipo, afinal?
Roxy moveu um pouco suas orelhas e se aproximou após ouvir isso. Parecia
que ambas estavam bem interessadas nessa pergunta. Será que ficariam
felizes se eu dissesse “garotas com peitos pequenos”? Parecia ser um tiro
terrível no meu próprio pé…
Parei por um momento para analisar Sylphie e, depois, Roxy. Levou um tempo,
mas então a resposta surgiu na minha mente.
— É claro que sim. Você me curou de algo que me afligiu por anos. Sou muito
feliz agora, e foi você quem tornou isso possível.
— Ah é? Hee hee hee… Então ainda bem que tive coragem naquele tempo.
Roxy estava olhando para mim um pouco insegura. Estava com uma expressão
que parecia dizer: E eu?
Passei meu braço pelo ombro dela e a puxei para um abraço. Claro que você
também é especial, Roxy. Ela havia me tirado daquela casa em que eu me
escondia e havia me ajudado a juntar os pedaços quando a morte de Paul
deixou meu coração despedaçado. Eu devia tudo a ela.
— De toda forma, acho que isso quer dizer que não há muitas garotas especiais
para mim por aí. Não precisa ficar insegura, Sylphie. Não vou tomar mais
ninguém como minha esposa. Eu te prometo.
— Tá… mas vou dizer mais uma vez, Rudy. Desde que ela seja especial para
você, e você seja especial para ela, não vejo problemas. Mas não acho que Sara
se encaixe nessa categoria.
De repente, me peguei lembrando de uma garota de cabelo vermelho que já
tinha sido especial para mim. Lembrei de seu sorriso, de como havíamos nos
esforçado no nosso caminho para casa partindo de uma terra distante, de
como ela havia chorado quando quase morri; e lembrei da última noite que
havíamos passado juntos.
— Uh, Sylphie?
— Sim?
— Não tenho certeza disso, mas… eu posso acabar quebrando essa promessa
de novo.
— Está tudo bem… Desde o começo não me importei com isso, lembra? Só
tenha certeza de trazê-la para eu conhecer antes. Não vou te amarrar, mas
também não vou deixar você casar com uma garota que não te ama.
— Tudo bem.
— Isso é uma promessa, viu? Sem amantes ou filhos secretos. Não esconda as
coisas de mim… a não ser que queira me deixar brava.
— Então tá! Estou interessada em ver como a terceira é, assumindo que você
consiga conquistá-la.
Isso era um bom sinal. Ela sempre me pareceu um pouco insegura desde que
havia casado comigo, e isso às vezes me preocupava.
Tudo bem, então. Vou ter que garantir mesmo que vou manter essa segunda
promessa, pelo menos…
Elinalise, por outro lado, tinha repetido de ano. Diferentemente de mim, ela era
uma estudante comum, e sua ausência de seis meses a deixou muito para trás.
Isso não pareceu incomodá-la nem um pouco, mas me senti um pouco culpado
por isso. Afinal de contas, durante esse tempo todo ela ajudou a minha família.
As coisas também iam bem em casa. Lucie estava crescendo rápido. Ela já
perdeu o interesse em ser amamentada, ultimamente tem comido papinha de
bebê ao invés de leite de peito. E, num outro dia, tinha falado comigo pela
primeira vez! Ela tinha olhado bem nos meus olhos e dito “Wudee.”
Eu, aparentemente, era o “Rudy” para ela, não o “Papai”, o “Papa” ou o “Sr.
Bobão”. Mas ninguém me chamava assim em casa, então eu não poderia
culpá-la. Ela estava chamando a Sylphie de “Mama”, mas isso ocorria porque
Sylphie tinha ensinado isso para ela de propósito. Talvez eu devesse fazer o
mesmo e mudar o meu nome para “Papa”.
Tá bom, tá bom. Isso não é nada fora do comum. Algumas crianças começam
a falar cedo e outras demoram um pouco mais. Sylphie e Lilia também ficavam
constantemente falando com ela. Provavelmente tinha algo a ver com isso.
Também havia um lado negativo, claro. Assim que crescesse, ela poderia
começar a dizer coisas como: “Não lave minhas roupas de baixo junto com as
do Papai!”
Hmm, na verdade, não. Por algum motivo, eu estava ansioso por isso!
Já que nossa filha não estava mais mamando, os peitos da Sylphie pararam de
produzir leite. Isso foi triste demais. Eu perdi minha chance de desfrutar aquele
líquido doce e excitante. Eles também voltaram ao tamanho normal. Claro que
eu gostava deles do jeito que eram, mas… parecia aquele momento em que o
tempo da fase bônus acabava.
O primeiro ano de Roxy como parte do corpo docente também parecia estar
prosseguindo tranquilamente.
A rotina da Zenith continuava a mesma. Quando Norn estava por perto, elas
comiam juntas; e quando Aisha ia para o jardim, elas arrancavam ervas
daninhas juntas. De vez em quando, ela segurava os dedos da Lucie
gentilmente e sorria para ela.
Essa foi uma grande mudança: após a festa de aniversário de Norn e Aisha,
Zenith começou a sorrir com certa frequência. Seus sorrisos eram pequenos e
discretos, mas todos os reconheciam pelo que eram.
Ela ainda não estava falando e suas expressões faciais permaneciam bem
limitadas. Mas eu queria acreditar que estava seguindo em direção à
recuperação.
Era fácil se matricular nessa escola, mas não era tão simples de se graduar. A
magia de nível Avançado e a magia combinada eram particularmente difíceis
de dominar. Poderia até ser impossível para quem tinha uma capacidade de
mana pequena.
Também havia muitas pessoas que tinham algum talento, mas decidiam que
dominar as magias de nível Iniciante era o suficiente. Além daqueles que
desistiam por diversos motivos pessoais ou financeiros. Em comparação, a
Classe Especial tinha uma vida fácil.
Eu não sabia quantos professores esse lugar tinha. No entanto, isso explicava o
porquê utilizavam um prédio separado inteiro como escritório do corpo
docente.
Era fácil encontrar a Roxy no meio da multidão, já que ela era a mais baixa
deles. Mesmo de longe, pude ver seus olhos brilhando de animação.
De alguma forma, ela conseguia ser fofa e legal ao mesmo tempo. Tive que
lutar contra o impulso de me gabar para estranhos de que ela era minha
esposa.
Eu não queria me intrometer nem nada, mas, com sorte, ela me falaria o que
tinha acontecido antes do novo ano começar.
— Parabéns. Que vocês possam trilhar o caminho da magia pelo resto de suas
vidas!
Linia e Pursena receberam seus diplomas com postura e dignidade. Foi muito
interessante vê-las crescer até esse ponto. Elas haviam deixado clara a
intenção de procurar namorados durante a época de acasalamento. Mas,
quando os diversos pretendentes surgiram, derrotaram todos e jogaram um por
um para o canto. No final de tudo, ficaram juntas em cima de uma pilha de
corpos murmurando: “Mas que caralho. Ficamos fortes demais” e “Que saco.”
Essas memórias passaram pela minha mente. Nesse momento glorioso, elas
eram a realeza; as duas Rainhas da selva, as quais eram invencíveis e
intocáveis.
Fazia, mais ou menos, um ano que ela tinha começado a ficar gripada
frequentemente. Isso, normalmente, vinha junto com uma tosse seca ou uma
febre repentina. Eu usava magia de desintoxicação para ajudá-la quando isso
acontecia, mas sempre voltava a acontecer pouco tempo depois.
Nanahoshi quase não saía de seu laboratório, no geral. Ela emergia quando
acontecia algo importante, mas, tirando isso, tinha passado o ano inteiro
enfurnada no lugar, só saindo para o almoço. Ela contava com seu estoque de
comida em conserva para o café da manhã e para a janta.
Na maior parte de seu tempo estava sozinha nesses cômodos, onde o sol não
a alcançava. Não era surpresa nenhuma que sua imunidade estivesse baixa. Eu
entendia que ela tinha suas prioridades, mas senti como se a garota precisasse
levar a sua saúde mais a sério.
— Por que não tenta descansar, pelo menos até essa tosse chata acabar?
Ela não estava errada; a pesquisa estava prosseguindo bem. Ela tinha
terminado a segunda fase de seu plano vários meses antes ao invocar, com
sucesso, uma tampa que cabia perfeitamente na garrafa pet que tinha obtido
na primeira fase.
Nanahoshi fez uma careta enquanto falava. Para ela, isso apenas significava
que mais um ano havia passado; mais um ano que passou presa neste mundo.
— Sim. Linia e Pursena já até pegaram seus diplomas. Parece que vão voltar
para casa em breve, então eu estava pensando em fazer uma festa de
despedida mais tarde. Você vai participar, não vai?
Eu não sabia se Nanahoshi considerava Linia e Pursena suas amigas, mas era
bom saber que estava disposta a ir se despedir. Ela ainda era, essencialmente,
uma reclusa, mas tinha ficado um pouco mais sociável do que antes.
— Acho que elas voltarão a ser princesas após chegarem em casa… Estranho,
né?
— Com licença!
— Estou entrando.
Nossas novas visitantes eram uma gata atrevida e uma cachorra com olhos
sonolentos. As pessoas de quem estávamos falando.
— Tá livre?
Algo parecia diferente nelas, mas era difícil saber o quê. Era por Linia parecer
um pouco nervosa? Ou por Pursena não estar com um pedaço de carne na
boca? Eu pensei ter sentido algo parecido com hostilidade no ar. Isso me fez
lembrar do dia em que nos conhecemos.
Então era hora de outro duelo? Elas queriam acertar as contas antes de deixar a
cidade?
Elas não falaram muito, mas pude sentir o peso de suas palavras. Seus olhos
estavam brilhando de determinação.
Talvez elas não quisessem voltar para casa como “perdedoras.” No fim das
contas, elas ainda tinham seu orgulho.
Bom, então tudo bem. Eu não gosto de lutar, mas vou abrir uma exceção para
vocês duas. Não seria certo recusar isso agora…
— O quê? E os experimentos?
Nanahoshi não parecia nada feliz com o que tinha acontecido. Mas Linia foi até
ela e a segurou pelo braço antes que pudesse se opor ainda mais.
— É, nós permitiremos.
Por outro lado, o nome Silente Setestrelas era relativamente bem conhecido
pelo mundo afora. Seu testemunho teria ao menos alguma credibilidade.
Hã…?
O lugar onde eu tinha ficado da última vez pertencia aos Dedoldia, mas eu tinha
a impressão de que também tinha escutado algo sobre a vila Adoldia. Não
tinha um segundo líder cuidando de lá?
— Só que pensamos melhor. Tem um mundo grande para caralho por aí, não é?
Além de que a vida é mais do que só mandar nas pessoas.
— Nós temos irmãs mais novas em casa. Uma de nós pode voltar e ensinar
para elas as coisas que aprendemos aqui.
— A que for a mais forte de nós duas vai voltar para ser a chefe. A outra vai
viver a vida que quiser.
O plano tinha algumas falhas, por assim dizer. Eu estava morrendo de vontade
de perguntar algumas coisinhas, como por exemplo: Vocês realmente podem
tomar essa decisão sozinhas? Sem nem perguntar para as pessoas de lá? Mas,
no final das contas, não era meu dever convencê-las. Elas claramente tinham
pensado bastante nisso, além de que eu conseguia entender o desejo de ter
controle sobre a própria vida.
— Quê? Vai ajudar elas a brigar? Tem certeza disso? — disse Nanahoshi com
um tom de desaprovação.
— Está tudo bem. Elas vão lutar de toda forma, comigo olhando ou não.
Além disso, eu não ia chamar a atenção para isso, mas isso não era
uma luta; era um duelo. Elas não estavam bravas uma com a outra, somente
estavam competindo pela superioridade.
— Valeu, Chefe.
Linia e Pursena disseram algumas palavras de gratidão antes de voltar a focar
no que tinham que fazer.
— Hissss!
— Grrrrrr!
— É? Bom, eu que cansei de você. Antes você corria feito uma bebezona atrás
de mim e, agora, está agindo como se fosse importante!
— Miau?! Eu era praticamente a sua babá! Não lembra daquela vez que eu te
acobertei quando você fez xixi na cama?! O que aconteceu com aquilo de que
“os Adoldia nunca abandonam quem os ajuda”, hein?!
— Para começo de conversa, aquilo foi tudo culpa sua! Você que tinha
derrubado aquele brinquedo que o Vovô tinha te dado na água! Igual uma
idiota!
Bom, isso era interessante. Eu nunca tinha escutado uma discussão tão feroz,
mas que não tinha maldade nenhuma. Elas tinham se irritado bastante, mas eu
não conseguia perceber nem um pouco de ódio em suas palavras.
No final, foi Pursena quem perdeu a paciência primeiro. Uma única palavra,
“gorda”, tinha sido a gota d’água.
— Grrrrraaaaah!
Ela avançou para cima de Linia enquanto jogava o punho para trás e se
preparava para dar um golpe poderoso.
— Hissssss!
Linia reagiu com a agilidade de uma pantera, atacando com o seu próprio
punho…
— Guh…
— Ugh…
“Olhe para essa agilidade! Um belo gancho! E outro! E um direto! Uau, a Pursena
não liga para as defesas! Linia não consegue nem se aproximar. Se afastou um
pouco demais! Nooooossa! Um golpe brutal da Pursena! Que deus tenha
piedade da Linia!
“Pursena recua. Mas, ainda assim, seus olhos estão brilhando. Meus amigos,
ela é uma caçadora que está de olho em sua presa! Linia parte para o ataque
com seu punho direito enquanto Pursena dá um passo para a frente…
“Meu Deus! Viu esse tanto de sangue?! Linia a cortou com uma faca?!
“Não, foram suas garras! Ela estendeu suas garras e arranhou Pursena
enquanto dava aquele soco! É o mortífero soco gatuno, polido à perfeição! E
isso é permitido, meus amigos. Não há regras para essa luta!
“Linia bate e arranha! Bate e arranha! É uma sequência de cada um dos dois
lados! Ela está fazendo Pursena sofrer! Esse é um tipo totalmente novo de dor,
o qual ela não estava esperando! Santo deus! Linia acabou de abrir um buraco
no uniforme dela! Acabamos de chegar ao território da nudez acidental! Talvez
tenhamos que cortar para os comerciais, meus amigos!
“Olha só, a Pursena está partindo para o ataque do mesmo jeito! Ela não liga!
Agora ela é uma boxeadora, não uma adolescente envergonhada! Boom! E
acertou um gancho em cheio no corpo da Linia! Será que vai acabar assim?
Pursena irá finalizar?!”
— Se não tem regras, por que não estão usando magia? — perguntou
Nanahoshi.
— Ah, boa pergunta. Após a Pursena começar a briga corpo a corpo, a magia se
tornou irrelevante. Elas não estão dando tempo o suficiente para a outra
terminar o cântico. Sylphie ou eu ainda conseguiríamos lançar algumas magias
não verbais nessa situação, mas essas duas são guerreiras de natureza. E com
uma movimentação intensa dessas, seria difícil dizerem uma única palavra que
fosse. Um maratonista conseguiria recitar um poema enquanto corre pela
estrada? Não, isso seria impo…
— Linia parou de se mover! Talvez seja o fim, pessoal! Elas estão trocando
socos! Acabaram as esperanças? Os socos de Pursena conseguiram
neutralizar a velocidade de Linia! Ela não pode mais usar o “bate-e-corre!” A
borboleta perdeu suas asas? Ela caiu nas presas de sua adversária?
“Não! Ainda não acabou! Ela está desviando dos socos! Ela realmente está
desviando! Com seus reflexos de gato, se abaixa e esquiva! Está se esquivando
de tudo com a sua técnica apurada ao máximo! Ela ainda não levou um dano
sólido! E, agora, um contra-ataque! Um soco gatuno brutal! Pingos de sangue!
Acertou a bochecha da Pursena e a fez cambalear para trás!
“Linia deu um passo para frente para continuar com a vantagem. Meu deus, um
chute circular! Ela quer deixar aquela garota inconsciente! Aah!
Pursena… Pursena faz uma investida! Ela se joga no ataque! Meu Deus, ela
mordeu a perna da Linia! Ela mordeu enquanto ia em direção ao seu pescoço!
Ela é um cão de caça, meus amigos! Ela é uma máquina, uma besta enjaulada
com ódio! Seus punhos não são sua única arma!
— Sendo honesta, para mim só parece que estão caindo e esbofeteando uma à
outra…
— Elas parecem estar levando essa luta a sério, então por que você está
fazendo parecer uma grande piada?
— Desculpa…
De alguma maneira, começou com uma troca de insultos e, depois, seguiu para
a troca de socos. No início parecia uma luta de boxe de alto nível, mas no final
já tinha virado algo mais parecido com uma briga de criança, que só utilizava
arranhões e mordidas.
Pelo que pareceram horas, ambas ficaram rolando na neve, brigando uma com
a outra… mas, então, finalmente pararam.
— Eu consegui, porra…
Foi Pursena.
Ela estava com arranhões, mordidas e hematomas dos pés à cabeça. Sua
roupa estava em farrapos, molhada com neve e manchada de sangue. Algumas
de suas feridas ainda estavam sangrando.
Essa era uma mulher que tinha lutado pela vida… e triunfou.
—…
Pursena olhou para sua adversária caída e pareceu estar em um dilema por um
momento. Mas então virou o seu rosto de forma arrogante.
— Eu venci, Chefe.
Ergui minha mão para tocar a ferida aberta em seu ombro, mas ela afastou a
minha mão.
— Obrigada, mas não precisa. Essas são cicatrizes de honra. Eu prefiro mantê-
las.
— Ah… certo.
— Eu não sei se vou ver a Linia de novo, sabe? Então quero, pelo menos,
manter isso para lembrar dela.
— Hm, mas… vocês não vão ficar juntas pelo menos até deixar a cidade?
— Não, vamos nos separar aqui e agora. Já arrumamos nossas malas e tudo
mais.
Elas deviam ter combinado essas coisas antecipadamente, já que esse era o
lugar onde seus caminhos começariam a se divergir, então também deveria ser
onde se despediriam. Isso era meio poético.
— Só tenta pedir para alguém te ajudar com as feridas, tá? Mesmo que não seja
um mago.
Enquanto eu observava, Nanahoshi correu até ela. Ela colocou sua capa sobre
os ombros de Pursena para cobri-la e partiram para os dormitórios enquanto
Pursena se apoiava nela para caminhar. Ela realmente tinha um lado gentil.
Bom, agora…
— Está viva?
Ela não estava inconsciente nem nada assim, só estava olhando para o céu
com um olhar vazio em seu rosto.
Ela parecia estar tão mal quanto Pursena, se não estivesse pior. Suas roupas
estavam rasgadas e esfarrapadas, um de seus ombros estava sangrando
profundamente deixando a neve vermelha, além de que seu rosto estava
inchado por todos os socos que tinha levado. Havia um pouco de sangue
saindo de sua boca. Parecia ser mais um corte dentro da boca do que uma
ferida interna.
Olhando de perto, percebi que a roupa da Linia não estava mais cobrindo
adequadamente certas partes de sua anatomia. Tirei o meu casaco e coloquei
em cima dela. Não queria me distrair nessa hora. Ficou um pouco frio sem ele.
Com sorte, o resfriado da Nanahoshi não pioraria.
— Valeu, Chefe.
Linia moveu lentamente as suas mãos, que estavam tremendo, e as juntou
debaixo de sua cabeça. Ela também cruzou as pernas. Parecia que estava
deitada em um sofá, ao invés de um monte sujo de neve.
Ela tinha razão. Talvez eu não tivesse levado isso muito a sério.
Mas, ainda assim, a luta delas tinha sido, de fato, interessante. Era quase
como… uma luta feroz entre gatos? Ou uma batalha ardente entre dois
candidatos ao título?
— Tá tudo bem. Tenho certeza de que só pareceu uma rixa maluca para quem
via, não foi? Além disso, a vida se trata de se divertir mesmo.
Enquanto falava isso, Linia fez careta. Ela se virou para lamber um corte feio
em seu braço.
—…
Eu também olhei para cima. Era um dia cinza; um céu típico dos Territórios
Nortenhos. Teríamos mais neve durante a noite, sem dúvidas.
— Bom, você disse algo sobre viver da maneira que quiser. Tem algo em
mente?
— Sim, claro. Pensei em viajar um pouco por aí e, depois, abrir a minha própria
loja.
Bom, ela parecia confiante, pelo menos. Com um plano conseguiria, né?
Eu ainda não confiava muito nisso. Tinha essa sensação de que ela iria se
enrolar no meio de ideias mal pensadas e acabar entrando em problemas.
— Do jeito que pensei, vou rolar em dinheiro daqui a, mais ou menos, cinco
anos.
— Hmm… Ah, tá. Mas só para deixar claro, você pode vir pedir ajuda para mim,
caso precise.
— Miahaha. Quando eu ficar rica, vou deixar você pegar meu dinheiro
emprestado!
Sem considerar que ela tinha acabado de perder o duelo mais importante de
sua vida, Linia não parecia estar muito triste. Talvez estivesse feliz em ter se
libertado das responsabilidades da tribo Doldia, pelo menos por enquanto. Ou
talvez só estivesse fingindo.
De toda forma, parecia que ela tinha aceitado que esse capítulo de sua vida
tinha chegado ao fim.
Após o duelo foram direto para o dormitório, uma um pouco depois da outra.
Lá, desinfectaram e enfaixaram suas feridas, pegaram suas malas e deixaram
o campus em horários diferentes.
Nenhuma delas queria conversar muito. Elas nos pediram para dizer adeus
para Cliff e Zanoba por elas, mas somente isso. Nossos amigos provavelmente
ficariam tristes por não poder se despedir.
Pursena presumidamente voltaria direto para a Grande Floresta, onde iria
treinar exaustivamente para assumir a liderança da tribo. O futuro de Linia era
mais incerto, mas eu queria acreditar que ela encontraria seu próprio caminho.
Parecia que elas estavam decididas a nunca mais se ver. Isso era uma pena, se
levarmos em conta o quão próximas eram. Ainda assim, não pude deixar de
admirar suas decisões e determinações.
Havia um grande círculo mágico espalhado diante dos meus olhos. À primeira
vista, quase parecia que estava impresso em uma placa de pedra.
Eles têm nos ajudando com essa pesquisa há algum tempo, então eu pedi que
observassem sempre que estivéssemos à beira de um grande avanço.
Nanahoshi não gostou da ideia, mas acabou cedendo quando argumentei que
eles ganharam o direito de estar presentes.
Claro, a presença deles não era realmente uma recompensa. Eles estavam ali
no caso de o experimento falhar e Nanahoshi começar a se debater
novamente. Eu queria alguém ali para contê-la… e me ajudar a consolá-la
depois, por falar nisso.
Ter alguém de um gênero diferente para confortá-la era muito eficaz. Pode não
ser uma regra universal, mas era verdade na minha experiência, pelo menos.
Poderíamos levá-la a uma boa taverna e dar-lhe muita atenção. Pagar um
champanhe caro, esse tipo de coisa. Nós três não fazíamos exatamente o perfil
de atendentes de um host club, mas é a intenção que conta, certo?
Cliff deu aos esboços do projeto seu selo de aprovação. E graças à Prótese
Zaliff, Zanoba estava se tornando cada vez melhor na execução desse tipo de
trabalho de detalhe. Não vi nenhuma razão para fracassar.
É tudo ou nada…
—…
Assim que coloquei um pouco de mana nele, senti que a coisa começou a
sugar cada vez mais de mim.
Não foi nenhuma surpresa real, mas essa coisa era seriamente ávida por poder.
Eu não tinha certeza se outra pessoa além de mim poderia satisfazê-la.
Mas isso fazia sentido. Sylphie uma vez me disse que ativar um único círculo
mágico consome tanta mana quanto lançar um feitiço avançado. Essa coisa
era composta por mais de uma centena desses círculos.
Droga, devo parar? Essa coisa pode nos teletransportar para o meio do nada.
E se for um efeito de grande escala? Sylphie e Norn estão no campus hoje, não
estão? Espere, pode até levar a cidade inteira… e Lucie junto com ela…
Por outro lado, não parecia que algo muito dramático estivesse para acontecer.
E os círculos mágicos que criamos não eram capazes de produzir tais efeitos,
de qualquer maneira.
Tínhamos feito nosso dever de casa. Eu tinha certeza de que não erramos tanto
assim. Simplesmente não era possível.
— …!
A luz ficou cada vez mais forte… e então desmoronou em um único ponto.
Minha mana parou abruptamente de fluir para o círculo mágico e ele também
parou de brilhar.
—…
Havia algo verde bem no centro do círculo. Algo verde, preto e redondo – do
tamanho de um globo, mas de aparência muito mais suculenta.
— Siiiiim!!!
Nanahoshi levantou-se em um salto e cerrou os punhos em triunfo.
— Parabéns, Mestre Rudeus!
Zanoba e Cliff aplaudiram. Eles pareciam quase tão jubilosos quanto ela.
— Este padrão verde e preto me parece bastante ameaçador. Seria seguro para
mim segurar essa coisa? Não vai morder, vai?
— Você vai ficar bem, Zanoba. Só não deixe cair, por favor. Elas quebram mais
facilmente do que você imagina.
— Sim?
— Eu sei que já é um pouco tarde, mas não deveríamos ter convocado algo
como um melão Yubari em vez disso? Tiveram que produzir essas coisas
seletivamente, então definitivamente não existem neste mundo.
— Diga-me uma coisa, Rudeus… Você poderia realmente dizer a diferença entre
um melão normal e um especial?
— De toda forma, ainda não podemos ser tão seletivos — continuou Nanahoshi
com uma ligeira carranca. — Na verdade, eu estava tentando invocar um
repolho desta vez.
Este mundo tinha um vegetal folhoso muito semelhante ao repolho. Me
pergunto se poderíamos ter diferenciado um repolho invocado daquele que já
tem aqui. Eu não era um fazendeiro nem nada, nem Nanahoshi. Talvez o
conceito de invocar um vegetal fosse falho desde o início.
—…
Nah, está tudo bem. Fizemos um experimento com base em um desenho teórico
e obtivemos o resultado que esperávamos. Essa coisa é uma melancia autêntica.
Não podemos provar exatamente de onde veio, mas está aqui porque nós a
invocamos. Uma melancia é uma melancia, certo? Estou disposto a considerar
isso um sucesso.
— Hrm. Bem, dado que o experimento foi bem-sucedido, acho que devemos
comemorar esta noite.
Badigadi, Linia e Pursena não estavam mais por perto. Nossas festas tinham
ficado um pouco menos animadas com a ausência deles. No entanto, não
podia deixar que isso nos impedisse de nos divertir.
Não era exatamente a mesma coisa, é claro. Havia menos pessoas gritando
alto e mais membros da minha família. Não que isso fosse realmente um
problema.
— Ah. Obrigado.
Sylphie tinha parado ao meu lado e enchia meu copo toda vez que ele baixava
de volume.
— Ah… Saquei.
— E esta noite não vamos ficar fora. Quero ter certeza de que posso colocar
Lucie na cama.
Mas isso era uma pena. Sylphie fica muito fofa quando bebe. Ela se torna
incrivelmente afetuosa quando suas inibições diminuíam. Por outro lado, toda a
coisa de “ser responsável” era atraente à sua maneira. Eu tinha uma boa
esposa em minhas mãos.
— De quê?
Quando eu fiz isso, ela pulou direto no meu colo. De repente, eu tinha a nuca de
Roxy bem diante dos meus olhos e sua bunda pressionando minhas coxas. Que
esplêndido! Que benção!
— Só um pouco.
Com um olhar mais atento, vi o rosto de Roxy um pouco corado. Isso era
estranho. Como regra geral, ela não bebia muito álcool. Hmm… esta é a minha
chance de vê-la perder o autocontrole?
— Uff…
Roxy se recostou para descansar no meu peito. Eu podia sentir o peso de seu
corpo, e ouvir as batidas de seu coração.
Ah, uau. Poderia ver totalmente por baixo de seu manto se puxasse um pouco…
Certo, realmente quero isso. Devo ir em frente? Espere, talvez deva esperar até
que ela fique ainda mais bêbada.
— Ah, isso parece bom… Hmm. Rudy, deixe-me tentar mais tarde, tá?
— Claro, Sylphie.
Foi tão bom quando coloquei meus braços em volta das duas ao mesmo
tempo. Me fez sentir como se estivesse me afogando em felicidade.
— Rudeus…?
Certo, certo. Não deveria tê-la negligenciado assim. Ela não conhecia muito
bem a maioria das pessoas neste grupo. Nenhum deles era estranho para ela,
mas manter uma conversa provavelmente seria difícil. A garota estava sentada
em silêncio na minha frente há algum tempo.
— Não, estou bem. Mas há algo que gostaria de discutir com você. Se não se
importar.
— Certo. O que é?
Coloquei Roxy na cadeira vazia ao meu lado e voltei minha atenção para minha
irmãzinha.
— A Senhorita Ariel me convidou para entrar. Ela sabe que minhas notas não
são particularmente boas, mas acha que tenho “carisma natural”, suponho.
— Não brinca… Você sabia sobre isso, Sylphie?
— Sim, ouvi alguma coisa — disse Sylphie com um pequeno aceno de cabeça.
Também olhei para Roxy, mas ela evitou meu olhar. Aparentemente, eu era o
único que ainda não tinha ouvido falar disso.
— Desculpe por isso. Norn disse que queria te contar pessoalmente, então
mantivemos isso para nós mesmas.
— Ah, certo.
Não era grande coisa, mas Sylphie parecia genuinamente arrependida. Talvez
parte do motivo pelo qual ela permaneceu sóbria foi para ajudar Norn com essa
conversa.
Este último não era uma prioridade urgente. Era o tipo de coisa que ela poderia
trabalhar uma vez por semana ou algo assim, e eu não me importaria se ela
decidisse apenas colocá-lo em espera por alguns anos, mas seu treinamento
era algo que precisava manter todos os dias.
Norn não era uma má aluna, de forma alguma, mas também não era
particularmente talentosa. Eu não tinha certeza se ela se sairia bem com três
ou quatro responsabilidades distintas.
— Sim?
— Você acha que consegue fazer todas essas coisas diferentes de uma só vez?
Ela mordeu o lábio e ficou em silêncio. Provavelmente era algo com que estava
se preocupando.
— Tudo bem, mas você tem sua prática de espada e seu livro para trabalhar
também, certo? E essas eram as duas coisas que você queria fazer. Quer dizer,
o livro era originalmente meu trabalho, então não é tão importante… mas e
quanto ao seu treinamento? Suas aulas também ficarão mais difíceis no
terceiro ano.
Bem, ela estava decidida, pelo menos. Mas eu sabia, por experiência própria,
que era difícil se concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo. Quando
alguém tenta fazer duas tarefas simultaneamente, uma delas inevitavelmente
acaba sendo negligenciada.
— Hm, Rudy… Norn tem lidado com as coisas muito bem até agora.
— Espera, sério? Huh. Isso é muito tempo… — Isso significa que ela começou
isso antes mesmo de começarmos nosso treinamento de espada juntos.
— Vai ficar tudo bem, Rudy. Vou garantir isso. Norn ficará bem como membro
do Conselho Estudantil e não negligenciará nenhuma de suas outras
responsabilidades.
Fiquei surpreso com a firmeza do tom de Sylphie. Mas, bem, ela tinha uma boa
justificativa para sua confiança. Norn já estava conseguindo fazer tudo isso de
uma vez. Não vi nenhuma razão para continuar bancando o advogado do diabo.
— Bem, uau… Claro, parece que você tem trabalhado muito, Norn.
Fiquei muito feliz em saber que ela estava lá, tentando o seu melhor, mesmo
quando eu não estava por perto para ficar de olho nela. Havia esse…
sentimento em meu peito que eu não conseguia encontrar palavras para
descrever. Quente e confuso, talvez?
— Então tudo bem. Não tenho certeza se você realmente precisava da minha
permissão em primeiro lugar, mas, ainda assim, você conseguiu. Boa sorte com
o Conselho Estudantil, Norn.
— Obrigada, Rudeus! — disse Norn alegremente. — Eu realmente aprecio isso!
No final, como isso acabaria dependia apenas dela. Ainda assim, os adultos em
sua vida tinham a responsabilidade de apoiá-la e incentivá-la. Eu estava mais
do que disposto a torcer por ela.
Assim que nossa conversa chegou ao fim, Nanahoshi ergueu a voz do outro
lado da mesa:
— Ei, Rudeus…
Nanahoshi e eu começamos com este projeto por uns bons três anos atrás,
pensando bem. Mas parecia que foi ontem.
Em comparação com a fase um, avançamos pelas fases dois e três com
relativa facilidade.
— A fase quatro era… convocar uma coisa viva que atende a critérios
específicos, certo?
— Correto. Conheço alguém que tem muito conhecimento sobre essa parte,
então estou planejando pedir orientação a ele.
Ah, certo. Tinha que ser aquela “autoridade” em magia de Invocação que ela
menciona de vez em quando…
— Não é o Orsted, é?
— Não, não é. Ele também pode usar magia de invocação, mas é outra pessoa
totalmente diferente.
Mas descobri que Orsted poderia usar magia de invocação. Havia algo que
aquele cara não pudesse fazer?
Ah, certo. O Deus-Homem disse que era capaz de usar todas as técnicas
conhecidas no mundo, não disse…?
Ainda assim, presumivelmente havia uma diferença entre ser “capaz” de usar
um feitiço e ser um especialista em todo o campo da magia. Para inventar
coisas novas, é necessário um conjunto diferente de habilidades.
— Bem… eu ainda não te dei uma recompensa por ajudar com o experimento da
tampa de garrafa, certo?
— Oh. Hmm…
— Eu sei que você quer aprender um tipo diferente de magia de Invocação. Para
ser honesta, acho que é melhor aprender diretamente com alguém como ele.
Bem, sim. Eu não precisava aprender a convocar coisas de outro mundo, que
era o foco da pesquisa de Nanahoshi.
— Mas isso contaria como duas recompensas? Esse cara é tão incrível no que
faz?
— Definitivamente. Ele pode até ser capaz de consertar a memória de sua mãe,
por falar nisso.
— Não posso dizer com certeza, mas o homem está vivo há muito tempo. Há
uma boa chance de que ele saiba algo útil.
Não é como se eu tivesse aprendido muito sobre esse tipo de coisa no meu
antigo mundo, mas ainda havia uma chance de me lembrar de algo útil.
Elinalise também estava parada atrás de Cliff. No entanto, ela estava ocupada
brincando com as orelhas dele. Eu não tinha certeza de qual era o apelo, mas
ela parecia estar se divertindo.
— Bem… vocês dois também ajudaram, então acho que está tudo bem.
Roxy não a seguiu, mas apenas porque estava deitada em algumas cadeiras e
roncando.
Norn estava sentada ao lado dela, um pouco longe do resto de nós, mas estava
olhando em nossa direção. Era difícil dizer se ela estava interessada nisso ou
não.
— Está tudo bem para nós aparecer com um grande grupo, Nanahoshi? Não
seremos um incômodo?
— Mas não vai demorar algum tempo para ir ver esse cara?
De quantos meses de viagem estávamos falando? Talvez pudéssemos
economizar algum tempo na jornada com aqueles antigos círculos de
teletransporte… mas até chegar ao mais próximo exigia cinco dias na estrada.
No mínimo, era uma viagem de ida e volta de dez dias, e provavelmente havia
mais viagens esperando do outro lado, então tive que presumir que seria mais
ou menos um mês. Eu não queria deixar Lucie sozinha por tanto tempo.
— Não muito. Não vai demorar mais do que um único dia de viagem, na
verdade.
— Uau, ele está bem perto, hein? Você aparece lá às vezes ou o quê?
Então era uma viagem de ida e volta de dois dias. Poderíamos ficar alguns dias
e ainda estar de volta em uma semana. Considerando o quão curta a viagem
era, talvez pudéssemos até levar Lucie junto.
— Ele não está na vizinhança, e eu não o vejo há algum tempo, mas há uma
maneira de chegarmos até ele.
Tive a sensação de que enviar mensagens levaria um bom tempo, mas talvez
tivessem elaborado algum tipo de sistema de sinalização básica com
antecedência – algo como um sinalizador mágico.
Nanahoshi esperou até que todos nós assentíssemos e então continuou bem
baixinho:
Apenas um século atrás, os líderes dos dois estilos duelaram neste local, e o
Deus da Água ganhou o Santuário de seu dono. Aquele Deus da Água foi mais
tarde derrotado por um Deus da Espada diferente e, por sua vez, perdeu o
Santuário; mas, desde então, este local pertence ao único espadachim mais
forte de cada geração sucessiva, que ganhou o direito de ensinar os de sua
escola as suas técnicas.
Os alunos que conseguiam uma vaga no Santuário eram ensinados pelo melhor
professor possível e tinham a chance de suplantar-se como os mais fortes.
Este era um fato que atraia muitos jovens espadachins ambiciosos a este lugar
frio e isolado, apenas para vê-lo com seus próprios olhos.
Uma era uma mulher idosa, talvez com sessenta e poucos anos. A expressão
em seu rosto sugeria que era meio mesquinha; senão, era a imagem de uma
senhora gentil e inofensiva. No momento estava vestida para viajar, mas era
fácil imaginá-la com roupas mais casuais, recostada em uma poltrona
enquanto tricotava algo de lã.
Mas chega de rodeios. O nome da mulher era Reida Lia, e era a Deusa da Água
reinante. Ela aperfeiçoou a técnica definitiva de seu estilo, a Lâmina da
Privação, e se classificou entre os guerreiros mais fortes da geração.
Acompanhando Reida estava uma mulher jovem, talvez com 20 anos de idade,
cujo rosto tinha certa semelhança com o dela. Também estava vestida para
viajar e também carregava uma espada no quadril.
À primeira vista, esse lugar “sagrado” parecia uma cidade comum. Havia uma
pousada, uma loja de armas e uma guilda de aventureiros. Nas ruas estavam
os aventureiros e mercadores habituais, apressando-se em suas tarefas
particulares.
Reida avançou com dificuldade, fazendo um caminho mais curto para o outro
lado da cidade.
A jovem companheira de Reida olhou em volta para tudo isso com óbvia
curiosidade. Parecia particularmente intrigada com os uniformes finos que
muitos usavam, apesar do frio cortante.
— Mestra Reida… todos estão vestidos com roupas leves, mesmo estando tão
frio.
A única coisa à frente delas agora era uma vasta planície de neve com uma
única estrada correndo por ela como um vale. No final da estrada havia um
único edifício de tamanho considerável cercado por um muro.
— Você tem algum negócio com o nosso salão, senhora? — perguntou, seu tom
abertamente cauteloso.
A jovem apenas olhou para ela em dúvida, mantendo a mão onde estava.
— Ah, você não se lembra de mim, lembra? Bem, eu acho que não. Você era
muito pequena da última vez que estive aqui…
Havia uma luz nostálgica nos olhos de Reida, mas a jovem, Nina Falion, não
tinha nenhuma memória dela. A única coisa de que tinha certeza era que esta
velhinha era uma terrível ameaça.
A garota ao seu lado também não era desleixada. Nina percebeu que ela estava
pelo menos no mesmo nível que o seu.
— Meu chefe?
Muitos vieram a este lugar procurando encontrar Gall Falion. Mas a maioria
eram tolos presunçosos que se convenceram de que poderiam tirar o título
dele. Afastar essas pessoas era uma das responsabilidades atribuídas a Nina e
para seus colegas de treinamento.
— Me chamo Reida. Reida Lia. Não acho que preciso dizer mais, não é?
Apenas uma pessoa no mundo poderia se apresentar como Reida Lia. Era um
nome reservado para a líder do Estilo Deus da Água. Ninguém mais tinha
permissão para reivindicá-lo.
Observando Nina por trás enquanto ela caminhava, Reida falou com uma voz
pensativa:
— Devo dizer, querida, você é bastante inteligente para a sua idade. E educada,
por falar nisso! Você já chegou ao nível Rei da Espada?
— Não, ainda tenho um longo caminho a percorrer, infelizmente.
— Sabe? Tenho certeza que você é a mais forte dos jovens, pelo menos. Não
precisa ser muito modesta.
— Bem, eu posso ser a mais rápida, suponho, mas não a mais forte.
— Oho! Essa é uma boa atitude que você tem aí, querida. É uma pena que os
outros jovens do seu estilo não sejam mais parecidos com você.
Um único homem estava sentado lá. Seus olhos estavam fechados, como se
estivesse meditando. A mera visão dele, no entanto, fez Reida sentir como se
uma lâmina nua estivesse em sua garganta.
Reida era a Deusa da Água e a líder de um Grande Estilo – uma das três únicas
pessoas desse tipo no mundo. Apesar de sua idade avançada, não se sentia
menos poderosa do que no seu apogeu. Ela poderia virar qualquer espada de
lado sem qualquer esforço.
Mas este homem era a única exceção à regra. Seu nome era Gall Falion, e ele
era o Deus da Espada reinante.
— Ah. Você está aqui. — Abrindo um pouco os olhos, Gall Falion estudou o
rosto de Reida. Ele também olhou brevemente para a garota ao lado dela, mas
pareceu perder o interesse nela rapidamente. — Obrigado por marchar até aqui,
Reida. Não deve ter sido fácil com esses seus ossos cansados, tenho certeza.
— Certamente não foi. Mesmo assim, não é todo dia que você me pede um
favor, certo? Você despertou minha curiosidade, suponho. Uff…
— Então, para quem eu vou ensinar, e o quê? Você quer que eu ensine àquela
garota as técnicas secretas do Deus da Água ou algo assim? — Ao falar essas
palavras, Reida puxou o queixo para trás para indicar Nina Falion. — Parece
uma criança que sabe ouvir. Ela pode ser um tipo natural de Deus da Espada,
mas tenho certeza de que também poderia colocar algumas habilidades do
Deus da Água em sua cabeça.
Essa não foi a única razão pela qual veio, entretanto. Mera curiosidade não
teria sido suficiente para fazê-la ir da capital do Reino Asura até tal lugar.
— O que é?
— Você quer que eu ensine algumas coisas a um de seus alunos, certo? Bem,
eu quero que você mostre a um dos meus o estilo Deus da Espada. Mas não há
necessidade de ensiná-la.
Reida vinha se preocupando há algum tempo que sua aluna estrela tivesse
ficado muito satisfeita consigo mesma. O estilo Deus da Água era o estilo
oficial ensinado no Reino Asura, o que significa que contava com muitos
alunos. Mas era raro para eles refinarem seus talentos além de um certo ponto.
A garota que Reida trouxe era uma das exceções, mas ela não tinha outros
alunos com habilidades comparáveis para se testar, assim sua confiança se
tornou excessiva. Ela manteve seu treinamento com dedicação suficiente, mas
sem um verdadeiro rival para levá-la adiante, falhou em fazer um progresso real
no último ano.
Reida a levou a este lugar para lhe dar um gostinho de derrota, convencida de
que isso a beneficiaria enormemente a longo prazo. Mesmo que os jovens do
estilo Deus da Espada provassem ser inadequados para a tarefa, se ela tivesse
a chance de treinar com o próprio Gall Falion, a experiência ainda seria
profundamente valiosa. A natureza do Estilo Deus da Água era tal que quanto
mais forte seu oponente, mais você melhoraria treinando com ele.
Reida achou provável que Gall Falion tivesse a chamado aqui pelo mesmo
motivo – para ela esmagar algum aluno arrogante com os contra-ataques mais
violentos do Estilo Deus da Água, motivando-os a melhorar ainda mais.
— Heh heh. Sabe, nós poderíamos até mesmo ter minha pupila contra a sua, se
você quiser.
Esta não foi uma proposta espontânea, é claro. Reida esperava que Nina desse
uma lição de humildade à sua aluna. Jogá-la direto contra o Deus da Espada
era uma ideia, mas ela percebeu que seria mais humilhante perder para uma
garota de sua idade.
— Sim, Mestre.
Uma expressão feliz e aliviada passou brevemente pelo rosto de Nina antes
que ela saísse correndo pelo corredor.
No instante em que viu a garota, Reida sentiu arrepios nas costas. Parecia que
ela tinha acabado de encontrar um monstro selvagem na beira da estrada. Ela
quase alcançou sua espada por puro reflexo. A única razão pela qual evitou
esse constrangimento em particular foi por sua.
— Ei, você aí, Eris. Essa velha senhora é quem vai te ensinar tudo sobre o Estilo
Deus da Água.
— Prazer em conhecê-la…
Eris não fez nenhum esforço para esconder a carranca em seu rosto, mas ainda
assim baixou a cabeça.
— Odeio te desapontar, Gall, mas essa garota não foi feita para o Estilo Deus da
Água. Tentar com ela seria perda de tempo.
— Você acha que não sei disso? — disse Gall Falion com um aceno enfático.
— Você não tem que ensinar nada a ela. Apenas a treine usando seu estilo.
— Hmm…
Essa breve conversa foi suficiente para Reida discernir as intenções do Deus da
Espada. Ele queria que essa garota, Eris, aprendesse a lutar contra o Estilo
Deus da Água da maneira mais prática possível. Reida não entendeu o porquê,
no entanto. Não faria mal para a garota obter um pouco de experiência contra
um estilo diferente, mas chamar Reida aqui para isso era simplesmente um
exagero.
Do jeito que Reida via, a única razão de Falion querer que a garota ganhasse
experiência contra o Estilo Deus da Água, especificamente, era se ele esperava
que ela enfrentasse um praticante verdadeiramente poderoso do estilo –
alguém habilidoso demais para ser dominado apenas pela velocidade.
— Estou um pouco confusa aqui, Gall. Você está planejando que esta pequena
besta me assassine, ou o quê?
— Ah, por favor! Você já está com um pé na cova. Por que eu ainda me
incomodaria?
— Bem, me esclareça, então. Por que você precisa que eu a ensine como
funciona o Estilo Deus da Água? Em quem você está planejando jogá-la?
— O Deus Dragão, não é? Ora, ora… alguém com certeza tem, é…, ambição.
Você acha que ela pode fazer isso?
— Ah, bem, isso é bom. Que bom que você está confiante.
Era difícil dizer se isso era verdade. O Deus Dragão ficava em segundo lugar
entre os Sete Grandes Poderes. A ideia de tentar derrotá-lo pareceu a Reida
totalmente ridícula. E, ainda assim, havia confiança no rosto do Deus da
Espada, e a garota Eris parecia não ter nenhuma dúvida. Isso era
estranhamente atraente.
Reida se pegou pensando que isso poderia ser divertido, pelo menos –
supondo que estivessem sérios.
— Mas é o seguinte, Gall. Não estou interessada em perder tempo com alguém
sem talento. Vamos começar com ela contra minha pupila aqui, certo? Vou
brincar com ela assim que ela dominar a criança. E se ela se mantiver firme
comigo, então vou pensar em ensiná-la algumas coisas.
O orgulho de sua pupila estrela sofreria um golpe, mas ela também teria
bastante prática contra o Estilo Deus da Espada. E Reida iria participar de algo
muito… interessante.
Pela primeira vez em muito tempo, ela podia sentir seu coração dançando de
excitação. Ela era uma mestra do Estilo Deus da Água, sim, mas também era
uma espadachim comum no coração.
Enquanto pegavam as armas, Isolde levou a mão à boca e sussurrou para que
apenas Eris e Nina pudessem ouvir:
— Vou pegar duro, já que minha mestra me pediu… mas se você for apenas de
nível Santo, temo que isso não vai ser uma grande luta.
— Hmph…
Foi uma tentativa de provocação barata, claro… mas não demorou muito para
incendiar as jovens prodígios do Estilo Deus da Espada.
— Haa… haa…
Seus olhos estavam abertos e ela estava ofegando ruidosamente por mais ar.
Isolde a derrotou por completo. Sua espada não tinha sequer raspado sua
oponente.
No entanto, Isolde evitou tudo que Eris usou contra ela, e respondeu a eles com
contra-ataques afiados. Durante a luta, que durou menos de trinta minutos, Eris
“morreu” quase cem vezes.
—…
E, ainda assim, Isolde também estava deitada no chão, bem ao lado dela.
Seu prazer em esmagar Eris durou pouco. Nina Falion a derrotou.
Isolde sempre acreditou que o Estilo Deus da Espada nada mais era do que
uma confiança bruta e impensada na velocidade e no impulso. Ela pensava que
não representava uma ameaça real para um especialista nas técnicas refinadas
do Deus da Água.
Nina expôs esses pensamentos pelo absurdo arrogante que eles eram. Isolde
foi incapaz de reagir ao primeiro ataque que atingiu a lateral de sua cabeça
com força suficiente para deixá-la inconsciente.
A palavra que ele usou era interessante. Isso sugeria que não esperava que
Nina fosse a última de pé. Ela sentiu um pouco de decepção, mas isso foi
superado por seu prazer em demonstrar a seu mestre o progresso que havia
feito. Ela vivia pela emoção da vitória, não menos do que qualquer outro neste
salão.
— Não posso dizer que concordo, Gall — disse Reida em um tom de voz
indiferente.
Ela havia antecipado esse mesmo resultado desde o início. Uma fera furiosa,
incapaz de esconder suas emoções era a presa mais fácil possível para um
especialista no Estilo Deus da Água.
Eris era forte, com certeza, e tinha um enorme potencial de crescimento. Mas a
força não foi suficiente. Uma bola de pura fúria não tinha chance alguma contra
a abordagem do Deus da Água.
Reida também esperava a vitória de Nina, com não menos certeza. A garota era
profundamente habilidosa para sua idade, mas não tinha deixado isso subir à
sua cabeça. Muito provavelmente, a presença desta criança, Eris, manteve seu
orgulho sob controle. Nina, em sua humildade, dedicou-se ao treinamento. E
Isolde, em seu orgulho, havia negligenciado o dela. Foi por isso que perdeu a
luta.
No entanto, não havia emoção nos ataques de Nina. Não havia ódio em seus
olhos, nenhuma hostilidade em seu rosto, nem mesmo um reflexo em suas
bochechas. Para Isolde, foi como um raio vindo do nada. Ela provavelmente
acabou inconsciente antes mesmo de sentir que a garota estava indo em sua
direção.
— Ainda assim, parece um começo favorável. O que você diz, querida? Quer
aprender alguns truques do Deus da Água comigo?
— Bom, bom. Você está certa — disse Reida com um sorriso satisfeito. — Tudo
bem então, Gall. Que tal fazermos essas três treinarem em grupo por um
tempo? Isso deve aguçá-las um pouco.
— Sim, parece bom. Não adianta perder seu tempo se Eris não consegue lidar
com gente como uma Rei da Água.
Até que isso acontecesse, as três treinariam juntas como iguais, apontando as
deficiências uma da outra. Em teoria, seria benéfico para todas.
— Não me importo.
Para ter certeza, ela entrou nesta sessão por nada mais do que curiosidade.
Ainda assim, a oportunidade de praticar extensivamente com uma talentosa
aluna do Estilo Deus da Água parecia de fato valiosa. Nina derrotou Isolde de
forma decisiva. Mas ela não pensava nela, ou Eris, como abaixo de seu nível. E
aprendeu com a experiência em primeira mão o valor de competir de perto com
seus colegas.
Se não fosse pela presença de Eris no Santuário da Espada, Nina tinha certeza
de que teria ficado parecida com Isolde.
— Tudo bem. Então vamos com isso. Você trabalhará com seus professores
habituais pela manhã, mas à tarde vocês três podem se agrupar e treinar umas
com as outras.
— Entendi…
Isolde ainda estava inconsciente, mas Reida não tinha intenção de permitir que
ela recusasse.
Daquele dia em diante, Eris começou suas aulas de luta contra o Estilo Deus da
Água.
— Eris, você irradia hostilidade. Os praticantes do meu estilo são muito bons em
captar esse tipo de coisa. Isso denuncia exatamente quando você vai atacar, o
que torna fácil de reagir.
— Vejamos… Nina, você não mostra muita coisa antes de atacar. Como você
controla sua hostilidade tão bem?
Com toda a honestidade, Nina sempre achou estranho que o humor padrão de
Eris fosse “furiosa”. Fazia sentido ficar constantemente agitada, mesmo
quando não tinha nenhum inimigo real com quem lutar? Relaxar quando tinha a
chance parecia ser a jogada mais inteligente.
— Certo. Por que você não tenta mudar sua rotina diária, para começar? Tome
um banho demorado, coma uma boa refeição, deite-se em uma cama
quentinha e pense naquele seu amado namorado até cair no sono.
— Tudo bem…
Eris teria preferido manter seu estado atual de tensão constante. Havia uma
razão para isso: quanto mais ela treinava, mais conseguia entender o
quão incrivelmente poderoso o Deus Dragão Orsted era.
Ele tinha usado as mesmas técnicas de Isolde, mas as dele eram muito mais
precisas e habilmente executadas. E ela era uma Rei da Água, enquanto ele
nem era membro da escola.
— Honestamente, por que nunca consigo vencer essa garota ridícula? Isso está
começando a prejudicar minha autoconfiança…
— Huh?!
Nina não esperava que a garota realmente respondesse sua pergunta. A Eris
que ela conhecia era a definição de egoísmo. Ela nunca tinha mostrado
nenhum interesse em ajudar ninguém além de si mesma a melhorar.
— Ruijerd me ensinou isso. Você pode usar coisas como contato visual para
fazer as pessoas se moverem primeiro ou hesitar um pouco.
— Meu professor.
Nina ficou intrigada principalmente com as palavras de Eris. Ela não entendia
do que a garota estava falando, mas a técnica era, na verdade, uma habilidade
altamente avançada que Eris aprendeu com Ruijerd. Foi desenvolvida pelos
guerreiros do povo Demoníaco como uma aplicação consciente de certas
ações sutis que espadachins verdadeiramente experientes executavam por
reflexo.
Claro, isso significava que Eris não poderia começar a explicar como
funcionava.
— Isso mesmo.
—…
Isolde, por outro lado, achou a ideia muito mais compreensível. O Estilo Deus
da Água era focado principalmente no contra-ataque, então tinha seu próprio
conjunto de técnicas destinadas a encorajar o oponente a atacar primeiro.
— Sim, fui treinada para isso. Da próxima vez que nos enfrentarmos, talvez você
deva parar de se preocupar com isso e deve se concentrar em suprimir sua
hostilidade. Isso pode mudar um pouco as coisas.
— Vou tentar.
Ela estava disposta o suficiente para tentar isso, mas ainda não sabia como
“suprimir” sua hostilidade. Controlar seus sentimentos não era algo que
realmente tinha feito antes.
Claro, ela tinha ouvido comentários como este muitas vezes. No entanto,
Ruijerd a encorajou a fazer uso de sua agressão natural, e seus métodos de
treinamento levaram isso em consideração. Como resultado, ela nunca sentiu a
necessidade de mudar.
Embora sua hostilidade pudesse normalmente ser uma desvantagem, ela tinha
mais disso do que a maioria das pessoas. Ela preferiu usá-la como um recurso,
em vez de fingir que isso não estava lá.
— Então me pergunto o que devo tentar — murmurou Nina. — Isolde, como você
lida com ela?
— Deixe-me ver. No Estilo Deus da Água, treinamos para esse tipo de coisa
cobrindo nossos olhos e aprendendo a sentir quando um ataque está
realmente chegando, mas… acredito que a técnica de Eris é bastante comum
entre os guerreiros Demoníacos, então imagino que o Estilo Deus da Espada
tenha sua própria maneira de lidar com isso. Por que você não pergunta ao seu
mestre sobre isso?
— Vou tentar. Isso às vezes é frustrante… Oh. Parece que o sol está se pondo.
— Acho que então vejo vocês duas amanhã — disse Isolde com um sorriso. —
Sabe, tenho me divertido muito recentemente. Esta é a primeira vez que tenho a
chance de conversar sobre essas coisas com alguém que tenha mais ou
menos a minha idade.
Ela também queria dizer isso. Agora que Eris estava realmente falando com ela,
Nina percebeu que a garota tinha um conhecimento vasto e variado de
combate. Além de sua experiência prática, ela evidentemente tinha um
conhecimento superficial das técnicas do Deus do Norte e do povo Demoníaco
à sua disposição.
Era difícil se livrar de sua impressão geral de Eris como um cão selvagem em
roupas humanas, mas ela ganhou um respeito relutante por suas habilidades. A
garota não estava recorrendo a “truques baratos”, estava simplesmente usando
habilidades de outras escolas de combate.
— Hmph…
A atitude de Eris não mudou muito. Normalmente, ela não teria sequer dado
suas opiniões em um grupo como este, mesmo quando forçada a comparecer.
Mas esta noite, se lembrou do período em que estava aprendendo a espada
com Rudeus quando criança. Os dois sempre conversavam sobre seu
progresso e descobriam novas maneiras de melhorar, assim como Nina e
Isolde estavam fazendo.
A lógica era muito simples, quase infantil. Mas para Eris, foi poderosa o
suficiente para convencê-la a realmente se comunicar pela primeira vez.
— Bem, então já vou embora. Tenho mais treinamento com meu mestre esta
noite.
— Obrigada por sua ajuda hoje, Isolde.
— Não me agradeça, Nina. Você também está me ajudando. Posso sentir que
estou melhorando a cada dia.
Eris, por outro lado, continuou descendo o caminho que levava à pousada.
— Hmph.
Sem nem mesmo se virar, Eris marchou para frente. Com um aceno final para
Isolde, Nina correu atrás dela.
— Eris? Presumo que você continuará treinando por um tempo, mas assim que
terminar, lembre-se de pelo menos se enxaguar.
Desta vez, entretanto, Eris não apenas a ignorou. Em vez disso, se virou para
encarar Nina com uma expressão ligeiramente irritada no rosto.
— Uh…
Nina ficou sem palavras. Com toda a honestidade, ela disse isso
principalmente em uma tentativa de enganar Eris para agir de forma um pouco
mais civilizada. Mas, em teoria, a capacidade de relaxar era uma parte crucial
do controle de suas emoções. E então, ela decidiu seguir com isso.
— S-Sim, isso mesmo! E por outro lado, aquele seu namorado não ficará
interessado em você por muito tempo se estiver constantemente fedorenta.
— Isso não será um problema. Eu costumava pegar Rudeus abraçando minhas
camisas velhas e suadas o tempo todo.
— Uh, o quê…?
— Olha, esquece. Tudo o que sei é que os homens não gostam de mulheres
sujas, certo?
— Hmm… Bem, acho que Rudeus era meio exigente em manter as coisas
limpas…
— Ai está! E é por isso que você deve prestar mais atenção à sua higiene.
Eris parou para pensar por um momento. Memórias de Rudeus inundaram sua
mente. Ela geralmente fazia um esforço consciente para não relembrar o
passado… mas quando baixava a guarda, sempre acabava pensando nele. E
quando pensava nele, seus lábios se curvavam em um sorriso por conta
própria.
— Sim, não esperava nada melhor de você. Não se preocupe, quase desisti
disso… Espere. O que você acabou de dizer?
Demorou mais um ano para Eris chegar a uma posição de igualdade com a Rei
da Água Isolde.