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JOSE MURILO DE CARVALHO OS BESTIALIZADOS ORIO DE JANEIRO E A REPUBLICA QUE NAO FOI ome Sim x CAPITULO I REPUBLICA E CIDADANIAS* Ja ficou registrado que o fim do Império € 0 inicio da Repiiblica foi uma época caracterizada por grande mo- vimentacio de idéias, em geral importadas da Europa. Na maioria das vezes, eram idéias mal absorvidas ou ab- sorvidas de modo parcial e seletivo, resultando em gran- de confusio ideolégica. Liberalismo, positivismo, socialis- mo, anarquismo misturavam-se e combinavam-se das ma- neiras mais esdrdxulas na boca e na pena das pessoas mais inesperadas. Contudo, seria enganoso descartar as idéias da época como simples desorientacdo. Tudo era, sem diivida, um pouco louco. Mas havia I6gica na loucu- ra, como poderemos verificar no exame do problema da cidadania. Vimos também que o perfodo foi marcado, especial- mente no Rio de Janeiro, pelo rapido avango de valores burgueses. Velhos monarquistas, como Taunay, expressa- ram seu escandalo frente & febre de enriquecimento, ao dominio absoluto de valores materiais, & ansia de acumu- lar riquezas a qualquer prego, que tinham dominado a capital da Republica. Mesmo republicanos ardorusus, co mo Raul Pompéia, nao deixaram de estranhar 0 novo “ Versio ligeiramente modificada deste capitulo foi publicada em Dados — Revista de Ciémcias Sociais, 28 2): 148361, 1985. 42 espirito que dominava as pessoas. Segundo Pompéia, lon- ge iam os dias do romantismo abolicionista e do danto- nismo da propaganda. “O que ha agora é pio, pio, queijo, queijo. Dinheiro é dinheiro.” Todos se ocupam de ne- gécios e até a politica é dominada pelas finangas: “A Repitblica discute-se consubstanciada no Banco da Re- publica”.! Mas foi mudanga no campo da mentalidade coletiva. No que se refere aos princfpios ordenadores da ordem social e politica, o liberalismo jé havia sido implantado pelo regime imperial em quase toda a sua extensao. A Lei de Terras de 1850 liberara a propriedade rural na medida em que regulara seu registro e promovera sua venda como mecanismo de levantamento de recursos pa- ra a importacdo de mao-deobra. A Lei de Sociedades Anénimas de 1882 liberara o capital, eliminando restri- ‘ses & incorporacdo de empresas. A abolicéo da escravi- dio liberara o trabalho. A liberdade de manifestagéo de pensamento, de reunigo, de profisso, a garantia da pro- priedade, tudo isso era parte da Constituicdo de 1824. No que se refere aos direitos civis, pouco foi acrescentado pela Constituigo de 1891. 0 mesmo se pode dizer dos direitos politicos. As inovacées republicanas referentes & franquia eleitoral resumiram-se em eliminar a exigéncia de renda, mantendo a de alfabetizacao. © espirito das mudancas eleitorais republicanas era ‘© mesmo de 1881, quando foi introduzida a elei¢ao dire- ta, Até esta ultima data, 0 processo indireto permitia razoivel nivel de participagio no proceso cleitoral, em torno de 10% da populacio total. A eleicao direta reduziu este nimero para menos de 1%. Com a Republica houve aumento pouco significativo para 2% da populagdo (elei- 40 presidencial de 1894)? Percebera-se que, no caso bra- a sileiro, a exigéncia de alfabetizagao, introduzida em 1881, era barreira suficiente para impedir a expansao do elei torado. O Congresso Liberal de maio de 1889 ja o dissera abertamente ao aceitar como indicador de renda legal 0 saber ler e escrever. O liberal Rui Barbosa, um dos reda- tores do projeto da Constituigao de 1891, fora um dos principais propugnadores da reforma de 1881. Por tras desta concepgdo restritiva da participagdo estava 0 postulado de uma distincdo nitida entre socie- dade civil e sociedade politica. 0 ponto jé fora exposto com clareza por Pimenta Bueno em sua anélise da Cons- tituigéo de 1824. Pimenta Bueno buscou na Constituicao francesa de 1791 a distingdo, alias incluida na propria Constituigao brasileira, entre cidadaos ativos e cidadios inativos ou cidadaos simples. Os primeiros possuem, além dos direitos civis, os direitos politicos. Os ultimos sé pos- suem os direitos civis da cidadania. $6 os primeiros so cidadios plenos, possuidores do jus civitatis do direito romano. O direito politico, nesta concepedo, nao é um direito natural: é concedido pela sociedade aqueles que ela julga merecedores dele. O voto, antes de ser direito, € uma funco social, é um dever. Era esta, alids, a posi do de John Stuart Mill, talvez 0 autor que maior influén- cia teve sobre os proponentes da reforma de 1881. Como se sabe, Mill era também contra 0 voto do analfabeto. Exigia como condicao para o exercicio do voto até mes- mo a capacidade de fazer as operagdes bisicas da arit- mética? Sendo fungao social antes que direito, 0 voto era convedide aqueles a quem a sociedade julgava poder con fiar sua preservagio. No Império como na Repiblica, foram excluidos os pobres (seja pela renda, seja pela exigéncia da alfabetizacdo), os mendigos, as mulheres, os menores de idade, as pracas de pré, os membros de or- “4 dens religiosas. Ficava fora da sociedade politica a grande majoria da populacdo. A exclusio dos analfabetos pela Constituicéo republicana era particularmente discrimina- t6ria, pois ao mesmo tempo se retirava a obrigago do governo de fornecer instrugdo priméria, que constava do texto imperial. Exigia-se para a cidadania politica uma qualidade que s6 0 direito social da educagéo poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemo- critica e resistente a esforcos de democratizacdo. A Constituigdo de 1891 também retirou um disposi- tivo da anterior que se referia & obrigacdo do Estado de promover os socorros piiblicos, em outra indicagéo de enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos di- reitos sociais. 0 Cédigo Criminal de 1890 teve a mesma inspiraco. Tentou proibir as greves e coligagdes operd- rias, em descompasso com as correcdes que jé se faziam na Europa & interpretagio rigida do prinefpio da liber- dade de contrato de trabalho. Foi a ameaca de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forsou © governo a reformar logo os artigos que continham a disposigdo antioperéria (205 e 206). ‘A Repiblica, ou os vitoriosos da Reptiblica, fizeram muito pouco em termos de expansio de direitos civis e politicos. O que foi feito j4 era demanda do liberalismo imperial. Pode-se dizer que houve até retrocesso no que se refere a direitos sociais. Algumas mudancas, como a climinago do Poder Moderador, do Senado vitalfcio do Conselho de Estado e a introducdo do federalismo, tinham sem divida inspiragio democratizante na medida em que buscavam desconcentrar 0 exercicio do poder. Mas, néo vindo acompanhadas por expansdo significativa da cidadania politica, resultaram em entregar 0 governo mais diretamente nas mAos dos setores dominantes, tanto 45 rurais quanto urbanos. 0 Império tornara-se um empeci- Iho ao dinamismo desses setores, sobretudo os de Sao Paulo. O Estado republicano passou a no impedir a atuagio das forcas sociais, ou, antes, a favorecer as mais fortes, no melhor estilo spenceriano. Fora, aliés, Spencer tum dos inspiradores de Alberto Sales, 0 mais respeitado idedlogo da Reptiblica* Mas a propaganda republicana prometera mais do que isso. O entusiasmo e as expectativas despertadas em certas camadas da populacdo pelo advento do novo regi- me provinham de promessas democratizantes feitas nos comicios, nas conferéncias piblicas, na imprensa radical. Quem melhor caracterizou este lado da campanha foi Silva Jardim, ao lado de seu antigo mestre Luis Gama e de Lopes Trovao. Silva Jardim e Lopes Trovao, particu- larmente, eram grandes agitadores populares. Trovao fora um dos principais instigadores da Revolta do Vintém de 1880, que trouxe de volta 0 povo do Rio ao primeiro pla- no da politica apés auséncia de muitos anos. Silva Jardim foi protagonista de varias demonstracdes republicanas, algumas terminadas em tiroteio, como a de dezembro de 1888. Qual a inspiragdo de Silva Jardim? Era basicamente a retérica da Revolucao Francesa’ Contra os chefes evo- lucionistas do Partido Republicano, queria a transforma- do feita revolucionariamente nas ruas com apoio e parti- cipacdo do povo. Porém nunca expés sistematicamente suas idéias sobre como seria a participacéo popular no novo regime, Falava apenas na necessidade inicial de uma ditadura republicana, que Ihe poderia ter sido inspirada tanto por Robespierre quanto pelo positivismo, a ser depois legitimada por sufragio universal.* © radicalismo de Silva Jardim incomodava 0 grosso do partido e levou-o ao rompimento com a dirego parti- daria. Foidhe até ocultada a data da revolta e ele dela 46 participou por acaso. Mas o fez dentro de sua especiali- dade: Benjamin Constant, temeroso de que falhasse 0 golpe, pedira a Anibal Falcdo, amigo de Silva Jardim, que agitasse 0 povo. Nisso apareceu Silva Jardim, que de bom grado cumpriu a tarefa, liderando 0 coro da Marselhesa pelas ruas. Todavia, logo apés a proclamacio, foi siste- maticamente boicotado, Nas eleicdes de 1890 para a Cons- tituinte, ndo conseguiu eleger-se no Rio de Janeiro, princi pal palco de sua atuagao. Desiludido, como outros radi cais, com a Republica, que nao era a de seus sonhos, foi para a Europa, onde morreu em 1891, caindo no Vestivio. Mais pela simbologia da aco do que pelas idéias, Silva Jardim introduzira uma concepgio de cidadania que se aproximava do modelo rousseauniano: a visio do povo gomo entidade abstrata e homogénea, falando com uma $6 voz, defendendo os mesmos interesses comuns, Apesar de ser também contratual, esta concepcao difere do con- tratualismo lockeano, pois sua inspiracdo platonica sa- ienta antes os aspectos comunitdrios de integragéo de todos na vontade geral da soberania. O todo é mais do que a soma dos individuos que o formam, podendo por isso ditar o que seja a verdadeira vontade destes. A idéia de ditadura republicana adequava-se bem a esta concep- ‘so. Segundo ela, o ditador era a encarnacao da vontade coletiva e o instrumento de sua agdo, sem que fosse ne- cesséria elei¢ao formal, bastando a sancdo implicita, co mo expressamente admitia o manifesto do Partido Re publicano de Pernambuco de 1888, com a concordancia de Silva Jardim.” Outros temas dos republicanos radicais que reforcavam a idéia comunitéria eram os da pétria e fraternidade, ambos também inspirados na Revolucao Francesa. O tema de patria, em especial, é freqiiente em Silva Jardim, destoando do discurso dos republicanos conservadores que insistiam antes na federacdo. Estes 7 liltimos, ao falarem de patria, referiam-se a suas provin- cias, como foi o caso de Alberto Sales, que pregou aber- tamente o separatismo paulista em livro a que deu o su- gestivo titulo A Patria Paulista, escrito em 1887. Silva Jar- dim achava um erro a separacdo, apesar de compartilhar com os positivistas a idéia de que a tendéncia de todas as sociedades era formar pequenas pétrias* As razées da adocio desta visio integradora, comu- nitéria, organica das relagdes dos cidadéos com a socie- dade politica poderiam ter sido de natureza apenas tatica. © movimento republicano era constitufd de uma frente ampla de interesses, que abrangia escravocratas ¢ aboli- cionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, pro- fissionais liberais, pequenos comerciantes. A idéia de po- vo, de patria tinha 0 mérito de unir a todos, evitando em- baracos. Mas o importante aqui é apontar sua existéncia © 0 fato de ter sido util na instrumentalizagéo da atuacdo politica de certos setores que Iutavam por uma ampliacao da cidadania. Veremos como tal visio se relacionava com outras, particularmente com o positivismo. Além dos propagandistas civis, conservadores e radi- cais, outro grupo que se salientou na propaganda do novo regime foi o dos militares. Desde a metade do século, segundo 0 estudo de Schultz, havia entre os oficiais do Exército insatisfagio quanto ao que consideravam limi- tagdes de seus direitos de cidadania. Mas foi certamente na ultima década da Monarquia que a insatisfaco se tornou mais ruidosa ¢ se expressou através da idéia do soldado-cidadio. Havia neste movimento varias inspira- oes, algumas de natureza ideolégica, outras organizacio- nais, outras politicas, que néo é necessério explorar aqui? Basta dizer que a inspiracdo ideolégica mais forte foi p ositivismo transmitido aos jovens oficiais por Benjamin Constant. A visio profundamente antimilitarista de Com- 8 te levava os militares a se sentirem pouco vontade den- tro dos uniformes ¢ a procurar eliminar ao maximo a distancia que os separava do mundo civil através da rei- vindicagao da condicao de plenos cidadaos, cidadaos ati- vos na terminologia de Pimenta Bueno. Na prati reivindicagées centravam-se no direito de reuniéo e de livre manifestacao da opiniao politica. Houve mesmo um esforco eleitoral no sentido de levar 20 Congresso candi- datos militares. No fundo, o que se queria era maior peso nas decisdes politicas para a corporagao militar. A relacéo entre cidadao e soldado foi e continua sen- do complicada. Na Juta contra o absolutismo, um ponto importante era tirar da nobreza o monopélio das armas, era dar ao cidadio 0 direito de armar-se para a defesa de seus interesses. A Constituicdo americana incorporou em seu texto este direito como garantia do cidadao contra © Estado. A Franca revolucionaria, além de abrir o Exér- cito, isto é, 0 corpo de oficiais, & burguesia, criou também a Guarda Nacional, 0 que equivalia a entregar as armas aos cidadios, a criar 0 cidadao-soldado. A Guarda Nacio- nal brasileira de 1831 inspirouse no modelo francés e em parte cumpriu a missio de colocar nas maos dos ci dadios de posses a tarefa de manter a ordem. A milfcia cidad’, como era chamada, constituia sem divida um instrumento liberal e, pelo menos em sua concepgo ori- ginal, democratizante."” O problema do Exército no final do Império era 0 oposto: tratava-se de criar nio o cida- dio-soldado mas 0 soldado-cidadao. Eram os beneficié- rios do monopélio de portar armas, componentes da bu- rocracia estatal, que desejavam para si a plenitude dos direitos de cidadania. Para isso ndo s6 nao renunciavam & condigéo de integrantes do Estado, como se utilizavam da forca que esta condicao Ihes dava. Lutavam de dentro para fora, nao eram parte de um movimento da socieda- 9 de, Poderseia dizer que buscavam maior participagéo através do pertencimento ao Estado, isto é, niio se trata- va tanto de cidadania mas do que poderiamos chamar de estadania. A contradicao implicita nesta posicdo levou ao desen- volvimento de uma ideologia segundo a qual 0 Exército se identificava com o povo. Foi talvez o republicano Raul Pompéia o primeiro a propor esta formulac&o por ocasiio de um dentre os muitos atritos entre o governo e o Exér- cito nos tltimos anos da Monarquia. Raul Pompéia des- cartava a possibilidade de militarismo no Brasil, porque, dizia, “O Exército brasileiro ¢ muito povo para querer ser contra 0 povo e sobre 0 povo”. E continuava: “O Exér- cito é plebeu e é pobre, o Exército é a democracia arma- da”. Dentro do Exército, um dos melhores representan- tes dessa posigio foi Lauro Sodré, republicano fanatico, florianista e permanente conspirador. Para ele, os milita- res sempre se haviam colocado ao lado das causas popu- ares e democraticas, pois eram cidadios fardados: “Néo ‘h& no nosso passado nem na nossa historia uma pagina em que se registrem vitérias da liberdade contra a pre- poténcia, na qual ndo figure ao lado do povo, levantado para a defesa de seus direitos, 0 Exército que é o proprio Povo, que é a agremiagao de cidadaos unidos pelos lacos da disciplina’.” A proclamagao da Reptblica por milita- res ¢ a instalacdo dos governos militares ndo abalariam as convicgdes de Raul Pompéia. Pelo contrério, passou a ver no Exército a tinica classe organizada do pais. O fato de ter sido 0 Exército que fizera a Repiiblica néo era uma desonra para o povo mas uma honra para o Exército, que era 0 povo com armas. Sua agdo seria mesmo preferivel diante da apatia do povo paisano. Tratava-se naturalmente de uma ideologia do oficia- lato republicano e dos civis que o apoiavam. Versio mais 50 radical desta ideologia existia entre as pracas de pré. O jomal 0 Soldado, por exemplo, publicado no Rio em 1881, defendia o direito da classe militar de se representar pe- rante a nagéo e de “tomar parte na administragio do Estado”, Mas apelo era dirigido aos soldados e vincu- lava-se & reforma eleitoral de 1881, que teria privado as pracas do direito do voto. O jornal protestou dizendo que os soldados e o povo foram as “duas vitimas da usurpa: sao e da prepoténcia, e tinicos espoliados de todos os di- reitos, e que s6 tém deveres”. Reclamando da ma aceita- s40 do jornal pelo comandante do Batalhao Naval, o reda- tor respondeu que “O soldado nao é um servo da gleba, € um cidadao, tem deveres a cumprir e direitos a gozar”. Em carta ao imperador publicada pelo jornal, um ex-vo- luntério da Guerra do Paraguai queixava‘se com amar- gura e violéncia: em troca dos sacrificios como volunté- rio, perdera até a cidadania com a nova lei eleitoral.!5 A alianga, ou mesmo identidade, entre soldado e povo, mais particularmente entre soldado e operério, era defendida em termos mais radicais pelo jornal Revoluedo. Segundo este jornal, 0 soldado era o obreiro da guerra, o obreiro © soldado da paz. E conclamava: “Nés, soldados e obrei- ros, artistas ¢ operdrios, devemos nos confundir na praca piiblica bradando a uma voz: Revolucao!” 16 Esta versio radical, quase sans-cullotte, propondo uma alianca real e nao simbélica entre o soldado concre- to, € ndo a corporacdo, e 0 povo operario, e no 0 povo em abstrato, era minoritaria. Mesmo assim, retérica revo- lucionéria a parte, os porta-vozes desta posi¢ao eram pes: soas de algum modo vinculadas ao Estado. O jornal O Soldado, embora dirigido as pragas, era redigido por um alferes honorério do Exército, € 0s operarios a que se refere Revolucao eram sem dtivida os operarios do Esta- do. Vimos que o redator fora demitido do servigo public 51 € parte de sua exaltacio revoluciondria devia-se certa- mente a este fato. Os operarios do Estado merecem referéncia especial. Constitufam parte importante do operariado do Rio no final do Império e inicio da Republica, e foram outro se- tor da populagéo que viu a Republica como uma oportu- nidade de redefinir seu papel politico. Tratava-se princi- palmente dos operdrios dos arsenais do Exército e da Marinha, dos ferrovidrios da Estrada de Ferro D Pedro II, depois Central do Brasil, dos graficos da Imprensa Nacional, dos operdrios da Casa da Moeda e de alguns setores dos portuérios. Varios dos jornais radicais no fim do Império tinham ligagdo com estes grupos. Além de Revolugdo, havia a Gazeta dos Operdrios (1875), que de- fendia os operdrios dos arsenais; a Unido do Povo (1877), que se dizia érgio do funcionério piblico, do artista do operdrio; O Nihilista (1883), jornal dos operdrios, do Exército e da Armada; O Artista (1883), defensor dos ope- rérios da Tipografia Nacional, da Casq da Moeda e dos arsenais. Logo apés a proclamagio, houve tentativas de orga- nizé-los politicamente, seja através de elementos de fora, seja de dentro da classe. A primeira tentativa deveu-se as positivistas. Ainda em 1889, Teixeira Mendes reuniu- se com 400 operdrios da Unido e discutiu um documento que entregou a seguir a Benjamin Constant, entdo minis- tro da Guerra. As bases ideolégicas do documento, como era de esperar, sustentavam-se na nogdo positivista da necessidade de incorporar o proletariado a sociedade. As medidas praticas propostas caracterizavam uma legisla- sao trabalhista muito avancada para a época. Incluia jor- nada de sete horas, descanso semanal, férias de 15 dias, licenga remunerada para tratamento de satide, aposenta- 52 doria, pensdo para a vitiva, estabilidade aos sete anos de servigo ete.” Pouco depois, no inicio de 1890, houve varias tenta- tivas de criar um Partido Operdrio, ja af abrangendo tam- bém operarios do setor privado. Estabeleceuse uma dis- puta entre Iideres operérios, como Franca e Silva, que Iutava por um partido controlado pelos préprios operé- rios, € 0 tenente José Augusto Vinhaes, da Marinha, que organizou um partido sob sua lideranga, Vinhaes tinha suas bases principais entre os ferrovidrios, com incursées também nos arsenais e entre os portudrios, onde outro oficial da Marinha, José Carlos de Carvalho, também era influente. Na irdnica expressao de Franga e Silva, Vinhaes colocava-se como 0 S80 Gabriel do governo, intermedia- rio entre Deodoro e os operérios."® Vinhaes teve mais éxito que Franca e Silva em conseguir o apoio operario, ele- gendo-se para a Constituinte, depois transformada em primeira legislatura republicana. Na Camara, justica se Ihe faca, falou varias vezes em defesa do operariado e dos pobres em geral, protestando contra a carestia, propondo aumentos salariais, criticando a acdo da policia nas gré- ves, defendendo a ampliacdo do voto. Dizia-se mesmo so cialista ¢ mereceu dos adversérios a acusagio de petro- leiro e niilista, 0 equivalente ao terrorista de hoje, Por sugestdo sua, o governo introduziu a primeira legislagéo de protego ao trabalho do menor (1891). Organizou tam- bém um Banco de Operirios, a moda do Penny-Bank de Londres. Segundo ele, o banco possufa 6 722 acionistas em fevereiro de 1891. Vinhaes esteve ainda envolvido em diversas greves de natureza politica, comegando pela dos ferroviérios, em 1891, que ajudou a derrubar Deodoro, terminando na dos estivadores, ferrovidrios ¢ carroceiros, ‘em 1900, planejada como parte do golpe destinado a der- rubar Campos Sales. A maior conquista do Partido dos 53 Operarios que criara foi sem diwvida a de ter forcado 0 governo, através de ameaca de greve geral, a mudar 0 Cé- digo Penal nos artigos que proibiam a greve e a coligacao operarias, em dezembro de 1890. Vinhaes serviu de inter- mediario entre os operdrios e 0 governo. Seja qual for a avaliagdo de seu papel do ponto de vista dos interesses operarios, 0 importante é salientar que, como no caso dos militares, embora em escala menor, também aqui a tentativa de acesso a uma cidadania mais ampla se deu pelas portas ou pelos porteiros do Estado. No caso da aco positivista (e quase todas as lideran- sas republicanas que se preocupavam com o proletariado © faziam em funcdo da influéncia comteana), as conse- giigncias para a construcdo da nova cidadania foram ain: da mais sérias. A nogao positivista de cidadania nao in- clufa 0s direitos politicos, assim como nao aceitava os partidos © a prépria democracia representativa. Admitia apenas 0s direitos civis e sociais. Entre os ultimos, soli citava a educagio primaria e a protecdo a familia e a0 trabalhador, ambas obrigagdo do Estado. Como vetava a ag&o politica, tanto revoluciondria quanto parlamentar, resultava em que os direitos sociais néo poderiam ser conquistados pela pressio dos interessados, mas deve- riam ser concedidos paternalisticamente pelos governan- tes. Na realidade, nesta concepcio nao existiam sequer os, cidadios ativos. Todos eram inativos, & espera da acdo iluminada do Estado, guiado pelas luzes do grande mes- tre de Montpellier ¢ de seus porta-vores. A posicéo de Vinhaes tinha um sentido menos cas- trador, j4 que buscava organizar a aco operdria através de partidos, de movimentos grevistas e da acdo parlamen- tar. Mas nao ha que se negar que sua aco foi preventiva no sentido de retirar o movimento operdrio das mos de suas préprias liderangas, o que pode ser confirmado pela 54 maneira como agiu em 1890. Nesse sentido, representou © infcio de uma aco cooptativa do Estado em relagao & classe operdria, que teria amplo curso no Rio de Janeiro durante a Primeira Repiiblica, sobretudo no que se refere ‘aos operarios ligados direta ou indiretamente ao setor piiblico. De novo, a estadania se misturava & cidadania, se nao a sobrepujava Proposta diferente era a de Franga ¢ Silva, Vicente de Souza, Evaristo de Moraes, Gustavo de Lacerda ¢ ou- tros, que se diziam socialistas. As idéias de Franca ¢ Silva, expostas no Echo Popular, séo as que mais se aproximam do modelo classico de expansao da cidadania. A Repibli- ca, achava, viera possibilitar a extensdo do direito de in- tervir nos negécios piblicos a todos os cidaddos. Os ope: ratios, até entéo vivendo como forasteiros no solo da pé- tria, vinham agora reivindicar este direito através de uma organizacdo partidaria que se propunha defender seus in- teresses dentro das regras do sistema representativo. A reivindicago era reforcada pela afirmagio de nova iden- tidade para 0 operario, segundo a qual, embora margina- lizado na sociedade politica, ele constituia o principal far tor de progresso do Brasil ¢ de todas as mages.” Varias tentativas foram feitas nas duas primeiras décadas repu- blicanas de formar partidos socialistas operdrios, tanto no Rio quanto em Sio Paulo e outros Estados, nenhuma de- las com éxito, No Rio, houve em 1892 um Congresso So- cialista organizado por iniciativa de Franga e Silva, com a participacao de 400 operérios, do qual resultou o Parti- do Operério do Brasil. Em 1895, com a participagio de Evaristo de Moraes, foi fundado um Partido Socialista Operério. im 1899 surgiu um Centro Socialista, ¢ em 1902 foi criado por Gustavo de Lacerda ¢ Vicente de Souza o Partido Socialista Coletivista. Finalmente, em 1908, esti- vadores e cocheiros fundaram o Partido Operario Socia- 55 lista, em que de novo se verificou a presenga de Evaristo de Moraes. As propostas de todas estas organizagées eram as do socialismo democratico, isto é, lutar por maior participagao e conseguir reformas, especialmente sociais, através do mecanismo representativo. Nenhuma delas teve longa vida, muitas ndo chegaram a completar um ano.”! lez do sistema republicano, sua resisténcia em permitir a ampliacdo da cidadania, mesmo dentro da Ié- gica liberal, fez com que 0 encanto inicial com a Rept blica rapidamente se esvaisse e desse origem a decepgao © a0 desanimo. O desencanto fica transparente no Mani- festo do Centro Socialista aos Operdrios ¢ Proletarios, langado em 9 de janeiro de 1899 no Rio de Janeiro. Ai se afirma que, se o Império vivera sob 0 monopélio dos donos de escravos, a Republica “vai vivendo & custa dos mais repugnantes sindicatos politicos e industriais, gera- dores de uma perigosa oligarquia plutocratica tao pern- ciosa como a oligarquia aristocritica”. Em conseqiiéncia, prossegue 0 Manifesto, o Brasil se acha na mesma condi- do da Europa, onde os vicios do capitalismo s6 deixam a0 operario a opcio entre o socialismo reformador e 0 anarquismo revolucionArio. Na verdade, os socialistas bra- sileiros viram-se logo entre estes dois fogos: de um lado, 0s que defendiam a cooperagao direta com o governo, a estadania; de outro, e cada vez mais, os anarquistas, que rejeitavam totalmente o sistema politico. A partir do ini- cio do século, a corrente anarquista ganhou crescente in- fluéncia. Ela trazia um conceito radicalmente diferente de cidadania, Por ter influenciado um setor da populacao que exatamente buscava inser¢ao no novo sistema, merece exame mais detido. © primeiro jornal anarquista do Rio parece ter sido © Despertar, de José Sarmento, publicado em 1898, Em Tinguagem cheia de espanholismos, denunciadora da 56 origem do articulista, o jornal revela individualismo e espontaneismo extremados, rejeitando até mesmo a orga- nizacdo da propaganda. Defende como tinica arma operd- ria a greve, visando a greve geral que abolira o Estado A seguir, vieram O Protesto (1899), 0 Golpe (1900), a revista Asgarda (1902), 0 Trabalhador, A Greve (1903), a revista Kultur (1904), 0 Libertario (1904), de Neno Vasco, portugués ¢ talvez o mais culto dos anarquistas na época A exceco do iiltimo, todos estes jornais ¢ revistas foram editados por Elysio de Carvalho e Mota Assuncdo, incan- sdveis doutrinadores anarquistas® A partir de 1903, com a ctiagdo da Federacéio de Associagées de Classe e, espe cialmente, apés 0 Congresso Operario de 1906 e a subse- giiente criacdo da Federacao Operaria do Rio de Janeiro, aumentou a penetracéo do anarquismo entre os operdé- rios. Surgiram varias publicagées anarquistas vinculadas a organizacées de classe. Alguns exemplos so Accordem (1905), da Sociedade de Carpinteiros e Artes Correlatas; Novo Rumo (1906), de Alfredo Vasques; O Baluarte (1907), da Associacdo dos Chapeleiros, cujo secretario era José Sarmento; O Marmorista (1907), € principalmente A Voz do Trabathador (1908), 6rgio da Confederagao Operdria Brasileira, para ficar sé no Rio de Janeiro. Embora todos se dissessem anarquistas ou liberté- rios, havia algumas nuangas importantes entre eles. Ely- sio de Carvalho distinguia j4 em 1904 duas correntes prin- cipais: os anarquistas comunistas e os anarquistas indivi dualistas. O primeiro grupo, de longe o mais numeroso, segundo Elysio, seguia Kropotkine, Réclus, Malatesta, Hamon, ¢ contava entre seus membros Neno Vasco, Ben- jamin Mota, Fabio Luz e, estranhamente, Evaristo de Mo- raes. Eram pela revolugao social, pela aboligio da pro- priedade privada e do Estado, mas admitiam o sindica- lismo como arma de luta. O segundo grupo seguia a linha 57 de Max Stirner, de um exacerbado individualismo. Tam- bém pregava a abolicio do Estado, porém era contra toda forma de organizagao que nao fosse espontanea e queria a manutengao da propriedade privada apés a revolugao.2 A primeira corrente continuou a predominar nos anos seguintes. Apesar das diferencas, no que se refere & po- sigéo em relagio & autoridade e ao Estado, nao havia grande divergéncia entre os libertdrios. Todos repudia. vam qualquer tipo de autoridade, especialmente a estatal. Daf também uma aversdo profunda a luta politica atra vés de partidos e eleiges, Neste ponto eram inimigos irre- conciliéveis dos socialistas. Os velhos lideres socialistas do infcio da Republica, como Franca ¢ Silva, Vicente de Souza ¢ mesmo o jovem Evaristo de Moraes, tornaram-se objeto de ferrenhas criticas. J4 em 1898, por exemplo, Benjamin Mota polemizava com Franca e Silva, denun- ciando o cardter utépico ¢ autoritario da luta partidéria, © afirmava: “[...] no terreno da Iuta eleitoral socialistas autoritérios e socialistas libertarios so inimigos irre- concilidveis”* Em 1906, por ocasiio do Congreso Operdtio Regio- nal Brasileiro, deu-se o enfrentamento entre anarquistas © socialistas. A tendéncia da maioria ficou clara quando Pinto Machado, comentando mogao de apoio aos oper4- ios russos, reafirmou sua posi¢ao de socialista politico Porque, segundo ele, no Brasil nao havia a miséria que caracterizava a Russia, Houve enorme reagio da platéia, acompanhada de vaias, ea mesa teve de encerrar a ses. Sao, As resolugdes do Congresso consagraram os princi- pios do anarquismo sindicalista ao estilo da CGT france- sa. Pregavam a rejeigéo da luta pulitica partidaria; a or ganizagio de sociedades de resisténcia (sindicatos); o uso da luta econdmica através de greves, boicotagem, sabota- gem, manifestagées publicas; a formacao de federagdes 58 de sindicatos ¢ de uma confederacao, todas com amplo grau de autonomia. Fazendo o discurso de encerramento, Benjamin Mota enfatizou exatamente as resolucées refe- rentes & ndo-participacao na politica. O operario deveria “abandonar de todo e para sempre a luta parlamentar e politica”, 0 voto era uma burla e, ao recusé-lo, 0 operario poderia também recusar 0 tributo do sangue (servigo mi: litar) € outros tributos. A ago operdria deveria ser exclu sivamente econémica, contra os patrdes, sem a interme. diagdo do Estado, que, aliés, ndo passava de servo fiel deles24 A luta descia por vezes a acusacdes pessoais graves. Novo Rumo envolveu-se em briga com a Gazeta Operdria de Mariano Garcia, que acusara os anarquistas de receber verbas da policia e explorar os operdrios. Novo Rumo res- pondeu acusando a Gazeta de ser claque do deputado Al cindo Guanabara, de sustentar 0 jornal com.o dinheiro dos patrées etc. O ataque estendeu-se aos socialistas elei- torais em geral, acusados de nada terem feito para ins- truir e doutrinar os operérios, sé contribuindo para intri- gé-los. Além de Mariano Garcia, foram incluidos na eritica outros socialistas, como Vicente de Souza e Evaristo de Moraes.2* Em 1910 houve tentativa de envolver © operariado na campanha presidencial. A Federacao Operdria, anarco- sindicalista, recusou envolver-se. Como presidente da Re- piiblica, Hermes patrocinou o Congresso Operario de 1912, que propés a criagao de um partido da classe. A Confede- ragio Operdria reagiu através de violento manifesto, em que chamava a proposta de aborto, de afronta atirada a0 trabalhador. A politica, dizia 0 manifesto, era um cancro que destruia a vida do povo, uma rameira e cortesa que 0 embrutecia. E conclufa com um apelo: “Varrei a politica do seio das vossas associagées de classe para evitar rivali- 59 dades, guerras entre irmios e dar tréguas & burguesia exploradora!” 27 Outro aspecto relevante para a discussio da cidada- nia que surge na visio anarquista é sua posi¢ao com rela- sao a idéia de patria. Os conceitos de cidadania e patria referem-se a maneiras distintas de inserco em uma cole- tividade, a estilos diferentes de lealdade. Trata-se da dis- tingao que os classicos da sociologia colocaram em termos de dicotomias, mas que hoje ¢ vista como lados da mes- ma moeda. Refiro-me as oposicdes entre comunidade e sociedade de Ténnies, entre solidariedade mecAnica e or- ganica de Durkheim, entre grupos primarios e secund: rios de Cooley, ou mesmo entre o homogéneo e o hetero- géneo de Spencer, sé para citar as mais conhecidas. De modo geral, todas estas dicotomias fazem predominar em um pélo os elementos afetivos, familiares, comunité- rios, cooperativos, espontneos; no outro, os aspectos ra- cionais, instrumentais, artificiais, individualistas, confl tivos. A idéia de patria coloca-se nitidamente no primeiro pélo, enquanto a de cidadania, em sua versao liberal, fica no segundo. Patria — 0 préprio nome o diz — ¢ familia, € sentimento, ¢ integracao, é comunidade. Cidadania é calculo, ¢ pacto, é construgao, é defesa de interesses.* Historicamente, cidadania e patria, ou comunidade, surgiram juntas. © préprio nascimento do cidadio teve muito a ver com 0 aspecto comunitério. A cidade medie- val, na descrigao de Pirenne, ao mesmo tempo que instau- rava por contrato a liberdade, os direitos civis, criava a Participacao, a solidariedade — era uma comuna. A nivel mais amplo, a generalizacao da cidadania pela Revolugiio Francesa deu-se ao mesmo tempo que se difundia o sen- timento de nagdo e de patriotismo. Mesmo na Inglaterra, terra do contratualismo liberal, havia o substrato integra- tivo do orgulho de ser livre, considerado um patriménio 60 inglés. No contratualismo rousseauniano, como vimos, os dois aspectos, o instrumental e 0 afetivo, nfo se separa- vam, o que levava Rousseau a afirmar que nenhum Esta- do poderia ser muito grande, pois isto_inviabilizaria 9 participacdo comunitéria. 0. modelo que tinha em vista era certamente a Genebra calvinista, onde patria e cidade se_confundiam.® ‘A énfase excessiva em um dos pdlos pode inviabili- zar o outro. O foco exclusivo em nagao e patria pode ser instrumento para coibir a manifestagao do conflito, a de- fesa dos interesses divergentes e, portanto, o desenvolvi mento dos direitos pol{ticos e da sociedade politica. Por outro lado, a pura confrontacao de interesses, o raciona- lismo contratual liberal sem o cimento de uma lealdade mais ampla também pode levar & desintegracio social ¢ & inviabilizagao do proprio pacto. As doses em que se mis- turam os dois componentes podem variar de povo para ovo, mas para a construcdo de cidadania plena e estavel é necessério que ambos estejam presentes. Este equilibrio nao é encontrado entre os anarquis tas, que negavam totalmente a idéia de patria. Além de estar embutida na prépria concep¢ao doutrinaria do anar- quismo, esta negagio se viu reforcada no Brasil pela rea: cao do governo & presenga de ativistas estrangeiros entre 0s operérios. Logo que detectou tal presenca, o governo procurou agir no sentido de expulsar os militantes, imi- tando, alids, o que outros governos, europeus ¢ america- nos, jé faziam. Embora a primeira lei de expulsio 6 te nha sido aprovada em janeiro de 1907 (Lei Adolfo Gordo), vimos que desde 1893 ha noticias de ativistas estrangeiros sendo presos no Rio e expulsos do pais. Tal atitude pro- vocou revolta entre os militantes operdrios. Em 1897, fo- Iheto redigido em italiano e portugués convocava os ope- rérios para comicio contra o absurdo e criminoso ciime 61 de nacionalidade. A Lei Adolfo Gordo provocou reagées maiores. A Federacao Operdria de Sao Paulo Jangou um manifesto em que deixava clara sua posic¢ao com relagio a0 conceito de patria: “A nossa patria é 0 mundo, os nos- sos compatriotas so hoje os operdrios em geral e os es- trangeiros so para nés todos os capitalistas” 2° A reacio antipatria ficou ainda mais nitida nas cam- panhas contra a guerra ¢ contra o servico militar ob: gatério, Como ministro da Guerra, 0 marechal Hermes Props em 1907 uma lei de sorteio militar. A Federacio Operaria do Rio distribuiu manifesto violento contra a Proposta, afirmando que s6 0 povo pagava o tributo do sangue. Sobre patria dizia o manifesto: “A patria é de quem rouba e explora, a patria é 0 privilégio e 0 monopé- lio, a guerra uma monstruosidade filha do interesse e da rapina”. E terminava: “Nada de patria, trabalhadores, nada de militarismo”>" 0 Baluarte voltou varias vezes a0 tema. Terra Livre implicou até com a comemoragio da Batalha do Riachuelo, que dizia ter sido um crime feito em nome da mentira patriética. O auge da campanha an- timilitarista foi em 1908, apés a aprovagao da lei do sor- teio. Criou-se no Rio, na sede da Federacdo Operéria, uma Liga Antimilitarista Brasileira, que editou 0 jornal Nao Matards. O manifesto da Liga era um virulento libelo con- tra o militar em geral e contra o servico militar em parti- cular. Depois de dizer que o servico no quartel corrompia © cidadéo © destrufa a familia, terminava conclamando todos a no se submeterem, a se negarem a qualquer tipo de recenseamento, inclusive o eleitoral (poderia ser utili- zado para o sorteio), que emigrassem, se naturalizassem cldadaos de outros paises e, se afinal recrutados, que de- sertassem em massa. A patria, segundo a Liga, era do in- teresse exclusivo da classe capitalista dominante.®® Nesse mesmo ano, a Confederacio Operdria Brasileira, através 62 de seu érgao, A Voz do Trabalhador, fez intensa campa- nha antimilitarista com 0 apoio do positivismo ortodoxo de Teixeira Mendes. Uma passeata e um comicio foram realizados em dezembro de 1908 no largo de So Francis- co, tradicional ponto de manifestagées populares, com a presenga de cinco mil pessoas, de acordo com A Voz do Trabalhador.® Ao passo que o anarquismo rejeitava a idéia de pa- tria, ou a redefinia de maneira radical, os positivistas a enifatizavam. Em documento enviado ao governo provisé- rio em 19 de dezembro de 1889, o Apostolado protestou contra a lei da grande naturalizagao © expés sua concop- gao de patria e cidadania, fazendo longa retrospectiva da evolugio historica dos dois conceitos. Para o positivismo, segundo o Apostolado, patria se baseia na familia (pai) 0 amor da patria € 0 prolongamento do amor materno, (Comte queria se falasse em _matria...). Por outro lado, a cidade nao era mais do que o prolongamento da familia, dai que patriotismo ¢ civismo eram a mesma col. sa, Em Roma, cidade-patria, ter-se-ia materializado pela primeira vez 0 cidadao completo. Esta concepgao reduz o relacionamento social ao pélo comunitario, Nao cabe af a idéia de conflito legitimo e de contrato, Patria e cidade sao coletividades de integracao ¢ de convivencia afetiva. Nao ha direitos, apenas deveres dos membros para com a coletividade, que é um valor su: perior. Daf também que a grande naturalizacao era um absurdo, segundo 0 Apostolado, porque o sentimento de patria ndo se impde pela lei, desenvolve-se através de lon- 0 processo histérico de convivéncia: “A patria no se leva na sola dos sapatos”, repetia com Danton.* Os republicanos radicais talvez tivessem sido os tini- cos a propor uma idéia de patria compativel com a cida- 63 dania liberal e democritica, descontados os tragos rous- seaunianos que a tingiam, Mas, ao evoluir para o nativis- mo exacerbado do movimento jacobino e para 0 autori tarismo florianista, a proposta radical perdeu viabilidade politica, sobretudo no Rio € em Sao Paulo, os centros do poder politico e econdmico do pais, devido & presenca maciga de estrangeiros entre os setores populares. O na- cionalismo xenéfobo seria apropriado pela elite exata- mente para combater a militincia operdria, dando razio aos anarquistas quando diziam que patria era s6 para os exploradores. + Resumindo, temos que no inicio da Repiiblica nasce- ram ou se desenvolveram varias concepges de cidadania, nem sempre compativeis entre si. Se a mudanca de regi- me politico despertava em varios setores da populagao a expectativa de expansio dos direitos politicos, de redefi- nicdo de seu papel na sociedade politica, raz6es ideolégi- cas © as préprias condigées sociais do pais fizeram com que as expectativas se orientassem em diregdes distintas ¢ afinal se frustrassem. O setor vitorioso da elite civil republicana ateve-se estritamente ao conceito liberal de cidadania, ou mesino ficou aquém dele, criando todos os obstaculos & democratizacao. Até mesmo a criago de um partido operdrio de 1890 encontrou resisténcias entre republicanos, que a viam como ameaga & ordem. O posi- tivismo era pela ampliagao dos direitos sociais, mas nega- va os meios de acdo politica para conquisté-los, tanto os revoluciondrios quanto os representativos. O anarquismo negava legitimidade & ordem politica, a qualquer ordem politica, no admitindo, portanto, a idéia de cidadania, a néio ser no sentido amplo de fraternidade universal. Res- tavam 0s socialistas democraticos, os tinicos a propor a ampliago dos direitos politicos e sociais dentro das pre- missas liberais 64 A situago era de impasse. De um lado, o liberalismo foi utilizado pelos vitoriosos como instrumento de conso- lidagdo do poder, desvinculado da preocupacéo de am- pliagao das bases deste poder. De outro, demandas de am- pliagdo foram formuladas, na maior parte, seja dentro da perspectiva integradora do positivismo, seja dentro da fu- ga romantica do anarquismo e do radicalismo republica no de estilo rousseauniano, Balancava-se entre a negacdo da participagio, a participacao autoritéria ¢ a alienacio, Nao havia férmula vidvel de combinar os aspectos inte- grativos com os aspectos contratuais da cidadania. ‘A reacdo, pragmatica antes que ideoldgica, a esta si- tuagdo por parte dos que se viam excluidos do sistema foi o que chamamos de estadania, ou seja, a participacao, nao através da organizacao dos interesses, mas a partir da maquina governamental, ou em contato direto com ela, Foi 0 caso especifico dos militares e do funcionalis- mo em geral e de importantes setores da classe operdria. Esta era na verdade uma estratégia generalizada. O exame dos arquivos de politicos da época com responsabili dades executivas revela que a grande maioria dos do- cumentos diz respeito a solicitagdes de beneficios. O ar quivo de Rui Barbosa ¢ exemplar: durante seu perfodo como ministro da Fazenda, talvez mais da metade da cor- respondéncia que recebia se referia a pedidos de favores e empregos. Os pedidos vinham de todos os lados muitos eram transmitidos por seus proprios colegas de ministé- rio, como Benjamin Constant, Campos Sales, Francisco Glicério. Nao faltavam mesmo pedidos de Floriano e Dec doro e até de Dona Mariana, mulher de Deodoro, 0 unico diretor de repartigéo que se rebelou contra esta prética, insistindo em colocar 0 mérito acima do empenho, foi tido como insano pelo secretario de gabinete de Rui Bar- bosa.* 65

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