Manhã sonolenta. Joãozinho caminhava para a escola. Sonâmbulo, ainda
segurava firme livros e cadernos. Tudo novinho, pronto para começar o ano escolar. Zinho (diminutivo do diminutivo que o carinho de Dona Josefa inventara) lembrava como aguardou ansioso a compra destes objetos. Primeiro ano que o material vinha completo, bonito, novinho como o dos outros colegas. Sorria intimamente, aquele ano ele não seria diferente na sala de aula. Não aguardaria por mais de um mês o fornecimento de alguns cadernos feios e livros usados, retirados da caixa escolar. Aquele ano não. Tudo novinho e limpo. Lindo! Seu Raimundo havia tido uma preocupação, comprou tudo no crediário, pagaria juros, mas o importante era o ensino dos filhos. Os mais velhos não tiveram a mesma sorte. Os três, mal completaram o primário, foram ajudar a ganhar a vida. Zinho sabia o peso da responsabilidade. Ele dava para a coisa. Era inteligente. Aquela manhã sonolenta testemunhava sua alegria. O sorriso brilhando, iluminado o seu rosto negro e miúdo. Brilho também nos seus olhos castanhos, refletindo a felicidade infantil, exalando a confiança nele depositada. Ia, antevendo o prazer de colocar sobre a carteira os cadernos e livros, sonho de colegial. Virou a esquina. Rosto espelhando confiança e felicidade. Virou a esquina, deu de cara dom uns meninos maiores em tamanho e idade: “Hei Mussum, ta feliz hoje?” Zinho gostava do Mussum, mas não queria ser chamado assim. Zangou-se: “Meu nome é João”, “O que é Mussum ficou nervosinho?” “Não quer um mézinho para refrescar?”. Zinho resolveu ignorar e seguir em frente. Não queria se atrasar para a aula. Os maiores cercaram-lhe o caminho, derrubando-o. Livros e cadernos espalhados no chão da rua enlameada. O esforço do seu Raimundo coberto de lama vermelha. Zinho não mediu tamanho nem idade. Levantou-se. Uma força ancestral cortou-lhe por dentro.Trazia consigo a força de Ogum. Armou-se com um pedaço de pau. Atingiu um deles na perna, derrubando-o. Continuou fazendo justiça. Empunhava a lei. Batia. Batia. Batia, ignorando os gritos vindos do chão. Os outros tentaram apaziguá-lo: “Hei, menino, é brincadeira”. Inutilmente tentavam segurá-lo. Zinho não parava. Batia. Batia. Batia. O rosto do garoto atingido inundou-se de sangue. O branco da pele e o vermelho misturando-se. Correndo na lama, o sangue tingia o material escolar novinho, melando o sonho de João, Raimundo e Josefa. Os dois outros meninos maiores, sentindo que o “Mussum” não desistia de bater, partiram para cima. João adquiriu a velocidade de uma pantera em fúria. Correu, embrenhou-se na selva das ruas. Abobalhados, recolheram o companheiro morto e desfigurado. Murmuravam aparvalhados, insanos: “Brincadeira. Foi brincadeira”.