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GEORGE RUDE A MULTIDAO NA HISTORIA Estudo dos Movimentos Populares na Fran¢a ena Inglaterra 1730-1848 Editora Campus CAPITULO SEIS A Revolucao Francesa: (1) O Motim Politico Vi mos que foi através dosparlements que o menu peuple pari- siense aprendeu suas primeiras licdes polfticas e que, sob sua influéncia, os motins urbanos, ao contrario dos rurais, tende- ram a transformar-se em manifestac6es politicas. Isso ocorreu particularmente nos 2 ultimos anos do Velho Regime, quando o parlement de Paris, empenhado na disputa final com os ministros de Luis XVI, comemorou entusidstica e barulhentamente, na ilha da Cité, seu retorno 4 capital depois do exilio. Mas isso foiapenas o comeco. As multiddes que se reuniram para saudar o parlement limitaram-se a estudantes, escreventes de advogados e jornalei- ros de varios distritos. As ligses aprendidas eram ainda rudimen- tares e superficiais. Acima de tudo, restringiam-se a cidade e ainda nao tinham provocado reag&o entre os camponeses. O inicio eo desenvolvimento da Revolugdo mudaria tudo isso. Ao desafiar as classes “privilegiadas’’ (inclusive os parlements) na disputa pelo controle dos Estados Gerais de 1789, a burguesia, ou Terceiro Estado, recorreu a toda a nacdo. Suas idéias e lemas foram adotados tanto pela populacao rural como pela urbana e, sob esse impacto, o motim da fome no campo e a manifestacado politica ocasional na cidade transformaram-se nas grandes jac- queries e journées populares do verao e do outono de 1789. Por sua 99 PARIS EM 1789 strode pera Sevres Luxembourg -Luxemburgo S ponies ° ! Club’ Club des Cordeliors © Massacre of rioters, Ite April 1789. Massacre de arvotinados, fins de abril de 1789» Road to SBvres, vez, essas primeiras manifestacdes “espontaneas” comegaram a transformar-se em movimentos politicos sofisticados dos sans- culottes urbanos: estes refletiam tanto a intensidade da luta dos partidos como a crescente experiéncia politica e consciéncia dos préprios sans-culottes. Foi um processo arrastado, que nao pre- tendemos focalizar em detalhes aqui. O objetivo deste capitulo é antes ilustrar a transicdo de um tipo de motim para outro e indicar as principais etapas pelas quais as journées politicas,’ a mais caracterfstica de todos os tipos de participacdo popular na revolucdo, tiveram origem e tomaram forma. . . Depois de seu primeiro desafio ao ministério, na ‘‘revolta aristocratica’” de 1787, 0 parlement de Paris conquistou uma vit6ria inicial e, tendo passado uma ou duas semanas no exilio, obteve permissao de voltar para a capital. Os magistrados que voltavam tiveram uma recepcdo tumultuada na ilha da Cité, na Place Dauphine, na Rue du Harlay e nas vias de acesso aos Tribunais. As autoridades estavam preparadas para desordens, e os tribunais foram cercados por 500 Gardes de Paris, apoiados por um regimento de Gardes Frangaises. Multiddes, compostas dos funciondrios do Palacio da Justica e dos aprendizes e jorna- leiros dos negécios de luxo da Cité, encheram a Pont Neuf e seus acessos, soltaram buscapés e fogos de artificio e apedrejaram os soldados. Em 28 de setembro, quando os disturbios chegaram ao auge, os soldados foram obrigados a disparar: nao houve mortes, embora um advogado que passava pelo local tivesse seu paleto atravessado por uma bala perdida, e 4 jovens tivessem sido presos. As manifestacées prolongaram-se por uma semana, du- rante a qual foram feitas fogueiras em frente ao Palacio da Justiga, folhetos antimonarquistas foram distribuidos e Calonne, ex-Con- * As mais importantes dessas journées revolucionarias foram: Em 1789: Motins do papeleiro Réveillon (28-29 de abril), revolugao de Parise tomada da Bastilha (12-14 de julho), marcha sobre Versalhes (6-6 de outubro). Em 1791; Marcha sobre Vincennes (28 de fevereiro), manifestagdes do Campo de Marte e petigao (17 de julho). Em 1792: Invasao das Tulherias (20 de junho), derrubada da monarquia (10 de agosto), massacres de setembro (2-4 de setembro). Em 1793: Expulsdo dos deputados “giirdinos” (31 de maio-2 de junho), insur- reicdo de 4-5 de setembro. Em 1794; Derrubada de Robespierre (9 Termidor — 27 de julho). Em 1795: Motins populares de Germinal (1 de abril) e 1-4 Prairial (20-23 de maio), levante monarquista de 13 Vendémiaire (5 de outubro). 101 trolador Geral, e a condessa de Polignac, governanta dos filhos do rei, foram queimados em efigie. Em 3 de outubro, 0 préprio parlement determinou a suspensado dos motins, proibindo todas as reunides e exibicdes de fogos nas proximidades do Palacio da Justicga. As manifestacdes tinham sido limitadas e localizadas. Seus principais participantes foram os escreventes dos advoga- dos e os trabalhadores da Cité; os faubourgs (bairros) e os merca- dos ainda no se tinham envolvido. Nos meses que se seguiram a crise aprofundou-se, devido ao agravamento da tensao politica e ao prego crescente do pao. Em maio, o parlement buscou ainda maior popularidade ao con- denar as odiadas lettres de cachet, pelas quais os adversarios do ministério eram encarcerados sem julgamento, e todo o sistema de governo arbitrario. O governo respondeu cercando o Palacio da Justica com os soldados; um edito preparado por Lamoignon, Guarda dos Selos, transferia a maior parte da jurisdicdo do parle- ment para outros tribunais, e os magistrados rebeldes eram mais uma vez mandados para as provincias, em exilio. Mas 0 apoio aos parlements — em Paris e outras cidades — era téo grande que os ministros foram obrigados a curvar-se ante a tempestade: Brienne, o Principal Ministro, foi afastado e substituido por Nec- ker; os Estados Gerais tiveram sua convocacao prometida para o ano seguinte; 0 edito de Lamoignon foi revogado; e o parlement de Paris foi restabelecido logo depois. A vitéria foi saudada por novas comemoracées na Cité: soltaram-se fogos de artificio em profusdo, acenderam-se fogueiras, e os passageiros das carrua- gens que atravessavam a Pont Neuf tinham de curvar-se ante a estdtua de Henrique IV, 0 mais popular dos reis franceses, e gritar~ “Abaixo Lamoignon!” e “Viva Henrique IV!” Dessa vez, os distirbios tiveram uma nova e mais séria nota: o preco do pao de 2 quilos tinha passado, em 3 semanas, de 9 para 11 soldos; em fins de agosto, aos funciondrios do Palacio da Justica juntou-se 0 menu peuple dos bairros e mercados. Os motins tornaram-se mais violentos e estenderam-se a outros distritos; postos de guarda colocados na duas pontas da Pont Neuf que ligava a Cité foram saqueados eincendiados. Os Guar- das receberam ordens de responder a forga com a forca e, na Place de Gréve, na margem norte do rio Sena, os soldados dispararam sobre 600 manifestantes, matando 7 ou 8 e dispersando os de- mais. Depois de um invervalo de uma quinzena, 0s motins reco- mecaram com novas comemoragées na Cité e novos choques 102 sangrentos entre soldados e jornaleiros e estudantes, em lugares tao distantes entre si como a Rue St. Martin, no norte, e o bairro da universidade, no sul. Mais de 50 pessoas foram presas, mas as multiddes venceram: tanto o impopular Lamoignon como o Che- valier Dubois, comandante da Garde de Paris, foram afastados dos cargos antes que os motins terminassem.? Em seu duelo com o governo, portanto, o parlement de Paris conseguiu associar a sua causa as energias de uma parte signifi- cativa dos sans-culottes da capital e, com seu apoio, obteve suces- sos notéveis. Mas tanto a alianga como os sucessos foram breves. Antes mesmo que os disttrbios terminassem, o parlement tinha antagonizado muito de seus partidarios, insistindo em que os Estados Gerais fossem formados tal como em sua filtima reunifio, 175 anos antes — isto 6, que cada “classe”, ou “‘ordem’’, se reunisse separadamente e tivesse representacdo igual. Dessa for- ma, o Terceiro Estado seria sempre derrotado e as classes“ privi- legiadas” dariam o tom, como acontecia tradicionalmente. O Terceiro Estado, vendo suas esperancas em perigo, reagiu com uma guerra de folhetos que, num tempo notavelmente curto, voltou a opinido contra os parlements e conquistou apoio nacional para seus objetivos, que inclufam a duplicacéo do nimero de representantes do Terceiro Estado (exigéncia que o préprio go- verno atendeu logo) e a fusdo de todas as trés ordens separadas numa Unica. As grandes esperancas despertadas, mesmo nas areas rurais, pela perspectiva de ficarem os Estados Gerais assim constitufdos sao ilustradas pelo encontro de Arthur Young com uma camponesa de Champanhe, a qual lhe informou que: Dizia-seno momento que pessoas importantes iam fazer alguma coisa pelos pobres, mas ela nao sabia quem eram, nem como, mas Deus nos ajudara, car les tailles et les droits nous écrasent [pois as talhas e os impostos nos esmagam].° Data de 12 de julho o registro que Young fez, em seu diario, dessa conversa, mas, muito antes disso, o lema militante “tiers état” — s{mbolo do desafio popular aos privilégios — tinha comecado a circular entre o menu peuple parisiense: 0 exemplo mais antigo que encontramos nos arquivos da policia data de principio de abril.* Duas ou trés semanas mais tarde, ele seria 103 gritado num motim popular, mas um motim no qual o menu peuple se levantava em defesa de seus préprios objetivos, nao tendo sido ainda totalmente conquistado para os fins dos politi- cos burgueses do Terceiro Estado. Foi o sangrento choque ocorri- do no Faubourg St. Antoine — que logo se distinguiria como o mais revoluciondrio de todos — em fins de abril, uma semana antes que os muito esperados Estados Gerais se reunissem em Versalhes. Em 23 de abril, dois industriais, Réveillon e Henriot, ambos membros destacados do Terceiro Estado local, tinham, em suas respectivas assembléias de eleitores, lamentado os altos salarios pagos na industria. Nao se sabe ao certo se defendiam ou nao sua reducido (e ambos eram considerados bons empregado- res), mas assim o interpretaram os assalariados do faubourg, e tais observagées, feitas numa época em que o prego do pao era fenomenalmente alto,’ provocou uma violenta explosaéo. Qui- nhentos ou 600 owvriers se reuniram perto da Bastilha e, tendo enforcado as efigies de Réveillon (o mais destacado dos culpa- dos), desfilaram com bonecos representativos de suas préprias vitimas pelos varios distritos da capital. Com reforgos obtidos nas docas e nas fabricas e oficinas, chegaram ao Hétel de Ville, na Place de Gréve, com uma multidao de 2.000 pessoas. Encon- trando a casa de Réveillon protegida por soldados, sairam em busca da casa de Henriot e, como os participantes dos motins Gordon na Inglaterra, destrufram seus méveis e objetos pessoais. Dispersados pelos militares, voltaram a organizar-se na manha seguinte e, enquanto os soldados eram chamados, grupos de trabalhadores percorreram os distritos, recrutando novos parti- darios pela intimidacdo ou pela persuasdo. O momento critico ocorreu entre 6 e 8 horas da noite, quando a casa de Réveillon foi atacada, os soldados foram postos em fuga ea destruigao da noite anterior repetiu-se em maior escala. O duque de Chatelet, coman- dante das Gardes Francaises, deu ordem de atirar, e ocorreu um massacre nas ruas estreitas e congestionadas, onde milhares de pessoas enchiam os telhados e janelas, enquanto a multidao reagia com gritos de Liberté... nous ne céderons pas. Outros grita- vam Vive le tiers état! e Vive le Roi et vive M. Necker! Assim, os novos lemas “patridticos” do momento, estranhamente discor- * O preco do pao de 2 quilos vinha sendo, desde fevereiro, de 147/2 soldos. 104 dantes do comportamento dos amotinados, j4 estavam sendo absorvidos pelo menu peuple de Paris e transformados, se neces- sario, a seu proprio favor.> Portanto, as atividades dos sans-culottes parisienses ainda nao estavam totalmente harmonizadas com a acdo da burguesia revolucionaria. Esta esperava, sem divida, alcancar seus objeti- vos sem recorrer ao arriscado expediente de chamar a colabora- cdo das massas. Tais esperancas, porém, foram frustradas pela recusa obstinada da aristocracia em fazer concessdes e pelas vacilagdes e fraquezas do rei. Convencido pela rainha e por seu irm&o mais novo, o conde d’Artois, Luis resolveu chamar os soldados, dissolver a recém-formada Assembléia Nacional, ame- drontar Paris e substituir Necker, considerado demasiado tole- rante para com a causa “patriota”, por Breteuil, indicado por Maria Antonieta. Foi a noticia da demissao de Necker, recebida ao meio-dia de 12 de julho, que provocou a revolucao popular na capital. Multidoes reunidas nos jardins do Palais Royal, residén- cia do popular duque de Orléans, ouviram Desmoulins e outros oradores langar o chamado 4s armas. Grupos de manifestantes marcharam com bustos de Necker e Orléans, os herdis do dia, pelas avenidas. Os teatros foram fechados em sinal de pesar. Besenval, comandante da guarnicdo de Paris, retirou-se para o Campo de Marte e deixou a capital nas mdos do povo. A primeira operacdo foi destruir as odiadas barriéres, ou postos alfandega- rios, que cercavam a cidade e cujas taxas sobre alimentos e vinho provocavam amargos ressentimentos entre os pequenos consu- midores: em 4 dias de motins, dirigidos do Palais Royal, 40 dos 54 postos foram sistematicamente destrufdos. O mosteiro de St. Lazare foi arrombado, saqueado e revistado em busca de armas e cereais, e seus prisioneiros foram libertados. Outras casas reli- giosas e armeiros foram atacados em busca de revélveres, espa- das e pistolas. Durante toda a noite (como nos diz o relato de uma testemunha ocular, um operario de velas),° multidées agressivas de civis e de soldados descontentes surgiram pelas ruas, gritando os recém-aprendidos lemas “patriéticos”, fazendo soar o toque de recolher e procurando cereais e armas. Enquanto isso, os eleitores parisienses do Terceiro Estado, que tinham constituf- do um governo municipal provisério no Hétel de Ville, alar- mados com o rumo dos acontecimentos, comecaram a recrutar uma milfcia de cidadaos, ou Guarda Nacional, para proteger a -capital tanto contra os pobres amotinados como contra a amea- ca militar de Versalhes. Parisienses atacam e tomam a Bastilha em 14 de julho de 1789. Assim, a busca de armas e municdes continuou. Foi, na verdade, a procura de armas, muito mais do que para soltar presos, e ainda mais para ajustar velhas contas com um odiado simbolo do passado, que os parisienses foram levados, em 14 de julho, a atacar a velha fortaleza da Bastilha. Os insurgentes ti- nham pouca pélvora, e sabia-se que esse material fora recente- mente enviado pelo arsenal para a fortaleza. Além disso, oar | estava cheio de boatos de ataques iminentes de Versalhes, en- / quanto os canhées da Bastilha voltavam-se ameacadoramente contra o superpopuloso bairro de St. Antoine. Dessa forma, de- pois que 30.000 mosquetes foram retirados do Hétel des Invali- des, do outro lado do rio, ecoou o gtito ‘A Bastilha!’’ O cerco — ou antes, as negociacdes com o governador da Bastilha, o mar- qués de Launay — foi dirigido, com impericia e incerteza, pela Comissao de Eleitores da Municipalidade. Mas a decisdo de tomar a fortaleza pela forcga, quando as conversacées pacificas nao tiveram resultados, nao foi da comissao, mas dos cidadaos armados que se apertavam contra suas muralhas. Os canhées da Bastilha j4 tinham matado e feridos 150 dos atacantes, quando Hulin, ex-oficial subalterno, levou até o portao principal 2 desta- camentos das Gardes Frangaises, que se tinham juntado havia pouco aos insurgentes, e, coma colaboragao de algumas centenas de civis armados, preparou-se para 0 ataque frontal. Convencido por sua guarnicdo, de Launay ordenou que a ponte principal fosse abaixada, e a queda da Bastilha marcou a culminagado da primeira grande journée popular da Revolugao. A rendicao da Bastilha, embora no constituisse em si mes- ma um feito militar de grande importancia, teve resultados poli- ticos notaveis. A Assembléia Nacional foi salva e recebeu o reconhecimento real. Na capital, o poder passou 4 Comissdo de Eleitores, que criou um conselho municipal, a Comuna, tendo Bailly como prefeito, Em 17 de julho, 0 préprio rei chegou a Paris em companhia de 50 deputadose, transformando a necessidade em virtude, colocou a cocarda vermelha, branca e azul da Revo- lugao. Por grande parte disso as multidées de Paris, nas quais os sans-culottes desempenhavam o principal papel, foi responsavel. Mas a Revolugao ainda nao estava segura, e os ganhos de julho tiveram de ser novamente defendidos em outubro. Enquanto a Corte e o rei permaneciam em Versalhes e uma minoria ativa de deputados podia, em alianga com a Corte, frustrar o programa constitucional da Assembléia (e isso tornou-se demasiado evi- 107 dente em agosto e setembro), 0 poder efetivo continuava dividi- do entre o velho Terceiro Estado e seus aliados aristocratico-libe- rais, deum lado, eos partidarios do Velho Regime, do outro. Mais uma vez, 0 rei, sucumbindo a pressdo do que ainda restava do velho partido cortesdo, tentou romper o impasse com uma nova demonstracao de forga e chamou os soldados — dessa vez, 0 regimento de Flandres — para Versalhes. Num banquete em honra desse regimento, a cocarda nacional (pelo menos assim se disse em Paris) foi pisoteada. Para vingaro insulto, os “patriotas” de Paris convocaram uma marcha sobre Versalhes — seja para entregar um ultimato ou para levar a familia real até Paris. Enquanto isso, ocorria outra crise no abastecimento de pao e,em 5 de outubro, um motim da fome, com iradas mulheres do mercado, transformou-se numa grande marcha feminina que, apoiada pelos batalhdes da Guarda Nacional, trouxe o rei, logo seguido pela Assembléia Nacional, triunfalmente de volta para a capital. As- sim, pela segunda vez em poucas semanas, o menu peuple pari- siense correra em ajuda da Assembléia e salvara a Revolucio.” Oano de 1789 nao foi apenas um ano de motinse revolugdes urbanas. O campo teve sua parcela e, também ali, o motim sofreu uma transformacdo semelhante. Depois dos motins da fome de 1775, o interior estava relativamente calmo. Houve, é claro, a série habitual de motins da fome: em Toulouse e Grenoble, em 1778; em Bayeux, em 1784; e em Rennes, em 1785, mas foram todos esparsos e esporadicos. Nao houve nenhum movimento generalizado de protesto rural até o inverno de 1788-89; e, mesmo assim, 0 que ocorreu entao foi uma reacdo a uma dupla crise. De um lado, estavam as desastrosas colheitas de 1787 e 1788, que fizeram os precos subir muito em quase todas as principais ~ regides produtoras de cereais. Do outro, o governo tinha, soba pressdo da “‘revolta aristocratica’”’, convocado uma reuniao dos Estados provinciais e preparava-se para convocar os eleitores, dos quais os camponeses formavam a esmagadora maioria, para que preparassem seus cahiers de doléance, ou cadernos de queixas, \em toda a Franga. A reagado dos camponeses teve, a principio, a | forma tradicional de uma revolta contra a escassez e os precos crescentes. A partir de dezembro de 1788, expressou-se em ata- ques a barcos de cereais e a celeiros; ataques a funcionarios da alfandega, comerciantes e laboureurs; motins contra as prefeituras e padarias e mercados; taxation populaire do pao e trigo; e destrui- sao generalizada da propriedade. Noticias dessas atividades 108 chegavam de quase todas as provincias: em dezembro e janeiro, da Bretanha e da Touraine; em margo e abril, da Borgonha e fle de France, Languedoc, Nivernais, Orléanais, Picardia, Poitu, Pro- venga e Touraine; em julho, da Normandia e da Champanhe. Ao norte de Paris, a luta contra a pentiria transformou-se num mg- vimento contra as leis da caga eo direito de caga da nobreza, pela primeira vez em muitos anos. Nas propriedades do principe de Conti, em Pontoise e Beaumont (cendrio dos motins de 1775), em Conflans Ste. Honorine e outras aldeias, os camponeses coloca- ram armadilhas para os coelhos que infestavam os campos, pro- vocando choques com os guardas rurais. Em Artois, uma dezena de aldeias combinaram-se para exterminar a caga do conde d’Oisy e recusaram-se a pagar-lhe as taxas tradicionais. Ao sul e a oeste de Paris, perto de Fontainebleau e St. Germain, paréquias inteiras eram desarmadas sob suspeita de incursdes nas 4reas reservadas a caga real. Na Lorena e no Hainault, os camponeses sem terra e 0s pequenos proprietarios juntaram forgas para se opor aos pla- nos de limpar as florestas e fechar os campos. Enquanto isso, depois de permanecer adormecida por quase um século, a ira camponesa contra os impostos reais e os tributos senhoriais despertou em marco na Provenca, em Gap em abril, e em Gabré- sis e na Picardia em maio.® Assim, sob o impacto da crise econémica e dos aconteci- mentos politicos, o movimento camponés transformou-se, dos primeiros protestos contra os precos, passando pelos ataques as terras fechadas, direitos de caca e florestas reais, em um ataque frontal ao proprio sistema agrario feudal. Nao foi uma evolugao espontanea, em absoluto: em parte, cresceu a partir de um estra- nho fendmeno conhecido como La Grande Peur, O Grande Medo, de fins do verao de 1790, Esse Grande Medo teve suas origens na vadiagem rural, produto da crise econémica; na dispersio das tropas reais depois da vitéria popular em Paris; e na arraigada crenga dos camponeses, partilhada por muitos citadinos, na exis- téncia de um “’complé aristocratico”. Cresceu a convicgao de que os “’bandidos”, fossem eles os pobres da aldeia ou os soldados desmobilizados, estavam sendo armados para devastar 0 campo e destruir as propriedades dos camponeses. Como nos motins de 1775, o boato espalhou-se de mercado em mercado e ao longo do curso dos rios; em julho e agosto, inflamou a populacdo rural de todas as provincias fora da Bretanha e ao norte da Alsdcia e da Lorena, no leste. Assim, os camponeses armaram-se e esperaram 109 os invasores. Mas os ““bandidos’’, produto do panico e da imagi- nacgdo excitada, nao apareceram, e os camponeses de muitos distritos, privados de uma presa, voltaram-se para outra, dirigin- do suas armas contra as residéncias senhoriais. Isso porque os castelos abrigavam ndo 86 os senhores (que, em grande parte, safram ilesos) mas também os odiados documentos senhoriais que registravam os arrendamentos e obrigacdes feudais, muitos dos quais de invencdo recente ou ressuscitados, e que repre- sentavam um pesado 6nus sobre a terra do pequeno proprietario. Assim, os camponeses, amargamente ressentidos contra a secular exploracao senhorial, reagiram ao apelo do Terceiro Estado com uma forma particular de revolugdo. Deixaram uma trilha de castelos em chamas por toda a Franca. O movimento teve resul- tados rapidos. Pressionada a agir, a Assembléia Nacional pro- mulgou seus decretos de 4 e 5 de agosto, que aboliam, ou tor- navam resgataveis, todas as obrigacdes senhoriais sobre a terra. Quando essas obrigagées foram transformadas em pagamento em dinheiro, os camponeses se recusaram a pagar; e, 3 anos depois, o governo jacobino aceitou o fato consumado e anulou a divida dos camponeses.? A revolucdo camponesa permaneceu em fogo brando no cam- po durante todos os anos revolucionérios; ainda assim, manifestou- se em motins da fome ou ataques contra as terras fechadas, sem readquirir nunca sua amplitude e vigor anteriores. Em Paris, como em outras cidades, a situacdo era totalmente diferente. Os grandes motins de 1789, embora ricos de conseqiiéncias, foram apenas um comeco. A doutrinacao polftica dos sans-culottes pelas novas idéias da Revoluc&o mal tinha comegado ainda. Foram criados clubes e “fraternidades” que, depois de 1790, abriram as portas aos assala- tiados e artesdos. Com isso, as idéias dos democratas e, mais tarde, dos republicanos, foram transmitidas ao povo dos faubourgs e dos mercados, e por ele absorvidas. Um dos primeiros resultados dessa nova etapa da doutrinagdo foio grande comtcio e petigao no Campo de Marte, em julho de 1791, que pedia a abdicacao do rei, depois de sua fatidica fuga para Varennes, e sua substituicéo por uma nova “autoridade executiva”. Entre os muitos milhares de signatarios, a maioria era de sans-culottes, e sabemos por outras fontes que um grande numero deles, pelo menos, compreendia perfeitamente bem do que tratava a peticio. Também eles constitufam a maioria dos manifestantes que entdo se reuniram, vindos de todas as areas da cidade, e dos quais 50 foram mortos e outros 12 feridos pela Guarda Nacional de Lafayette. 110 Esse ‘‘massacre”, como a guerra que se seguiu 9 meses depois, aprofundou as divisdes entre os ‘’patriotas”’, e os sans- culottes, admitidos as reunides das Secgdes em julho de 1792, cafram cada vez mais sob a influéncia dos jacobinos, republica- nos e democratas. Foram eles que planejaram e dirigiram o ataque armado Aas Tulherias em agosto de 1792, que pés fim a monarquia e introduziu a Repitblica, e que foi realizado pelos batalhées regulares da Guarda Nacional, compostos em grande parte de pequenos lojistas, comerciantes e jornaleiros de Paris. Essa mesma forga foi usada pelos jacobinos em junho de 1793, agora sob Hanriot, um general sans-culotte, para expulsar seus adversarios “girondinos” da Conveng4o Nacional.” E assim, por etapas de doutrinacdo e experiéncia politica, pelocomparecimen- to a reunides das assembléias seccionais, das sociedades e dos comités, e servindo na Guarda Nacional ena armée révolutionnai- re, formada para assegurar o abastecimento de alimentos a cida- de," militantes e lfderes treinados surgiram entre os sans-culottes. N&o eram, de modo algum, agentes déceis dos jacobinos, nem de qualquer outro partido dominante: tinham suas aspiracdes so- ciais préprias, sua visdo das coisas, seus clubes e lemas e suas idéias proprias sobre como 0 pais devia ser governado.” Assim sendo, era inevitavel que o motim politico, quando a ele ainda se recorria, sofresse uma nova transformacao. Esse processo chegou ao climax na grande insurreicéo popular do Prairial do Ano III (20-23 de maio de 1795). Os sans-culottes, desta vez divididos entre si e antagonizados pela politica do governo jacobino, ndo tinham oferecido qualquer resisténcia efetiva a derrubada de Robespierre, em julho de 1794. Mas a inflacgdo que se seguiu, acompanhada por um fechamento dos clubes revolu- cion4rios que ainda restavam e pela perseguicdo de antigos “ter- roristas” e “patriotas’’, aos poucos os levou a acao. Uma primeira escaramuca ocorreu no 12 Germinal (1° de abril de 1795), quando a Convencio Nacional foi invadida por uma multiddo irada de ho- mens e mulheres, clamando por pao e usando em seus gorros 0 lema insurgente “Pao e a Constituigéo de 1793”.” Os invasores, tendo recebido certo apoio verbal dos poucos deputados jacobi- * Trata-se da Constituicao democratica de junho de 1793, que os jacobinos, seus autores, congelaram indefinidamente, e que seus sucessores revogaram em se- tembro de 1795. 1 nos que permaneciam na Assembléia, foram logo expulsos pelos destacamentos fiéis da Guarda Nacional e o movimento dimi- nuiu temporariamente. Mas, como a situacao dos alimentos ia de mal a pior, as agitacdes nas ruas e mercados, bem como entre os militantes nas secdes, tornaram-se mais acentuadas. E, em 1° Prairial (20 de maio), houve uma nova manifestacdo, desta vez muito mais violenta e perigosa. Nessa ocasido, como em outubro de 1789, foram as mulheres que assumiram a lideranca e instigaram os homens a acdo. Mais uma vez, como em outubro, tudo comegou com ataques as padarias que se transformaram numa marcha sobre a Assembléia. Foi, porém, uma manifestacdo combinada, militar e polftica, que evidenciou mais maturidade pelitica que a de 1789. Em outubro, as mulheres cantavam ao marchar para Versalhes (ou assim diz a tradicéo): ‘Vamos buscar o padeiro, a mulher do padeiro e o filhinho do padeiro”; assim, a intencado polftica, embora evidente no resultado, nao foi nunca sublinhada claramente. Em maio de 1795, porém, os insurgentes levavam lemas politicos em seus gorros e blusas e tinham objetivos politicos claramente definidos: libertar os presos politicos, res- tabelecer a Comuna de Paris (eliminada depois da queda de Robespierre), implementar a Constituicdo de 1793 e restabelecer os controles, abandonados, sobre os precos e o abastecimento de alimentos. E, ao contrario dos participantes das journées de 1789 a 1793, nado receberam ordens de marchar dos lideres revolucio- narios nem de grupos politicos de fora: agiram por sua prépria conta e sob suas préprias bandeiras e lemas. Foi, de fato, a primeira e ultima grande manifestacao politica iniciada e realiza- da pelos préprios sans-culottes. Nao obstante, fracassaram totalmente, sofreram derrota ver- gonhosa e repressdo selvagem. Mais uma vez, como em abril, foram expulsos da Assembléia; mas reagruparam suas forgas no Fau- bourg St. Antoine, centro da rebeliao, e, na tarde seguinte, mar- charam sobre a conveng&o com uma forga de 20.000 guardas nacionais. Pela primeira vez na Revolucao, porém, um exército regular, fiel ao governo, foi convocado para enfrenta-los. Para evitar o massacre, ambos os lados concordaram em negociar em vez de lutar. Assim, enganados por falsas promessas, os insurre- tos retiraram-se para suas casas. O Faubourg St. Antoine foi invadido no dia seguinte e, no quarto dia da rebelido, os insur- gentes renderam-se sem ter disparado um tiro. A derrota segui- 112 ram-se muitas represdlias e banimentos: 36 rebeldes foram con- denados a morte e 37 a prisdo ou deportacdo, por um tribunal militar. Cerca de 1.200 supostos ‘‘terroristas” (nem todos insur- gentes) foram presos e 1.700 desarmados numa tnica semana; muitos o foram mais tarde. Assim, acéfalo, o movimento dos sans-culottes morreu de morte stibita, e tendo, como o cactus, florescido no momento mesmo de sua extingdo, jamais voltou a erguer-se. Houve uma insurreic&o final em outubro, mas, dessa vez, os sans-culottes foram espectadores passivos, e os participantes foram os funcio- narios civis, advogados, escriturarios, donos de lojas e oficiais do exército de tendéncia monarquista ou quase monarquista.“ De- pois disso, o exército, chamado pela Convengao, continuou a ocupasio, e os dias das multidées revolucionérias e dos motins, qualquer que fosse sua tendéncia, desapareceram por 35 anos. REFERENCIAS 1. Para um exame mais detalhado, ver meu The Crowd in the French Revolution (Oxford, 1959). 2. Ibid., pp. 28-33. Arthur Young, Travels in France and Italy (Everyman Library, Lon- dres, 1915) p. 159. Archives Nationales, Y 18762 (12 de abril de 1789). Ver The Crowd in the French Revolution, pp. 34-44. . Archives Nationales, Z? 4691. Sobre esses dois episddios, ver The Crowd in the French Revolution, pp. 47-79. . Ver meu artigo “The Outbreak of the French Revolution”, Past and Present, novembro de 1955, pp. 28-42. 9. G. Lefebvre, The Great Fear of 1789 (Londres, 1973) e La Révolution francaise et les paysans”, em Etudes sur la Révolution francaise (Paris, 1954) pp. 246-68. 10. Ver The Crowd in the French Revolution, pp. 80-94, 101-8, 121-6. 11. R.C. Cobb, Les armées révolutionnaires (2 vols., Paris e Haia, 1961-3). 12. A.Soboul, Les sans-culottes parisiens en I'an II (Paris, 1958). 13. Sobre os acontecimentos de Germinal-Prairial, ver K. Tonnesson, La défaite des sans-culottes (Oslo e Paris, 1959). 14. Ver The Crowd in the French Revolution, pp. 160-77. S 2 Noe 113 CAPITULO SETE A Revolucao Francesa: (2) O Motim da Fome Um das grandes questées da Revolucdo Francesa foio abas- tecimento de alimenos abundantes e baratos. Isso consti- tuiu, durante todo o século XVIII, uma preocupagao constante dos pequenos consumidores da cidade e do campo, muitos do quais, como ja vimos no tltimo capitulo, desempenharam um papel evidente nos motins e manifestagSes politicas. Portanto, nao surpreende que, mesmo no mais ostensivamente politico desses episédios, o problema dos alimentos se infiltrasse. Vimos que, em setembro de 1788, quando os parisienses comemoravam a segunda volta do parlement, um acentuado aumento no prego do pao transformou o ambito e a natureza dos motins. No més de abril seguinte, os motins de Réveillon, no Faubourg St. Antoi- ne, foram provavelmente provocados tanto pelo alto prego do pao como pelas criticas dos industriais aos salarios: de fato, as lojas que vendiam alimentos (mas ndo as outras) foram arromba- das eo préprio chefe de policia acreditava que os insurgentes tinham o duplo objetivo de acertar contas com Réveillone forgar as autoridades a reduzir 0 prego do pao. O problema alimentar também teve seu papel nos acontecimentos que levaram a toma- da da Bastilha. Entre os que atacaram o mosteiro de St. Lazare, na noite de 12 de julho, havia pessoas que diziam estar “procu- 115 rando pao”; e, nas barriéres, um ferreiro que se ocupava em destruir um posto aduaneiro teria dito nous allons boire le vin a trois sols (vamos beber vinho a trés soldos). Em outubro, esse problemaestava ainda mais em evidéncia. Amarcha das mulheres sobre Versalhes comecou com motins do pao nas padarias e no Hétel de Ville; e Barnave, um dos mais observadores dos lideres revolucionérios, ao relatar os aconteci- mentos para seus constituintes, ressaltoua natureza dupla desses motins: a burguesia eo “povo” (escreveuele) agiram numa causa comum; mas, enquanto a primeira agiu apenas para derrotar as tramas da aristocracia, o segundo estava igualmente preocupado com o prego do pao (y mélant l'intérét du pain). E assim poderta- mos continuar até as Ultimas manifestacdes populares de 1795, quando os insurgentes usavam em seus gorros o lema duplo “Po e a Constituicaéo de 1793’’. De fato, de todas as grandes journées da Revolucdo na capital, houve apenas uma na qual o prego ouo abastecimento dos alimentos ou do pao nao parece ter desempenhado qualquer papel: foi a manifestagao de 17 de julho de 1791, quando os parisienses se reuniram no Campo de Marte para assinar a peticdo que pedia a abdicagao do rei.’ Se, portanto, o motim da fome estava latente em tantas manifestacdes polfticas, ndo nos pode surpreender que, ocasio- nalmente, ele surgisse por si mesmo. Isso acontecia mais ou menos pelas mesmas razées de antes da Revolucgdo — quando o abastecimento era insuficiente e os pregos geralmente elevados. Por motivos que jé mencionamos, 1789 foi precisamente esse ano, e observamos o crescente volume de motins da fome noticiados em diferentes partes do pafs, antes que os campo- neses transferissem sua atengd4o, em fins de julho, para os castelos e os documentos senhoriais. As cidades provincianas foram igualmente afetadas, e lemos sobre motins da fome, acompanhados muitas vezes de controle popular dos precos, em cidades distantes entre si como Amiens, Bordeaux, Caen, Char- tres, Grenoble, Marselha, Orléans, Nantes e Rheims.? Também em Paris, onde o pao cotidiano consumia uma proporgdo cada vez maior do salario do trabalhador e do artesdo/ a experiéncia nao teria sido diferente se a ira popular nao tivesse, com tanta freqiiéncia, sido desviada para canais pol{ticos: outubro de 1789 éevidentemente um exemplo disso. As autoridades revolucionérias tinham, em novembro da- quele ano, atravessado a crise do pao herdada do Velho Regime: 116 e os 18 meses que se seguiram foram um periodo de relativa calma social. Mas isso ocorreu mais por sorte do que pela previ- so, pois ndo havia politica para o trato desses problemas, que teriam de voltar a ocorrer. Quando ocorreram, uma das causas foi o fracasso das colheitas; outras foram a queda do valor do papel-moeda (0 assignat) e, ainda mais, depois de abril de 1792, a impetuosa inflacdo de guerra, que a doutrina predominante do liberalismo econémico ndo conseguia conter. Foi uma combina- cdo desses fatores que levou A grande escassez que se seguiu, eA grande onda de motins de 1792. Em agosto de 1791, a escassez da farinha em Paris tinha provocado um rapido aumento no prego do pao; e, em novembro, varias das regides produtoras de cereais do norte e do oeste estavam convulsionadas por distir- bios que tomaram a forma de interrupgdo da remessa desse cereal para outras 4reas. Quando os precos do trigo subiram mais acentuadamente (em Paris, por pouco mais de um quarto, mas, nas provincias, por uma média de 40%), ocorreram mo- tins por todo 0 pafs. Em Ambito e intensidade, estes rivalizaram com os de 1789.4 Desses distirbios, nenhum foi tao espalhado e prolongado quanto os ocorridos na grande planicie produtora de cereais da Beauce, que, com Chartres em seu centro, fica encravada entre o Sena e o Loire.5 A causa do problema nio foi tanto o fracasso da colheita quanto o esvaziamento dos mercados pelos grandes produtores, que vendiam diretamente aos negociantes de Paris e aos que abasteciam as dreas muito atingidas do sul, ou guarda- vam seus estoques na expectativa de um prego maior. O movi- mento comegou entre os lenhadores, pregueiros e ferreiros pobres da floresta de Conches e Breteuil, no vale do Eure. Cresceu como uma bola de neve, desde seu langamento inicial por um punhado de pregueiros de Les Baux-de-Breteuil, que, ao marcharem sobre o mercado vizinho de Lyre, foram engrossados por toda a populacdo local; o prefeito, embora avisado previa- mente, nada fez para deté-los. Deixando Lyre com 400 pessoas, dirigiram-se ao mercado de La Barre e, nos dias seguintes, a Le Neubourg, Conches, Verneuil, Breteuil e Rugles, todos mercados de facil acesso pela floresta. Maréhavam ordenadamente, com bandeiras tremulando e tambores tocando, e recebiam reforgos por onde passavam: em Le Neubourg, pessoas de 25 paréquias teriam participado. A Guarda Nacional local, constituida com freqiiéncia por camponeses pobres, ndo tentou deté-los; e, em 117 OS MOTINS DA FOME NA BEAUCE ‘terous 1792 ‘30 milos 30 mihas * 30 kllomaters -30 auldmetros ° Starting point - Ponto de parte * Feb 25, 1782-25 fev. 1782 Versallas ‘Nersalhes ¢ Seine - Sena Conches, a Guarda e as autoridades municipais safram a recebé- los e impuseram um teto nos precos do trigo e da aveia. Amesma coisa aconteceu em Breteuil e em outros mercados; ja entao, o grupo original tinha duplicado e, dentro em pouco, a fixacdo de precos ndo se limitou mais ao po ou ao cereais, estendendo-se também aos ovos e a manteiga, e até mesmo 4 lA, ao carvao e ao ferro. Pois muitos desses camponeses eram também artesdos rurais e, em princfpio de marco, nada menos de 5.000 num caso, e8.000em outro, chegaram as forjas de Baudoine La Louche para obrigar os mestres a vender o ferro a um prego reduzido. Ao relatar o acontecimento, as autoridades de Evreux, capital local, notaram que, estando tais medidas além da capacidade de ‘‘uma multiddo de pessoas grosseiras e ignorantes”, era evidente que tinham sido guiadas por ‘‘uma mio invisfvel’’; e os amotinados (acrescentavam elas), tendo imposto 0 controle de preco nos alimentos, pretendiam reduzir os arrendamentos rurais e abolir 08 tributos. “Por toda parte eles langam a convocagao a anarquia e A guerra civil.” Mas o movimento, mesmo que tivesse esses objetivos sociais mais amplos, teve sua base rigorosamente nas paréquias florestais em torno de Conches e Breteuil e, no momen- to exato em que se preparava para estender-se para Evreux, situada no norte, a 15 ou 20 quilémetros de distancia, comegou a perderapoio e foi vitima facil da gendarmerie e da milicia enviadas para suprimi-lo. Em meados de marco, 0 movimento tinha aca- bado e 63 presos esperavam julgamento na cadeia de Evreux. Enquanto isso, outro centro de agitacdo surgia no sul, no departamento vizinho de Eure-et-Loire. Comecando perto de Chartres em fevereiro, em La Loupe e Chateauneuf, os motins estenderam-se as paréquias vizinhas e cidades-mercados, che- gando até o leste, a Seine-et-Oise. Em 8 de marco, as. autoridades de Chartres informavam a Assembléia Nacional que os inimigos da lei e da ordem surgiram nos mercados de Mainte- non e Epernon e se esto preparando para incitar a desordem nos de Chateauneuf, Brezolles, La Loupe, Senonches e Nogent-le-Roi. Mais uma vez, grupos itinerantes concitavam os aldedes a agdo, tocando os sinos das igrejas e impondo o controle dos precos aos negociantes nos mercados. Dessa vez, porém, entra- 119

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