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PREFACIO Este livro 60 didrio de um guerreiro. Com rara vivacidade, 0 autor registra os lances de uma batalha incerta no campo da satide (mental). Psicanalista, esquizoanalista, militante histbrico da luta anti- manicomial, Antonio Lancetti é sobretudo um cartégrafo da vida ali onde ela enfrenta seus limites — esquizofrénicos, toxicémanos, meninos de rua, meninas prostituidas, todos aqueles em quem a violencia de nossa sociedade infame explode da maneira mais sofrida e por vezes suicidd- ria, e que nao se adaptam aos protocolos clinicos tradicionais, Com sua experiéncia de décadas nos mais variados contextos, desde terapeuta de rua até secretério de Agao Comunitdria na Prefeitura de Santos durante a gestio do Partido dos Trabalhadores, passando pela introdugao pioneira do Programa de Saiide da Familia em Sao Paulo ‘ou pela histérica intervengao no Hospital Psiquidtrico Anchieta de San- tos, 0 autor conquistou uma capacidade tinica de desafiar 0 consenso moralista que reina por toda parte onde “cuidar” encobre um imperati- vo de higiene social. Em contrapartida, a cada linha desse escrito sente-se o frescor da experimentagio, o corpo-a-corpo com as situacbes-limite, a liberdade pritica e tebrica, a mobilidade perspectiva que Nietzsche jé identificava com a prépria satide. Pois satide, para 0 autor, nao é a medrosa lta i contra a “doenca” ou 0 “desvio", mas produgao de vida, arte de (de)subjetivacao, poténcia de encontro. Como investir na autonomia e nao na infantilizagao dos sujeitos, como suscitar em suas vidas 0 acontecimento inédito, como introduzir a surpresa, send pela ascendéncia afetiva, entrando com o proprio corpo, izando 0 entorno, inventando conjuntamente uma linha de fuga, um agenciamento coletivo? onde se revela uma das idéias originais aqui presentes. A da clini- ca praticada em movimento, fora dos espagos de reclusao convencionais, com o que se inauguram outras formas de engate terapéutico, bem como outras possibilidades de conexao com os fluxos da cidade e da cultura. “Bstar-presente-em-movimento”, ‘por as pessoas de pé”, desterritor zar ocontexto eo setting, habitaro limite ea tensa, investir na forga, eis uma reversiio nos hdbitos clinicos consagrados, com seus paradoxos e riscos que 0 autor faz questo de trazer & tona a cada pagina. Forgosa- mente comparece aqui ou ali um diélogo com Freud, Winnicott, Basa- lia, Negri, para nao falar de Nietasche, ¢ Aristételes, que inspirou 0 préprio titulo do livro, dada sua prética de ensinar andando, Mas sobre- tudo com Deleuze ¢ Gual ri, que inspirarain o eixo teérico dessa expe- a sobretudo no final do livro, com a idéia rimentagao, eixo que se exp! de uma clinica cartografica. Defato, desde O Anti-Edipo os autores combateram a idéia de um inconsciente da profundidade, reterritorializado sobre a meméria, veto- rizado pela origent, centrado sobre a relagao sujeito/objeto. E reivindi- caram cada vez mais fortemente uma.concepgao desterritorializada e desterritorializante do inconsciente, pensado como trajeto, deslocamen- to, aberturas, passagens, privilegiando os devires, os meios, as variagdes, as conexées. . . E outra subjetividade que at se esboga, talvez mais flu- 12 xiondria ¢ rizomética, com seus processos de recomposigao intensiva sempre em andamento e abertos a exterioridade, Por conseguinte, éoutra clinica que at se insinua, cujos contornos minimos esto aqui esbogados, centrada nos percursos, nas articulagdes com o fora, nas conexdes, nos planos de consisténcia que se conquistam. E uma Iégica da Zona de Autonomia Temporéria, deambulante, proviséria, inacabada, sem “so- lugao final”: Uma tal nomadizagdo da clinica nao é independente da prépria faléncia das instituigdes de reclusao, Deleuze analisou essa passagem de uma sociedade disciplinar, baseada no confinamento, para uma socie~ dade de controle, calcada no monitoramento dos fluxos em espago aber- to, e tipica do capitalismo contempordneo. E possivel que a reivindica- ¢ao por uma clinica peripatética, ou cartogrdfica, se insira numa tal mutagao hist6rica caracterizada pela nomadizagao atual dos fluxos de toda ordem, e da propria subjetividade. Mas como no judé, trata-se de aproveitar 0 movimento do adversério para derrubé-lo, Ao lutar contra a produgao macica da impoténcia subjetiva, num contexto de dester- ritorializagao generalizada, trata-se de inventar as linhas de fuga aptas a relangarem o movimento na diregao de outras possibilidades de sub- jetivagao, Isso tudo pode ser facil de dizer, e até sedutor de enunciar, mas dificilimo fazer. Dai o mérito desse livro, que ndo tem aelegdncia assép- tica das teorias de gabinete, embora dialogue ativamente com clinicos e {fildsofos de primeira grandeza, eesté salpicado de relatos muito concre- tos, com sua “sujeira” prépria, saborosos, surpreendentes, heterodoxos: a bofetada num abrigado, num momento crucial (“makarenkada”), a radio livre oferecida aos craqueiros, a substituigao da cocaina pela ma- conha, a disposigao de tornar-se passaro em meio ao delirio de alguém. . . 3 ‘Nao hd formula magica, mas tentativa e erro, destemor e paixito, sem- re o combate contra o ressentimento (dat a bela invocagao do per- dao. . .), a fabricacao de nogoes esquisitas (a “fungao is constante de sustentar a posigao de bombeiro ¢ incendidrio ao mesmo tempo, numa conjungao de forga e ternura, afeto e crueldade, continén- cia e anarqui Seo leitor desselivro se dispoe a tomé-lo com a leveza e urgéncia com que foi escrito, terd compensada sua expectativa, mas sobretudo, verd reafirmada a liberdade que os tempos presentes pedem de cada um de nds, Nada estd definitivamente “selado’, apesar das vozes em contrério das carpideiras de plantao, eo percurso relatado é também o das lutas empreendidas nas iiltimas duas décadas no campo da satide mental no Brasil, com seus impasses e deslocamentos. Nem otimismo nem pessimis- ‘mo, mas jogo multivoco, polifonico. Como dizia Guattari: “Alegria, tra- gédia, comédia, . . os processos que gosto de qualificar como maquinicos trancam um futuro sem garantia — é 0 minimo que podemos Estamos ao mesmo tempo «presos numa ratoeira» e destinados ds m. insOlitas e exaltantes aventuras” —Perer PAL PeLpart u INTRODUGAO (On ne peut penser et éerire qu ass (Flau- ital A carne ymente 0 pecado contra 0 Espirito Santo. Somente os pensamentos ue surgem passeando tém valor. —Faiepnic Nievzs Escolhi o termo peripatético para designar esta série de seis ensaios, Peripatético no sentido comum do adjetivo e no sentido etimologico da palavra que provém de nepttattov (peritatés): pas- sear ir e vir conversando. A escola filoséfica fundada por Aristételes (384-322 a.C.) tor- nou-se conhecida pelo nome de peripatética em virtude do costu- me do Estagirita de ensinar andando pelos jardins de Apolo no Li- ceu, perto de Tlissos, nas cercanias de Atenas. Niio h4, nas paginas que seguem, intengao de aderir & doutrina ulos deram conti aristotélica nem as que seus di “Também na literatura psicanalitica, mais precisamente em al- ‘gumas biografias de Freud,' pode ser encontrada a expressio tera~ pia peripatética para referir-se ds sessées acontecidas caminhando. Outro acontecimento que provocou tal escolha foi a observagio ' Emilio Rodrigue. Sigmund Freud — o séeulo da psicandlise (1895-1995). Si0 273 15 de uma paciente, que, depois de me ver andando pela rua com outro de quem tratava, me disse: — voct é um analista peripatético, Outra influéncia, como sugere a epigrafe, foi nietzschiana. Con- ta-se que Nietzsche afirmava que as principais idéias surgem duran- te caminhadas. Por fim, a idéia-forca que influenciou o titulo do livro, e 0 pré- prio livro, foi a de clinica cartogréfica que Gilles Deleuze? deixou como um dos seus tantos preciosos legados, e que seus seguidores, segundo alcanga meu conhecimento, pouco desenvolvemos. © Capitulo 1 é uma reunido de experimentagdes ocorridas no campo da satide mental, da pedagogia com criangas e jovens com vidas dificeis, na educagao e na clinica psi que de maneira incipiente lavra- ram as idéias que aqui buscamos cunhar e desenvolver. © Capitulo 2 ¢ fruto de uma preocupagio crucial para o éxito ou © fracasso da Reforma Psiquitrica Brasileira: 0 modo de trabalhar nos Centros de Atengio Psicossociais, Caps. Em 1989, quando iniciamos a experiéncia de Santos, havia no Brasil treze Naps (Niicleos de Assisténcia Psicossocial) ou Caps oitenta mil leitos psiquidtricos. Hoje temos 820 Caps e quarenta e cinco mil leitos. Ao focar a preocupagio no conceito de territério ¢ na prioridade assistencial dada as pessoas em maior risco, mergulhei no campo da clinica antimanicomial. Spica antimanicomia O Capitulo 3 € o 4 tratam da Redugao de Danos. O terceiro é uma conversa com Domiciano Siqueira, um dos principais lideres dessa pratica no Brasil. Achei valiosa a conversa pois ela aconteceu no momento em que transitava peripateticamente pela experiéncia de Porto Alegre; estava entao trabalhando para construir uma politi- * Gilles Deleuze. Clinica e critica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, 16 ca assistencial para criangas e jovens dependentes de drogas, por meio de um convénio de cooperacio entre 0 Unicef e © governo ‘municipal portalegrense, que naqueles anos se destacava pela inova- Go € eficdcia de suas politicas publicas, O Capitulo 4 preocupa-se pelo que se revela como clinica na experiéncia de Redugao de Danos. Ou melhor, pelo que a Redugao de Danos traz.como contribuigao a clinica de dependentes de drogas € outras formas suicidarias de existéncia. No Capitulo 5 retomo o problema da satide mental no PSF — Programa de Satide da Familia — pela mao dos agentes comunita- tios de satide, destacando a potencialidade terapéutica dos agentes e explorando 0 que poderia ser chamado de uma transclinica. ‘Transclinica porque diferenciada de clinica ampliada, dado que nao se trata de levar os mesmos pressupostos, tio criticados nos pro- cessos de transformagao institucional, para novas éreas. Por fim, no Capitulo 6, aventuro-me em territério nao lavrado que a genialidade deleuziana nos legou com 0s conceitos de agen- ciamento e clinica cartogréfica. Com essa contribuicao critica pretendo avivar o transito por esse limiar que vai do exilio a cidadania, Esse deambular defronta-se com fracassos ¢ acidentes de percurso, lado a lado, com pessoas to- madas pelo império da morte e da infantilizacao capitalisticas, com seu desarranjo de violénciae neobarbérie, Mas também busco com insisténcia as poiéticas que pulsam nos percursos de afirmagao da vida que navegam pelas aguas do comum, sempre plural, sempre cooperative. Comum e comunista, sempre defronte para o futuro. 7 Capitulo 1 FONTES DA CLINICA PERIPATETICA Conversagdes ¢ pensamentos que ocorrem durante um passeio, caminhando — peripatetismo — sio uma ferramenta para entender uma série de experiéncias clinicas realizadas fora do con- It6rio, em movimento. [= Fssas estratégias so destinadasa pessoas que nao seadaptam aos protocolos clinicos tradicionais = toxicémanos, violentos, esqui- zofrénicos, jovens sobretudo —, quando dispositivos psiq pedagégicos, ‘Vamos ao encontro, as vezes de surpresa, de familias que passam. por grandes dificuldades; transitamos pelas cidades com pacientes psicéticos; transpomos os portdes de clinicas e hospicios; transbor- damos os consultérios. Bleger" entende o setting como a constante fundamental da cura ou o depositario da parte psicética da personalidade e como a parte ivos. Para ele, a situa {Gio analitica € composta de invariveis e processos. Bleger afirma a importancia de cuidar do setting para reconstruir as partes desinte- gradas, despedagadas da subjetividade, mas também outorga impor- * José Bleger. Simbiose ¢ ambigiaidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, s.d. 19 tancia ao proceso ou aquilo que muda, Ele afirma ainda que o set- ting se manifesta quando € quebrado. Winnicott, que desenvolveu mais que outros psicanalistas a teo- ria da situagao analitica, entendia o setting como um espago parado- xal que, ao mesmo tempo, é e ndo é Com respeito a rua, 0 consul- ‘torio € 0 dentro, mas a sessao é 0 fora do analisando. Essa relagao paradoxal, por ele denominada transicional, ndo ¢ pensada como manifestagdes do paciente que podem ser catalogadas para correta aplicagao das prescrigdes técnicas. Ou seja, para tal ou qual manifes- tagao, tal ou qual interpretagao, assinalamento ou qualquer outra intervengio técnica. Essa relagao paradoxal é plena de expressdes ainda nao forma- das, pré-significantes, raridades fundamentais para produgao de sub- jetividade, (- Osetting 6a montagem, 0 cenario ou a situagao; espaco dentro- /fora facilitador da comunicagio inconsciente-inconsciente; relagao (na qual o psicanalista opera. Em psicodrama o setting é a cena psico ou sociodramatica. Em- bora haja recursos clinicos por assim dizer fixes — aquecimento inespecifico, aquecimento especifico, etc. — é a cena psico ou socio- dramética (psico refere-se ao mundo interno ou co-inconsciente e sécio refere-se a alguma situagao social ou grupal). A montagem da cena é sempre singular e tinica para favorecer a espontaneidade. A seguir listaremos uma série de experiéncias clinicas nas quais, essa montagem ou situagao € mével, feita de percursos e transposi- bes de espacos ¢ tempos institucionais, A necessidade de escrever a respeito da clinica praticada em movimento, fora do consultério, no dentro-fora dos consultérios, 20 nos espacos e tempos tragados transbordando a psiquiatria, a psica- nilise e as instituigdes de satide mental, é provocada pela complexi- dade dos tratamentos que venho conduzindo na atualidade e pelas diversas experiéncias de produgao de satide mental. As fontes de inspiragdo do que denominamos clinica peripatéti- ca so muitas e diversas, a saber: A experiéncia de desconstrugio manicomial Durante o tempo da Intervengao na Casa de Satide Anchieta, em Santos, que comegou em 1989 ¢ culminou em 1994, com o fecha- mento do hospital psiquiatrico, percebfamos que os pacientes mu- davam ao transpor a porta do hospicio, que um enxame de pessoas permanecia no limiar arquitetOnico, entre 0 dentro e o fora do pré- dio, que essas saidas e entradas, as idas ao cinema, as andangas pela cidade constitufam novos settings altamente ferteis para a produgao de subjetividade e cidadania. — O trabalho de desconstrugdo manicomial mostrou que 0 cené- rio do hospicio, a organizagao dos espacos-tempos sao promotores de identidades cronificadas e que a clinica reabilitativa ¢ imanente a0 proceso de desmontagem manicomial. O hospicio de Santos foi construido, conturbado e demolido. Construido, pois o primeiro periodo da Intervengao foi dedica- do ao conhecimento e cuidado de cada um dos internos ¢ de suas familias. Conturbado, pela mudanga dos espacos-tempos institucionais ¢ pela colocagao da instituigao de reclusdo, em contato com a cidade, acarretando crises e contestagdes juridicas e politicas com o statu quo. 21 Demolido, porque inteiramente substitufdo por um sistema de satide mental. Essas trés operagdes modificaram a relagio da loucura com a cidade, com sua cultura e com a politica. Nesse processo geraram-se varias clinicas. A primeira, uma an- ticlinica. Btimologicamente, xAtvurch (Kliniké) significa cuidados mé- diicos de um doente acamado e 0 verbo xAive (klino), inclinar-se, debrucar-se sobre o paciente, Na desconstrugio manicomial ¢ na clinica antimanicomial trata-se, de saida, de por as pessoas de pé. A medida que se desmontavam os espagos-tempos manico- mais e se ativava a relagdo do coletivo (pacientes, trabalhadores de satide mental e dirigentes) com a sociedade, inventévamos cada dia empreendimentos que produzissem desejo de viver fora do hospicio. Clinicévamos para por de pé os cidadaos psiquiatrizados e para promover uma intensa interacdo com a cidade, com pessoas ¢ movi: mentos de diversas partes do Brasil e de outras partes do mundo. Fundamentalmente, a primeira gestao, conduzida por Telma de Souza e David Capistrano Filho, baseava-se na diferenga e na multi- plicidade. Pessoas de diversas correntes politicas, estilos e modos de vida diversos, trabalharam juntas, unidas por um objetivo comum. Acredito que o fato de uma das principais obras daquela gestao ter sido transformar Santos na primeira cidade brasileira sem manicd- mios foi heterogeneticamente rica — por seu baixissimo grau de sectarismo e pelo desejo de diversidade. Entre tantas experimentagdes, afetados pelo conceito guattaria- no-deleuziano de agenciamento, levamos um grupo de meninos ¢ meninas de rua para passar um periodo na Casa de Satide Anchieta, pois acreditévamos que conectando sedentarios que eram os pacientes 22 crénicos (a experiéncia aconteceu no final de nossa estada na Casa Anchieta) enémades que eram as criangas e adolescentes moradores de rua, poderiamos gerar novas subjetividades.. Os meninos e meninas respeitavam os adultos e se abriam para © cuidado de outrem, sobretudo dos mais velhos, os pacientes lem- bravam de seus filhos, Um dos jovens reconheceu um interno ¢ ajudou a reconstruir sua biografia e a modificar 0 diagnéstico psi- quidtrico. O interno estava hd tempo com diagnéstico de deficiente mental grave e um dos jovens o reconheceu como freqtientador de um bar e jogador de sinuca; ele havia ficado amnésico depois de sofrer um golpe de taco de bilhar na cabega, A experiéncia estava em pleno florescimento mas tivemos de suspendé-la pois sofremos uma aco judicial, acusados pela direita santista, de por em pratica o “método Capistrano”, que consistia na erotizagio dos pacientes. Em 1990, quando Félix Guattari visitou Santos, disse que ai estava ocorrendo a quarta revolugao psiquidtrica, e essa revolugao gerou um capital de conhecimento que nao somente se tornou refe- réncia para a reforma psiquitrica brasileira, como também funda- mento para a invengao de diversas experiéncias ocorridas em outras reas como educagao, assisténcia social, sadide, seguranga, Nesse sentido, no trabalho afetivo ocorrido com meninos de rua, meninas prostituidas, de redugio de danos (que também foi iniciada em Santos sob o comando de David Capistrano Filho e Fé- bio Mesquita) ou com toxicdmanos, pode-se reconhecer uma ca inspirada na experiéncia de transformagio da psiquiatria. ~ Todas essas praticas tém ‘a marca da ousadia, da invengao e de uma potricia de transformagio francamente terapéuticas. 23 A pedagogia da surpresa Quando 0 crack chegou a cidade de Santos, percebemos que estivamos perdendo contato com muitos meninos ¢ meninas que ‘moravam na rua. Depois de levar alguns deles para 0 pronto-socorro por overdose de cocaina, decidimos organizar uma estratégia de in- tervengio e uma metodologia de trabalho a que chamamos de peda- gogia da surpresa, Ou seja, atingir esses meninos e meninas no mo- mento e no lugar em que eles menos esperavam. As seis da manha, quando eles ja estavam dormindo na rua, jun- tavamo-nos — conselheiros tutelares, educadores, guardas mut pais e dirigentes da Secretaria de Ago Comunitéria (na época eu era © secretario) — e saiamos em comboio percorrendo os becos da cidade. Acordévamos cada menino e menina chamando-0s pelo nome € 08 conduziamos a forga para a Casa de Inverno, casario destinado a abrigar homens e mulheres moradores de rua nas noites frias.? Na Casa de Inverno ja se achavam meninas do Projeto Meninas? (ex-prostitutas adolescentes que se formavam nas oficinas de bele- za), outros educadores, um médico clinico e, as vezes, alguns mem- bros das familias dos meninos. Primeiro em roda transmitfamos basicamente que af estavamos * Antonio Lang rucao da experi isténcia sociale cidadania — invengd . “Meninas de Santos: 0 aflorar de uma (org.). Assistencia sociale cidadania, op. ‘Tereza Berardo, Maria S. Farah Reis & Rosingela Mendes para defender os seus direitos, mas que eles nao tinham o direito de se matar na nossa frente. Portanto, Jos da rua quantas vezes fossem necessérias. Explicévamos os passos da jornada que eram os seguintes: 1°) Quem quisesse poderia posar para uma fotografia instanta- nea antes da jornada e outra depois. As fotografias eram entregues aos meninos e meninas; 2.°) Jogavam-se as roupas fétidas no lixo, Os meninos tomavam banho, vestiam novas roupas e calgavam sapatos, ténis ou chinelos; 3.) Tomavam café da manha 4.) Cortavam 0 cabelo (nao 0 raspavam) com as meninas cabe- leireiras da Oficina de Beleza; 5.°) Um médico achava-se a disposigo de quem o desejasse; 6°) Discutia-se, com os conselheiros tutelares, com os familia- res presentes, com as criangas e adolescentes, o destino imediato de cada um dos meninos e meninos: retorno 2 familia, ao abrigo muni- cipal, & cidade de origem, etc. Durante jornada, que se estendia por toda a manha, os educa- dores de rua jogavam ténis-de-mesa, pintavam camisetas, brinca- vam com os meninos e com as meninas. Para nossa surpresa muitos meninos, mesmo os considerados mais dificeis, pediam para voltar ao Projeto, consultavam o médico clinico e encaminhavam uns aos outros para o servigo de assisténcia aos drogados, ou para as policlinicas, Os que retornam a rua conservavam durante muito tempo as fotografias polaroid. 25 Internagio invertida Entusiasmados pelos éxitos dessa experiéncia, desenvolvemos uma pratica que chamamos de internacao invertida, Em vez de in- ternar meninos e mer Escol as nos internavamos a nés, educadores. famos os meninos mais problemiticos e safamos da cida- de para sitios, casas de praia ou acampamentos. A idéia era desterri- torializar o contexto pedagégico e tentar algo diferente, tendo-se em conta que a assisténcia prestada estava fracassando. "Na primeira viagem escolhemos os dez. adolescentes mais difi- ceis — que usavam drogas, brigavam, furtavam, causavam proble- mas com os vizinhos dos abrigos e com a imprensa que nos perse- guia sistematicamente. E com dois assessores fomos para minha casa num morro de Ubatuba, no meio de mato. Quando chegamos a casa, notamos que ela estava com muitos problemas, fruto do abandono, pois durante a época em que fui secretério, nunca tinha um fim de semana para sair de Santos. Arru- mamos todos o telhado, instalagao elétrica, e quando consertavamos a caixa d’4gua, um dos mais terriveis da turma apareceu com um saboroso café — Foi minha avé quem me ensinou a fazer este café. Depois de um siléncio (era noite de lua cheia), © menino acrescen- tou: — Tio Lancetti, precisamos fazer um projeto diferente para nos- sas vidas! Um deles dormiu com a lanterna debaixo do travesseiro, pois tinha medo da escuridao. Ele sabia dormir na Praca da Sé mas, des- territorializado, descortinava seu coragao. No segundo dia, sintonizaram a Radio Roquete-Pinto do Rio de 26 Janeiro, ¢ preferiram ouvir Mozart, em vez dos eds de rap que ti- nham levado. Antes de partir, eles pediram uma reuniao p. Depois, outros educadores viajaram para acampamentos ¢ si- tios sempre destacando o carter provisério que devia ter a expe- riéncia, A intervengao tinha comeco, meio e fim e funcionava como injecao de afeto e incrustagdo de transferéncia; um vinculo inédito numa relacdo saturada de significado, estereotipada e sem poténcia pedagégica ou terapéutica, Essas experiéncias nos revelaram mudangas nas relagdes que se iscutir drogas. tornavam tenras, francas e promissoras. ‘A psicandlise na sua fase instituinte Freud também analisou pacientes andando, como foi o caso de ) / reud também analis %, diivida, enviou varios telegramas a Freud ora solicitando anélise ora para desmarcar os encontros, o quelevou Freud a tomar umaatitude | ativa, intimando-o. = Encontraram-se, durante as férias de Freud, em 1908. Fizeram ‘uma sesso de quatro horas caminhando pelo campus da universida- de e pelas ruas da cidade de Leiden.* Segundo Jones, “essa conversa, evidentemente, produziu efei- ‘tos, pois Mahler recuperou a poténcia e o casamento foi fl morte, que infelizmente ocorreu apenas um ano depois”.** Em carta a Theodor Reik, Freud comentou: “Se der crédito as noticias recebi- das, consegui fazer muito por ele naquele momento. Em interessan- tes expedigdes pela hist6ria de sua vida, descobrimos suas condigdes pessoais para o amor. . Sessdes de anilise queaconteceram caminhando Na Argentina, na época do Proceso, durante os anos da ditadura militar, muitas pacientes encontravam seus analistas fora dos con- sultérios. Algumas sessoes ocorriam nos cafés, mas dada a circunstancia de que a pi revistava sistematicamente os bares, analistas ¢ pa- cientes faziam suas sessdes de andlise caminhando pelas ruas de Buenos Aires. ‘Na minha experiéncia de psicoterapeuta, muitas vezes sai a pas- seio com pacientes, Eram tratamentos que se encontravam burocra- tizados, sem descobertas, repetitivos. O objetivo era sair para conver- sar a respeito do que acontecia ld no consultério, mas muitas foram as revelagoes e sonhos narrados. Em outras oportunidades encontrava-me com pacientes em_ lugar marcado por ele. Um deles, que hoje, enquanto redijo estas linhas, lamentavelmente est internado, marcou nosso primeiro en- tro no bairro da Liberdade, em Sao Paulo. Nao pude com a fami- id Froud — o séeulo da psi 73-4, a obra de Sigmund Freud II, Rio de Janeiro: Imago, p. 92. lise (1895-1995). S30 lia, a tinica pessoa que se dispde a cuidar dele é a mae, mas ela esta gravemente enferma. Sei, no entanto, de seus passos porque sempre me avisa para dizer onde mora e como est, ou me telefona cumpri- \_ mentando pelas festas de fim de ano. YI eh ; —}>0 acompanhamento terapéutico — AT A oo ZZ Apritica do acompanhamento terapéutico consiste em transi- lade com pacientes psicéticos ou com alteragdes psiquicas ao — Os objetivos que se buscam, nesses empreendimentos, sao a conexio com pessoas, atividades e locais, depois do colapso que 0 surto provoca. Na cidade de Santos criamos o primeiro concurso ptiblico para acompanhantes terapéuticos, de maneira que os Naps de Santos tém em seu quadro de funcionérios esses profissionais, Fui também supervisor de ATs, mas minha pritica clinica se con- funde muitas vezes com a pratica dos acompanhantes terapéuticos. ‘Segundo minha experiencia, essa praxis nao deve ser reduzida a de um aw jtrico, Em muitas oportunidades, o ir € “como paciente ¢ posigao de comando do tratamento ou tinica possi- bilidade. Como o fiz em livro recentemente publicado,’ além de outorgar valor de condugao a quem acompanha, considero matizagao o proprio percurso e a amizade. * Antonio Lancetti. “A amizade e Acompanhamento Terapéutico”, do Gomides Santos (org,). Texto, texturas e tessituras no Acompanhamento Terapéu- fico. S40 Paulo: Hucitec-A Casa, 2006. 29 Estar presente em movimento, esse estar-ai-junto ¢ em movi- ‘mento, gera uma continéncia as vezes maior que a que se passa entre as quatro paredes do consultério, Na minha pritica prefiro estar sempre presente no momento da alta pois no trinsito, da instituigao para fora, sempre se geram co- municagées e descobertas importantes para 0 proceso terapéutico. hd uma variagao na quantidade intensi- va ena qualidade expressiva da relacio. F fundamenal lembrar que nos seus primérdios os praticantes chamavam-se amigos qualificados. Adiante nos preocuparemos com a importancia do trinsito na relagdo terapéutica e com o valor ea complexidade do conceito de amizade, A clinica praticada pelas equipes volantes de satide mental associadas as equipes de satide da familia’ Em 1998, iniciamos uma experiéncia de satide mental articula- da ao Programa de Satide da Familia. As equipes de satide mental eram (¢ ainda so) plenamente pe- ripatéticas. Operévamos sem consultério ou outro lugar de atendi- mento, sem ut 80s como consulta psiquiatrica, psicolégica, ou visita domiciliar (no sentido tradicional da visita, praticada por assistente social). A estratégia clinica foi uma invencio inspirada nas fontes cita- das ena fantéstica produgao biopolitica que é a satide publica produ- (org). Saiideloucura 7 satide mentale sae da far zida mediante a intervengao no seio dos grupos familiares, especial- mente a do Projeto Qualis/PSE, conduzido brilhantemente por Da- vid Capistrano Fil Com Davida testa, o Programa de Satide da Familia era, mais do que uma modalidade ou uma praxis de sattde pitblica, uma experién- cia de produgio de vida, solidariedade, cidadania, de ativacio do comum' no sentido proposto por Toni Negri e Michael Hardt. Toda a rede de satide era dotada nao apenas de dispositivos que buscavam realizar a integralidade, como ambulatérios de especiali- dades, programa de satide bucal, programa de satide mental. . . que davam eficicia & agio, mas também de espirito de inovacio e de vi- ruléncia afirmativa e forga de convencimento para confrontar as 2 confrontar as ara atender tradicionais maneiras burocraticas e simplistas feitas os pobres. ~~ Em todas as unidades de satide havia ativi caminhadas de hipertensos, de educagao ecolégica, de intervencoes para reversao do tratamento do lixo, de educagio, de satide bucal, de iades coletivas como prevencao da aids, etc. Na trama da rede havia também uma atitude de busca de eficécia ¢ de ruptura em relagéo a praéticas segmentarizadas € burocraticas a . ica di 10, que € uma mat como, por exemplo, a pratica do acolhimento, 4 de escutar 0 softimento de quem precisa, pratica essa tradicional- mente realizada por médicos na forma de triagem ou pronto-atendi- fano Filho no VI Congresso da Abr * Pronunciamento de David Ci Rio de Janeiro, 2000. "© comum no sentido que Michael Hardt ¢ Antonio N lao (Rio de Janeiro: Record, 2005), a0 mesmo tempo — Qual sua fungao aqui no hospital? — Eu sou médica psiquiatra. \ —Nio pode ser, vocé me escuta! Foi assim que esses técnicos passaram por uma experiéncia de desconstrugao de sua formagao profissional e de sua subjetividade e "Por tuma associagao a outros mentaleiros que ai estavam para prota- gonizar o que Félix Guattari chamou, quando ai esteve em 1990, de quarta revolugao psiquiatrica. As mudangas nao eram 36 de paradig- mas ou de formas de pensar, de uma ou outra maneira a vida de cada um dos protagonistas se transformou, Por outro lado, como o primeiro Naps foi instalado no prédio de tum centro de satide, como se pode imaginar, enfrentaram-se muitas dificuldades de convivéncia com os profissionais de outras areas de satide e com a populagao. Essas dificuldades foram motivo para vi- rias discussées e efeitos demonstrativos. Numa oportunidade, um paciente, em estado de excitagdo psi- comotorae intensa fitria, estava, sozinho, virando um fusquinha numa rua préxima ao Naps. Uma viatura chegou ao local e varios policiais tentavam conté-Io com dificuldade, quando apareceu Miriam Soa- res, uma terapeuta ocupacional bem franzina. Ela pediu para solta- rem 0 paciente e 0 conteve apenas com afeto, levando-o de volta 20 Naps a pé. s trabalhadores de satide mental de Santos tornaram-se ver- dadeiros terapeutas: destemidos, dispostos, apaixonados. Nao esco- Thiam pacientes nem pretendiam que eles se adaptassem a suas cor- poracdes, modelos ou grupos de pertinéncia. Os Naps de Santos nasceram dotados dé uma alma antimani- comial e com vontade de experimentacao. E foi exatamente essa alma que 08 administradores que sucederam os governos de ‘Telma de Souza e de David Capistrano Filho buscaram sistematicamente minar. 44 Outro centro, que podemos chamar de precursor dos Caps é 0 que leva o nome de Luiz Cerqueira, um dos primeiros a serem fun- dados em Sao Paulo no Brasil. Foi a tiltima agao da gestao de Ana Pitta como coordenadora de Satide Mental do Estado de Sio Paulo. Programado e materializado de maneira mais “planejada” que os de Santos, foi, por assim dizer, a superagao do modelo do ambulatério de satide mental. Até pela feliz atuagio de muitos desses ambulat6- rios, como o da Vila Brasilandia, entre outros de Sao Paulo, foi mos- trado onde se encontrava o limite do modelo ¢ a necessidade da criagao de centros mais complexos, principalmente para poder dar uma assisténcia integral a pacientes psicéticos. (© famoso Caps da Rua Itapeva, embora criado ha quase vinte anos € nao funcionando ainda em regime de 24 horas — evidentemente nao por intengio de seus criadores e trabalhadores — ja nasceu com uma vocagao substitutiva e nao complementar dos manicdmios. ‘Muitos outros Naps que nao conhego nasceram e se desenvolve- ram como nticleos de irradiagdo da cultura antimanicomial, Entre 08 que, de uma ou outra forma, conheci e permanecem sintonizados com a metodologia territorial e substitutiva acham-se o da Vila Bra- silindia e outros em Sao Paulo e Florianépolis, os do Ceard, particu- larmente de Sobral e Quixadé, e os pernambucanos de Recife, Cabo de Santo Agostinho e Camaragibe, os de Sergipe, os de Campinas os Sersan (Servigos de Referéncia em Satide Mental) mineiros. Mais tarde, funciondrios do Ministério da Satide preferiram ado- tar o nome de Caps em vez de Naps, ou seja, preferiram centro a nicleo. Particularmente, prefiro termo miicleo pelas referéncias a0 modelo da célula e porque 0 nticleo sugere um centro que se expan- 45 de também para fora. David Capistrano Filho era mais radical e 0 chamava de niicleo de apoio e nao de assisténcia psicossocial. Nessé Caso, nao se tratava de ger contra a palavra assisténcia, que significa estar ao lado do outro, mas das diversas formas tecnocré- ticas, burocréticas e coorporativas em que a assistencia acaba de- caindo. ‘Um dos grandes obstdculos dos Caps é a centralizagao em si mesma € sua pouca abertura para o territ6rio, Em 1997, conheci um Naps na cidade de Goiania, que funcio- nava como uma clinica de psicologia infantil privada: atendia so- mente criangas e quem se adaptava aos procedimentos que eles ma- nejavam, isto é, as mais graves nao podiam ser atendidas ¢ muito menos jovens ou adultos com severos transtornos ou outras pessoas em grave sofrimento psiquico. Na cidade de Sao Paulo, tivemos igualmente a experiencia dos hospitais-dia municipais, durante a gestio da prefeita Luiza Frun- dina, a0 mesmo tempo que equipes de satide mental se abriam Para a comunidade ao se instalarem nas unidades basicas de satide ou nos Ceccos (Centros de Convivéncia e Cooperativas) operando em parques publics. Em alguns desses hospitais-dia, era preciso preencher tantos re- quisitos e se adaptar a rotinas tao rigidas que tornava muito dificil 0 acesso das pessoas. Alguns eram mini-hospitais de psiquiatria que funcionavam com muitos profissionais e poucos pacientes, outros estavam inseridos no territério e com valiosa atividade grupal. ica, pude observar que qualquer instituicio que agru- C mida, por exemplo, mas quando hé uma crise busca-se logo 0 psi- quis tra, = "Na realidade, maior problema de que os Caps padecem mani- festa-se quando os profissionais escolhem pacientes e buscam adap- té-los as especialidades, aos modelos terapéuticos aprendidos com seus terapeutas. ‘Ao se iniciar a instalacao pelos Caps 1, isto é, pequenos grupos de profissionais desconectados do sistema de satide e sem possibili- dade de priorizar 0 cuidado dos pacientes mais dificeis, houve uma tendéncia preventivista. No meu modesto modo de entender, 0 veria ter comegado pelos Caps 3, ou seja, pelos destinados a substi- tuir os hospicios, que funcionem 24 horas por dia, com possibilida- de deagir na complexidade do territorio e oferecer camas para hospi- talidade diurna e noturna. ‘Mas 0 certo € que a maioria dos Caps nao funciona pensando na cidade, eem seus problemas mais candentes, e muito menos se preo- cupa com a diminuigao das internagoes psiquidtricas, dos suicidios, dos homicidios ou de outras formas de violéncia. Nesse caso, nao cabe aos terapeutas procurar novas estratégias _clinicas: os pacientes é que devem adaptar suas demandas as ofertas istério da Saiide de- dos servigos. ‘Tal linha de agao foi criando uma corrente tecnocratica ¢ buro- critica: os Caps envelhecem prematuramente, segmentarizam-se, “sta vida torna-se cinzenta, infantilizada e os profissionais sio regi- dos pelas dificuldades e se enclausuram em diversas formas de cor- porativismo, Os recursos se reduzem, se Fepetem e as equipes, como ar-se no psiquiatra, Retornam os ambien- 47 dantes, voltam a central tes sombrios ¢ o odor de hallopelidol que caracteriza, pelo cheiro, 0 hospicio ou a cli ica Um Caps burocritico é um Caps que cheira mal, Diante dessa situagio, penso em trés maneiras de turbinar os _ A Caps SS A primeira é a recolocagao, 0 reposicionamento ou 0 retomo ao “eu sent atender de portas abertas o que o hospital psi- quidtrico atendia de portas fechadas. Ha hoje, no Brasil, milhares de pessoas que vivem submetidas a0 embrutecimento manicomial. © Caps, como qualquer dispositi de satide mental, deve, pri- meiramente, atender os casos mais dificeis, em que haja risco de mor- te, maior sofrimento ou maior inconveniente para a comunidade. Ly ‘A segunda é considerar todas as ages de produgao de satide men- tal a luz do relacionamento com 0 Programa de Satide da Familia, Hoje, no Brasil, cerca de cem milhdes de pessoas so cobertas pelo Programa de Satide da Familia — PSE. Sao cem milhées de brasileiros que recebem mensalmente a visita de um agente comu- nitario de satide. Esses trabalhadores afetivos — segundo a denominagao de Toni Negri e Michael Hardt’— so, ao mesmo tempo, parte e lideranga comunitéria e membros da organizacao sanitaria. Eles promovem satide, cuidam de situagdes basicas e sdo a ponta de langa para o exercicio de uma microssociologia de fundamento vital e uma prag- mitica solidéria, » Para An nio Negri ¢ Michael Hardt os trabalhadores afetivos ¢ os que de- balho em casa ou por mei compdem 0 novo proletariado. Antonio Negri & Michael Hardt. Império. Rio: Record, 2000. 48 Os agentes comunitarios de satide descobrem pessoas em prisio domiciliar, psic6ticos graves que ndo chegam aos servigos de satide mental ou as que esto com problemas para os quais a psiquiatria nao est preparada, como 0s violentados, os ameagados por trafican- tes ou por gangues, entre outros. Esses trabalhadores de satide ¢ habitantes do territério fazem_ parte de equipes compostas por médicos generalistas, enfermeiros de familia e auxiliares de enfermagem que cuidam de uma populagao fixa com a qual desenvolvem uma relago continuada de cuidado. ‘As equipes do PSE, nas unidades basicas, realizam atividades grupais e o que se denomina acolhimento, isto é uma escuta do sofrimento das pessoas de sua drea de atuacao. A estratégia da familia € uma praxis na qual a sate ea satide mental se articulany de tal ‘modo que satide e satide mental chegam a fundir-se. (© vinculo continuado que estabelecem e desenvolvem os inte- grantes das equipes de satide da familia com as oitocentas ou mil familias (umas quatro mil pessoas) gera angtistia nesses trabalhado- res de saiide. Anguistia essa que a conhecem os trabalhadores de sati- de mental. ‘As equipes de PSF conhecem de modo progressivo as biografias de seus pacientes e solicitam apoio para suportar as relagdes com pessoas que tradicionalmente sio atendidas pela satide mental. Desse modo, as equipes de satide mental que operam em re- gides cobertas pelo PSE, nao podem deixar de questionar-se sobre as relagdes com essas outras equipes, pois ambas tratam dos mesmos, pacientes e sio funciondrios do mesmo Sistema Unico de Satide. Nesse sentido, formulamos estas questdes que nos parecem im- portantes para a atualidade e um futuro imediato dos Caps, a saber: 49 + O Caps é um servigo de referéncia? De contra-referéncia? +» Tal como na assisténcia basica, a clinica praticada é regida por determinantes epidemiol6gicos? + Qual a responsabilidade sobre as pessoas da érea de abrangén- cia internadas em hospitais psiquidtricos? - - . "+ 0 Caps éum local de tratamento centrado no seu espaco inter- No e nos procedimentos terapéuticos intramuros? Ou busca ativar ‘os recursos da comunidade? * Qual a importancia da agao das equipes de PSF para ativagao desses recursos, para inclusio das familias, dos vizinhos e das diver- sas atividades af desenvolvidas? * Como a relacio Caps/PSE pode inserir-se no campo da cultura e agir no territério existencial? + Os profissionais de Caps esperam do PSF uma organizacao com potencial de inviabilizar a agao por excesso de encaminhamen- ‘05 OW um conjunto de ompanheiros com potencal de paceria? nhecimento e a distribuigto de saberes tem a aoa necessiria para arrancar os Caps de sua reclusio tecnocratica e de sua tristeza burocritica, Conduzidos pelas maos de agentes comu ios e pela discus- so com os outros membros das equipes de PSF, 0s trabalhadores de satide mental que atuam nos Caps podem ser ativados, e essa ativa- 20 € uma poderosa arma contra a cronificagio. A associagao das equipes de trabalhadores de satide mental com 0s profissionais de satide que atuam na estratégia da familia recoloca-os no territério. Sua ago pode ser intensificada porque o centro da ago terapéu- tica é colocado no campo existencial, no qual as relagées de afeto, de 50 cooperagio e de produgao de satide mental se exacerbam. A clinica é _obrigada.a operar onde os protocolos conhecidos ji fracassaram, como no caso da drogadicgao ou de violéncia familiar e comunitiria. Articulado ou nao (nem todas as regides estao cobertas pelo PSF), um. Caps | turbinado é um Caps paradoxal. ~ ~ ‘A reforma psiquiitrica, longe de reduzir-se a bandeiras ideol6 sgicas, traz para a clinica uma exacerbagio de complexidade. A con- sulta psiquidtrica, a entrevista psicolégica ¢ a visita domicilian, os grupos Terapéuticos ¢ as oficinas de arte e de produgio sio recursos pobres para o atendimento de pessoas que nao demandam, que nao possuem cultura psi ou que se violentam de diversas formas. ‘As segdes de famili territério sem a participagao direta de profissionais da satide mental, as discusses de caso realizadas no percurso que vai da unidade de em domicilio, as atividades ocorridas no satide até 0 domicilio dos usuarios, os agenciamentos produzidos com organizagdes de cooperagio, religiosas ou com produgées de arte Sdo novos seftings terapéuticos mais eficazes e sintonizados com as novas, Por paradoxais queremos dizer que sua pritica ocorre, a0 mes-/ mo tempo, dentro e fora das unidades de satide, no territério geogra- fico e no territério existencial, no domicilio e no servigo. . . Para Winnicott, o setting analitico é um espago paradoxal, den- tro do consultério e fora do mundo interno. A experiencia de des- construg4o manicomial nos ensinou a importancia do dentro e do fora do estabelecimento, das bordas como espago privilegiado de produgao de subjetividade cidada. A idéia parece fértil para a fundamentagao do Caps que tem um Eno territério e outro no servigo de satide mental; uma Anco /s f Domiciano SiQUEIRA —Eu gosto disso, da “pedagogia da sur- presa’, acho que isso € tio fascinante, tio certo, é uma coisa que incontestavelmente dé certo, Eu acho legal dizer assim, por exem- plo, quando as pessoas entendem, eu escuto isso, quando a gente fala, a pessoa se apresenta “o drogado do médico” e “o médico do drogado”:£ fantastica essa relagdo, porque o médico também se sen- te feliz quando encontra um drogado para salvar e se sente poderoso porque “salvou alguém”, O drogado salvo, entio, continua a rede, continua a seqiiéncia de acontecimentos, porque as pessoas preci- sam 0 tempo todo ter essa sensacao de estarem salvando ou sendo salvas, ou seja, as pessoas se enganam mesmo, E muito mais facil para um drogado dizer“eu sou um drogado’, do que falar “eu sou Domiciano” ou “eu sou Lancetti” ou “eu sou um {Joao ou um Jose” A sociedade quer agrupar as pessoas em drogados, "© sidéticos, esses ou aqueles, porque parece que fica mais facil colocar ada um num grupo, cada um num canto, isso é uma pretensa reor- ganizagao social. A minha proposta pessoal, e acho que é a propos- ta dos projetos de redugio de danos também e principalmente a do nosso projeto, é romper com isso. Nés nao temos que agrupar as pessoas, nds temos é que desagrupar e ir ao encontro del pessoas falarem, ouvir essas pessoas, para que elas digam o que € que funciona melhor. Essa sensagio de que a gente vai chegar com um caminho certo e pronto, com doze passos — ou treze ou quinze ou vinte pass0os — 86 para a pessoa andar, nao vejo com bons olhos. E claro que respeito enormemente os alco6licos anénimos, os narcéticos anénimos, mas nio serve para todo mundo, serve para uma seleta minoria. A grande maioria continua precisando, na rea- lidade, de criar e percorrer 0 préprio caminho e nao andar pelos 7” ppassos dos outros. £ a busca da autonomia, como vocé diz. Para mim, a solugao esta as pessoas tém de assumir a responsabilidade sobre si mesmas ¢ as pessoas que tém responsabilidades sobre si mesmas, ¢ isso € posstvel, dao automaticamente o primeiro paso para usar cada vez menos drogas e, quem sabe, até um dia pare de usé-las, porque so elas quem tem de se responsabilizar pela propria vida e ver que tem muita coisa para se fazer, além de ficar 0 tempo todo tomando uma injegao ou fumando ou pipando crack. Penso, entdo, que a nossa proposta, que é essa proposta de reducio de danos, € viével por causa disso: por ser uma possibilidade real de as pessoas fazerem sua prépria hist6ria, e eu estou convencido disso, acho que €por isso que o nosso trabalho da certo. Antonio Lancetti — E porque, como disse Dartiu da Silveira, no langamento do livro SatideLoucura 3: “O contrario da droga nao éa abstinéncia, 0 contrério da droga é.a liberdade” _ ~~ Domiciano S1ousina — Legal isso, verdade, Muito bom isso. Antonio Lancetti— Talvez seja uma frase poética, mas que deveria ‘nos convocar a pensar nisso mais seriamente. Quando vemos que se gasta tanto dinheiro e se obtém tao poucos resultados, surge algo que poe em xeque muita gente: terapeutas, psicanalistas, psiquiatras, educadores, policia, adultos perante os adolescentes, enfim, toda nossa sociedade; é uma forma de dizer isso. Acredito que a experiéncia da droga é uma forma de aprofundar o capitalismo, que é a geragto constante da falta ‘uma experiéncia em sintonia com a sociedade de consumo, do imperati- vo do gozo eé também um recado para a sociedade mostrar “veja como estamos fracassando”: 2B \ o Domiciano Siqueira — Exatamente. Acho que as grandes batalhas foram aquelas em que se lutou pela liberdade. Acho que lutar contra drogas é mesquinho demais e fadado ao fracasso: cocat- na é s6 cocaina, maconha € 86 maconha, herofna é s6 heroina. Nés temos € de lutar pelas pessoas, pela erdade das pessoas, e tudo indica que é melhor, portanto, antes que fazer uma guerra as drogas, ‘mesmo porque nao vai dar em nada, embora hé quem ganhe muito yoto com isso, fazer uma guerra, uma batalha pela liberdade das pessoas, porque ai nés vamos mexer nas feridas, e af vai doer; ai sim, se justifica a verdadeira revolugao, porque essa revolugao nao é uma revolugio de exércitos, mas de individuos, de pessoas, uma por uma, todos nés temos de estar nessa luta. Agora, essa guerra as drogas é uma proposta eleitoreira, Enquanto as pessoas se posicionam a favor ‘ou contra, partidos ganham eleigdes, tendéncias capitalistas ou en- ‘ganadoras ganham eleigdes. Quando as pessoas tém autonomia, bus- cam por liberdade, essa questio eleitoral fica mais fraca ¢ a eleigdo nada mais é do que dar aos outros a responsabilidade que € nossa, ¢ fazendo isso, vamos nos frustrar sempre. 76 Capitulo 4 REDUGAO DE DANOS COMO AMPLIACAO DE VIDA ARedugao de Danos (RD) é uma politica euma pratica dé satide publica definida como uma série de procedimentos destina-7 dos a atenuar as conseqiiéncias adversas do consumo de drogas. Como politica, é frontalmente divergente da politica predoming nante de combate as drogas, fundamentada na criminalizagao, com 0 objetivo de eliminé-las, Como pritica de sate piblica, estéem franca sintonia com todas | as experincias sanitarias que buscam a defesa da vida, Tal pritica tev icio nos anos 1990 com a distribuicao de seringas entre usuarios de drogas injetaveis, preferencialmente cocaina ¢ heroina, A Redugao de Danos esté fundamentada numa idéia muito sim- s: minorar 0 efeito deletério do consumo de drogas. Todavia, quan- do observada a praxis da RD, adentramos em terreno mais complexo: + Por que os redutores de danos param de usar drogas injetaveis, ‘numa porcentagem tio elevada (de 60 a 70% como o mostra o capi- tulo precedente)! substituindo-as por drogas mais leves, ou simples- ples: ' Ver Capitulo 3 — Conversando com Domiciano Siqueira 7 mente conseguem permanecer longos perfodos sem uso, se nao hé na metodologia, na ideologia, ou na chamada “filosofia” da RD inci- tagio, regras ou recomendagdes para que o operador do Programa deixe de usar drogas? + Os redutores de danos fazem busca ativa, intervengao nas ro- das de pico e sistemstica participagao nos coletivos de drogados. Qual a importancia clinica do caréter ativo da experiéncia? + Qual é 0 encanto da RD? encanto esse que provocaa adesio de usuarios, traficantes, policiais, padres e outros religiosos (mesmo que clandestinamente, pois a igreja é oficialmente contraria a distri- buigéo de camisinhas)? ++ Como mostra o Capitulo 3, o livre transito pelos meandros das _ vilas e locais onde se usam drogas pesadas gera territérios de paz. ~) Qual a importancia desses territ6rios antes inatingiveis para a cons- trugdo de politicas puiblicas de seguranga, isto é, de cidades, munici- pios ou bairros de paz? ++ Esses territ6rios funcionam como novos componentes no pro- cesso de produgio de subjetividade? + Por que essa substitui¢ao também ocorre com outras drogas pesadas nao injetaveis como 0 crack? ‘Uma outra forma de Redugao de Danos a substituigao de crack por cannabis. No Proad/Unifesp (Programa de Orientagao e Assis- téncia ao Dependente, Departamento de Psiquiatria e Psicologia Mé- dica, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de Sao Pau- lo) foi realizada uma experiencia? em que 68% das pessoas avaliadas 2 Bliseu Labigliani Junio ‘exemplo de Reducio de Danos’ no de drogas: desafios e perspectivns, Sa0 Paulo: Hucitec, 2000. 2B “O uso de cannabis por dependentes de crac conseguiram parar de usar crack. No caso da experiéncia citada, ¢ sendo a maconha uma droga oposta ao crack e & cocaina, por que € em que condigées ela fe ceita pelas pessoas monitoradas? + Que conseqtiéncias e problemas a prixis da RD coloca para a clinica de dependentes quimicos, para a clinica peripatética e para a saide coletiva? Antes de adentrar essas questdes, destacamos que como pritica ¢ como politica de saiide a RD sofreu e sofre grandes resistencias, O conjunto-droga ou todo 0 complexo que constitui a produ- 40, a comercializacao, o uso (especialmente o suicidério), a circu- lagio e repressio, possui uma sintonia com o capitalismo contem- porineo, dai as dificuldades enfrentadas para a introdugao de pro- gramas de RD. Nao é por acaso que, no Brasil, a primeira experiéncia tenha sido iniciada em Santos na época em que essa cidade se transformou num laboratério de invengao de politicas puiblicas, com sua dose de confronto com a ordem instituida. Durante 0 periodo de 1989 a 1996, Santos foi a primeira cidade brasileira sem manicOmios; a primeira cidade a reverter epidemio- logicamente o quadro de contagio pelo virus da aids; a primeira cida- de a criar programas de assisténcia domiciliar e a inventar uma me- todologia de trabalho com meninas prostituidas e dependentes do crack, etc., e também a primeira cidade a aplicar a metodologia de distribuigao gratuita de seringas descartaveis. ‘A experiéncia ocorreu num clima de confronto e de radi postura em favor da defesa e da afirmagao da vida, Precursora, en- frentou forte resisténcia da midia local, das forcas conservadoras da cidade e do Ministério Pablico. Para se ter idéia, o secretério muni- 79 cipal da satide na época, David Capistrano Filho, ¢ 0 coordenador de aids, Fabio Mesquita, foram processados, acusados de incitar 0 uso de drogas ilegais, ea experiéncia teve de ser interrompida por ordem judicial. Na realidade, todos os programas encontram dificuldades ¢ se véem obrigados a remover obstaculos para a instalagao e 0 desenvol- vimento dos programas de Redugao de Danos. Um comité de especialistas da Organizagao Mundial da Satide — OMS — adotou a expresso Redugao de Danos, RD, em 1993. Nos Estados Unidos, onde impera a politica de combate as dro- gas € nao foi aceita a RD, a proporgao de casos novos de aids, em virtude do uso injetdvel de drogas, aumentou de 12% em 81 para 28% em 93. Na Austrdlia, onde funcionam programas de RD, a pro- porgao de UDIs contaminados nao passava de 2% em 93 (Wodak & Lurie, 1997). Porém essas ¢ outras evidéncias nao sao suficientes para remo- ver 0s obsticulos. A Redugao de Danos, como toda pratica de afirma- fo da vida, é necessariamente uma pritica que se opera na contra- mao das préticas instituidas e ancoradas na ordem predominante. A tese central que defendemos neste capitulo éa de que a RD, no plano da proposta e na sua preciosa simplicidade, ¢ redutiva, mas, quando analisada na sua capilaridade, ¢ menos uma diminuigao do risco e mais uma ampliagao da vida. E impressionante ver, nos locais onde se pratica a RD, pessoas * Alex Wodak & P, Lure, “A Tale of Two Countries: Attempts to Control HIV among Injecting Drug Users in Australia and the United States” J. of Drug Issue 27, pp. 117-34, apua: Alex Wodak. “Redugdo de Danos ¢ Programas de Troca de ‘Setingas in: Troca de Seringas: Drogas e AIDS. Publicagao do Ministério da Satide Brasilia, 1998 80 refratérias a freqiientar unidades de satide e a praticar qualquer cui- dado de si, preocupadas por criangas 6rfis de pais infectados pelo virus da aids, por mulheres gravidas e, enfim, fazendo circular ondas de solidariedade e cooperacio sanitéria, Estas ondas ¢ estas redes informais funcionam como contagio ¢ disseminagao francamente micropoliticas. Ao aceitar 0 uso cuidadoso das seringas descartiveis, a operacao de RD entra na corrente sangiiinea como injegao de vida ese expan- de em forma de consenso pelos territérios geografico ¢ existencial. Uma mudanga quase imperceptivel acontece na relagao de homens e mulheres com as drogas e nisso radica sua poténcia. ‘A conseqiiéncia imediata dessa constatagao é a capacitagao das equipes de satide da familia na metodologia da RD. Nas poucas expe- rigncias que conhecemos, vimos a aceitagao das propostas enuncia- das por médicos de familia e equipes de satide mental por usudrios de crack e por alcodlicos. ‘A concepgao da RD tem plena sintonia com a posigao ética das equipes de satide, O trabalhador de satide nao é a favor do traficante nem do policial. Ele é a favor da vida. Essa posicao € a tinica que lhe proporciona seguranga e ascen- a sobre os moradores das regides onde ha trafico de 7 Conhecemos o caso de um roubo de automével, em que os la drdes, ao saberem que o proprietirio era o médico de familia da regio, o devolveram lavado; outros de devolugao de equipamentos roubados de unidades de satide sem intervengao policial; de prote- do de equipes de satide para evitar 0 risco que significa estar na érea quando hé enfrentamento de policia com traficantes. . . 81 Outras experiéncias ainda nao suficientemente avaliadas acon- tecem na substituigsio de crack por maconha: os usuarios da expe- Fithciacitada comentaram que o que mais contribufa para suportar a fissura era 0 ato de enrolar 0 baseado, mais que as propriedades ansioliticas da cannabis. A maconha, como o crack, é fumada. As diversas formas de Redugao de Danos consistem em inser- ses na experiéncia drogada e na expansio de formas coletivizadas de afirmagao da vida. Esse é seu encanto. i Os dependentes de drogas foram considerados pacientes inade- quados para psicandlise, pois recusam a passagem da relagao como Outro. Eles fizeram e fazem fracassar todo tipo de terapeuta. Diante de tantos fracassos, visualizamos nessa posigao ética, nesse estar a favor, o ponto de partida de uma clinica, Deleuze afirmou que as drogas, além de mudar o problema da percep¢io para os drogados e no drogados, abrea subjetividade para novas conex6es, mas que, em determinado momento, sobrevém um desvio que coloca cada drogado a girar em torno de seu proprio bu- raco negro, dai os fendmenos de narcisismo, androginia, autoritaris- mo e veneno dos drogados. Ble indica esse ponto como um caminho para experimentacio terapéutica. E por isso que a posigao ética de afirmagao da vida ea corrente micropolitica provocada pelas experiéncias de redugao de danos abrem o sulco de uma nova clinica. Se a Redusao de Danos pode transformar-se numa clinica, & porque pode transformar-se num desvio que consiste em criar uma experimentacao de vida ali onde o empreendimento € mortifero. les Deleuze. “Duas questoes”, SaiideLoucura 3. Sto Paulo: Hucitec, 1991 82 0s crackeiros, a0 fumarem maconha, nao somente substituem uma pratica que produz asma brénquica, infeccdes respiratérias e yf acidentes vasculares cerebrais, mas ligam os sujeitos a outros com outros pardmetros de cooperacio, de solidariedade e de convivencia- Muitos deles, como descreve a citada pesquisa do Proad, se conecta- ram a novos grupos de jovens ou adultos e alguns voltaram a traba- Ihar ou aestudar. ‘A mesma posigao ética é a que propicia territérios coletivos de tolerancia e cooperacao. Um verdadeiro contraveneno para expe- rigncia narcisica e de dependéncia abjeta da droga. ‘As redes de amigos, vizinhos, tecidas entre traficantes, reli ¢ policiais, sao territorios de paz e perdi, altamente terapéuticos. Os redutores de danos, os terapeutase trabalhadores de satide, 05 agentes comunitérios de satide que sto tomados pelas concepges, posturas e afecgées da RD, abrem uma fenda no muro que separa os drogados dos nao drogados. E, ao abri-la, entram em campo de alta complexidade. Na experiéncia do Proad, os fumadores de maconha que volta- ram ao trabalho ou ao estudo, voltaram porque jé trabalhavam ou estudavam. £ diferente do que ocorre com dependentes severos das classes altas. Eles nao poderiam voltar porque nunca estiveram no mundo do trabalho ou integrados na rede de ensino. Mimados, sio mais dificeis de desmamar. Ao insistir na posigao ética como ponto de partida e linha mestra do tratamento de drogados, nao queremos concluir que tenha sido descoberta uma solugio magica para 0 sumamente complexo pro- blema das drogas, mas uma via de insergaio que permite navegar nas ‘Aguas borrascosas dos empreendimentos mortiferos da droga. 83 Uma vez criado um vinculo, as pessoas transferem, repetem, e as historias terapéuticas so lavradas por tortuosos percursos. Quem trabalha com drogados esté exposto a todo tipo de frustra- $0, pois quando menos se espera eles podem voltar a usar a droga e se proteger do sujo conceito da recaida. Os mimados das classes alta ou média alta estao af para propor- cionar novos problemas a “metodologia” da RD: verdadeiros depen- dentes, colocam-se em situagdes de extremo risco e por muitas vezes € necessirio realizar operagées de salvamento para evitar que se matem, o que também pode e deve ser considerado uma redugao de danos ¢ nao uma “solugao” ou fechamento da questo. Mas mesmo nessas situagdes a posigdo em favor da vida que se sustenta nas experiéncias citadas é fundamental para 0 andamento do processo terapéutico. Nesses casos, a Redugo de Danos recupera sua literalidade. Porém, quando salvamos alguém, tomamos para nés a posigao de cuidadores, aprofundando a dependéncia. A clinica € um proces- so cheio de paradoxos. Acrescidos, neste e noutros casos, do Onus que implica atender alguém que nao est pedindo ajuda. Retomaremos esses problemas no iiltimo capitulo, dedicado a problematizagao da clinica peripatética. Entretanto, os problemas gerados pela experiéncia da redugdo de danos permitiram apropriar © conhecimento gerado para a criago de uma Redugio de Danos sem seringas. Eo que seria uma Redugao de Danos sem seringas? Em primeiro lugar, a aplicagao dos conceitos da RD para substi- tuigdo de crack por maconha, da metadona por heroina, mas tam- bém aplicagao no enfrentamento e tratamento do alcoolismo, etc. 84 Em segundo lugar, a clinica praticada pelas equipes de Saiide da Familia. Agentes comunitérias de satide capacitadas pela filosofia da redugao de danos no Programa de Satide Mental do PSF de Sao Paulo, experiéncia iniciada no Projeto Qualis, conseguem suspen- der ordens de fuzilamento de pessoas que deviam dinheiro aos trafi- cantes, © conceito de ampliagao da vida é uma ponta de langa para desbravar um campo extremamente complexo. Ele é vital para a sustentagao da posigao de terapeutas de casos- limite ou de casos quase intrataveis. Ele ¢ vital para elaboragdo de territérios existenciais inéditos, capazes de tolerancia, ancorados na construgao do comum e é vital também porque nos permite fugir da posigao de derrota e de impo- téncia a que nos condenam as campanhas antidrogase aideologia da abstinéncia. 85

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