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Capitulo 6 © Tempo Te sabemos o que acontece com o tempo quando nos apaixonamos. Quando estamos juntos, parece que nao temos passado nem futuro, que nao existe esta coisa chamada de tem- po nem suas limitages. E quando nos distanciamos, mesmo de- pois de horas e dias muito intensos, é como se praticamente nao tivéssemos estado juntos: 0 tempo é real demais, precioso de- mais ¢ muito curto. E freqiientemente, quando estamos juntos, percebemos 0 extraordinario valor do tempo de que dispomos, procuramos fazé-lo parar, alcangar culminancias que, espera- mos, nos protegerao do mundo do tempo que nos espera ama- nha ou depois em nossa vida cotidiana. Quando apaixonados, sabemos, e como, que o tempo nao é aquilo que pensavamos. Sa- bemos que a nossa vida cotidiana sofre a influéncia de um mes- tre que finge ter uma autoridade que nao é bem o que parece. 7 aa ie Sobre o Amor ~ De certa forma nao compreendemos, mas sabemos que o poder do tempo depende, até certo ponto, de algo que existe em nos- sas préprias mentes. Mas nao sabemos 0 que pode ser esse algo, nem como alcang4-lo intencionalmente. A temporalidade do amor permanece um dom genuino, uma graca genuina. Dois Tipos de Tempo Quando um homem e uma mulher vivem juntos, nao olham mais apenas um para o outro; olham para 0 mundo. Quer quei- ram quer nao, os amantes que vivem juntos sao forcados pelo mundo a verem além de si mesmos. Ao voltarem-se necessaria- mente para 0 mundo exterior, para as demandas da vida co- tidiana, homem e mulher sao envolvidos no processo pelo qual o mundo experimenta o tempo. Homem € mulher retornarao repetidas vezes um para 0 outro € experimentarao repetidas vezes a temporalidade do amor. Mas as suas vidas, agora, de- penderao de duas qualidades fundamentais de tempo, de duas temporalidades: a temporalidade do amor e a temporalidade da obrigagao. Sao as obrigagoes, as demandas, os deveres e as ne- cessidades que nos afastam da temporalidade do amor. A sabedoria nos ensina que aquilo que os amantes experi- mentam quando se libertam da temporalidade do mundo, do- minada pela tensio, é até certo ponto um estado interior trans- formado, uma amostra da heranga psicolégica da humanidade. Na intensidade da paixao, experimentamos — até certo ponto, nem sempre e nem com todas as pessoas — tanto a total 78 © Tempo ~ doagao do corpo aos propésitos da natureza quanto o total mo- yimento psiquico de obediéncia ao toque de uma realidade além do ego. Precisamos observar essa situagao pondo de lado, por en- quanto, o fato de que a personalidade egoista, moldada pelas distorgdes da educagao moderna, explora imediatamente essa experiéncia através do medo e faz com que 0 apaixonar-se sé transforme em algo nervoso, sonhador ou obsessivo. Ao exa- minar a temporalidade do amor fica nitido que ela envolve um relacionamento transformado entre a mente e 0 corpo. A Realidade e a Trrealidade do Tempo Muitos filosofos nos ensinaram que o tempo, que parece tao real, é na verdade uma proje¢ao das nossas mentes. Esta é uma idéia instigante, mas poucos podem afirmar que a constataram. Vaga e indistintamente sabemos que a experiéncia do tempo depende de algo em nds, mas isto ¢ apenas um conceito ins- tigante, Nao nos ajuda muito em nossas vidas, Quando as de- mandas da vida, com todas as suas ansiedades e seus temores, com todas as suas promessas exageradas, nos invadem, as pres- sdes do tempo parecem todas reais demais. E essas press6es pa- recem muitas vezes nos afastar uns dos outros. Nao temos tem- po suficiente uns para os outros. Cada vez mais este problema é visto como um problema central do amor em nossa era. Assim, deixemos que os filésofos e os mestres da sabedoria digam o que quiserem; o tempo parece muito e muito real. 79 Sobre o Amor Mas talvez nao tenhamos visto tudo o que os grandes en- sinamentos nos dizem a respeito da subjetividade do tempo. Is- to porque, na verdade, a experiéncia de um amor apaixonado pode nos mostrar algo a respeito do tempo que talvez nao te- nha sido visto no seu real significado, Na paixdo do amor pode haver um relacionamento completamente novo entre a mente e 0 corpo. Nao apenas os nossos corpos ficam deliciosamente vi- vos, cheios do poder da natureza — é freqiientemente visto e descrito assim pelos poetas e romancistas. Mas 0 que acontece, de fato, é um novo e mais consciente relacionamento entre cor- po e mente, Estamos tao acostumados as qualidades da mente no seu ausente ou atormentado relacionamento com o corpo que quando aparece um relacionamento natural, nao forcado, entre mente e corpo, chamamos isso de uma experiéncia ex- clusivamente do corpo. Todavia, a paixao amorosa é mais exa- tamente caracterizada como uma experiéncia de “ressonancia harménica” entre a mente e 0 corpo. E notem — quando di- zemos “mente” nao falamos apenas da capacidade intelectual. Porque obviamente existe uma nova experiéncia de sentimento atuando em nds. Mente, corpo e sentimento se aproximam uns dos outros por um momento, por um breve momento, de uma forma que raramente acontece. E o tempo se transforma. Podemos dizer entao, a partir da nossa propria verificagao pessoal, que a experiéncia do tempo depende nao sé da mente, mas do relacionamento entre a mente e o corpo, E dbvio que ha muito mais do que isso. Uma vasta gama de conhecimentos a respeito desse elemen- to do tempo é oferecida, em ensinamentos detalhados, pelas 80 © Tempo grandes tradigdes de sabedoria, Mas para nds, talvez, esta visio seja suficiente para nos permitir comegar um estudo pratico de como duas pessoas podem se ajudar mutuamente a encarar em conjunto os problemas do amor associados ao tempo e as suas pressdes, A primeira etapa desse estudo é, por certo, lutar com o nos- so relacionamento com 0 tempo. Devemos fazer um exame pessoal de como todos os tipos de ansiedade estao arraigados na ansiedade a respeito do tempo, como o fator tempo entra em todas as tensdes, em todos os medos, em todos os desejos per- sistentes de nossas vidas. Ele esta la, em todas as células da nos- sa vida emocional. Precisamos procurd-lo ¢ vé-lo imparcial- mente. Além desse estudo, ¢ igualmente essencial levar em conta 0 nosso proprio relacionamento com © corpo, ou seja, com a corrente de vida organica sempre presente nos tecidos do nosso corpo, mas da qual so nos conscientizamos em raros momentos de paixdo ou de dor fisica. Existe no corpo um rio profundo e fluente de sensibilidade tangivel, a respeito do qual a nossa cultura nada nos ensinou. O relacionamento intencio- nal do ser humano com esse fluxo determina bastante a nor- malidade da nossa experiéncia cotidiana e as verdadeiras possi- bilidades de uma busca interior. E necessario ver pessoalmente © quanto uma ténue e fugaz abertura intencional para esse flu- xo de sensibilidade organica nos liberta bastante da tirania do tempo. Também, quando estamos sob o dominio da tempora- lidade do mundo — a temporalidade de um mundo sem uma vida-dentro-do-corpo — vemos muito mais profundamente quantas vezes perdemos esse relacionamento com 0 corpo € 0 81 Sobre o Amor ~ quanto perdemos de uma vida mais profunda, de sentimentos mais profundos e de inteligéncia mais equilibrada. Amor e Presenca Ao analisarmos sob esse ponto de vista, talvez possamos en- frentar de forma diferente o problema moderno do tempo. Po- demos perguntar a nés mesmos e nos ajudar uns aos outros a perguntar: sera que nos sentimos verdadeiramente esmagados pela pressio do tempo, mesmo quando, num pequeno grau, a mente est4 conscientemente dentro do corpo? Esse assunto merece uma séria investigagao: ¢ verdade que nada pode real- mente nos abalar quando conscientemente habitamos os nossos corpos? Na medida em que a nossa cultura nos leva cada vez mais 4 possibilidade de satisfazermos as demandas materiais da vida com pouca ou nenhuma necessidade de relacionamento inten- cional com 0 corpo, nao serd inevitdvel sermos atingidos pela doenga da agitagao e da pressa? Quase todas as novas aplicagées tecnoldégicas do mundo moderno sao consideradas uma marca de “progresso” porque aliviam as pessoas da necessidade de atentar para 0 corpo enquanto executam as tarefas cotidianas. O computador é a ultima e a mais influente dessas novas tecno- logias. O problema do tempo no mundo moderno é portanto em grande parte o problema de se viver dentro da cabega. Ha mais do que isso. Quando vivemos demasiadamente dentro da cabega, o corpo nao desaparece. Simplesmente segue 82 © Tempo ~ o seu caminho, fazendo o que quer, como um animal domés- tico incontrolado. E os sentimentos, sem um relacionamento intencional com o resto do eu, andam a solta, como criancinhas abandonadas. De qualquer forma, cada yez mais 0 problema do tempo atormenta as pessoas que tentam viver juntas no amor. Com ou sem as exigéncias de criar filhos, muitas pessoas tém muito pouco tempo umas para as outras. E apenas senso comum tentar corrigir essa situagao de ma- neira Obvia: férias, fins de semana, noites juntos. Nao preci- samos que os sdbios ensinamentos do mundo nos digam isso. Mas 4 luz de tudo o que dissemos, ha maneiras mais sutis que talvez nos ajudem. O que acontece a experiéncia do tempo entre duas pessoas, quando uma delas esta menos sob o domi- nio da agitaco? Quando vocé est calmo — nao como uma pedra, é claro, nem como um falso santo — em que resultam a minha agitacao e a minha pressa? E daro que existe, como ja discutimos antes, um estranho e 4s vezes divertido aspecto na natureza humana: podemos nos ressentir quando alguém se recusa a se abalar com as nossas proprias ansiedades. E como se a outra pessoa nao se impor- tasse o suficiente, ou nado compreendesse a situagao. Porém a calma auténtica, num homem ou numa mulher, resulta nao na eliminagao, mas sim na abertura e na compaixao em diregao ao proximo. E compaixao nao significa que se esteja mortalmente infectado pelo medo ou pelo sofrimento alheio. A questao é, o que quer que acontega a curto ou longo pra- zo, 0 estado de espirito de alguém pode lembrar ao outro aqui- 83 Sobre o Amor lo que ele ou ela procura. O estado de espirito de uma pessoa nao ¢ a mesma coisa que humor ou reac3o emocional. Tem a ver principalmente com a intensidade em que a pessoa esta ali, presente no momento, Estar presente no momento é estar nu- ma relagao intencionalmente aberta de corpo inteiro. A mente, por si s6, nunca esta realmente aqui; nunca esta realmente ago- ra. $6 a mente e o corpo juntos podem existir no momento presente e se libertar da tirania do tempo. E isso certamente é 0 que procuramos quando buscamos uma vida que transcende a hipnose do mundo: sermos livres da tirania do tempo. A tradicio usa uma grande palavra, “eterni- dade”, quando se refere a este objetivo. Mas qualquer que seja © significado profundo dessa palavra, em termos praticos, nos aproximamos desse significado na temporalidade do amor, quando o sentido de eterno é experimentado como um ver- dadeiro dom, Porém aqui, como em outros lugares, o que se experimenta como um dom quando nos apaixonamos deve ser tomado como um convite para trabalharmos intencionalmente rumo a uma vida inteira aberta para esse dom, numa qualidade e numa intensidade ainda bem mais elevadas.

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