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Capitulo 2 Os Dois Amores I ensamos poder brincar com o amor, mas estamos engana- dos. O amor € que brinca conosco, Ele ¢ bem mais poderoso do_ que nés e se em principio parecemos ajust4-lo as nossas vidas, isso nada mais sé do que uma forma de 0 amor rir ir de nds enquan- to nos escraviza. Lépi jos ¢ fagueiros atravessamos a ponte que © amor nos estende, E logo estamos lutando por nossas vidas. O que pode nos guiar depois que o amor nos incendiou ¢ tornamos a entrar no universo do tempo e da vida mundana? O deus do amor nos mostra um outro universo. Mas ¢ um uni- verso no qual podemos viver? Devemos viver juntos: é a isso que 0 amor nos conduz. A ponte do amor estranhamente nos levou de volta para o lugar de onde viemos, o universo do nascer ¢ do morrer, o universo do cui- dado, da responsabilidade e da agao; o universo da saide e da 25 1 ‘ : Sobre o Amor ~ doenga, da familia, do trabalho, da aflicdo, da duvida, da ansie~ dade e de mil pequenos problemas e perturbagdes. Amamos agora devemos viver juntos; e entao, um dia, enfrentar a morte, Este livro trata do significado do amor duradouro. Qual 0 pro posito compartilhado que € o elemento esquecido na nossa ex- periéncia de vivermos juntos? Mesmo com tudo o que tem sido dito e escrito sobre o amor divino e o amor humano — desde o cinema, a televisao e as paginas das revistas populares a poesia inspirada dos misticos; da ajuda que nos ¢ oferecida por amigos, terapeutas, conselheiros, sacerdotes ¢ guias espirituais aos con- selhos sabios as vezes dados por pais e avés que viveram uma época e um mundo tao diferentes do nosso —, em todos esses escritos e ensinamentos e em toda essa sabedoria comum, o que ainda nao sabemos sobre a vida compartilhada? Qual é o pro-_ posito mais profundo da vida em comum, no 4mbito do amor? ‘Trata-se de uma questo urgente para a nossa cultura e paraa nossa época. Muitas das velhas razées que no passado manti- nham as pessoas unidas nao vigoram mais. Liberdade de repro- dugao, crescente independéncia econémica das mulheres, mais aceitagao social de estilos de vida alternativos, tudo isso subs- tituiu as causas externas que no passado atuavam para manter — homens e mulheres juntos. Agora, com o enfraquecimento des- sas forcas, as vezes até o seu desaparecimento, aquilo que nos | mantém juntos deve ser principalmente a escolha pessoal. E co- mo o poder de resisténcia da escolha pessoal acaba sendo mais fraco do que imaginavamos sob o efeito da primeira chama do amor, nao é de admirar que o divorcio ocupe papel tio domi- nante em nossas vidas, Toda a questo de permanecer amantes ¢ 26 Os Dois Amores ~ unidos através dos tempos, a fragil instabilidade daquilo que em débeis palavras chamamos de “relacionamentos”, persegue as nossas vidas cada vez mais. Precisamos compreender 0 que o apaixonar-se realmente nos mostra, de forma que ao atravessarmos a ponte que o amor nos estende possamos encontrar o verdadeiro significado da vida em comum, Oculto na paixao de um grande amor ha um “se- gredo” sobre o porqué de estarmos na Terra. Esse segredo pode e deve se revelar durante a vida que procuramos compartilhar. bor de liberdade do medo e do lo no processo de altos ¢ O amor roma egoismo que precisa ser comum. Se nao compreendermos o signi- baixos da vi ficado maior desta liberdade, talvez nunca entendamos o que significa viver junto e apaixonados. Isso nao quer dizer que de- vemos nos resignar a uma intensidade menor, Ao contrario, a paixao original retornara sempre. Mas para muitos de nds isso so acontecera se esse eco mais tranqiiilo — esse ensinamento oculto que o amor nos oferece a respeito de nés mesmos — for ouvido e seguido, As revolugées social e sexual do século XX nos mostraram que o relaxamento das leis e dos costumes do casamento, afinal, simplesmente substituiu uma espécie de sofrimento por outra. Se amarmos quem € quando quisermos e depois rompermos o nosso vinculo sempre que um impulso n neste sentido for forte, veremos que isso nao traz felicidade para as nossas vidas. Nem existe felicidade, é claro, em se manter as velhas Tegras, os ve- thos costumes. Assim, 0 significado da vida em comum com amor nao pode estar em nenhuma dessas duas diregGes. 27 Sobre o Amor Teremos de apreender o amor romantico sob uma pers- pectiva bastante diferente. Precisamos vé-lo, senti-lo, experi- menté-lo, tanto no seu significado sensorial como no supra- sensorial e depois seguir o seu eco, que nos leva a vislumbrar 0 sentido do amor duradouro. A tese deste livro pode ser exposta de forma bastante sim- ples, embora extrair as suas implicagdes nao seja matéria facil. A questio é que nés, seres humanos, estamos a procura de signi- ficado, 4 procura de néds mesmos. Muito pouco daquilo que ja somos e daquilo que j4 temos nos traz um significado mais pro- fundo ou felicidade. Nascemos para um significado, nao para o prazer, a menos que o prazer esteja impregnado de significado. Também nascemos para o sofrimento, nao para o sofrimento que nos leva 4 loucura, mas para o sofrimento que nos leva a alegria: a luta com © nosso proprio ser, com as nossas ilusGes. Nascemos para superar a nés mesmos e através dessa superagao encontrar uma condi¢ao interior de grande harmonia e bem-es- tar. Nascemos para isso — ainda nao somos isso. Estamos bus- —cando; essa é a esséncia da nossa atual condicao humana. E no amor temos a possibilidade ¢ a necessidade de ajudar a busca mutua. Sera este o significado oculto da chama do amor, o seu eco, o seu ensinamento? Creio que sim. Com esse eco em mente, podemos atingir 0 novo sentido, pratico e cheio de es- peranca, do amor duradouro, um propdsito que se origina nao de costumes gastos ou de ideais quiméricos, inas da nossa pré- pria aspiragao tanto pelo outro quanto por algo dentro de nds que se esforca por nascer. 28 Os Dois Amores O Primeiro e o Segundo Amores Estou in love (apaixonado), A lingua inglesa ¢ precisa: estou in (dentro de, imerso em algo). E isso me leva a algum lugar. Experimento a fascinaco e a alegria da submissao a uma forca que esta fora de mim. Mas, na verdade, também estou me sub- metendo a aspectos interiores meus, 4 minha natureza fisica, uma natureza fisica que também ¢ consciéncia e sentimento, uma sensagao de sentir e perceber, Estou apaixonado: as regras da sociedade, os nomes e as fronteiras r nao mais me limitam. E um antegozo daquilo para o que somos destinados, Ez anatureza usando 0 nosso misticismo inerente para nos reunir as espécies, 1 to s idades do nosso mundo terreno, Mas ° que é esse outro anseio, esse outro amor que grabber pode despertar em mim? Posso encontrar uma certa dogura na solidao, uma certa alegria agridoce em lutar com a dor e a difi- culdade. Posso ser levado a uma qualidade especifica de idéias e simbolos que se referem a outro tipo de realidade ou a outro sistema de valores diferentes daqueles que a sociedade me ofe- rece, Ou, ao contrario, posso me desviar de todos os ideais, simbolos e obrigagdes. Mas mesmo quando me desvio deles, mesmo quando nego 0 universo do dever e da aspiragao me- tafisica, mesmo assim é algum chamado interior que me leva em direg&o a luta, 4 verdade ¢ ao estranho mistério de ser eu mesmo sozinho, a semente do eu, a consciéncia do eu. oO ) primeiro amor, a condigao de estarmos apaixonados por outro homem 0 nou por outra mulher, nds ¢ ‘conhecemos | e chama- mos pelo seu proprio nome. Mas nao precisamos nos apressar 29 Sobre o Amor para dar um nome ao segundo amor. Precisamos apenas | nhecer — de forma vaga mas com conviccéo — de que I ha amores fundamentais dentro do coragio | humano, um aie Os ‘Nomes do Amor Dividimos e classificamos 0 amor: distinguimos amor fis e espiritual, amor erdtico e pessoal, amor materno, amor entre amigos. Mas averdade é que permanecemos com fusos. Quando estamos apaixonados, estamos num vendaval d forgas € s6 nos resta nos agarrar a cadeira, Os psiquiatras falam, os terapeutas falam, os filésofos fala os romancistas falam, as mulheres falam, os homens falam, o cinema e as revistas falam, os cantores e os musicos falam. To dos falam a respeito do amor, mas a verdade é que os nosso rotulos sao palidos esfor¢os para lidar com uma forga irresis: tivel, muito além do nosso controle, tal como o vento, 0 raio € omar. Sera que todas as emogdes que rodopiam em yolta de nos vidas so fragdes da forga do amor? Ser que todo sentimento & amor? Que toda emogao é amor ou derivado do amor? 30 Os Dois Amores ~ Mas o amor auténtico nao deveria ser bom, pleno de com- go, sabio e terno? Certamente, esse amor compassivo esta Jéguas da tempestade de éxtase e angustia que vivemos quan- ‘do estamos apaixonados, Muito bem, mas sera que esse ideal de amor sabio e desprendido nao ¢ apenas um ideal baseado num lampejo de uma forga inteiramente diferente que pode assar entre as pessoas? Falamos demais a respeito do amor — possivelmente por- que vivernos apenas com metade do amor, nao importa o quan- to o dividamos e classifiquemos. Vivemos principalmente com a metade que procura 0 nosso proprio prazer, ou a seguranga psicologica, ou a procriagao. E essa metade do amor que coloca individuos e nages de joelhos, que nos ergue e nos derruba. E essa metade do amor — porque é apenas uma metade e porque ocupa apenas metade do nosso ser — que faz com que as nossas vidas sejam essencialmente sem sentido, Ha uma outra metade do amor. Ha uma outra metade da natureza humana e ha uma outra metade em todos os relacionamentos humanos intimos. Essa outra metade é 0 amor que ajuda outra busca da verdade. Podemos falar sobre o amor o quanto quisermos, ler a res- peito, explora-lo terapéutica, teoldgica e filosoficamente. Bis- bilhotar sobre ele e procurar explica-lo. Passar todo o tempo que quisermos tentando administrar 0 amor com palavras e atenuar-lhe as contradig6es. Mas consideremos apenas: qual 0 elemento que realmente falta na nossa experiéncia do amor? Se, na nossa esséncia, no amago de nosso ser, somos destinados a procurar a verdade; se, como os ensinamentos da sabedoria nos dizem, nascemos incompletos interiormente e temos a 31 Sobre o Amor possibilidade de nos tornar completos através de uma luta terior — entSo nZo podemos deixar de perguntar como mens e mulheres podem se apoiar mutuamente nessa luta. © que é 0 amor entre duas pessoas, se ele nao se insere ambito dessa questao? Amor Intermediario As vezes suspeitamos nao ser verdadeiramente amor aqi que em geral chamamos de amor. Suspeitamos que o desejo fundamentalmente egoista, que o prazer é nosso e nao do tro. E o prazer que procuramos dar ao outro — sera que n&o se volta na verdade para os nossos proprios desejos e cessidades? Mas 0 fato é que experimentamos o amor como uma mist de egoismo e zelo para com o outro. Talvez, sob certas cir tancias, o sentimento de zelo para com o outro sucumba e lugar a alguma forma de egoismo. Isso nao quer dizer que ¢ zelo pelo outro seja irreal, nem que seja sempre e apenas disfarce, uma forma de hipocrisia. Pode ser tudo isso, mas necessariamente, Se, numa situagao de dificuldade, eu escolho o meu prépri bem-estar em vez do seu, isso apenas quer dizer que o meu zel por vocé é mais fragil do que a preocupagao que tenho comi Porém, ser fragil nao significa ser irreal, nem falso, nem secun: dario, Este é 0 erro dos reducionistas — psicdlogos e filésof< que tentam reduzir todo o sentimento humano 4 biologia. 32 Os Dois Amores ~ Por certo, é igualmente errado fingir para nés mesmos que co nosso zelo em relagao ao outro seja mais forte do que o nosso egoismo, do que os nossos complexos desejos fisicos, Mas esse erro nds conhecemos. Ja sabemos que nao somos santos. Esse erro nao € 0 principal problema de uma era tao fortemente in- fluenciada pela teoria psicanalitica. Precisamos nos libertar da mentalidade do “ou isto ou aqui->) lo”. A nossa experiéncia do amor nao é nem santa nem me- ( ramente egoista. Sio ambas. Mas um desses aspectos ¢ muito J mais forte do que 0 outro. Repetindo: 0 fato de algo ser fragil nao significa que seja | irreal, Um frdgil impulso de zelo nao ¢ um impulso irreal. E | apenas um impulso real e fragil. A verdade é que a parte mais nobre (ou as partes mais nobres) do nosso ser, 6 nosso lado “espiritual”, é quase sempre fragil. A capacidade de amar com desprendimento é um aspecto da natureza divina no homem — e essa natureza divina nao tem forga nas nossas vidas tais como sao. Ver isto, aceitar isto, é 0 primeiro passo em diregao a nos tornarmos completamente humanos. Aceitar essa verdade, no entanto, nao significa acei- tar que a situacao deva permanecer. A natureza mais elevada pode se tornar mais ativa ¢ mais forte. Mas o processo pelo qual isso acontece é inseparavel do esforco de vermos as nossas fra- quezas exatamente como sao, sem vendas, sem cinismo e sem qualquer outra forma de auto-ilusao, E esse esforgo ¢ sob mui- tos aspectos extremamente dificil. Ha fragmentos de ensinamentos misticos ocidentais e orien- tais “esotéricos” que nos dizem que é facil aceitar a si mesmo, 33 Sobre o Amor testemunhar com atengao suas préprias emogoes, sua vida. de-se dizer que é no minimo enganadora a nogao de que a aceitacao, no seu sentido transformador, seja “facil”. E dific exigente, sutil; no podemos fazer esse trabalho sozinhos, cisamos de ajuda. i Podem duas pessoas que vivem juntas como marido e mm Th er, unidos pelos lagos da afeicao, da atragao fisica e emor | nal, interesses comuns ou paixao sexual — podem essas d h \ pessoas suportar essa luta? Podem duas pessoas se ajudar | tuamente a se conhecerem como dois seres que contém as | mentes de uma unidade possivel e misteriosa? Acho que essa ajuda entre duas pessoas € possivel. Essa aj \é 0 amor. Mas um amor de um tipo que nunca ¢ mencionado nem det crito na literatura do amor, nem nos mexericos psicolégicos d nossa cultura, nem nos textos e documentos que interpreta mos dos ensinamentos espirituais do mundo, Esse tipo de amor nao é nem da terra nem do céu. Nao é nem divino nem “animal”. E 0 amor intermedidrio. E um amor de que precisamos m: i do que qualquer outra coisa. Sem ele, todos os outros tipos di amor se tornam tiranicos ou fantasticos, roubando-nos as vida através de anseios destrutivos, temores e exigéncias. 34 ©s Dois Amores ~ © Coracdo Partido Tao logo comegamos a conhecer as outras pessoas, descobri- mos os seus coragoes partidos. A sua dor em matéria de amor. Ou o seu temor, ou © seu isolamento do amor. Ou a sua apatia para com © amor; a triste paz que aceitaram na vida amorosa. (Os compromissos burgueses, ou a “felicidade” fragil ¢ tensa a qual nos agarramos com todas as ilusGes que a nossa persona- lidade pode criar. Ao mesmo tempo, o coragao partido nos fala de um estado de alma pelo qual todo o nosso ser anseia — e esse estado de alma nao ¢ necessariamente o que a personalidade nos diz. Quando nos apaixonamos, ou quando amamos apaixonada e profundamente; quando estamos felizes e apaixonados — ou mesmo quando apenas sonhamos com o amor e€ imaginamos oO amor — sonhamos nao apenas uma fantasia, mas uma realida- de. Uma realidade que nos liberta do tempo e do espago habi- tuais. Quando nos apaixonamos, vivemos momentos de pura presenga — alguns chamam isso de eternidade. No amor nos sentimos livres, livres de tudo o que nos exaure e deprime, li- vres das tenses, das ansiedades, dos humores, da parandia, de todo o tipo de emogées desnecessarias; livres de intrigas ¢ es- Pertezas, da manipulagao ou da exploragao do outro. E claro que tudo isso vem misturado a outros impulsos € mais cedo ou mais tarde quase sempre se choca, transfor- mando-se freqiientemente em ddio e as vezes em violéncia. Ou simplesmente se torna morno, ou comum, Ou burgués, ou “conveniente”, ou algo semelhante — ha mil ¢ uma formas de 35 Sobre o Amor Os Dois Amores enfraquecer a paixao. E, é claro, freqiientemente a paix: gonhecemos como amor sexual talvez tenha um toque do es- mistura com elementos absurdos, imaturos ou neuréti o Aquele que é a principal forga motriz do universo. personalidade. Muitas vezes é “infantil”. Outras vezes, forco rum Jalvez o que experimentamos como sexo, nas suas formas mais Ao mesmo tempo nos nivela ¢ nos exalta — grandes ho sntensas, j4 seja o“arder” de uma energia mais elevada. abi i Aas Z e mulheres, de comportamento calmo, s4bios e impor F talvez seja verdade que o amor romantic é uma dege- neracio do ideal mistico dos trovadores — o amor da alma, simbolizada pela mulher. Talvez. Mas 0 ideal mistico dos tro- plenos de pensamentos sérios e de responsabilidade, taml se apaixonam e se tornam tolos. Nagdes caem, guerras troem milhées de vidas; a histéria muda por causa dessa vadores po de ter surgido em parte porque por volta do final do _ Enmuito do padrao de todas as vidas humanas aparece | cristalizagdes em torno da dor do fim da paixao. Muito da da humanidade, muitos dos eventos que definem a histéria século XI as amplamente difundidas doutrinas e praticas do cristianismo tinham perdido muito do seu elemento feminino essencial. Tanto o ideal do amor rom4ntico como o florescente nuanaigao) emi prandesparte ci cateizes no cornea: culto a Virgem podem ter surgido em parte porque a Igreja na Europa se tornara muito “masculina” e despética, muito preo- cupada com a sua capacidade de “fazer” e muito pouco capaz de O que Existe Por Tras da Dor da Paixao conduzir a corrente da misericérdia. Externamente, a miseri- cordia significa perdio dos pecados; internamente, também significa a capacidade ferninina, existente no interior de cada ser humano, de admitir e receber as forcas benéficas vindas do alto, Neste caso, a introdugao do ideal do amor romantico po- de ser vista historicamente como uma tentativa — talvez dese- quilibrada e muito facilmente mesclada com elementos estra- nhos — de retorno 4 capacidade humana de receber, permitir, abrir. O culto 4 Virgem talvez tenha sido necessario nao apenas como uma ideologia do perdao que penetrasse nas mentes da Europa, mas também como uma sensa¢ao que existisse na na- O escritor suigo Denis de Rougemont, na sua obra-pri Love in the Western World, apresenta a paixao do amor roman\ como uma degeneragao do ideal medieval do amor corte que, na verdade, pretendia ser o amor espiritual, o desejo crescimento da alma.! Como compreender isso? Na inexplit vel paixdo do amor talvez haja uma vibragdo de um plano m elevado da consciéncia humana, que mistura tanto os impuls: do corpo como as emogoes socialmente condicionadas; tanto instintos animais como os medos ¢ anseios do ego, Aquilo qi tureza humana, uma sensa¢ao que se movesse para dentro, nao apenas para fora, rumo 4 saciedade. Em suas raizes, a experién- cia do amor romantico é o reflexo — nao apenas na mente mas 1 Denis de Rougemont, Love in the Western World, New York: Panth Books, Inc., 1956. Ver em especial o Livro VI. (N.A.) 36 37 Sobre o Amor também no corpo - material interior da natureza humana. E verdade que essa sensa¢ao mais refinada também se tura facilmente com o temor, o ego ea imaginagao, E por ca dessa distor¢a0 somos tentados a considerar 0 amor rom: apenas come uma fraqueza humana. Mas atencao para nao co fundirmos a distorgio com aquilo que é distorcido. Isto pr 0 cinismo, e o cinismo é apenas uma outra cicatriz no cor: humano. Quem Somos ‘Nos, “Vocé e Eu? Sera que isso nos diz algo a respeito do que acontece quant as nossas paixGes individuais pelos outros enfraquecem? Ou bre o que fazer, como compreender um ao outro quando is: acontece? (Pois inevitavelmente acontece, as vezes rapidament 7 as vezes por longos periodos, ou as vezes permanentemente.), O que mantém um relacionamento nesses periodos? Muit coisas: confianga, amizade, 0 momento, consideracdes sobr seguranga, filhos, conveniéncia. Outras paixdes comparti das. O amadurecimento da idade e do afeto, Ou fatores esti tamente negativos, como o medo da solidao, o medo da culps ou patologias de muitos tipos. Ou talvez simplesmente o fate de se ter feito uma promessa mutua. Como saber quando é hora de romper o vinculo, e o qui fazer para dar esse passo? Como saber quando a mudanga qu se procura é um novo e necessario movimento de vida ou quan 38 Os Dois Amores "do é apenas um passo atras, forgado porém impulsivo, e em {ltima andlise repetitivo? Meras idéias e meros ideais sé agora podem ir tao longe, numa era em que as antigas idéias — os valores e os ensina- mentos que governaram as vidas dos nossos antepassados — estio perdendo autoridade em nossas vidas. Antes, no passado, esses valores eram forgas poderosas. Agora essas forgas pare- cem nao ter tanto poder. Isto é especialmente verdade em ma- téria de amor. Honrar uma promessa ou quebra-la; agarrar-se a um relacionamento ou tornar-se livre — com o tempo, ne- nhuma alternativa parece obviamente melhor do que a outra, Olhemos a nossa volta. Depois de muito tempo, quem esta fe- liz nos seus relacionamentos, nos seus amores? Quase em toda parte ha corag6es partidos. f Precisamos de novos deuses nas nossas vidas e no nosso amor. Ou talvez velhos deuses com novos nomes. O que podemos reverenciar reciprocamente, além do apelo da paixdo, ou do habito, ou do momento, ou do medo? Qual poderia ser o significado atual de ideais antigos que estao na base teérica das tradigdes do casamento, tais como “uma sé car- e”, “uniao espiritual” ou “promessa divina”? E se o casamento ou o amor entre um homem e uma mulher se transforma numa “promessa divina”, 0 que é sagrado nessa promessa para homens e mulheres como nés, numa era como esta, na qual para a maioria os deuses se afastaram? Se nao é somente a paixio que pode oscilar de forma tao marcante; se no é algum ideal “sagrado” mas irrealizayel, en- 20 0 que podemos apreciar mutuamente — além daqueles es- 39 Sobre o Amor forgos humanos normalmente duradouros de nos preocu} mos com o bem-estar fisico e mental do outro? A unica resposta possivel é nos considerarmos mutuam: te como pessoas que buscam. Este ¢ o amor intermedi Nao podemos, na verdade, dizer que somos “uma sé ca — nossa cultura individualista de fato e na prdtica nao mais esta visio. Nao podemos dizer que “nossas almas uma s6”: uma alma? Consciéncia de nés mesmos, que e além do espago e do tempo? Nao podemos nem dizer que perimentamos isso. Mas podemos vislumbrar a busca do outro. Podemos estar cient da luta do outro por liberdade interior, | por abertura para aq lo que é maior dentro de nés mesmos e do que somos alijadi pelas nossas ilusdes e por nos concentrarmos em nossos temi res e desejos._ Se olharmos atentamente, descobriremos que ao nos ver mos lutando conosco, lutando por uma presenga interior € pel liberdade, quando realmente sentimos que essa luta ocorre e outra pessoa, sé nos resta sucumbir ao amor! Esse amor nao é amor da paixao, nem do ego, nem do calor familiar, nem historia compartilhada, nem mesmo 0 mistério de um momen. to de fusio de identidades. Esse amor ¢ até ento uma capaci dade desconhecida, ou melhor, sem nome, que existe no i terior de todo ser humano. E o amor da luta humana, daquil que dentro de nés luta conosco. Nao é o amor da virtude; é 0 amor da luta pela virtude. / Nao é 0 amor da forga; é 0 amor da luta para enfrentar fraqueza. ©s Dois Amores Nio ¢ 0 amor do espirito no outro, nem da alma no outro. E o amor por aquilo que no outro anseia e luta pelo espirito ¢ pela alma, por mais vagamente compreendido que isso seja. Esse amor nao é algo que “criamos”. E algo que nos é dado _— do alto e do interior de nés mesmos. Referimo-nos aqui a possibilidade de dois mundos que se aproximam, de dois tipos de amor que parecem tao distantes. De um lado, a forga do amor que todos conhecemos, e de ou- tro, o amor de que falam os ensinamentos espirituais do mun- do. Dois amores: um exaltado e parecendo fora do nosso alcance; o outro surpreendentemente poderoso e por sua vez arrebatador, ansioso, alegre e angustiante. Sera que podemos viver juntos de maneira tal que possamos criar uma abertura para o contato entre esses dois mundos, esses dois amores, es- ses dois tipos de vida dentro de nés mesmos? Sera que é esse 0 significado da histéria de Baucis e Filémon — a chave do enig- ma existente no final da historia? Os dois amantes sao trans- formados em 4rvores eternas: nao sao mais individuos no sen- tido usual, mas sim forgas universais que se fundem para toda a eternidade. E 0 que eles agora personificam é mantido por ou- tra forga ndo menor, mas até mesmo maior do que aquilo que em geral reconhecemos como individualidade consciente. Tal- vez a histéria original seja parte de uma histéria maior, da qual apenas alguns indicios permanecem na histéria que nos conta Ovidio. O que fica claro, no entanto, é que onde quer que a historia maior seja contada, onde quer que a sabedoria perene do mundo tenha sido transmitida, aprendemos que somos seres criados para unir os dois mundos dentro de nds, para incor- ca ae Sobre o Amor porar em nossa vida consciente aquilo que o Novo Testament chama de eiréné, a ponte que liga os dois movimentos opos dentro da natureza humana, “a paz que ultrapassa a compre sao”. Acima de tudo, sempre e por toda parte aquilo que tr: harmonia as forgas fundamentais — aquilo que leva todos seres a unidade — é chamado de amor. Que esforgo de amor pelo outro pode apoiar a busca de dade dentro de nés mesmos? O que realisticamente podemi dar ao outro que nos ajude a nos dar e que a religiao chama Deus, a filosofia chama de Realidade e a sabedoria, de Eu? Este livro pretende questionar as atuais dificuldades que dos enfrentamos quando trabalhamos pelo amor: problemas comunicagao, de confianga, as presses do tempo, as exigé cias de um mundo desconcertante e em dramatica mutagao qual todos precisamos buscar um ao outro e a nds mesmos, AQ

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