You are on page 1of 7
OS AMANTES CONTRA O PODER Sobre alguns olhares que se cruzam, no amor @ primeira vista e na teletela do Grande Irmdo Renato Janine Ribeiro Para Teresa Omeu ponto de partida € o titulo de um livro de Jean Rousset, Lewrs yeux se ren- contrérent, ou Os seus olbos se encontraram, que ttata da ‘‘cena da primeira vista no ro- mance’’.! A idéia é das mais interessantes: como, no romance — desde a Antigitidade até nossos dias —, se produz a cena fulgurante do encontro de dois amantes, com a pai- xao nascendo no instante mesmo em que um enxetga o outro. E a cena classica do coup de foudre, do raio, do que fulmina; mais que isso: 0 raio que atinge a ambos, fazendo os dois vibrarem de amor. E que, se comeca no amor, cobre porém mais que ele: esse olhar ao quadrado € 0 olhar no qual eu vejo nao apenas o contorno do outro, os seus encantos — cu vejo o seu proprio olhar. E sabemos que olhar alguém nos préprios olhos esta car- regado, para nés, de uma idéia de yeracidade, limpidez e honestidade. O encontro dos olhares € garantia de um mundo limpo, no qual o belo eo bem coincide. Mas, se queremos comecar pelo amor apaixonado, € preciso contrastar a primeira vista com a anilise célebre de outro enamoramento, a de Stendhal, que consiste na cris- talizagio.? Neste caso, o amor vai nascendo por camadas superpostas; 0 simples olhar en- tusiasmado nio basta. Primeiro me digo “como ela é bela, que prazer seria beija-la, ama-la’’; mas somente 4 medida que you me nutrindo de espetangas, que me fazem continuar apostando neste sentimento — ¢ de frustragdes, que me levam a dar-lhe mais € mais valor —, somente com o tempo alternando aproximaces ¢ afastamentos, € que a Paixao se constitui. O que nao quer dizer que seja, este, um amor equilibrado, sensato, cortespondendo adequadamente ao que o amado sente por nés; € tao louca, essa paixdo, quanto qualquer outra. Mas nasce no tempo, ¢ dele se alimenta, ¢ cresce. Em outras pa- lavras, entao — nao € uma paixdo necessariamente Gnica na vida. Stendhal, idedlogo no sentido de Tracy, pesquisando como surge 0 amor (da mesma forma que qualquer outro sentimento), esta atento ao que hé de facticio, casual, na gestac4o que analisa. O que me faz sentir que essa mulher € anzca (0 que nao quer dizer que 0 seja de fato) acaba sendo uma somatéria de fatores, fortuitos na sua propria juncao; e é isso o que ele mostra com a imagem do tempo que cristatiza, ¢ faz de um mero galho uma fina peca de joalheria. Leiamos, entao, por contraste, 0 apaixonamento num autor romano, Aquiles Ta- tius: Mal a vi, senti-me perdido [melhor dizendo: me perdi]: pois a beleza produz ferida mais funda que uma flecha ¢, passando pelos olhos, penetra até a alma; € pelo olho que passa a ferida d’amor. Fui possuido, a um tempo s6, por todos os sentimentos: admiragio, estupor, temor, timidez, impudéncia. Eu admirava o seu porte, ficava pasmo ante a sua beleza, tre- mia no coracao.* A vista aqui aparece como algo fatal. E precisamente o fasum que entra no mundo — no meu mundo — quando yejo, ¢ me apaixono ao ver. ‘A primeira vista, a0 contrario da cristalizacdo, € 0 amot instantaneo, 0 taio, fulmen, ferida no olho. E, esse amor extre- mo, um amor de paradoxo: ofusca, dé a ver tanto que ja nao permite mais ver. Lembrao mito platénico da caverna: um conhecimento que ilumina ¢ cega. Temos entdo extre- mos, aluz que produz trevas, a visio que deslumbra, eclipsa. Ou, melhor dizendo, vive- mos o paroxismo — uma tal exacerbagao que rompe © cotidiano, o banal. O amor-paixdio que se constituia no tempo — 0 de Stendhal teérico — tinha o seu qué de fortuito. Por que me apaixono por Mathilde de la Mole?, poderia perguntar Ju- lien Sorel. Na verdade, uma vez preso, cle se da conta de que jamais a amou realmente; € como se fosse um amor cerebral, como o que Henri Beyle moco teve por Victorine Mounier — no caso de Mathilde, um amor produto de soma de expectativas ¢ frustragoes. Sua altura, beleza, frieza; igualmemte, as iniciativas que ela tomou para aproximar-se dele, seduzi-lo, dar-se a ele; o significado social de possui-la — ele pobre, desprezado pelos jovens nobres, tendo em seus bracos a moca que eles ou desejavam como mulher ou pretendiam como alianca: isso se junta, para forjar um sentimento que tem tudo do amor-paixio, mas que talvez nao o seja, pois se dissipa quando retorna a sta. de Rénal. Haveria entdo diferenca entre um sentimento que € mero produto das fortuidades, ¢ ou- tfo que € como uma rvelagéo, um destino? Na sua teoria ¢ em sua vida, Stendhal nao propés esse outro tipo de amor: ateve-se 3 soma das casualidades. E 0 que lemos no capi- tulo 1 de Do amor (ou melhor, € 0 que ndo lemos, porque ele nem cogita a hipotese de um amor que scja destino), € a postura que ele precisou adotar a cada amor repelido, frustrado, em sua vida. Mas, nos romances, parece dar-se o contrario. O amor de Gina pot Fabricio, e deste por Clelia, na Gartuxa de Parma; de Julien ¢ da sta. de Rénal, em O Vermelho e o Negro; de Lucien e dasra. de Chasteller, em Lucien Leuwen — sao, todos estes, sentimentos que haurem sua forca de alguma dimensdo mais funda que a mera so- ma. De uma dimensio que se chama verdade (a idéia, que pata simplificar chamaremos de rousseautsta, de que a verdade esta no intimo das pessoas). E desta forma a cristaliza- cdo muda de sentido, de mero processo passa expresso, pois vai exprimir um fundo que sequer era mencionado em Do amor. Ela torna-se revelacao. E por isso mesmo 0 amor-paixdo, que na anilise do idedlogo era género (como eu me apaixono, como posso me apaixonar, como posso fazer outta pessoa apaixonar-se por mim), € portanto podia ‘ocorret sucessivas vezes numa vida, aqui torna-se Unico, e passa — como nas cortes pro- vengais se dizia — a ter parte com a morte. Amor mors: 0 apaixonado projeta 0 sentido de sua vida no outro, e, falhando a teciprocidade, perde, com o sentido, a propria vida. Esta idéia de revelagdo, que aparece na obra romanesca porém nfo na teérica de Stendhal — ou seja, que em Stendhal é implicita —, na primeira vista € essencial. Ao ver aamada — ¢ ha tantas formas de ver, até a de Eros € Psiqué, que vé sem ver —, 0 he- 16i constata que sua vida mudou. Nada mais tera valor sem a pessoa amada. Nada tera sentido sem ela — ¢ a0 mesmo tempo, gracas a ela o que carecia de sentido passa a té-lo. O mundo agora significa ou porque as coisas s¢ preenchem com a beleza dela (por parti- cipagao) ou porque face a ela tudo se mostra opaco (contraste). Ha religido nesse amor. Uma verdade transmite-se, que nada mais empanara. O sentimento alcangou um tal va- lor que s6 pode ser o da verdade. Eoamor no a 10 instante: sem tempo. Por is: é di eee sem # s0 mesmo € dificil 0 coup de a cies nha talvez nao haja futuro, para ele. Ora, 0 tempo é co tee ¢ lamlet, que monologa sobre, entre outras coisas, 0 suicidio: re Quem softeria os relhos ¢ a itrisio do mundo. © tgravo.do opressor, a afronta do orgulhoso. Toda a lancinagao do mal-prezado amor, A insoléncia oficial, as dilacoes da lei, Os doestos que dos nulos tém de suportar O mérito paciente, quem o sofreria, Quando alcancasse a mais perfeita quitaczo Com a ponta de um punhal?* Quem suportari: i Brisicen bel ta Cra seus males, podendo fugir dele pela prépria vontade, con See anaes le uma faca? O homem tem, a seu alcance, o poder de por fim ato ire ri aia mas 0 que €0 poder, que nos yence (‘Thus conscience does mak i . on i: at adiante, no mesmo monélogo), sendo o medo de que depois da mor oe ne ere - sie lamenta a injustiga (agravo, afronta, inso i : le ¢ vanidade (ittisdo: ‘‘scorns of time" do séeu ‘ cee le < : “scorns of time’’ do sécu/o, ‘'do mun. ‘Ves ‘a nds mais importa, a dor do tempo (a#raso: ‘‘dilacbes’’ led oe s importa, po (afraso: ‘‘dilacdes’’ da lei, ‘‘scorn: ae me ay an nao retribuido (“‘the pangs of despised love’’). Sao os males ash : Foti akon - naw a na oe parte, as que ferem o mérito, ¢ s6 de contrapes fe onde, se sofremos, é ilusao fal; injusti aia "mos, € i lat em injustiga — porque o meu aa eee min ° sisal oO ar nao € quinhao que cabe ao bom e justo). Por sinal ¢ repulsa no amor, isso se cle ama Oféli : ee : c t élia; softe, apenas, se z a a . que o traiu (cao pai que tinhao mesmo nome que ele) em Lae do tic 7 ee ny ay € 0 que rae © principe. O tempo, ainda assim, é lugai ou um més da morte de meu pai, ¢ ja ela ia ‘ a n ni meu pai, ¢ ja ela se sacia na cama de meu ti gre oe ee fémea possuida), da injustica: Chronos que mata. bs ant pb trag4o no tempo, que talvez seja inevitavel ao proprio amor-apaixo- ae ae . ee ee do coup de foudre, do instante de enamoramento etaforas da luz, energia, instante, maxi é i 7 4 is , maximo, Porém. i — , Por isso mesmo a pleni- pei a ee se soit no embate com o tempo: porque nos defrontamos a oh externos (um mundo que nio é feit i stac fo para a paixdo, que a esfarel: proprio tempo, que faz o sentim i a ue i ento it se perdendo (num do: i intensos, um em que o amor prec imeira vi oe ede a primeira vista — a Pri ei oe re a Princesa de Cléves, de Mme. oa ee » 0 duque de Nemours acaba esquecendo a amada, tempos depois de ela Pires oe ai vi anes uhh tudo; € remédio, isto é, se lembrarmos a palavra grega pharm rmos o belo ensaio de Derrida sobre A farmdi a 86 se distingue do veneno devido a Se ae levido a dosagem e ao lu: i i ee i 5s lugar e oportunidade de sua aplicacao. genes ieee ° snes Poiso que estd, nesta idéia, € que a paixdo é incr Bla tem ee ree — contraria a nossa consciéncia, a raz4o, nossa vontade. Esta ee " i melhor vemos € na natrativa de Proust, Um amor de Swann Primeiro, pea , Ce quase impossivel: Swann, homem fino mas que no amor mulheres, apaixona-se por uma que — alé mento — sequer 0 atrai fisicam is el a ente, Depois, mais im; i é 4 = t 7 iportante que isso, €a a : We pees que se avolumam frustragdes, de que rene por Odea Ain i me e : aD: G qual terminara, um dia, por sarar (‘‘Dizer que perdi anos de minha vida 4ae que quis morrer, que senti meu maior amor, por uma mulher que ndo me atraia, que nao fazia o meu tipo!”’). E, sentindo chegar a cura, ele se entristece ao antever a liber- tagio. amor apaixonado — porque, dele, quantos tie pos havera! —, pelo menos podemos agora contrastat duas yersoes algo tragicas: da pai- xao como doenga, que se cura no (¢ gracas ao) tempo; ¢ dela como fatum, que matca de- finitivamente: ‘‘Mal a vi, me perdi’’. Para a doenca, ha saida; mas ao fado nao ha como — escapat. Sem querer fazer uma tipologia do Mas estivemos supondo, até aqui, a paixdo de um sb, do que vé; ora, o tema € OS | seus olhos se encontraram... — quet dizer, o olhar € de dois, ha reciprocidade nesse | amor. Vamos entao fazer uma excursio pelo olhar do poder, antes de retornat aos olhos dos amantes. E vamos pensar, no poder, também um cruzamento de olhares: no roman- ce de George Orwell, 1984 (1948), @ teletela. Ou seja, no amor-paixdo reciproco dizia- mos que dois olhares se encontram; na teletela — invengdo engenhosa, que € uma TV que transmite sem interrupc4o mas ao mesmo tempo também serve para mandar @ cen=| tral de policia imagens de qualquer canto habitado do pais, garantindo total controls dos gestos € atos — também se ‘olha em ambas as diregdes. Mas que diferenga! 1984 € um romance notavel — pelo menos até perto do fim, quando as discu: tericas, as argumentagdes esmagam a narrativa. No livro de Orwell lemos varios tet is _ A administracZo on- de interesse, a comegar da proposta tot: de trabalha Winston Smith visa exclusivamente 2 corrigir to da do passado, para adapti-la as necessidades politicas do presente. Se a tagao de choco*) late passou de 30 a 20 gramas semanais, ha que destruir todos os recortes ¢ mesmo jor) nais arquivados que mencionem 30 gramas; € preciso reescrevé-los, para que conste qui a ragdo anterior era de 15 gramas, ¢ assim a reducdo decretada se converta, imaginatia- mente, em aumento. Domina-se as pessoas desmemoriando-as (ou, talvez, 7e-memo! ando-as) — a tal ponto que Winston se empolgara ao encontrar um papelzinho, que breviveu 4 destruicao sistemética € prova que a Historia Oficial € falsa, € farsa. Um segundo tema € 0 da Novilingua, a brilhante idéia de uma lingua resumida direta, na qual nao haja distorgoes de sentido, conotagdes, poesia (remas que, sabemos desde Platao se véem associados, na pressuposi¢ao de que poetar 0 que ha de mais sub= versivo, ¢ de que um uso exato da linguagem, puramente denotativo, sem figuras 9 com elas domesticadas, poria fim a todo desvio em politica). Em Novilingua as palay se depuraram; é 0 Gnico idioma, diz um dos colaboradores do Dicionario (vejamos uma lingua que nasce das sucessivas edigdes do dicionario, em vez de elas repertoriaren as modificacdes colhidas no uso), no qual as palavras diminuem em vez de aumentar. O ideal € chegar a poucas dezenas. Como exemplo, temos 0 que prefixos (bem como xos) podem fazer: em vez de maw, imbom: pata 6timo, excelente, tercmos plushom, para péssimo, plusimbom. ‘Assim terminara, também, a crimidéia, que € © delito dé pensamento. A evolucao da lingua ha de tornar impensavel, portanto impraticavel o pior ctime, que € justamente 0 de pensar mal do Estado. E estranho que esse topic de 1984 mal tenha sido estudado, ainda mais com 2 voga, estes anos, de estudos de guagem. Diziamos, terceito ponto, que a crimidéia € 0 pior ra ado pensamento. Nem os crimes comuns, nem mesmo os ato: gravidade quanto 0 pensamento que os incentiva. crime, ea policia mais repress s subversivos tém tant juarto i ings s coe i . Seite dominador. A multidao ama o Grande Itmio, 0 ( if ea mente a classica reflexto sobre o amor do dominado 10d ade et 8 lo ie que muitos aceitam obedecer a um s6, que manife: aie ie les juntos; Espinosa, repondo a questao; mais perto d ee 1, concluindo que parte dos operarios alemacs (a ‘‘aristocracia oj 4 ), €0 interesse de classe, optou pelo nazismo, por moti oo aa mas de ordem psicolégica. Lie SHRM , Gltimo ponto que desejo destacar € onde este livto mai i sae } ° is se desatuali: i a A nae Pie station da escassez. No mundo de iene be 0 a economia se volta sobretudo para a guerra et Eon ce 4 oe i beanies € deliberada, garantindo que ad beupn Ret eee é te tempo € condigao Para pensar no supérfluo (pois a li a = las necessidades minimas; ou, como pensa Wilde, o essen Grandi eee ts que ieee humaniza; ou, para platonizar junto com ¢ a aaa ee 10 supérfluo jé esta, de algum modo, no paradigma da su eon rate preocupa com o fatil, com o a-mais, j4 de algum modo s« a. ee a produzzr escassez (em vez de tesultar desta), des a oe lan mais conforto aos homens, ou, ainda, canalizande a sh ne spe bélica em vez da pacifica. Mas onde melhor se vé z ae

You might also like