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Evaldo Cabral de Mello UM IMENSO PORTUGAL Histéria ¢ historiografia Guilherme P. Noves editoralll34 EDITORA 34 Edivora 34 Leda. Rua Hungrie, $92 Jardim Buropa CEP 01455-000 ‘io Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 editors34@uol.com.br Copyright © Edicors 34, 2002 Um imenso Portugal © Exvaldo Cabral de Mello, 2002 ‘A fotocépia de qualquer folha deste liv é iegal e configura uma propria indevida dos direitos intelecusise patrimoniis do autor. Imagem da capa: ‘Mapa do Brasil por Giambartsea Ramusio, 1557 Imagem da 4* capa: Detalhe do maya Pracfeccurae de Pataiba et Rio Grande, de Georg Maregraf 1655 (Capa, projeto grifica eeditoragio eletrdnics Bracher & Malta Produséo Gréfice Revisio: Cide Piguet 1» Eaigio - 2002 Catalogagio na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Pundagdo Bibliotees Nacional, RJ, Brasil) Malo, Eada Cava de Marri” Un inmono Pong: isha einige vale Coral de Mtl, — Sto Paulos a. 34,2002 368. 1s 95.7526.256-7 1 Mii 1 i Beal 1 Tl, cpp -981 Indice Apresentagiio a 7 1. A maneira de prélogo ou elogio do ostracismo .. ab 2. Fabricando a nagio . 15 3. Um imenso Portugal (1) 24 4, Antevis6es imperiais (2) .. 35 5. O impétio frustrado (3) .. : 46 6 A tleima encarnagéo do Reino Unido (4) 54 7. Entregando 0 Brasil... 63 8. Uma Nova Lusitinia (1) = 69 9. Persisténcia dos modelos reindis (2) 80 10. Nas fronteiras do paladar (3) . 92. 11. Questéo de cronologia 102 12. Um dos outros nomes do Brasil 110 13. Um enigma iconogréfico 19 14. Como manipular a Inquisicéo 127 15. Republicanismo no Brasil holandes. 147 16. O mito de Veneza no Brasil... 156 17. Revolucdo em familia. 163 18, O mimetismo revolucionatio .... 171 19. A cabotagem no Nordeste oriental (1) 179 20. Aparigéo da sumaca (2) — 188 21. A vit6ria da barcaga (3) 22, O sinal verde d°EI Rei 23. Minha formagio (1) 24, Um livro clitista? (2) 25. Reler O abolicionismo (3) 26.0 ovo de Colombo gilbertiano (1) 27. A histéria social da presenga britanica no Brasil (2) .. 28. O século mais agreste 29. Collingwood e 0 oficio do historiador . 30. O preconceito sociolégico em histéria.. 31. Historiadores no confessiondtio .. 32, Entre a histéria da civilizagéo a ilosofia da histsria... 33. A polémica do Novo Mundo . 34, A interiorizago da metrépole 35. O homem barroco portugués 36. A espera da redengao nacional Indice onomdstico Referéncias dos artigos Sobre 0 autor... 202 . 221 232 240 249 257 264 273 280 288 298 312 321 329 337 344 349 359 363 Apresentagéo Os textos recolhidos neste volume referem-se seja a temas de histéria brasileira e pernambucana, seja a quest6es de histo- riografia e de conhecimento histérico. Ligeiramente revistos ago- ra, eles datam dos tilkimos sete anos, com excegio das paginas intieuladas “Como manipular a Inquisigio”, publicadas em 1992 na Novos Estudos Cebrap; e, na sua grande maioria, apareceram no caderno Maitl, da Folha de S. Paulo, a quem o autor deseja agradecer a acolhida dispensada. Outros artigos surgiram como preficios, ou no Jornal de Resenhas daquele periédico ou na re- vista Continente Multicultural, do Recife, ou ainda como cola- boragao em obras coletivas. Em alguns casos, os titulos com que ora so impressos foram modificados pelo autor. Os niimeros entre parénteses a0 lado dos titulos indicam haver unidade tems- tica entre os artigos. Um agradecimento especial é devido a Cide Piquet, que nao sé reviu competentemente as provas como suge- riu modificagées estilisticas que melhoraram substancialmente Um imenso Portugal, expressio, escusado aduzir, pirateada a0 “Fado Tropical”, de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra. UM IMENSO PORTUGAL Histéria e historiografia 1 A maneira de prélogo ou elogio do ostracismo Em Florenga, em 1512, 0 retorno dos Médici ao poder en- terrou o regime republicano restaurado vinte anos antes na es- teira da pregagao integrista de Savonarola e da invasio fraiicesa da Itilia. Do dia para a noite, Niccold Machiavelli, 0 secretério da Segunda Chancelaria florentina, caiu no ostracismo. Em vez de ocupar-se das quest6es de Estado, para as quais se considera- va especialmente vocacionado, ei-lo reduzido a sobreviver me- diante a gestdo de San Casciano, pequena propriedade rural herdada do pai, a cerca de 30 quilémetros da cidade. Que fazia por ali? De manbazinha, caprurava péssaros e ocupava-se com providéncias préticas, como a de supervisionar a derrubada de tum bosque, cuja madeira vendia, tagarelando com os lenhado- res ¢ barganhando com os compradores. A sombra de uma fon- te ou sentado no viveito, relia Dante, Petrarca ou Ovidio. O al- ‘mogo tinha a frugalidade do de um camponés do Mediterrinco: apenas os alimentos que Ihe fornecia o sitio ou que lhe permi- tiam os rendimentos modestos. A tarde, encanalhava-se no al- bergue da estrada, ouvindo as novidades trazidas pelos passantes ou jogando com gente do povo, entre disputas e palavrées. Es- gotado ao longo do dia o que reputava a malignidade da sua sorte, vingava-se & noite, quando vestido com apuro entregava- se leitura dos historiadores clissicos, sobretudo Tito Livio e Un menso PorrucaL Polibio, junto a quem “nutro-me do alimento que é verdadei- ramente o meu ¢ para o qual nasci”. “E durante quatro longas horas, néo sinto mais o tédio, esquego minha misétia, jé nao temo a pobreza nem me deixo intimidar pela morte.” Em resumo: 0 estudo das ages dos grandes homens do passado tornara-se a ‘compensagio da sua inatividade forcada Restavam-lhe quinze anos de vida, prazo que ser mais que suficiente para escrever as grandes obras que lhe assegurardo no Ocidente a influéncia indizivelmente superior & que poderia ha- ver jamais exercido, caso os Médici o houvessem chamado de volta & Signoria, Maquiavel no suspeitava, contudo, da forcu- nna a que seu pensamento estava fadado; e se 0 formula, serd, em grande parte, no fito de conseguir sua reabilitacdo politica, Tudo o que obteve, porém, foi a designagio de historiador oficial, que Ihe permitird redigir as Histériasflorentinas, espécie de laboratério pata cesta a teoria politica que havia formulado no Principe e nos Comentérios, e duas ou txés missbes diplométicas anédinas a ci- dades vizinhas, Estas foram, aliés, 0 quanto bastou para compro- ‘meté-lo aos olhos dos antigos correligionérios republicanos quan- do o equilfbtio politico da Teélia foi novamente posto & prova pela vit6ria espanhola de Pavia (1525) e pelo saque de Roma (1527). Restaurada provisoriamente a repiiblica florentina, ninguém se lembraré dele. A piada banal é inevicdvel: na sua atividade polt- tica, Maquiavel néo foi nada maquiavélico. Sua biografia contrafatual pode supor duas inflex6es alter- nativas no seu destino. Pela primeira, os Médici nao teriam re- tomado o poder em 1512 e ele teria prosseguido sua carreira de alto funcionério do regime republicano. Pela segunda, os Médici o teriam empregado a seu servigo, como haviam feito, por exem- plo, com um colega, Francesco Vettori, em cuja amizade Ma- quiavel depositou a esperanca da ieabilitagao. O problema con- siste em que, em nenhuma dessas hipéteses, nosso autor tetia 2 ‘Awana 0 mrotoco ou st0cto Do asraaciswo conhecido a auténtica celebridade, seja como homem de acio, seja como eminncia parda, & maneira do fei Joseph, agente de Richelieu. O contemporaneo e conterrineo de Maquiavel, Fran- cesco Guicciardini, também associado & histéria da teoria da ra- 20 de Estado, teve uma carreira diplomética bem-sucedida mas nela nada realizou de notdvel, tornando-se lembrado pela His- séria da Iedlia, que recebeu a honta insigne de ser traduzida para o castelhano, jé no século XVII, pos Felipe IV. Quanto a Vettori, triunfador do curto prazo, ficou conhecido precisamente por ser destinatério de cartas de Maquiavel. A situacio da Icdli, dividi- da contra si mesma, mero objeto na luta das grandes poténcias, que eram a Espanha e a Franga, nfo se prestava ao programa politico a que o ostracizado de San Casciano teria ambicionado servir, o fim da influéncia estrangeira na peninsula gracas & ago de um homem providencial, da témpera de um César Borgia ou de um Fernando 0 Catdlico, e de quem ele, Maquiavel, fosse 0 guru. Pois originalmente o maquiavelismo, ao menos © maquia- ‘velismo de Maquiavel, no deveria ser apenas o instrumento para chegar a0 poder ou nele manter-se mas também para colocé-lo 20 dispor de um grand design. ‘Acconclusio melancdlica se impée: caso tivesse sido chama- do pelos Médici, sua obra no teria sido escrita ou teria ficado pela merade, sem que ele tivesse sequer 0 consolo patriético de ver a Itdlia liyre da dominagio estrangeira. Seus livros s6 sexo publicados apés seu falecimento; e a unidade italiana levaré mais de trezentos anos para ser realizada. Ele seria certamente o pri- meio surpreendido ao saber da prépria imortalidade e de que cla Ihe viera de onde menos esperava, isto &, dos escritos dos seus set6es estudiosos de San Casciano, Como tantos homens de re- flexdo tentados pela acio politica, Maquiavel correu o risco des- te acontecimento verdadeiramente tragico na existéncia de um individuo de inteligencia superior, a infidelidade & prépria vo- Unt mmenso Poxrucat cago, a qual imprime a tudo que faz o estigma da inautentici- dade. Agio e reflexo sio atividades que exigem, cada uma se- paradamente, qualidades que mutuamente se repelem. Séo bem raros os que possuem ambas; mesmo nestes casos, haverd que, mais cedo ou mais tarde, melhor mais cedo do que mais tarde, optar pelo exerc{cio exclusivo de uma delas sob pena de nao se realizar em nenhuma ‘A biografia do secretério florentino é um caso-limite do fenémeno que se repete todos os dias, do homem de talento dis- posto a vender a alma a0 Diabo e preparado para sactficar a for- mulagéo das suas idéias, por mais inteligentes que lhe paregam, a satisfago passageira de haver impingido ao principe de plan- to ao menos uma parte delas, Na histéria luso-brasileira, temos ‘ exemplo do padre Antonio Vieira, eminéncia parda de D. Joao IV, a excogicar silogismos irrefutaveis para justificar a entrega do Nordeste aos holandeses. E, contudo, como era ele encarado na corte do Braganca? Da maneira pela qual todo homem de refle- xo € visto nos circulos politicos que freqiienta, isto é, sob sus- peita. Nio € outro o sentido do que referiu seu contemporineo, ‘conde da Ericeira, Apés reconhecer que o jesuita fora “o maior pregador do seu tempo”, o historiador aduz a sentenga conde- natéria: “como o seu juizo era superior e néo igual aos negécios {piblicos], muitas vezes se Ihe desvaneceram por querer traté-los mais sutilmente do que os compreendiam os principes ¢ minis- twos, com quem comunicou muitos de grande importancia”. Por inteligncia, nfo por delicadeza como Rimbaud, Vieira perdeu sua vida, Escusado assinalar que ele leu, e nfo gostou, a afirma- ‘glo de Ericeira, a quem dirigiu uma longa missiva, depoimento de grande importncia para a hist6ria da Restauragio portugue- sa, a que acrescentou, contudo, algumas lorotas destinadas a dei xé-lo bem perante a posteridade. * 4 2. Fabricando a nagao O nacionalismo brasileiro nio precedeu, sucedeu, a criagio do Estado nacional. © Brasil nao se tornou independente por- aque fosse nacionalista mas fez-se nacionalista por haver-se tor- nado independente. Nao havia sentimento nacionalista na Amé- ‘este mesmo limitado is camadas médias © popil cidades costeiras: Rio, Salvador, 0 Recife. O brasileiro dos esratos superiores percebia-se como o sidito de um Estado estandalosa inversGo. de papéis pela qual o Brasil transfor sé no centro da monarquia lusitaia; Yelegando @ metrépol posicio de colénia. Destaite, o Império nido foi produto de ti aspiragio nacional preexistente e cruelmente reprimida por uma poténcia estrangeira, como acontecia, por exemplo, na Grécia (lord Byron nio teria dado a vida pela nossa independéncia), mas o desfecho de um somatério de circunstancias, como a impossi- bilidade de se fazer aceitar, tanto pelo Brasil quanto pela Ingla- ‘Us verso PorTucaL terra, a aboligdo da liberdade de comércio concedida em 1808; aluta pelo poder encre o regente D. Pedro e os “vintistas”, vale dizer, os constitucionalistas portugueses, conflito de complexas implicagées dindsticas; e os interesses da burocracia régia, que, civil ou militar, graduada ou subalterna, fabricava no Rio de Ja- neiro, desde a chegada do Braganga, seu pequeno paraiso tropi- cal, enquanto no chegava o dia de se transportar para “a soli- dao do planalto central”, mais propicia & sua mandancia. Se o Brasil surgiu para a vida aurénoma sob o signo de uma aspiragio avangada, a liberdade de comércio, esta foi utilizada ‘com vistas a obter 0 apoio da populacio a um movimento, a In- dependencia, retrégrado na sua inspiragio original, pois encar- nou uma contra-revolugio de altos funcionarios piblicos contra a demolicio, pelo constitucionalismo lusitano, do aparelho de Estado instalado por D. Joxo VI. Maria Odila da Silva Dias, a quem se devem algumas das melhores pAginas sobre as origens da Independéncia, chama a atengio para o que afirmava Armica- ge, que redigiu sua histéria do Brasil pouco tempo decortido dos acontecimentos, O inglés abservava ironicamente que “todos os individuos expoliados dos seus empregos pela extingo dos tibu- nais [ie., das repartig6es puiblicas) converteram-se em pattiotas exaltados; e como se tivessem sido transformados por um agente sobrenatural, aqueles mesmos que haviam, durante a maior parte da sua vida, serpejado entre os mais baixos escravos do poder, ergue- ram-se como ativos ¢ estr8nuos defensores da Independéncia” O bergo da nacéo brasileira foi assim uma dédiva do fun- cionalismo piblicos ¢ os malsinados senhores rurais, contra quem tanto se aferra nossa historiografia politicamente correta, s6 vi- Go embalé-lo muito tempo depois. Como toda escolha entre ops6es com seus prés e seus contras, o dilema da Independén- cia teve algo de pungente. Por uni lado, as Cortes de Lisboa nos ofereciam um regime politico representativo, sob uma monar- Fasnicavo a nacho quia constitucional, muito embora deixassem claro que cobra- iam o preco no da restauracio pura ¢ simples do monopélio comercial, que era impossivel ressuscitar de todo, mas de um sis- 'tema, para nds onerosamente preferencial, em beneficio do co- hnércio e da navegacio portugueses no Brasil, cobranga que, alids, a Inglaterra tinha os meios de evicar. Por outro lado, a indepen- ‘déncia com D. Pedro garantir-nos-ia a liberdade de comércio mas apresentaria a fatura de um regime autoritério ¢ centralista basea- do no centro-sul, como logo se percebeu, por exemplo em Pernam- buco, onde a agudeza do dilema foi especialmente sentida por obra e graca da Revolugio de 1817. E ele que explica as reservas com que se deparou ali, desde o inicio, o projeto independentista formulado por José Bonificio, reservas cuja procedéncia ver-se- 4 confirmada pela dissolugio da Constituinte em 1823, J sabemos qual foi a escolha imposta ao Brasil. Hoje, con- tudo, tendemos a esquecer que, mesmo apés o estabelecimento do Estado brasileito, o sentimento nacional continuou por muito tempo aquela “florzinha tenra” da metéfora que jé serviu para definir a democracia entre nds, E claro que a Coroa de D. Pedro Tl a aguou e a fertilizou com assiduidade, como atestam suas iniciativas no plano cultural, inclusive no historiogréfico. Gra- «as inclusive ao segundo imperador, foros desde entdo um pals de intelectuérios, de literatos empregados pelo Estado e de fun- ciondtios publicos com veleidades intelectuais. Daf que as pri- meiras manifestagdes do nacionalismo ao longo de Oitocentos rnos parecam postigas. No plano econémico, quase todo o perfo- do mondrquico coincidiu com a hegemonia da concepsao livre- cambista sustentada pela riqueza e pelo poder naval da Gra-Bre- tanha, embora entre os politicos do Império, como entre os de hoje, na prdtica a teoria muitas vezes fosse outra. Quando, mal- grado os arteganhos ingleses, aprovou-se a rarifa Alves Branco, (6 que se almejava nao era proteger a infancia de uma inddstria "7 ‘Uw mienso Porrucat, inexistente, apenas conseguir dinheiro para que o Estado rema- tasse sua obra de centralizacéo. O Romantismo, que na Europa fora componente essencial, do nacionalismo, em especial nos paises que haviam emergido para a existéncia auténoma no decurso da centiiria ou que ha- ‘viam realizado sua unificagio apés séculos de diviséo, o Roman- tismo, dizia, pariu entre nds o indianismo, que foi uma expres- so mofina da ambicio de construir o que vird posteriormente ser designado por “identidade nacional”, Malgrado o Juca-Pira- ma ¢ 0 Guarani, as classes dirigentes sentiam-se muito pouco nacionais. Nos anos oitenta do século XIX, um dos estadistas do Império, Martinho Campos, mineito, fazendeiro de café e libe- ral que chegou a primeiro-ministro, declarava em pleno recinto do Parlamento que os brasileiros éramos “os portugueses da Amé- rica”, da mesma maneira pela qual 20 tempo da Independéncia chamdvamos os americanos de “ingleses da América”. Como tan- tos outros representantes dos grupos privilegiados, o bario do Rio Branco, nosso brasileirissimo Juca Paranhos, sempre as voltas com os velhos mapas ¢ com 2 boa mesa, falava com sotaque lu- sitano. Quanto aos escravos e as camadas pobres da populagio livre do intetior, no sabiam muito bem o que era isto de ser bra- sileiro, como o camponés bretio tampouco entendia o que era ser francés, ou o galego, o que era ser espanhol. Para que o nacionalismo, como a cerveja do antincio de televisfo, se viesse a impor como paixio nacional, era indispen- sdvel que 0 pais substitufsse o trabalho escravo pelo livre ea mo- narquia pela republica. Nao é seguramente’um acaso se 0 per- sonagem da fice brasileira que melhor encarnou nosso nacio- nalismo em botio, o velho Policarpo Quaresma, fosse florianista convicto, 0 “florianismo” havendo.constituido nosso arremedo do jacobinismo, quando este hé milito morrera na Europa. Sé com o fim da escravidléo criamos a oportunidade real de consti- Faaticanoo 1 wagto tuir um povo, fundamento da nacfo. Ao americanizar o sistema politico e ao introduzir a politica dos governadores, a Repibli- ca tornou-se tolerante para com as priticas politicas do secular autoritarismo interiorano, 20 contritio do Império, que profes- sava, a0 menos da boca para fora, horror por elas. O que explica que datem dos primeiros decénios do século XX os doutrinérios aque se escandalizavam com a defasagem entte o sistema politico eas condicées nacionais e que bradavam por instituigdes adap- tadas a elas, vale dizer, pelo que posteriormente serd conhecido por “democracia relativa”, O Estado Novo e o regime militar de 64 sio os auténticos herdeiros do programa que consistiu em jogar para o alto as conquistas, por modestas que fossem, do re- gime representativo do tempo de D. Pedro II, em nome de uma politica nacional que era bem mais autoritéria do que fora o exer- cicio do poder moderador. ‘A caréncia de sentimento nacional até praticamente 0 sé- culo XX nio significa, porém, que um arraigado sentimento lo- cal fosse desconhecido por estas bandas, como nfo o é em qual- quer outra parte do mundo, sentimento que, ademais, podia ‘rangtillamente conviver com estrututas politicas imperiais, como © patriotismo urbano do tempo do Império romano. O equivo co reside em enxergé-lo como uma forma de nacionalismo ou em afirmar-se, mediante leitura anacrénica, havermos sido sempre nacionalistas, quase desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Basta ler 0s textos de finais de Quinhentos para constatar a existéncia desse sentimento local, que se exprime nao s6 sob a forma de comparagées entre o Brasil e Portugal vancajosas para a coldnia, sobretudo no tocante aos recursos naturais, mas também sob a forma, aparentemente paradoxal, do lusitanismo que impregna- ria a vida material da América portuguesa, fazendo dela um “ou- tro Portugal”. Esses textos incorporaram até mesmo, como no caso da Histéria do Brasil de feei Vicente do Salvador (1627), a 19 ‘Uw imenso Porruca, inspirago autarquizante do mito indigena da “ilha Brasil”. Ao frade franciscano deve-se, com efeito, nosso primeiro programa de substitui¢éo de importag6es, quando sugeriu que os colonos se descartassem até mesmo da triade candnica da mesa portuguesa ¢ mediterranea, substituindo o trigo pela farinha de mandioca, o areite de oliva pelo de dendé ou de coco, ¢ 0 vinho pela cachaca. Se durante a revolugio tepublicana de 1817, 0 padre Joao Ribeiro surpreendeu um viajante francés com a sugesto de que se brindasse o acontecimento nao com vinho do Porto mas com aguardente de cana, h4 alguns anos tivemos um ministro da Cul- tura que queria impor 0 consumo da broa de milho em detri- mento até mesmo do pao de queijo. O exemplo ingénuo nem por isso é menos revelador do vigo dessa aspiragéo autdrquiica. Por outro lado, 0 nacionalismo brasileiro ainda nfo se deu con- ta da divida em que se acha para com 0 espitito de exclusto do antigo monopélio colonial portugués, ao menos no tocante & sua ‘forma mentis, na medida em que sua magica se esgota em fazer culminar a reserva de mercado mediante a eliminagio da metré- pole, No fundo, nosso nacionalista deste final de milénio.conti- nua a pensar que o pals pode crescer; empregar mais e redistribuir © bolo, tudo isto idilicamente & margem do que acontece no mundo, como se pudéssemos assim alcancar aquela “terra sem mal” que buscavam os tupis-guaranis, as vésperas da descoberta do Brasil, nas suas intermindveis andangas do sul para 0 norte. ‘Ao longo de Seiscentos e de Setecentos, tampouco poderia haver nacionalismo, emogio eminentemente oitocentista na Eu- ropa; ¢ no Brasil, como em geral no Terceito Mundo, prépria do século XX. Em contrapartida houve nativismos, assim mes- mo no plural, os quais definidos embora pelos dicionérios de ‘maneira restritiva, como a mera aversdo ao estrangeiro ¢ ao por- tugués em particular, na realidade foram muito mais do que isto. Eles representaram uma forma de patriotismo local, tao comum 2» Francine A Nagio quanto 0 dos antigos gregos, o qual, nas suas formas anédinas, podia até ser tolerado pelas autoridades coloniais, embora espo- radicamente alcangasse, como no Nordeste dos dias da Indepen- déncia e dos comesos do Primeiro Reinado, um grau inusitado de viruléncia. Entretanto, nao se falava ali em “nagio” mas em “péttia” e em “patriotas”, conceito que embora tivesse recebido na Franga revoluciondria conotagio nacional, ainda continha na Europa do Antigo Regime, inclusive nos seus prolongamentos americanos, o significado inofensivo do apego & tetta ou 20 lu- gar em que se nasceu. (Aquela altura, o dicionarista Morais Sil- ‘va ainda se referia ao Rio de Janeiro como “minha patria”, em- bora a houvesse deixado rapazote para ir estudar em Coimbra e, de regresso, se houvesse fixado em Pernambuco.) Em todo 0 caso, a “patria” dos revolucionarios de 1817, ainda nfo era o Brasil, o {que nfo redunda em desdouro do seu sacrificio. Era vistvel para eles que a presenga do monarca no Rio atava 0 centro-sul 8 sot te das instituigées mondrquicas, ao menos no curto ¢ no médio prazos, caso a repuiblica vencesse no norte. Esses nativismos de Seiscentos e de Setecentos foram a ex- pressio do ensimesmamento da América portuguesa, conseqiien- te & expansio territorial e 20 povoamento de boa parte do tet t6rio. Um dos mais surrados lugares-comuns da historiografia brasileira, ainda usado em discursos de Sete de Setembro, enxerga no levante de Pernambuco contra o dominio holandés os pré- dromos da consciéncia nacional brasileira. E pouco provavel, pois na medida em que'a restauragao do dominio lusitano no Nor deste constituiu uma manifestacéo da consciéncia coletiva, tor- na-se impossivel separar quimicamente o que ja era sentimento Jocal da ganga do que ainda era sentimento portugués. O movi- mento foi antes uma reagio da consciéncia portuguesa dos co- lonos do Nordeste, consciéncia envolta ainda num casulo reli- gioso e dindstico e reavivada entre nés pela recente Restauragio a ‘Un nmenso PorrucaL da independéncia do Reino relativamente a Castela e pela domi- nnagio estrangeira e herética dos Palses Baixos. A realidade é que 05 luso-brasileiros do Nordeste encararam invariavelmente suas relagdes com os neerlandeses em termos de radical incompa- tibilidade que hoje dirfamos cultural. Sé definitivamente expulso o invasor, é que o episédio passard a ser interpretado em termos nativistase, depois, nacionalistas. A precocidade dos nativismos, de um lado, e2 tardanga do nacionalismo, de outro, observam-se igualmente na origem dos nossos gentilicos. As populacées locais comegaram ater apelativos muito tempo antes de que se consagrasse uma designacio para os habitantes da América portuguesa. Em finais de Quinhentos, 4 havia “paulistas” ou “sampauilistas”; e nos comecos de Seiscen- tos, “pernambucanos”. Enquanto isto, ao longo de Setecentos, “brasileiro” era apenas o individuo que vivia de cortar 0 pau- brasil nas matas e de transporté-lo para os portos. Por sua vez, 0 adjetivo “brasilico” tinha sabor erudito, Quando a Independéncia se desénhou no horizoiite, o8 brasileiros éramos designados “por- tugueses da América” para distinguir dos “portugueses da Euro- pa”. Aquela aleura, Hipdlito José da Costa excogitava, no seu eatlio inglés, 0 termo adequado com que batizar os cidadios do pais que se ia criar. “Brasiliano” havia sido tradicionalmente 0 termo dado aos indios e como tal resultava excludente de quem nfo tivesse sangue amerindio. Quanto a “brasileiro”, parecia-lhe inapropriado devido ao sufixo que denota a profissao, nfo a ori- gem, Daf que optasse por “brasiliense”, 0 qual adorou no titulo da sua gazeta londrina. O termo nio vingous o hino da Indepen- déncia consagrava a “brava gente brasileira”. A suspeita teria de ser submetida & prova dos textos do século XVIII, mas é plaust- vel que a expressio “brasileiro”, usada entre nds para designar quem se dedicava a fazer a madeira, fosse empregada em Portu- gal aos naturais do Brasil com inten¢o pejorativa, da mesma 2 aanicanoo a nacho maneira que nés utilizavamos 0 vocdbulo “marinheiro”, igual- mente denotativo de uma profissio, para o imigrante lusitano. ‘Nao seria, alids, a tinica vez em que um povo importa sua deno- minagéo. Embora “Espafia” seja palavea imemorial, de origem talver piinica, “espanhol” foi de comeso 0 vocébulo com que na Provenca medieval eram denominados os habitantes da penin- sula que se estendia ali adiante, ao sul dos Pirineus. Os nativismos brasileiros comportaram, € certo, um teor protonacionalista, do mesmo modo pelo qual na Europa o na- ionalismo foi precedido por formas frustas de sentimento na- ional desde o fim da Idade Média. O que imporca assinalar, porém, é que tais nativismos podiam também, e foi o que ocor- reu ao tempo da Independéncia, ser manipulados em sentido an- tagdnico ao nacionalismo, que se viu assim na necessidade de di- los para poder eliminé-los, Para voltarmos 3 regio onde o smo foi o mais intenso no decurso da histéria brasileira, isto é, 0 Nordeste, foi ali também onde se oferecen a mais cer- rada resisténcia & criagdo do Estado brasileiro, embora o Rio Grande do Sul, que nfo era tio nativista assim, nao ficasse atrés neste particular. Ao passo que o nativismo respondia a uma ex- periéncia espontinea das gentes, a criagao de um Estado nacio- nal parecia algo artificioso, o grand design de altos funciontios da Coroa ou 0 enigma politico escondido no autoritarismo e no dinasticismo do regente D. Pedro. Quanto ao Rio de Janeiro, era encarado como o disfarce grosseiro da antiga dominacéo por- tuguesa, Por sua ver, 0 Estado Novo considerou-se obrigado a promover a ridicula ceriménia da queima das bandeiras esta- duais, no objetivo de exorcizar os restos de sentimento local que a seu ver comprometiam a unidade nacional, embora estas ban- deiras, exceto em dois ou trés casos, fossem meras improvisacoes estadualistas da Republica Velha, 23 3, Um imenso Portugal (1) © Brasil fez-se Império antes de se fazer nagéo. No contexto internacional da época, nosso processo de Independéncia foi algo aberrante nfo apenas devido ao regime mondrquico que adotou, como nfo se cansaré de frisar a propaganda republicana de finais do Segundo Reinado, mas também devido & forma imperial que tomou o Estado brasileiro numa conjuntura que jd se anuncia- va nitidamente desfavordvel &s construgbes imperiais ¢ eminen- temente marcada pelo triunfo da idéia nacional na Grécia, de- pois na Bélgica, na Espanha, que sc levantara em 1808 contra o império napolednico, no préprio Portugal das Cortes de Lisboa, que, no momento azado, néo hesitou em sacrificar 0 Brasil aos seus objetivos estritamente nacionais. Uma das questdes curio- samente negligenciadas pela nossa historiografia é precisamente ade por que o Brasil adquiriu sua independéncia sob a forma de Impétio e néo de Reino, como seria de esperar do fato, entre outros, de que desde 1816 D. Jodo VI o promovera a esta con- digo. A op¢io pelo titulo imperial nao correspondeu meramen- te, 20 contratio do que se pretendeu, & tentativa de popularizar 6 monarca mediante sua identificagao a0 Imperador do Divino nem ao desejo do principe regente de emular seu concunhado, 0 ex-imperador dos franceses. E posstvel que tais consideragbes tenham entrado em linha de conta mas a verdade é que a idéia 4 Us maexso Poxruca de Império era uma velha aspiragéo que remonta aos cronistas do século XVI ¢ que, no decurso do XVIII, tomara relevo na imaginagio de alguns homens de Estado lusitanos. Registra 0 bario do Rio Branco, sempre muito seguro nos detalhes, que na noite do 7 de setembro de 1822, comparecen- do D, Pedro 2o teatro da cidade de Sao Paulo, onde jé se sabia que se passara & tardinha nas margens do Ipiranga, fora entu- siasticamente acolhido ao grito de “Viva o primeiro rei brasilei- 10", a0 passo que certa poesia recitada em seu louvor na mesma ocasiao saudava-o como “primeiro imperador”. Aduz Rio Branco que, contudo, “sé no Rio de Janeiro, em sessio de 14 de setem- bro, do Grande Oriente, ficou definitivamente adotado o titulo de Imperador, por proposta do brigadeiro Domingos Alves Bran- co Muniz Barreto”, de acordo, alis, com “uma proclamagio anénima, convidando o povo a aclamar D. Pedro ‘Imperador Constitucional”, a qual circulara na Corte em outubro do ano anterior. Destarte, jé a divergéncia vocabular alinhara-se sobre 6 antagonismo entre o grupo de José Bonificio e os liberais de Gonsalves Ledo, Em finais de agosto, quando o regente partira para Sao Paulo, uma reuniao do Grande Oriente no consegui- ra chegar a consenso, s6 0 fazendo a 14 de setembro, na presen- a do principe, o qual, havendo retornado ao Rio, assumira 0 gtio-mestrado da Ordem, A resisténcia de Gongalves Ledo e amigos & formula imperial originava-se provavelmente nao sé na sua conotacio autoritéria, que a experiéncia napolednica viera acentuar, como na sua identificacdo com a retérica de Império luso-brasileiro, que fora a predominante durante o reinado bra- sileico de D. Joo V1, capaz, por conseguinte, de denotar a pre- servagio de algum tipo de vinculo entre Portugal ¢ o Brasil. E é mais que provavel, reciprocamente, que a preferéncia de José Bonificio resultasse da sobrevivéncia da velha concepgio que, de luso-brasileira, ele agora fard exclusivamente nacional. 25 [Un menso Portuca, Sob este aspecto, o episédio do descobrimento ja oferece manifestagio muito ao gosto dos apreciadores de alegorias his- téricas. Referem tanto Pero Vaz quanto o piloto andnimo que, confrontados pela realidade da terra nova, os membros da expe- digo cabralina foram assaltados pela cuivida sobre sua confor- ‘magi fisica: seria continente ou seria ilha? Pero Vaz julgou mais, seguro datar sua missiva a El Rei “da vossailha de Vera Cruz", ‘mas 0 piloto andnimo inclinava-se & opiniao de tratar-se de ter- ra firme, devido a “seu tamanho”. Jaime Cortesio lembrou a este respeito quea prépria designagio dada por Cabral, Terra de Vera Cruz, associa-se antes “A expresso terra firme, com que era de uso designar os continentes, do que a uma ilha, no significado atual”, E, com efeito, a Independéncia se fard sob a égide do que devia ser, isto 6, da concepgio do Brasil como terra firme, con- tinente ou Império, sobre o Brasil como jé era, vale dizer, ilha, arquipélago ou Reino, vale dizer, os Brasis da descricio plural usada entio em lingua inglesa. Seria prematuro atribuir vonta- de de construgio imperial ao descobridor ou a seu séquito, em- bora, na célebre frase “querendo-a [a terra] aproveitar-se, dar-se- 4 nela tudo”, deva-se ao escrivao da armada a pri so da vocacio autérquica da terra recém-descoberta, vocagio que serd reputada um dos principais atributos do Império. No século XVI, a nogiio de império, como a supremacia do Sacro Império Romano-Germanico sobre toda a cristandade, vinha sendo desde a Idade Média tardia erodida pelos Estados nacionais, que haviam adotado como barreira a tais pretensbes 0 principio do rex imperator in regno suo, que fazia de cada mo- narca 0 imperador do seu reino, ou seja, 0 detentor integral da soberania interna e externa, Portugal nfo fugira & regra, valen- do-se inclusive, como outros reinos da peninsula, do argumen- to de que ela fora reconquistada 20s mouros sem apoio ou aju- da do Impétio. Esse processo culminou na adogao por D. Sebas- afirma- 6 {Uw menso Porruca tio do titulo de Majestade, privativo até entdo do imperador, adogio ja realizada pelos demais monarcas europeus. (Os ante- cessores de D, Sebastido se haviam restringido ao de Alteza.) Por outro lado, desde o reinado do seu bisavd, D. Manuel o Ventu- 1080, viera-se impondo uma acep¢io de império que se compa- ginava com a expansao maritima na Africa, na Asia e na Améri- a, fabricando inclusive o simbolismo da romé e da esfera armilar, a qual originalmente concedida a D. Manuel quando ainda du- que de Beja, s6 posteriormente adquiritia a conotagio imperial, pasando a ser encarada como a prefiguragio do papel mundial do monarca. ‘Como adverte Martim de Albuquerque, a quem se deve exame detido do assunto, esta diferente concepgao de império nada tinha a ver com o sentido primitivo da palavra, que deno- tara na Roma antiga 0 mando, a fonte iiltima do poder, nocéo que, em seguida, fora utilizada para designar a extensio territorial sobre a qual se exercia a soberania da urbe. Ela ligava-se antes & acepcao que, como indicou Anthony Pagden, dera-se a partir de ‘Técito ao império romano definido como “imenso corpo impe- rial”, ou seja, como uma unidade estabelecida sobre diferentes Estados preexistentes, que podiam inclusive estar espacialmen- te separados, como os que os europeus vitéo conquistar na Asia, no México ou no Peru; ou, caso de figura oposto, sobre um ter- ritério virgem de estrucura estatal desenvolvida, como ocorrerd no restante das Américas. Como assinala Martim de Albuquer- que, era neste iltimo sentido de “largos dominios” que “os tase cronistas de Quinheritos usam continuamente a palavra ‘im- pério”; €, pode-se aduzir, fazem-no também nossos cronistas do primeiro século de colonizagao. Estas veleidades imperiais no ultrapassaram o plano re- t6rico, de vez. que o pensamento juridico e politico no Portugal do periodo nao teorizou o Império ultramarino, se é que jamais e- n ‘Uw menso Porrucat, 0 fez. O De justo imperio Lusitanorum asiatico, por exemplo, es- ctito por frei Serafim de Freitas em 1625, visava assenté-lo em bases que pudessem escapar & impugnacio por Hugo Grécio da doutrina do mare clausum, que constitula, como se sabe, a justi- ficagfo ibérica do monopélio cotonial. Como conclui leitor da erudita obra de Luis Reis Torgal, no século XVII, os tedricos da Restauragio no se preocupariio com 0 tema, absorvidos que estavam na justificagio da recém-conquistada independéncia do Reino frente & Espanha, Ironicamente, se a nogao de império permaneceu viva no Portugal de Seiscentos, isto deveu-se no aos doutos mas a0 baixo clero intelectual do sebastianismo, que lhe conferiu conotagées religiosas e misticas, que combinavam a len- da do milagre de Ourique, que é propriamente um mito funda- dor da nacionalidade, como o designou Ana Isabel Buescu, com a expansio colonial, com o milenarismo do Quinto Impétio e com o messianismo das trovas do Bandarra. Resulta curioso, porém, que o sebastianismo oficial, quer na sua versio ortodoxa, quer na versio recriada pelos idedlogos da Restauiragéo no fito de fazer D. Joao IV, e depois seus filhos, 0 verdadeiro Encoberto das profecias bandarristas, concedesse escassa atengio a0 Brasil. O império da parenética restaurado- ra, exaustivamente analisada por Joéo Francisco Marques, nao apenas o império ultramarino, é 0 préprio Quinto Império, uma entidade de escopo universal, espiritualmente confiada por Deus a Sa0-Pedro no Calvério, e temporalmente a D. Afonso Henriques, no campo de Ourique. Um império que, ademais, nfo esté num presente cruel mas num futuro promissor em que cle surgiria, &raiz do triunfo lusitano sobre 0 turco, como o su- cessor dos impérios assirio, meda, persa e romano, cumprindo- se deste modo o antigo vatic{nio sobre a translacio imperial de Oriente 2 Ocidente. Portugal dominaré as “quatro partes do mundo” mas a predilecéo dos pregadores de meados do século 6 ‘Us muenso PowtucaL XVII nfo se dirige ao Brasil mas ao Estado da India, da costa leste da Africa a0 Japfo ¢ & China. Que o Oriente fosse o vetor predileto do delitio sebastianista é tanto mais revelador do seu componente medieval ¢ joaquimista quanto, aquela altura, 0 Brasil ndo estava menos ameacado pelos holandeses do que Goa, © Ceiléo ou Macau. Ao esbogar-se nos cronistas de final de Quinhentos e come- 0s de Seiscentos, a idéia de império brasileiro representou uma aspiragio de colonos portugueses, sob a forma de um Estado de grande extensio geogréfica, muito superior em todo caso A de Portugal, e movido por voca¢io eminentemente autérquica. No seu memorial a Felipe II, Gabriel Soares de Sousa recomenda uma politica de “reparo e acrescentamento” para o Brasil, que reate com os planos que se atribufam a D. Joao III e que teriam sido abandonados pelos seus sucessores, pois a nova terra “est capaz para se edificar nela um grande Império, o qual, com pou- cas despesas destes reinos, se fard téo soberano que seja um dos Estados do mundo, porque tera de costa mais de mil léguas”. Por sua ver, a0 descrever 0 tertitério, do rio das Amazonas 3 capita- nia de Séo Vicente, 0 autor dos Didlogos das grandezas do Brasil reputa-o “terra bastantissima para se poder situar nela grandes reinos ¢ impérios”. Era natural que a povoadores oriundos de um pafs de superficie acanhada em termos dos grandes Estados na- cionais que se estavam forjando na Europa desde o fim da Ida- de Média, o critério da extensio territorial prendesse preferen- cialmente a imaginagfo. A abundancia de terra que eles vinham encontrar deste lado do Atlantico tinha de impressioné-los viva- mente e até como que compensé-los das dimens6es modestas da patria, A este tema, nfo se mostrardo, alids, menos sensiveis os cronistas do século XVII ‘Nada impede, contudo, que nesta aspiragio brasileira se tenha infiltrado a seiva sebastianista, pois em nossos primeiros 2» {Us menso Poxrucal ‘ronistas o Brasil estd também associado ao papel messidnico que Ihe caberia nos destinos de Portugal, segundo a alegada previsio de astr6logo da Corte de D, Manuel, para quem a terra recém- descoberta por Cabral haveria de se tornar “uma opulenta pro- vincia, refiigio ¢ abrigo da gente portuguesa”, segundo o regis- to do autor dos Dilogos das grandezas. E.na Historia do Brasil, frei Vicente do Salvador aduz.que a fundagio do governo-geral por D. Joao III estaria ligada & necessidade, para o caso da inva- so do Reino, de se premunir de uma estrutura de acolhimento na América e de uma base para a reconquista da mae pétria, hi- pérese em que transmigrariam para este lado do Atlantico El Rei, a Corte ¢ 0s vassalos que o desejassem ou pudessem fazé-lo. Que se tratava de versio corrente entre os colonos ¢ nao de mera in- vencionice dos cronistas, indica o fato de que, ainda em meados do século XVII, Gaspar Dias Ferreira a repetiria em carta aD. Joao IV, que, alids, recomendard a solucao & sua mulher para a eventualidade de ocupagi espanhola do Reino apés seu faleci- mento. Por conseguinte, jé entZo o estabelecimento de um vas- to Império no Brasil vinculava-se ao estado crénico de insegu- ranga internacional do Reino, vinculagZo que se tornaré mani- festa em varios momentos delicados dos séculos XVI e XVII co- mo também nos projetos dos “estrangeirados” do século XVII, como D. Luis da Cunha e o duque de Silva Tarouca, que con- ceberdo de maneira explicita o grandioso programa. Paralela- mente, esta funcio salvacionista da col6nia era vista em termos de promocéo econdmica e social da populagio da metrépole. Correlata a esta nogio de império, estava a de autarquia, ja insinuada, como vimos, por Pero Vaz. Com efeito, a descri¢éo das nossas riquezas pelos cronistas do primeiro século visa a in- duzir a nogéo de que, convenientemente explorada e administra- da, a colénia se bastat4, desfrutatido, por conseguinte, da condi- fo julgada fiindamental para transformar-se verdadeiramente 30 Un menso Porruca num Império. Gabriel Soares de Sousa, por exemplo, assevera ser 6 Brasil téo abundante de mantimentos que se escusava enviar- Ihe géneros estrangeiros, entenda-se, importados de outros pafses europeus, mas no os produzidos pelo Reino. Implicita nessa associagao entre autarquia e Império, achava-se a identificagéo entre dependéncia e Reino, Portugal era um Reino pois sabi- damente nao se podia bastar, inclusive no tocante ao produto- chave das economias do Antigo Regime, o trigo; o Brasil se po- deria tornar um Império, na medida em que poderia dispensé- los todos, ‘Nos comecos de Seiscentos, Brand6nio exprimia a mesma conexio entre império e autarcia quando assinala que “a terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mun- do”, ndo havendo “nenhuma provincia ou reino dos que hé na Europa, Asia ou Aftica, que seja tio abundante de todas elas {coisas}, pois sabemos bem que se t8m umas, hes falram outras”, Gabriel Soares quisera excluir as mercadorias européias; mas Brandénio vai mais longe, apregoando que o Brasil ndo tem “necessidade de coisa nenhuma das que se trazem de Portugal, e quando a houvesse, fora de poucas”. Os Didlogos fazem o in- ventdrio das potencialidades da terra inexploradas pela negligén- cia dos povoadores, a comesar pelo algodo, de que se poderia fazer toda sorte de tecidos, como na India; pela ld das ovelhas, que poderia ser empregada na manufatura de colchées, em vez de importé-la do Reino a presos superiores; pelos laticinios; pelas hortalicas; pelos vinhos indigenas, que dispensariam os vinhos das Canarias e da Madeira; os azeites nativos ¢ nio tio nativos assim, como 0 do coco, que tornariam supérfluo o azeite do Reino, para nio falar de “muitas outras coisas”. Dessa vocagéo autérquica, frei Vicente do Salvador faré na sua Histdria do Brasil todo um programa de substituigdo de im- portagbes do Reino, ao sugerir que, no tocante A trlade candnica 31 {Uw mienso Porrucat da mesa portuguesa ¢ mediterranea, os colonos no s6 substi- tufssem o azeite de oliva pelo de dendé ou de coco, ¢ 0 vinho pela aguardente, mas até mesmo o trigo pela farinha de mandioca, 0 {que nao ousara fazer Brandénio. Ao passo que Gabriel Soares de Sousa assinalara a superioridade do produto reinol cultivado na coldnia sobre seu similar metropolitano, 0 cronista franciscano vai além, afirmando a superioridade das espécies nativas sobre as reindis, como na descricio das madeiras utilfssimas desconheci- das do outro lado do Atlantico. Destarte, era “o Brasil mais abas- tado de mantimentos que quantas terras hé no mundo, porque nele se dio [além dos préprios) os mantimentos de todas as ou- tras”, O Brasil jé seria até mesmo suficiente demograficamente, assergio que nio teria certamente acolhida por parte dos maio- res propagandistas da idéia imperial do fim do perfodo colonial, para quem a escassez populacional representava o grande entra- ve a superar. O que é mais, frei Vicente coloca expressamente a questfo de se preferfvel a autarcia ou seu contrétio, procurando resolvé- la, segundo sua cultura eclesifstica, em termos das Sagradas Es- crituras, Ora, elas forneciam uma resposta inconclusiva, pois se © salmista louva Sifo por ter suas portas abertas a todos, louva também Jerusalém por ter tudo dentro de si, mas nao ha diiv da para que lado se inclina a argumentacio do frade, O Brasil podia “sustentar-se com seus portos fechados sem socorro de outras terras”, porque lhe bastava a farinha da terra em lugar da de trigo, a aguardente de cana era excelente sucedineo do vinho, 0 azeite de coco, do azeite de oliva, a castanha de caju, da amén- doa, os tecidos de algodao, dos de linho e de 1a. O sal dava-se naturalmente e, no tocante ao ferro, havia “muitas minas", sen- do que em Sao Vicente jé se layrava 0 minério. Quanto 3s espe- ciarias, havia “muitas espécies de pimenta e gengibre”. Reconhe- cia frei Vicente um tinico empecilho a seu programa nativista na 2 ‘Uw avenso Porruoa necessidade do trigo ¢ do vinho para o culto catélico. Ele, con- tudo, descartava parcialmente o argumento, lembrando que para estes fins sobejava o trigo paulista, embora fosse indispensivel receber 0 vinho do Reino. E curioso constatar que, 20 aprofundar-se nos tiltimos de- cénios do século XVII a crise do Brasil taldssico, 0 programa de frei Vicente voltaré & ordem do dia, Informando da Bahia que em 1689 haviam deixado de “moer muitos engenhos ¢ no seguin- te haverd muito pouco deles que se possa fornecet”, o padre Viei ra notava que, em vista de tal situago, aconselhavam “os mais prudentes que se vista algodiio, se coma mandioca e que, na gran- de falta que hé de armas, sé torne aos arcos e flechas”, de modo que the parecia que “brevemente tornaremos 20 primitivo esta- do dos indios, e os portugueses seremos brasis”. No final do primeiro século de povoamento, a argumen- taco de frei Vicente jé traz, embutida a contestaggo do mono- polio colonial, pois se o Brasil se bastava, que necessidade teria da metrépole? E, com efeito, a atmosfera mental da Histéria do Brasil jé & perceptivelmente diferente da de Gabriel Soares de Souza e da do autor dos Didlogos. Concluida precisamente no perfodo entre o ataque holandés a Salvador e 2 ocupacio de Per- nambuco, ela deixa ver que os ventos comegavam a soprar de outro quadrante. Se a compararmos superficialmente &s créni- as anteriores, tem-se a mesma louvagio da terra e dos seus re- cursos. Na realidade, 0 tom mudou. Ao otimismo que exalam as paginas dos primeiros cronistas, reindis radicados na terra, substituiu-se o pessimismo do mazombo que era frei Vicente. E palpével o ressentimento com que ¢ encarado o tratamen- to dado a colénia pela metrépole, Com excesio de D. Joao III, a quem, como vimos, se atribufa o propésito de fundar novo reino na América, os monarcas lusitanos, sejam Avis ou Habs- burgo, fazem pouco caso de nés, a ponto de, podendo intitu- 33 Use nenso Porruca, larem-se reis do Brasil, preferem chamar-se reis da Guiné, s6 por causa de uma misera caravelinha que despacham anualmente para aquelas paragens. Tampouco premiam os servigos presta- dos pelos povoadores. Devido a esse descaso, colonizada hd me- nos de cem anos, a terra jd da sinais de declinio, jd se despovoa em alguns lugares, e, malgcado sua grandeza e fertilidade, néo progride. Ademais, frei Vicente da teor mais contundente & opo- sigdo, esbocada nos Didlogos, que pode ter lido nos anos que vi- veu no claustro franciscano de Olinda, entre 0 comerciante, que visava apenas tirar proveito imediato da sua atividade, ¢ 0 pro- dutor, senhor de engenho ou lavrador de cana, que havia con- quistado a rerra com seu esforgo e seu sangue, embora este tam- ppouco escapasse & critica de que também sonhava levar para Pot- tugal os cabedais reunidos a0 cabo de muitos anos de luta 4 4, Antevisées imperiais (2) Hi que esperar pelo século XVIII para definir-se a visio imperial, pressentida nas primeiras crBnicas, agora na pena de dois eminentes “estrangeirados”, o diplomata D. Lu(s da Cunha © 0 duque de Silva Tarouca. Sua inspiraglo é, portanto, a opos- ta da de Gabriel Soares ou da do autor dos Didlogos das grande- as do Brasil, de vex que ela parte de uma reflexao eminentemente cosmopolita sobre a deteriorasio do statu de Portugal no equi- Iibrio de poder europeu. O texto em que D. Luls da Cunha for- mulou a concepsao de império luso-brasileiro, as eélebres Insru- #ées a Marco Antonio de Azevedo Coutinho, data de 1736. A designagio de Instrugdes, posteriormente conferida 20 documen- to, 6 als, equivocada, pois ocupando enttio D. Luis da Cunha a embaixada em Paris nao poderia dé-las a quem era formalmente seu superior hierdrquico. A premissa de todo seu plano é 0 desequilibrio estrucural de poder entre Portugal e Espanha, decorrente da superiorida- de do vizinho em termos de extensio geogrifica, efetivos de- mogrificos, forcas terrestres e marftimas ¢ riqueza nacional ¢ colonial. Do ponto de vista portugués, desequilfbrio tal fora re- mediado, até 0 tratado de Utrecht, pela rivalidade entre a Franca a Espanha, mas esta defesa cessara de funcionar do momento tem que os Bourbon haviam conquistado o trono de Madri, au- 35 ‘Un verso PorTucat mentando a erénica inseguranca portuguesa. Desde seus dias de representante lusitano & Conferéncia de Utrecht, D. Luts da Cunha viera excogitando a maneira de sanar o problema. Ele no nos diz mas 0 provavel & que tenha inicialmente colocado suas esperancas numa mudanga do sistema europeu, de que Por- tugal pudesse tira partido. Mas qualquer que ela fosse, as pers- pectivas nao pareciam brilhantes. Nesta situagio, D. Lufs lan- ou seu olhar na direcio do ultramar. “As conquistas [escreve em 1736), que supus ser um acessbrio de Portugal, eu as tenho pelo seu principal e ainda garantes da sua conservacio, principalmen- teas do Brasil”. ‘Até ent, 0 problema apresentara-se de maneira inversa, ou seja, como Portugal, enfraquecido na Europa, poderia pre- servar suas col6nias da ambigao e do poderio das grandes potén- cias, Agora, tratava-se de instrumentalizar as colonias para refor- at a posicéo européia de Portugal. A concepgio tinha de pare- cer aos contemporaneos sutil mas sobretudo inoperante. Com feito, se elas necessitavam da metrépole para defenderem-se, como poderiam Ihe servir de trunfo internacional? A explicacao de D, Luts é bem simples: devido ao ouro do Brasil, “a nenhu- ma poténcia da Europa convém que ele caia nas maos de algu- ma hago que se saiba melhor que nés aproveitar das suas rique- 22s, pois que com todas as prodigalizamos, indo cavar nas minas para que os estrangeiros recolham as suas preciosas produces” ‘A seguranga da América portuguesa podia se beneficiar assim do préprio equilibrio de poder europeu, pois sua conquista por qualquer das poténcias subverteria este equilibrio, tornando-se assim inaceitdvel. Evidentemente, desde a primeira metade do século XVI, vale dizer, da época de Carlos V, em que 0 outo ¢ a prata do México e do Péru afluiam creicentemente a Sevilha, a Europa dava-se conta de que o controle de dom{nios ultramarinos po- 36 Asravioss wren deria ser vital, como era naquele caso, para as pretens6es he- geménicas na Europa. Nao fora outro o suporte da chamada “ preponderincia espanhola”, t{tulo do velho livo do historiador Henti Hauser, nem outro o alvo das poténcias protestantes, co- mo a Inglaterra e os Paises Baixos, quer nos seus ataques diretos a porges do Império espanhol na América e na Asia, quer nas intimeras tentativas de cortar as comunicagées maritimas entre a Espanha e a América espanhola. Para dar exemplo de casa, 2 criagao da Companhia das Indias Ocidentais neerlandesa e os ataques que desferiu contra o Brasil foram advogados com base no argumento de que as possess6es portuguesas ofereciam’o que os estrategistas britanicos da Segunda Guerra Mundial designa- 10 como o soft belly da Europa nazista, a Itélia, linha de menor resisténcia do sistema hitlerista. ‘Mas mesmo na dependéncia dos metais americanos em que se encontrava Madri para suas aventuras imperiais na Europa, 0 ultramar, embora vital, continuava a ser avaliado como meio, néo como fim. Nem sequer ao conde-duque de Olivares, cuja assom- brosa imaginacio politica induzia-o & formulagio de planos ex- céssivamente ambiciosos, que ficavam muitas vezes no papel, ocorreria fundar a posico européia da metrépole na seguranca das colénias. E isto por um motivo bem simples: esta inversio dos papéis da metrépole e da colénia nao poderia ser pensada por um homem de Estado da Espanha hegeménica, embora possa sé-lo, um século depois, por um diplomata portugués obcecado pela inseguranca do seu pafs, que ele descrevia como “uma ou- rela de terra”, um tetgo da qual permanecia inculta, outro, sob o controle da Igreja €.0 terceiro, destinado & producto de trigo para consumo nacional, o qual, ais, era insuficiente para as ne- cessidades dos seus habitantes. Tratava-se, provavelmente, da primeira vez que tal inversio ocorria 2 um homem de Estado europeu, um século antes de que George Canning se gabasse de 37 ‘Uw tusnso Porucat, haver promovido a independéncia do Novo Mundo para reequi- librar a balanca de poder do Velho. D. Lufs da Cunha inspirava-se, aligs, no conselho que seu bisavé, Pedro da Cunha, teria dado em 1580 20 prior do Crato, a quem tentara em véo persuadir a se embarcar para o Brasil, onde, longe da cobiga e do poderio da Espanha, poderia conser- var o titulo de rei de Portugal gracas ao interesse das poténcias ceuropéias em negociar na América portuguesa e em impedir que Felipe II viesse também a possui-lo, tornando-se “muito mais formidvel do que jé era”. Aduzia D. Lufs da Cunha que, ao tem- po da guerra da sucessio de Espanha, Felipe V recebera recomen= dagio andloga do duque de Medina Sid6nia, o qual, diante da resisténcia das poténcias maritimas asceniséo de um Bourbon a0 trono de Madri, propusera que El Rei se instalasse no México. ‘A mesma consciéneia aguda da inseguranga de Portugal esté na raiz da visio de Império luso-brasileiro, exposta por Manuel Teles da Silva em cartas ao futuro marqués de Pombal. Trata- vva-se de um “estrangeirado” su generis, pois fugindo em verdes anos, na companhia de um irmAo de D. Joo V, para Haia, onde seu pai, 0 conde de Tarouca, representava Portugal, fora final- mente assentar praca no exército do principe Eugenio. Radican- do-se na Austria, fora feito duque de Silva Tarouca pelo impera- dor Carlos VI, havendo servido de conselheiro & imperatriz Matia Teresa e de presidente do drgo que se ocupava da administragao austriaca nos antigos Paises Baixos espanhéis e nas possessées italianas da Casa de Austria, Quando 0 futuro Pombal ocupou a embaixada de Viena, tornou-se amigo intimo de Silva Tarouca, relacdo que sobreviveu ao retorno de Carvalho ¢ Melo a Lisboa 8 sua nomeagio como ministro de D. José I, relagéo cuja im- portiincia foi posta em relevo-por Kenneth Maxwell. O pai de Silva Tarouca fora colega de delegacéo de D. Luts da Cunha no Congresso de Utrecht, sendo plausivel que as idéias do seu filo 38 Anravas0es wrens devessem algo as do velho diplomata. Como D. Luls da Cunha, Silva Tarouca partia do pressuposto da precariedade insandvel da situagio do Reino vis-2-vis da Espanha, acoplando-a a dinami- ca do sistema de relagées de forcas na Europa. “Vivemos em sé- culo turbulento (confidenciava desalentado a Pombal em carta de 1756], no qual jé vimos bem estranhos trocos [i.e., mudan- as); ¢ 05 que sobreviverem ho-de provavelmente ver outros.” Desde a paz de Ryswick (1697), em sessenta anos “o siste- ma geral da Europa” havia “mudado grandemente” 20 menos “tés vezes”. “E pode facilmente a nosso respeito mudar-se mui- to mais em pouco mais de quarenta, que correm ¢ cortetdo até © fim do nosso século XVIII.” O estado atual das coisas era 0 oposto do que vigera entao. Agora eta a Casa de Bourbon que também reinava em Madei, dispondo das forgas terrestres ¢ na- vvais mais numerosas que se haviam visto ali desde o reinado de Felipe Il ¥ certo que a Rainha Catlica, D. Barbara de Braganga, mulher de Fernando VI, era portuguesa, mas nfo tivera filhos, com 0 que a heranga da Coroa espanhola recairia no cunhado, © futuro Carlos III. Destarte, a unio das coroas da Franga, da Espanha e de Napoles na Casa de Bourbon parecia mais sélida ¢ internacionalmente mais influente do que nunca. Podia-se, portanto, dar como coisa do passado “a bela conjuntura na Corte de Madri", vale dizer, os anos da amizade estreita entre os dois reinos peninsulares cultivada apés a ascensio de Fernando VI 20 trono, a qual permitira inclusive a conclusio do tratado de M: dri (1750), que procurara solucionar as querelas territoriais hi pano-portuguesas na Amética meridional, Temia Silva Tarouca que, instalado em Madri, o Bourbon de Népoles viesse a reeditar os mangjos do cardeal Alberoni, antigo ministro de Felipe V, visando a apossar-se de Portugal, dando em compensago aos Bragancas os dominios italianos da familia. “Possuindo El Rei Cat6lico a Espanha inteira, com as suas {ndias e Brasil, se faria a 39 ‘Un imenso Porruaa. principal poténcia na Europa pela dependéncia em que poria pelo comércio todas as oucras”, gracas & cumplicidade da Fran- sae da Inglaverra, que nao “teriam escripulos de abandonar e vender Porcugal a Castela para conservar e avantajar seus comér- ios”. Particularmente preocupante parecia a Silva Tarouca “o espirito de comércio e digamo-lo claramente, de usurpagio que teina hoje na Europa”, Néo era o caso de temer no curto prazo, “mas 0 nao temé-lo agora nfio assegura nada para o futuro”. Nesta conjuntura, tanto para D. Luis da Cunha quanto para Silva Tarouca, 0 Brasil era a tébua de salvacao. Desde a concluséo da paz de Utrecht, confessava D. Lufs vir cultivando o que ele mesmo designa como visio, a de mudar-se El Rei para © Brasil, onde instalaria a Corte no Rio de Janeiro e onde toma- ria o titulo de Imperador do Ocidente. Ao secterétio de Estado, D. Luis desculpava-se antecipadamente pelo atrevimento da pro- posta de que “um rei de Portugal trocasse a sua residéncia na Europa pela da América”, mas cumpria decidir o que seria mais -vantajoso para 0 monatca, se “viver precariamente esperando ou temendo que cada dia 0 queiram despojar do seu diadema” ou poder “dormir o seu sono descansado e sem algum receio de que 6 venham inquietar”, Para resolver o dilema, D. Lufs apelava para segundo desequilibrio desfavordvel a0 Reino, o que existia en- tre ele ¢ a sua coldnia americana, desequilibrio que permitiria corrigir o inconveniente do primeiro, que, como vimos, era 0 desequilibrio Espanha-Portugal. Para conservar seu poder na merr6pole, El Rei dependia inteiramente dos recursos do Brasil endo dos de Portugal, “de que se segue que é mais cmodo e mais seguro estar onde se tem que sobeja que onde se espera o de que se carece”, Embora pudesse parecer semelhante projeto coi- sa precipitada ou cavilagio de velho, D. Lufs da Cunha, profé- tico, rematava sua antevisio, ssinalando que “poderia vir algum [tempo], de que Deus nos livre, em que nao seja mal lembrada”. 40 ANTEVSOES INFERS D. Luts da Cunha levantava também a questio da autarcia que a América portuguesa podia proporcionar ao Império, ponto a cujo respeito cle nao compartilha’o otimismo dos nossos pri- meiros cronistas. Era certo que o Brasil nfo produzia vinho ou azeite mas, no tocante 20 trigo, 0 que se cultivava na regio me- ridional seria suficiente para as necessidades, que nfo eram gran- des, devido 20 fato de que os colonos preferiam a farinha de man- dioca, da mesma maneira pela qual os habitantes do Minho, de ‘Trds-os-Montes e das Beiras se alimentavam de milho e centeio. Mas se 0 Brasil nfo produzia muitos géneros de que se dispoe na Europa, no era menos verdade que esta também carecia de muitas coisas preciosas que a colénia possufa, 20 que se juntava a diferenca de que as caréncias brasileiras podiam ser facilmente remediadas pela diligéncia e indiistria humanas, as quais, entre- tanto, no lograriam jamais produzir no Reino o que se produz na América, como 0 ouro e os diamantes. Deste modo, transfor- mar-se-ia o Brasil no “entreposto de todas as mercadorias das outras trés partes do mundo”. Este Império do Ocidente, a ser estabelecido na América portuguesa, gozaria ademais da segu- ranga que lhe conferia a distancia dos centros europeus de poder. Inegavelmente, semelhante plano comportaria riscos para a Coroa, que D. Luis excogitava atalhar. Como Portugal seria governado por um vice-rei, como a India, a Espanha procuraria conquisté-lo, com apoio daquela parte da nobreza do Reino que nao concordasse em acompanhar o monarca 20 Brasil. Este poderia, contudo, acautelar-se mediante a obtengio de garantia internacional da independéncia portuguesa, de ver que a Euro- pa no tinha interesse no incremento do poder da Espanha, tanto mais que o comércio europeu passaria a gozar de acesso franco aos portos brasileiros. Outro fator de inibigio das pretensGes cespanholas seria a probabilidade de retaliag6es contra a América ‘espanhola, que se poderiam organizar do Brasil no sé contra 0 a Use mtenso Porruca, Prata mas contra Peru e mais além, no rumo do istmo do Pa- namd. Quanto & fidelidade da nobreza do Reino, poderiam ser- vir de caugao os lacos de parentescos com aquelas familias suas que se tivessem radicado do lado de cé do Atlantico. De qual- quer maneira, era indispensdvel a0 éxito do novo Império chegar a acordo com Madri acerca das questées de limites na América. Neste particular das acomodagées territoriais, D. Luis propunha a troca do Chile pelo Algarve, muito conveniente aos espanhéis pelas facilidades portusrias, Apreensivo também no tocante ao destino de Portugal na Europa, Silva Tarouca volta os olhos, como fizera D. Luis da Cunha, para o Brasil, “donde me parece que a elogiiéncia do famoso Vieira fundava ‘o Quinto Império do Mundo e esperan- gas de Portugal”. No que, alids, se enganava o duque pois a vi- so profética do jesuita tinha o mundo inteiro por ambito do Império portugués ¢ nio apenas a América, Nao deixa, porém, de ser significativa semelhante releitura dada no século XVIII & concepsao do inaciano ¢ mediante a qual passavaa fundar-se “na riqueza, posigo e vasto do Brasil (..] as esperangas da monar- guia lusitana ¢ sua durago humanamente falando”. Como de costume, eram as dimensées continentais da col6nia que fixavam a atencio do observador, de vez que elas prestavam-se a “um império como o da China e ainda maior que a Franca, Alema- ha ¢ Hungria unidas se fossem em um s6 corpo”, A analogia com a China acompanha, aliés, todo o raciocinio do duque. Em- wusesse em Viena de mapas recentes do Brasil e des- contando como inabitével e incultivavel uma quinta parte do seu territério, ainda assim haveria nada menos de 90 mil léguas qua- dradas portuguesas, comparadas as menos de 3 mil que exist riam em Portugal, o que faria.o Brasil trinta vezes maior que 0 Reino. Estimava ainda Silva Tarouca que, tendo Portugal uma populagio de 2 milhées de habitantes em drea tio acanhada, a 2 ANTavsoes PENA América portuguesa poderia proporcionalmente conter 60 mi- Ihdes, 0 que correspondia precisamente & populacio estimada ento para a China. Convenientemente populado e civilizado, o Brasil estava fadado a ter “a mesma figura na América que fazem atualmente na Asia tantos diversos impérios”, como eram a China, 0 Japao, a Pérsia, o Mogol e o Otomano, com 0 que Portugal ver-se-ia suficientemente seguro em ambos os lados do Aclantico nem jé voltariam & tona das intrigas diplomaticas esses projetos de tro- cas tetritoriais e dindsticas na Europa, do feitio do outrora afa- gado pelo cardeal Alberoni. As nagdes mercantes nao se arrisca- riam a perder 0 comércio brasileiro, a Espanha se acharia na con- tingéncia de temer pela sorte das suas possesses americanas, ¢, gracas 20 porto de Lisboa, Portugal se veria mesmo promovido A condigao de poténcia maritima. Cumpria, pois, dar-se por sa- tisfeito com o que se possufa na Europa, cuidando-se apenas de promover as manufaturas em que empregat a populacéo reinol. ‘Ao contririo de D. Luis da Cunha, Silva Tarouca nao previa a transmigracao da Corte, que reputaria mesmo um “disparate”, ao saber do rumor segundo o qual, por motivo do terremoto de Lisboa (1755), Sua Majestade planejava “ir estabelecer-se no Bra- sil, da parte do Maranhao”. 6 faltava, por conseguinte, arranjar gente com que povoar estes vastos desertos, 0 que consticufa a grande limitacéo de Por- tugal. Em outro dos seus textos mais conhecidos, 0 Testamento politico, que enderegara 20 principe D, José 1, D. Lufs da Cunha advertira o futuro monarca a respeito da sangria de gente que 0 Brasil causava 20 Reino, assunto que, como se sabe, tornara-se especialmente preocupante desde a descoberta das minas, Segun- do o diplomata, urgia povoar a colonia sem despovoar a metré- pole; e para tanto nao the parecia haver alternativa a permis- so da emigragao de estrangeiros e suas familias onde bem lhes “a Un imenso PonrucaL aprouvesse, sem qualquer discriminagio religiosa, mediante a doagéo de terras para cultivarem. D. Luls citava, a respeito, a iniciativa da Coroa britdnica de enviar emigrantes alemaes do Palatinado as colénias da América do Norte, gente que, a seu ver, itia com maior boa vontade para o Brasil. A objegdo de que a ortodoxia catélica sairia prejudicada, D. Lufs respondia com 2 ptevisio, para consumo do Santo Oficio, de que tais colonos se misturariam no Brasil as familias de origem portuguesa, de ‘modo que em duas ou trés geragées seria to bons catélicos ro- ‘manos quanto elas. Tampouco nas Instrugdes inéditas, ele se es- tende acerca da questo, apenas referindo que os indios limita vam-se ao interior do pals ou serviam de criados, “como em Lisboa nos servimos de negros”. Por outro lado, os tapuias do sertéo diferiam dos camponeses do Reino apenas na cor da pele, uma ver. convertidos 20 catolicismo, eram mais “observantes dos preceitos da Igreja que os nossos paisanos”. ‘Neste particular, Silva Tarouca mostrava-se mais bem in- formado e mais pragmitico. Era preciso povoar o Brasil “de qual- quer modo que seja. Mouro, branco, negro, {ndio, mulato ou mestigo, cudo serve, todos sio homens”. Que entre uns ¢ outros “haja muitos casamentos e pouqu{ssimos ventres intiteis", para © que se proibiria a erecéo de novos conventos e controlar-se-ia severamente 0 ntimero do clero regular ali existente. Seria de grande utilidade levar colonos alemies, como os ingleses estavam. fazendo na América do Norte, desde que fossem catélicos, pois 0 correspondente de Pombal era partidatio de um Império uni- tério, com uma sé religifo, uma sé lingua, a portuguesa, ¢ uma sé lei, mas esta exclusivamente formulada para a América por- tuguesa, uma espécie de Codex Brasiliano, de vex que Sua Ma- jestade poderia reputar-se “um novo fundador”, dada a inexis- téncia de pacta conventa entre ele ¢ os stiditos da colénia. Quanto 20 sistema educacional, “muitissimas escolas” mas nada de uni- “ Avrevsoes mires versidade. Ourra medida destinada a manter a unigo entre me- trépole e colénia consistia numa doagao generosa de terras, se- nhorios ¢ comendas as familias principais do Brasil, desde que convenientemente limitados. Sendo o Império da China “anti- qiifssimo”, nada pareceria “mais novo que o querer fazer de tio diversos selvagens, tapuias, negros, mulatos, uma China do Bra- sil! E contudo néo seria absolutamente impossivel”, malgrado haver tardado Portugal a dar-se conta da “verdadeira importin- cia da nossa porgio da América”, da qual sé agora se cuidava gracas ao zelo do marqués do Pombal. 45 5. O Império frustrado (3) Da historiografia do reinado de D. Joo VI no Brasil, pode- se dizer que aceitou passivamente a concepgio que Ihe vende- ram os publicistas da época, segundo os quais o principe regente criara finalmente o grande império luso-brasileiro hé tanto so- hado pelos estadistas da metr6pole, O livro de Oliveira Lima, por exemplo, parte dos pressupostos da ideologia saquarema do Segundo Reinado para creditar o perfodo joanino com haver langado 0s alicerces da ordem mondrquica, que consolidariam 0 filho eo neto. Na realidade, a construgao imperial ndo pas- sou de figura de ret6rica, com que a Coroa bragantina procurou desfazer a penosa impressio criada na Europa pela sua retirada stibita para os dominios americanos, apresentando-a como uma medida de alto descortinio destinada a habilitar Portugal a re- remperar-se no Novo Mundo para regressar 20 Velho na con- digo de poténcia de primeira ordem. Do lado de cé do Atlan- fico, o grande império serviria para afagar a vaidade ingénua dos seus vassalos sudestinos, mediante os arcos de triunfo das cele- bragées civicas, como aquele em que, perante o retrato de D. Joao, a Lusitania saudosa da real auséncia ombreava-se com a ‘Africa ajoelhada e com o Brasil, “de manto real e borzeguins, oferecendo também o coracio que tinha nas mos”, tudo enci- mando a quadra otimista: “América feliz tens em teu seio,/ do 46 (© nave rausraano Novo Impétio 0 fundador sublime,/ Seré este o pais das santas vireudes,/ quando 0 resto do mundo € todo crime”. Mesmo depois da promogéo do Brasil 20 estatuto de Rei- no Unido em 1816, idéia que provavelmente Palmela vendeu a D. Jodo fazendo-a passat por sugestio de Talleyrand, de modo a dar-lhe maior autoridade, a concepgio imperial esgorou-se em duplicar no Rio de Janeiro 0 aparato estatal que ficara em Lis- boa, A nenhum dos administradores, por ndo ser possivel chamd- los de homens de Estado, de que se cercou 0 monarca (excesio do conde da Barca, cujo francesismo tornara-o suspeito) ocor- reu que a ctiagao do novo Impétio exigiria adaptar a concep¢ao herdada de D. Luis da Cunha ou do conde de Tarouca as cir- cunstancias bem diversas que prevaleciam neste comeco de &¢- culo XIX. Tal adapragéo tinha o nome de reformas politicas, cuja discussfo era sempre curto-cireuitada nas rodas palacianas pela objecio, reputada esmagadora, de que a Revolusio Francesa tam- bbém comecara por elas. Neste particular, o perfodo joanino ca- racterizou-se por um extremo conservadorismo, que reduzia a atuagio do poder publico a questées administrativas a serem re- solvidas segundo as priticas do velho Estado. Mesmo seu minis- tto mais ativo, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais nao fer, como reconheceu atiladamente Oliveira Lima, que lhe era sim- pitico, do que “acelerar extraordinariamente o movimento sem mudar o mecanismo [do Estado do Antigo Regime], apenas au- mentando-Ihe as pegas e carregando demasiado a pressio”, Em liltima andlise, s6 as reformas politicas poderiam dar a0 Reino Unido algumas chances de sobrevivencia. Ninguém analisou com maior acuidade que Hipélito José dda Costa a incapacidade de auto-reformar-se do Estado portu- gués instalado no Rio. Ele julgava mesmo que, no Brasil, o go- vverno real tornara-se ainda mais autoritério do que no Reino. Se era certo que ali a antiga Constituicao estava reduzida & teoria, a ‘Unt naenso PoxtucaL ainda existiam no povo e nas ordens privilegiadas a meméria dos antigos privilégios, como as reuniées das Cortes, ¢ a consciéncia de limites tradicionais que mesmo um regime absolutista nao podia ultrapassar sem correr sétios riscos, o que, em caso extre- ‘mo, funcionava como freio as tendéncias despéticas nao dE Rei, a quem se reconhecia universalmente a bondade cha, embora suspicaz, com que ainda hoje é conhecido, mas dos seus ministros ecortesios, Lembrava Hipélito que o Brasil nao possufa nem tra- digo constitucional nem o que posteriormente vird a ser designa- do por corpos intermedirios. Entre nds inexistia nobreza titular as familias que se impingiam de aristocréticas no formavam ‘uma ordem institucional reconhecida como tal, de modo que, como dizia frei Caneca, suas pretens6es nfo tinham mais peso que a preferéncia dos cOnegos sobre os pérocos. Quanto a reli- gido, nem abadias acaudaladas nem prelados faustosos, como os que Beckford havia descrito no Reino, de vez que o clero vivia mediocremente da congrua que lhe pagava o Estado, quando no vegetava na pobreza dos pés-de-altar escassos das vilas do inte- rior. Por fim, no tocante 3 terceira ordem, as cidades brasilciras jamais haviam gozado do privilégio da representacao em Cortes, Hipélito compreendeu desde o inicio que a transmigracao da familia real para o Rio mais nao fora do que uma mudanga, de capital. “O governo do Brasil [escrevia em 1809] arranjou-se exatamente pelo Almanaque de Lisboa, sem nenhuma atengéo 20 pafs em que se estabelecia. Mostra, por exemplo, o Almanaque de Lisboa um Desembargo do Pago, um Conselho da Fazenda, uma Junta de Comércio etc.s portanto quer 0 Brasil carega des- tes estabelecimentos, quer nio, erigiu-se no Rio de Janeiro, logo que a Corte ali chegou, um Desembargo do Pago, um Conse- lho da Fazenda, uma Junta de Comércio etc.”. E com efeito, a clite de poder a quem 0 monarca confiara a tarefa de criar um novo Império carecia precisamente de visio imperial. 4 (© mirésto exusreno Aanilise de Hipélio revela-se particularmente contunden- te quando incide sobre a qualidade do grupo dirigente. A este respeito, era tevelador 0 método de selecio dos altos funcioné- rios da Coroa. Os grandes aristocratas julgavam ofensivo a seus brios nobilidrquicos enviarem os primogénitos a Coimbra, de modo que nenhum deles possula grau académico, excegio dos filhos segundos que haviam acedido 20 t{tulo pelo falecimento do irmao mais velho. E, contudo, era neste circulo que se recru- tavam os presidentes dos conselhos, os quais, por sua vez, com- punham exclusivamente o Conselho de Estado, que era 0 drgéo maximo do sistema institucional. Fora este “o mesmo Conselho de Estado que passou ao Brasil para lancar os fundamentos aquele novo e grande Império. Que se pode esperar?”. O poder torna- sa-se 0 monopélio de um grupo de incompetentes, a exemplo do marqués de Ponte de Lima, que malgrado haver sido impedido por sentenca judicidria de gerir seus préprios bens, fora guinda- do & posigao de presidente da Junta de Comércio. ministro reputado encarnar 0 espirito de renovagio, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, cuja honestidade pessoal Hipélito reconhecia, era criticado pela sua incapacidade de traduir 0 pro- ¢grama imperial em politicas piblicas. D. Rodrigo, é certo, ma- triculara-se no curso de leis em Coimbra, mas sendo reprovado logo no primeiro ano abandonara os estudos superiores, o que niio obstou a que fossé nomeado ministro plenipotencidrio em Turim, donde regressara ao Reino para ser secretério da Mari- tha, repartiggo que abrangia os assuntos ultramarinos. Da Sa- béia, D, Rodrigo trouxera a iddia, que a esta altura carecia de novidade, segundo a qual Portugal deveria tornar-se “a cabega de um vasto Império”. que integraria economicamente a metr- pole e as coldnias mediante uma poderosa marinha. Em quatro anos de ministranca, o ambicioso plano ngo fora além da cria- ¢fo de um almirantado t40 numeroso quanto o britinico. Néo ” ‘Uw menso Porrucat se construfra um tinico vaso de guerra nem se introduziram re- formas: “De tudo quanto prometera nao fex mais do que expe- dir uma infinidade de leis, alvards, decretos e avisos, que sempre precisavam de outros para sua explicagio, de maneira que hou- ve tal cego em Lisboa [os cegos gozando do monopélio da ven- da de publicagdes oficiais] que se enriqueceu sé a vender as leis que publicou D. Rodrigo”. Nao obstante, 0 futuro conde de Linhares vira-se guindado a ministro da Fazenda. No Rio, como ministro da Guerra, D. Rodrigo estimulara ambigdes imperiais no Prata e na Guiana, quando “o Brasil o que menos necessita de terreno” e quando o envolvimento num conflito internacional s6 poderia redundar na disseminagéo de idéias republicanas na colénia, ¢ no adiamento do essencial, isto 6, das reformas politicas. Mesmo descontada a animadversio rcinante em Londres entre 0 redator do Correio Brasiliense ¢ um irmio de Linhares, embaixador junto & Sua Majestade Britani- ca, 0 perfil do grande ministro do principe regente surge sob luz bem menos favordvel do que a projetada por Oliveira Lima e, na sua esteira, a historiografia do perfodo joanino. Alids, segundo o grande historiador, D. Rodrigo teria sido um convertido tar- dio ao projeto de transferéncia da Corte portuguesa para a Amé- rica, por haver sido defendido pelo circulo de estrangeirados reu- ido em rorno do duque de Lafoes do marqués de Alorna. Em 1813, falecido o conde de Linhares, Hipdlito consta- tava que, instalada a Corte hé mais de quatro anos no Rio, nao se levantara uma palha com vistas & liquidacio do sistema poli- tico colonial, com 0 que se cortia 0 tisco de que outros a pro- movessem, aluséo velada a uma histéria dos Acores, escrita em inglés e que acabava de ser publicada, na qual se propunha que a Gri-Bretanha transformasse 0 arquipélago em protetorado, argumentando inclusive com o atcafsmo do sistema politico por- tugués. No se julgue, contudo, que a critica de Hipélito se ba- 30 (© miremo snusteno seasse em ressentimento antilusitano, tanto assim que era o pri- ‘meiro a proclamar que a Corte do Rio tratava tio mal o Reino quanto o Brasil e que o papel da ex-metrépole no conjunto do novo Império devia ser revisto de maneira a preservar seus legt- timos interesses, que o tratado de comércio com a Inglaterra comprometera gravemente. Sob o aspecto da reformulacio do sistema de relagées comerciais entre Portugal e o Brasil, a falta de imaginacio imperial no era menos pronunciada, de vez que nfio se tiraram as implicagées da abertura dos portos, imposta pelas circunsténcias, para o conjunto imperial. tratado com a Inglaterra desiludira Hip6lito acerca das, vantagens que o Brasil poderia obter do comércio internacional. Em tais circunstancias, ele se voltava, como meio século antes © duque de Silva Tarouca, para o exemplo da China, a qual “ndo tem comércio externo e, contudo, é um préspero, rico € respeitdvel pais”. A comparacao entre ambas as nag6es nfo se lhe afigurava desmedida, pois que tinham em comum a dimenséo continental, a fertilidade do solo, a qualidade do clima e a faci- lidade de comunicagées interiores. A diferenca residia evidente- mente na populacao; que no nosso caso.0 Correio Brasiliense pro- punha remediar-se pela imigracéo européia. Ainda esta por fa- zer-se 0 estudo da impressio causada pela China sobre os cit- culos ditigentes portugueses, 2 qual deriva provavelmente do in- teresse atribuido ao tema pela filosofia politica do século XVII. O fato € que o Império chinés também exerceu grande atragio sobre Linhares, que, segundo o relato de um cortesdo hosti, teria cogitado resolver o problema da nossa escassez. de gente “man- dando vir um milhio de chinas”, o que resultaria em beneficio muituo, & China devido ao excesso populacional que the era no- civo, ao Brasil gragas & introdugo de duas manufaturas tio im- portantes quanto a da seda e da porcelana, Nos anos setenta do século XIX, o gabinete Sinimbu ainda pensava resolver o pro- st es Un menso PorTuca, blema da falta de bragos da lavoura cafeeira mediante a impor- tagio de coolies. ‘Antes que a historiografia do Império pusesse nas nuvens © reinado joanino, sua reabilicagao hist6rica comecara em mea- dos de Oitocentos pela pena dos publicistas do Rio compr metidos com a formula centralista adotada pela Independencia. ‘Via-se destarte nos treze anos de D. Joxo VI na terra a formula salvadora que permitira a D. Pedro I fundar 0 Império e a D. Pedro I, governé-lo. Escusado assinalar que se tratava, em boa parte, de uma idealizacéo. Como assinalou Sérgio Buarque de Holanda, “no Brasil, as duas aspiragées — a da Independéncia ea da unidade — nao nascem juntas e, por longo tempo ainda, no caminham de maos dadas”. B ainda: “Essa unidade, que a vinda da Corte e a clevacio do Brasil a Reino deixara de cimen- tar em bases mais sélidas, estard a ponto de esfacelar-se nos dias que imediatamente antecedem e sucedem a proclamagio da In- dependéncia. Daf por diante ird fazer-se a passo lento, de sorte que s6.em meados do século pode dizer-se consumada”. ‘A tradigéo saquarema da historiografia da Corte e dos seus epigonos da Repiiblica, para quem a histéria da nossa emanci- pacio politica reduz-se & da construgio de um Estado centralista, tende, portanto, a ignorar que se o reinado americano de D. Joao VI pode ser considerado 0 marco inicial da construgo do furu- 10 edificio imperial, nao é menos verdade que cle esteve a ponto de-destruir-Ihe as frageis possibilidades, precisamente devido & sua incompeténcia para superar a retérica do vasto Império, atua- indo-o e realizando-o. Quando o representante do governo republicano de 1817 procurou obter o apoio material e diplo- mitico dos Estados Unidos, 0 argumento principal que usou foi exatamente este: 0 de que a trapsmigragao da Coroa havia frus- trado as expectativas dos seus vassalos americanos, particularmen- te dos mais bem informados, com referéncia & introducéo das 32 (© mimo rnvsreoo reformas politicas de que tanto necessitava a ex-col6nia. Que a idealizagio do reinado joanino nascesse e se desenvolvesse no Rio parece algo de perfeitamente natural quando se sabe que a sede da Corte foi a grande beneficiéria da imigragio dos Bragancas, enquanto as capitanias se viram adicionalmente taxadas de modo a financiar 0 embelezamento da capital para fazé-la aceitével aos cortesios e funciondtios puiblicos de extracio reinol. 3 6. A dltima encarnagéo do Reino Unido (4) Realizada a Independéncia, a concepgio do Império luso- brasileiro voltaria & tona em 1823-1824, na esteira dos aconte- cimentos politicos em Portugal. Quando, em meados de 1821, D. Jofio VI regressara a Lisboa, restavam-lhe cinco anos de vida que viverd no paso tristonho da Bemposta. Este periodo jé néo desperta o interesse do leitor brasileiro, naturalmente voltado no para o pai mas para o filho, o principe D. Pedro, embora, a0 contrétio do poema de Bandeira, 0 pai, nio o filho, estivesse mais precisado de oragio. D. Joao VI concluira seu papel no Brasil, mas em Portugal fracassaria. Ali, ele teve de lidar com dois pro- blemas. O primeiro partia da esquerda liberal, os chamados “vin- tistas", que controlavam a situacio nas Cortes ressuscitadas pelo movimento vitorioso do Porto para regenerar a nacio humilha- da a0 tempo da ocupagio francesa como da junta dominada pelo pré-cBnsul britinico, general Beresford. O outro desafio vem da extrema dircita, do integrismo absolutista que, sob a inspiracéo da rainha D. Carlota, mobilizao infante D. Miguel, a fradaria, parte da nobreza e do exército, ¢, para reconhecer a verdade, a esma- gadora maioria fanatizada do pals, com vistas a derrubar 0 novo regime liberal que a atitude irredenta do Brasil comprometera. Do momento do seu regresso a Lisboa, foi entre estes es- colhos que D. Joao VI teve de navegar. El Rei, que, por uma ‘Avourima encaanncho Do Reino Unio0 questao de feitio, preferia tratar com os liberais moderados a ter de se entender com a mulher ¢ o infante, néo viu com bons olhos ‘© movimento, o qual, ironicamente e gragas &forca do sentimen- to mondrquico, redundou em vantagem sua. Em 1823, um pro- nunciamento militar comandado por D. Miguel, a Vilafrancada, dissolveu as Cortes e restauroui o Antigo Regime, repondo D, Jodo VI na plenitude dos poderes de que gozara antes da Revolu- gio do Porto. Malgrado haver sido desfechado pelos setores mais rettégrados da sociedade portuguesa, a Vilafiancada foi sua jour- née des dupes, de vex. que 0 monarca nfo os chamou ao poder, preterindo-os em favor dos conservadores moderados com 0 apoio da Inglaterra na sua resisténcia & Santa Alianga e de um limicado circulo de personalidades mais ou menos ilustradas que, tendo a frente D. Pedro de Souza Holstein, futuro duque de Palmela, cenxergavam a salda da crise através do meio termo de uma monar- quia constitucional que permitisse a Bl Rei recuperar o essencial, ‘mas nio a toralidade, dos poderes que perdera. Doravante, os objerivos da Coroa cifrat-se-do na outorga de uma Carta, 3 ma- ncira da que Lufs XVIII dera & Franga; ¢ na preservagio de um nexo politico ¢ institucional, por ténue que fosse, entre Portugal € Brasil, D. Joao VI foi malsucedido em ambos os propésitos. Palmela foi o epigono da linhagem de diplomatas e de “es- trangeirados” a servigo da Coroa desde os tempos de D. Luis da Cunha. Representante junto a0 governo revolucionétio de Se- vilha em 1809-1812, ele tivera a missio de obter a Regéncia da Espanha para D. Carlota Joaquina, face ao seqilestro da familia real espanhola na Franga. Palmela enxergara ento a perspectiva de se realizar na América, contra Napoledo, a unio ibérica que ‘ndo fora possivel na Europa. Como escreveu entio, “duas nagoes, filhas da mesma peninsula e que o destino criou para serem ir- sis, [.] ofereceriam & Franga uma massa ainda maior de resis- téncia, ¢ 0 maior e mais resplandecente impétio do mundo po- 55 — Un wtenso Poaruca dria ressurgir de entre os incndios ¢ ruinas desta revolucio. Ter- se-ia conseguido, pelo tinico modo por que é possivel consegui- lo, esta reunigo, que foi de txés séculos a esta parte 0 maior ob- jeto As vezes da ambiglo, sempre da politica dos soberanos e dos homens de Estado desta nagio”, isto é, da Espanha. Devido 20 veto inglés ao ambicioso plano, que prejudicaria seus interesses comerciais, D. Joao, com seu bom senso lusitano, preferiu ceder 0s direitos de D. Carlota & Regéncia em troca da Banda Orien- tal, para desapontamento de Palmela, que acreditava que s6 no ‘caso em que a América espanhola se estilhagasse, & que o Princi- pe deveria “tirar todo o partido possivel desta dissolucio de um tio grande corpo politico”. Na sua condicio de embaixador ao Congtesso de Viena, Palmela fora o verdadeiro inspirador da criagio do Reino Uni- do de Portugal, Brasil e Algarves (1816), pois, como pretendeu Oliveira Lima, ele atributra o projeto a’Talleyrand para mais fa- cilmente vendé-lo a D. Joao. A hipétese do autor de D. Joao VI no Brasil tem a seu favor a tenacidade com que Palmela, a0 as- sumir a pasta dos Negécios Estrangeiros apés a Vilafrancada, defendeu a preservagio do Reino Unido, malgrado suas reduzi- das possibilidades de éxito, em face novamente da oposicéo glesa e desta vez também do governo do Rio de Janeiro. A raiz da Vilafrancada, acreditava-se em Lisboa estarem criadas as con- digdes politicas para retomar o didlogo com o Brasil. Se as Cor- tes liberais haviam constituido 0 grande empecilho a um acor- do entre os dois reinos, seu desaparecimento parecia aplainar 0 caminho para a reconstituigéo da unidade imperial. A justificada resisténcia do principe regente As ordens do regime liberal per- dia raxfo de ser, do momento em que D. Joao IV voltava a exer- cer a soma dos poderes majestéticos. Palmela via com nitidez. que 0 Reino Unido teria de ser reconstrufdo para atender 4s circunstancias do Brasil apés a par- 56 ‘Aout encanncho Do Reno Unio0 tida de D. Jodo VI. Por um lado, havia a impossibilidade de re- duzi-lo a anterior situagao colonial, por outro, a dificuldade de convencer El Rei mas sobretudo a opinigo portuguesa & perda de “uma tdo bela e vasta heranga”, tarefa que teria de ser con- duzida com extrema habilidade para impedir que os miguelistas capitalizassem com o prejufzo. Em principio, podia-se contar com a ajuda do tempo, “sempre elemento indispensavel para levar os homens a resignarem-se & lei da necessidade e para dis- sipar as ilusGes criadas”, mas sua mera passagem trazia 0 incon- veniente de consolidar o statu quo no Brasil, tornando maiores a cada dia as exigéncias que o Rio de Janeiro apresentaria como prego do restabelecimento do Reino Unido. Quaisquer, porém, que fossem os empecilhos, o regime safdé da Vilafrancada ou qualquer outro em seu lugar ver-se-ia na mesma obrigacéo de fazer alguma coisa, antes de abandonar de ver a possibilidade de trazer os brasileiros de volta ao aprisco. ‘Mesmo que Palmela estivesse suficientemente informado de que, na perspectiva do governo do Rio, a atitude das Cortes dis- solvidas havia levado a situacio ao ponto a partir do qual jé nao havia retorno, ele julgava que a diviséo do Reino Unido era con- trdria aos interesses d’El Rei como também do préprio D. Pedro, seu herdeiro, Em decorréncia da permanéncia deste no Brasil, 0 que se passava aqui nao podia ser assemelhado ao que ocorrera nos Estados Unidos da América ou ao que se verificava na Amé- ica espanhola, E certo existir um partido brasileiro de aspiragées republicanas mas a preservacio do Reino Unido daria precisa- mente a0 regente os meios de debelé-lo, Reconhecia Palmela que nada poderia 0 governo de Lisboa sem apoio britinico, nao s6 devido & necessidade de atender aos interesses comerciais desenvolvidos pela Inglaterra a partir de 1808 como também, e, no menos essencial, em vista da even- tual sustentago militar que dela esperava o noyo regime portu- 7 Une wienso Pontuca gués para pér-se a salvo de uma intervengio espanhola, incenti vada pela Santa Alianga. Embora hé anos o secretério do Exte- rior Castlereagh houvesse tirado as esperancas de socorrer mili- tarmente Portugal, Palmela, em seguida & Vilafrancada, voltou aalimenté-las, tanto mais que, falecido Castlereagh, ainda se des- comhecia o rumo a ser dado pelo sucessor, George Canning, & politica exterior do pals. Tratava-se de persuadir 0 governo de Londres de que a separacio do Reino Unido nfio redundaria em vantagens comerciais para a Gra-Bretanha e que a instauracio de regimes republicanos na América reforgaria a posicio dos Esta- dos Unidos no continente. E o que é mais, a posicéo privilegia- da da Inglaterra em Portugal ficaria irremediavelmente prejudi- cada, pois sem 0 Brasil o velho Reino ou se tornaria um aliado onerosissimo para a Inglaterra ou sairia da sua érbita para colo- car-se sob a da Franca e da Espanha. Com a deformagio da visio retrospectiva com que escre- veu suas recordag6es de vida publica, Palmela vir a afirmar que a atitude inglesa pusera desde o comeco tudo a perder, pois “qua- se que sem rebuco, mostrou desde logo a intenclo de favorecer a insurteigio das colénias espanholas e porcuguesas, fazendo ce- der qualquer consideragao de moral publica & que sobre todas e sempre o domina, isto é, a de promover e desenvolver 0 seu comér- cio”. A verdade é que inicialmente havia a possibilidade, como em qualquer mudanga de poder, de que Canning viesse a infleir a orientacio de Castlereagh em sentido mais favordvel a Portugal. Em todo 0 caso, nfo se pode dizer, como fez Palmela, que Lon- dres nao distinguia a situaco da América portuguesa da situagéo da América hispinica. Por outro lado, se todo o objetivo da Gri- Bretanha era exclusivamente econémico, cabia a Portugal sugerir a formula que buscasse acomodé-lo no contexto do sistema co- mercial que se teria de criar pafa o Reino Unido, sob a forma de um condominio anglo-lusitano das relages mercantis do Brasil. 58 A our encamragio Do Rano Usivo Para reconstituir 0 Reino Unido, D. Joéo VI e 0 ministé: rio estavam dispostos a reconhecer a mais ampla autonomia po- litica ¢ administrativa ao Brasil, que receberia Constituico pré- pria, adaptada as suas condig6es; e seria regido pelas leis do seu préprio parlamento, as quais seriam sancionadas pelo regente e confirmadas pro forina por D. Jofo VI. O vinculo subsistente entre ambos os pafses seria exclusivamente dindstico, por um Jado, ¢ internacional, por outro, configurando um auténtico pac 10 federativo. O chefe da Casa de Braganca por dircito heredi- tério reinaria sobre as duas nages, delegando ao primogénito ¢, portanto, futuro monarca, a regéncia daquela parte em que no residisse, fOrmula que permitia evitar uma definiglo acerca da melindrosa questio da capital da monarquia. De inicio, D. Joo ‘VI reinaria em Lisboa, tendo D. Pedro como regente no Rio, até © dia em que, morto D. Joio, D. Pedro confiaria Portugal a seu herdeiro, no caso D. Maria da Gléria. Para alcangar este resul- tado, D. Joao VI e Palmela se contentariam com a cldusula da nagio mais favorecida, sacrificando qualquer pretensio de prefe- réncia comercial, a qual era invivel do momento em que os inte resses da Gri-Bretanha deviam ser levados na devida conta, pois a ela caberia avalizar internacionalmente a engenhosa férmula. ‘As relacées diplométicas seriam comuns no tocante 20s tra- tados politicos mas os acordos de comércio exterior seriam adap- tados as necessidades de cada reino. O monarca delegaria no principe regente do pais em que nio estivesse residindo a com- peténcia de nomeacio para os cargos ptiblicos, garantindo-se desde jd os empregos concedidos no Brasil, pois, segundo Pal- ela, “o interesse préprio é sempre a mola real das revolugées ¢ s6 transigindo com uns se podem terminar as ourras”. A medi- da era, com efeito, vital para o éxito do plano, de vez que, desde 1822, a independéncia do Brasil deixara de ser um objetivo de grupos urbanos radicais para tornar-se o investimento politico 59 ‘Un mtenso Pomtucat da elite de altos funciondtios da Corte fluminense para quem eza vital preservar as repartig6es deixadas no Brasil por D. Joao VI. A marina de guerra ¢ 0 servigo diplomético seriam comuns. A divida publica destinada as responsabilidades comuns seria com- partilhada, segundo proporgées a serem ajustadas. As possess6es ultramarinas da Africa e da Asia continuariam a ser dependén- cias da Coroa portuguesa. ‘As cconcess6es que Portugal estava pronto agora a fazer eram as mesmas que os deputados brasileiros haviam solicitado em vio as Cortes liberais. Por que, a0 contrério, El Rei e 0 ministério ‘mostravam-se sensiveis a essas aspiragSes autonomistas? No Bra- sil, na atmosfera exaltada da Independéncia, atribuiu-se & atitu- de de D. Jofo VI os mais sinistros designios de recolonizacio. Em meados de 1824, a concepgao do Reino Unido estava inape- lavelmente condenada, embora Palmela julgasse oti que a dissolucio da Constituinte e a Confederagio do Equador levariam D. Pedro a reavaliar as vantagens da unio & luz da ne- cessidade de repressio de movimentos regionais. Aquela altura, aextrema direita desencadeara nova prova de forca, quando D. Jodo VI viu-se cercado em palicio por outro levante castrense, a Abrilada, que, a pretexto de protegé-lo, visava a alijar Palmela e os moderados para precipitar sua abdicagao em D. Miguel. O golpe fracassou devido & reacio do corpo diplomatico estrangeiro, {que levou El Rei para bordo de uma nau inglesa no Tejo, de onde D. Miguel foi sumariamente demitido da chefia do exército enviado para o exilio. Que 0 objetivo de D. Jodo VI ¢ dos moderados ao insisti- rem na preservaco do Reino Unido era primordialmente dinds- tico €0 que se conelui da leitura da correspondéncia diplométi- ca de Palmela. A t6nica da sua argumentagio recafa néo sobre a reconstituicéo do monopélio' comercial, 0 que se sabia ser im- possivel, nem sequer sobre os aspects econdmicos das relagies jicamente 60 ‘A.oumaa sxcansnco D0 Reino UNi00 entre 0s dois reinos, embora estes também fossem ventilados, mas sobre o problema da sucesso ao trono portugués, a cujo respei- to 0s conservadores moderados desejavam manter os direitos de D. Pedro, menos por entusiasmo pela figura de um principe visto como o ingrato que se pusera a frente da Independéncia do Brasil do que pelo temor do mal maior, isto é, de que a Coroa viesse caber & béte noire da fac¢lo no poder, o infante D. Miguel. Por outro lado, a eventual aclamagio de D. Pedro apés 0 falecimen- to de D. Joao VI exigia que se prevenisse a hipétese de Portugal voltar a ser governado do Brasil. “A sorte deste Reino néo pode ficat incerta e precétia, dependente da vida do nosso atual sobe- rano”, lamentava-se Palmela. 6 a reconciliagéo com o Brasil permitiria “evitar-se para Portugal a desgraca de futuras dissen- s6es ¢ assegurar-se a sucesso & Coroa no seu legitimo herdeiro”. ‘A diferenga é que Palmela queria resolver de imediato a questio sucessétia mas D. Pedro preferia adid-la. Por conseguinte, para Palmela e os moderados, urgia asse- gurar a presenca de D. Pedro & frente da monarquia dual, bar- rando as pretens6es de D. Miguel e da sua facgio, cuja tomada do poder eles temiam mais que tudo, prevendo corretamente que elas viriam custar uma guerra civil ao pafs. Nesta perspectiva, a Corte do Rio deveria funcionar como Ancora da monarquia cons- situcional lusitana. A obsessio brasileira com a recolonizacio fez naufragar o plano joanino, sem que, contudo, evitéssemos 0 que legitimamente poderia ser tido como a recolonizagio por exce- lencia, a presenga dominante da imigracdo ¢ do comércio por- tuugueses na antiga colénia e sua influéncia nas decis6es do novo Estado nacional, O tratado de 1825 s6 recolheu do esquema dual a cléusula pela qual D. Joao VI, mas nfo seus sucessores em Por- tugal, poderia denominar-se imperador do Brasil. A cléusula, que parece tio ofensiva aos brios nacionalistas da historiografia bra- sileira, foi apenas o penduricalho tirado 2o plano de Palmela para a ) ! i Un imenso Porrucat, satisfagdo de amor-préprio de um soberano que ja era encarado como 0 verdadeiro fundador da Independencia. Ironicamente, a unio dos dois reinos s6 sobreviverd 2o nfvel de alguns consu- lados, que a0 longo do século XIX atuaram indistintamente co- mo repartigées luso-brasileiras na Europa, nao fossem entio os diplomatas uns incorrigiveis arcaizantes. a 2 Entregando o Brasil ‘A.uniio das coroas de Portugal e de Castela em 1580 inte- grou no jogo politico europeu um Brasil que até entao se limi- tara ao papel de eventual ponto de atrito das relagbes luso-fran- cesas, D. Joio III procurara alhear-se das quest6es européias para concentrar-se na exploracio do Império ultramarino, que no significa que tivesse ficado indiferente a0 equilibrio de poder na Europa e a suas repercussées, inclusive devido & sua alianga com © cunhado, Carlos V. Por desconfianga hereditéria da Espanha ou por temor aos inimigos dela, D, Joao III teria jé cogitado, ne hipétese de invasio do Reino, de uma retirada para o Brasil, onde disporia de base relativamente segura para a reconquista de Por- tugal, segundo garantia frei Vicente do Salvador em 1627. Esta seria uma das consideragdes que o levaram 4 criagio do gover- no-geral em 1549. De 1580 a 1640, o Brasil terd seu destino ligado 20 da mo- narquia espanhola, com todos os dnus e bénus da situagZo. O nacionalismo portugués s6 enxergou naturalmente os primeios, concretizados na perda de possess6es ultramarinas as méos dos inimigos da Espanha, segundo o raciocinio de que o governo de Madri nao dispensaria 20s interesses lusitanos 0 mesmo 2elo que aos préprios e que, por conseguinte, o ultramar portugues se tornara o alvo preferencial dos ataques das poténcias protestan- 6 Unc aienso Portuca, tes como a Inglaterra e os Paises Baixos. Jé se sustentou, pelo contrétio, que na inexisténcia da unio ibética, as perdas lusica- nas teriam sido provavelmente maiores, de vez. que as colénias portuguesas se teriam encontrado em posicio ainda mais vulne- rével. Se o Nordeste, por exemplo, ficou perdido por longos anos, 1nZo é menos verdade que Felipe IV 0 conde-duque de Olivares empenharam-se na sua restauragio, como indicam as duas gran- des armadas enviadas & Bahia (1625) e a Pernambuco (1638), convencidos de que a perda da regido, que se tornara, gracas 20 agticar, vital para a economia portuguesa, acarretaria mais cedo ou mais tarde, como veio a acontecer, a perda de Portugal pela ‘monarquia espanhola. A explicar a diferenca entre 0 éxito da res- tauragio da Bahia em 1625 ¢ o fracasso da restauracéo do Nor- deste em 1640 sobressai o declinio do poderio naval espanhol. A insergZo brasileira na luta européia pelo poder tornou- se patente t4o logo o exército de Felipe II entrou em Portugal em 1580, derrotando a resisténcia nacional, comandada por D. Ant6nio, 0 prior do Crato, ¢ o levando a recorrer & ajuda dos inimigos de Castela. A Franga mostrou-se mais pressurosa que a Inglaterra, que tinha sua atenco voleada para 0 outro lado do ‘Mar do Norte, onde seus aliados protestantes dos Paises Baixos sustentavam uma guerra de independéncia contra a Espanha. A Franga, que vita frustradas suas pretensées brasileiras vinte anos antes, dispés-se a apoiar militar e diplomaticamente a resistén- cia portuguesa em troca da cessio do Brasil. Mas a armada que sob Felipe Strozzi o governo de Paris despachou para defender a ilha Terceira (Agores), tltimo ponto do tertitétio lusitano a entregar-se a Felipe Il, redundou num fiasco que selou o desfe- cho do conflito. No comego do século XVII, sustentou-se que Strozzi rece- bera instrugdes para, na hipétese de vitéria, seguir para o Brasil, segundo os termos de um tratado secreto entre o prior do Crato 6 vvrnecunoo 0 Bras Catarina de Médicis. A alegacio foi redescoberta no século XIX pela historiografia francesa, que aduziu: novos elementos em seit favor. Do lado portugués, deve-se a Joaquim Verissimo Serrio © exame mais detido do assunto. Sua tese limita-se, porém, nao a negar a existéncia do projeto francés mas a contestar a respon- lidade do prior do Crato na cessio da América porcuguesa ou de parte dela. E, com efeito, inexistem provas do consenti- mento de D. Anténio, as fontes que'se referem ao assunto sen- do exclusivamente francesas. Verissimo Serrio admite apenas que o prior tivesse auorizado a viagem de naus francesas a0 Bra- sil, com o fito de negociarem e de fazerem guerra & Espanha no Atlantico sul. Destarte, se concessfo houve de sua parte, esta te- tia sido de natureza puramente comercial, Caberia aduzir que a relutincia em aceitar a “traicio” do prior do Crato, heréi de certo setor do nacionalismo portugués, tinha conotagées ideolégicas xno Portugal salazarista em que Verissimo Serrfo escreveu seu trabalho. Contra sua teoria, pode-se,alids, empregar 0 mesmo raciocinio que utilizou para justificar a recusa de D, Anténio em partir para o Brasil, quando instado a prosseguir a tesisténcia no uleramar: 0 de que a idéia de transferir a sede da monarquia para uma coldnia seria demasiado sofisticada para a cabega do prior. Ora, nao 0 era menos a nogao de substituir dominio territorial por privilégios mercantis, a qual para vingar ainda reve de espe- rar pela asticia comercial holandesa e inglesa em meados de Seis- centos. Semelhante idéia era dificilmente concebfvel no tocante as poténcias ibéricas, visceralmente adeptas até o século XIX do sistema de monopélio colonial. Mesmo se D. Anténio néo tivesse consentido em entregar 0 Brasil ou parte dee, ¢ Sbvio que a Fran- ade Catarina de Médicis nfo iria ajud4-lo a conquistar sua Co- roa a troco de nada; ¢ que, por fis ou por nefas, Ihe teria apre- sentado 0 fato consumado de uma ocupacio do Rio de Janeiro, por exemplo, 65 {Us mtenso PoxrucAL O fato é que, desde 1580, as alternativas de ceder 0 Brasil ou de nele instalar o Estado portugues voltario tona todas as vezes em que a independéncia nacional estiver ameagada, Tam- bém naquela ocasido a colénia teria sido objeto de negociagées centre Felipe II e a Casa de Braganga, cujos direitos & Coroa eram considerados juridicamente mais sélidos que os do monarca cas- telhano e que os do prior do Crato. Na sua histéria da Restau- racdo portuguesa, publicada na segunda metade do século XVI, © conde da Ericeira sustentou que 0 cardeal-rei D. Henrique, 0 iiltimo rei dos Avis, tentara persuadir os Bragancas a que, em troca da sua adesfo s pretensGes castelhanas, ficassem com o Bra- sil, de que o duque D. Joao tomaria o titulo de rei. A sugestio teria sido repelida. O texto de Ericeira é, alids, ambiguo, pois no deixa claro se a entrega do Brasil teria sido proposta de Felipe IT ou alvitre conciliador do préprio D, Henrique. O historiador ‘Queiroz Veloso, que conheceu melhor que ninguém a documen- taco espanhola relativa & perda da Independencia, considerou invencionice a alegacio de Ericeira, de vez. que Felipe II nao fi- zera quaisquer oferecimentos aos Bragangas antes da morte do cardeal-rei, s6 tratando com eles depois deste acontecimento € sem que o Brasil entrasse em questo, No relatério da sua mis- sio a Lisboa oitenta anos depois, o marqués de Chouppes refere a informacio que lhe dera o secretétio de Estado Pedro Vieira da Silva acerca do pretendido oferecimento de Felipe II. Mas 20 passo que Ericeira alude & cessio do Brasil, Chouppes registra apenas a do Algarve, Sao bem conhecidas as negociag6es relativas & entrega do Nordeste aos Pafses Baixos para que seja necessdrio voltar ao as- sunto, Cumpre, porém, lembrar que, no reinado de D. Joéo IV (1640-1656), no foi esta a-tinica ocasiéo em que se cogitou de usar 0 Brasil como moeda de troca politica. O embaixador por- tugués em Paris foi instrufdo em 1646 a negociar o casamento 66 Evrascinoo o Bras do herdeiro do trono, o principe D. Teodésio, com a prima de Lufs XIV, a Grande Demoiselle. Em vista da falta de interesse do governo francés, El Rei foi além da proposta inicial, dispon- do-se a abdicar em favor do filho, em cuja menoridade a regén- cia seria exercida pelo almejado sogro, o duque de Orléans, a0 ‘paso que D. Joao IV se contentaria com 0 dominio dos Acores, e do Estado do Maranhao e Gra6-Paré, a serem constitufdos em, reino autnomo. Na sua hostilidade ao duque, 0 cardeal Maza- rino yetou a idéia, Anos depois, a acreditar-se no secretério de Estado Pedro Vieira da Silva, o préprio Felipe IV, da Espanha, oferecera, contra a restituigio de Portugal & sua Coroa, a eresio do Brasil em Reino para D. Joao lV. Outro projeto de retirada da familia real para o Brasil no decurso da guerra da Restauragio (1660-1668) é referido em car- ta do padre Ant6nio Vieira. Segundo 0 jesuita, a nomeacio de Francisco de Brito Freyre para o governo de Pernambuco em 1660 resultara da preocupagio da rainha regente de preparar reftigio para si e para os filhos no caso da iminente invasio es- panhola do Reino, pois devido ao sistema de fortificacio deixa~ do pelos holandeses no Recife, este era reputado a praca-forte ‘mais segura da América portuguesa. Ainda de acordo com Vieira, D, Joao IV recomendara o projeto em papel do préprio punho encontrado apés seu falecimento, A idéia s6 fora descartada gra- gas & assinatura do tratado de alianga luso-briténico (1661), que gatantiu a independéncia nacional Pela mesma altura, o Brasil também entrava nas cogitagdes do governo francés, que vinha de assinar com a Espanha o tra- tado dos Pirineus (1659), pondo fim & guerra de 24 anos. Como a Luis XIV fosse necessdrio encontrar uma saida decente para o fato de que ia abandonar o aliado portugues & prépria sorte, en- viou-se a Lisboa o marqués de Chouppes, que propés um acor- do de paz luso-espanhol com garantia francesa. Por este tratado, o ——— UUs iwenso Porrucat uma vez reinvestido Felipe IV na Coroa portuguesa, a Casa de Braganca seria mantida no gozo dos seus dominios e privilégios no Reino, recebendo El Rei D. Afonso VI o titulo, que ficaria hereditétio na familia, de vice-rei de Portugal ou de rei do Bra- sil, No regresso a Paris, de passagem em Madri, Chouppes tra- tou do assunto com D. Luts de Haro, ministro principal de Fe- lipe TV, a quem sugeriu duas alternativas para a solugio final da guerra hispano-portuguesa, Pela primeira, o Rei Catdlico desis- tiria de Portugal contra 0 fornecimento de 3 mil soldados de infantaria, navios de guerra e o pagamento do dote da infanca de Espanha, Maria Teresa, que se ia casar com Luis XIV. Pela segunda, Felipe IV ficaria com Portugal mas deixaria & dinastia de Braganga 0 Algarve, os Agores, a Madeira ea “ilha do Brasil”. ‘A reacéo do espanhol distara de ser negativa, mas 0 governo es- panhol verou a sugestio, com o argumento de que Portugal es- tando reduzido a ultima extremidade, nfo havia por que fazer- the concess6es de tal monta. A referéncia & “ilha do Brasil” néo é acidental. Como indicou Jaime Cortesio, que estudou exaus- tivamente o mito da “ilha Brasil”, “sua tltima expressao lendé- sia” ocorrera exatamente alguns anos antes no mapa de um fran- cés, Nicolau Sanson. oe 8 Uma Nova Lusitania (1) Com que haviam sonhado os primeiros colonos pernam- bucanos? Com uma Nova Lusitdnia, isto é, com o prolongamen- to de Portugal na América e do Velho Mundo no Novo. Por mais gabada que fosse, a nova terra ainda nfo era vista como irredutivel aos modelos de vida material e mental trazidos do Reino, como ocorrerd a partir de Seiscentos, mas como uma pagina em bran- co onde facilmente estampé-los. Daf que a forma primeira do sentimento local nao tenha consistido na assercio da originalidade brasileira, mas, pelo con- tririo, no louvor da lusitanidade da existéncia colonial. A ambi- fo de fazer da terra uma reprodugo de Portugal, sem prever, por conseguinte, o que na passagem do tempo setia a ado di- ferenciadora do meio fisico e social, nfo se apartava, alids, da disetriz que inspirara os demais estabelecimentos criados no he- misfério por europeus, salvo talvez na Nova Inglaterra, onde pre- valeceram as veleidades de uma nova Sion, de'uma sociedade paralela destinada a realizar as aspiracbes da Reforma, frustradas pelo anglicanismo, © que, neste caso, emprestava ao adjetivo 0 significado de uma ruptura e no mais de uma continuidade, Da ambigo de prolongar o Velho Mundo no Novo, testemunha a pritica de apor-se &s reas conquistadas os nomes dos paises e das regiées donde seus povoadores eram origindtios: Nova Espanha, 6 1 ‘Un menso Porrucat Nova Galicia, Nova Granada, Nova Extremadura, Nova Fran- a, Nova Holanda; ou, & maneira dos ingleses em Barbados, Pe- quena Inglaterra. Como percebeu Oliveira Lima, fazer um outro Portugal, fora precisamente o programa de Duarte Coelho, primeiro do- natétio de Pernambuco, ao designar de Nova Lusitinia a ca tania que lhe doara D. Joao Ill, da boca meridional do canal de Santa Cruz & foz do Sio Francisco, O chamado foral que conce- dew a Olinda e suas cartas a El Rei sfo invariavelmente datadas desta Nova Lusitania”, nome que nao vingou, embora faleci- do Duarte, a viva, a capitoa D. Brites de Albuquerque, teimasse, provavelmente por fidelidade ao desejo do marido, em referis- se 4 Nova Lusitania. Ao menos desde 1549 comegara a empre- garse 0 vocébulo tupi “Pernambuco”, originalmente utilizado para o ponto do litoral, na terra firme fronteira & ilha de Tta- matacé, onde se situara a feitoria de Crist6vlo Jaques, topdnimo 86 posteriormente adotado para 0 ancoradouro existente na for do Capibaribe-Beberibe. Procurou-se também conciliat as deno- minagSes em “Pernambuco da Nova Lusitania”, como nos atos, de nomeacio, em finais de Quinhentos, dos locotenentes dona- tariais; e 0 autor da Relagio do naufvigio por que passara 0 ter- ceiro donatétio alude mesmo & “capitania de Pernambuco, das partes do Brasil da nova Lusitinia”. Na Europa, adotou-se naturalmente o nome exético. A cor respondéncia quinhentista dos cénsules venezianos em Lisboa menciona a “terra di Pernambuci”; eo relato da expedicao de James Lancaster fala sempre de “Fernambuck” e, do pau-brasil, como “pau de Pernambuco”, costume imitado pelos holandeses. ‘Ainda no século XIX, o Recife era chamado pelos estrangeiros de cidade de Pernambuco. O gentilico “pernambucanos” néo se fez, portanto, esperar, datahdo de inicios de Seiscentos. Jé os chama assim frei Vicente do Salvador, que, porém, ainda recor- 70 Una Nova Lusrans te & perffrase “os da Bahia” ao reportar-se a seus conterraneos. Com a publicagéo da Prosopopéia, Nova Lusitania adquiriu tra- vo literétio ¢ erudito; e com a da histéria de Brito Freyre (1676), cla passard a ser aplicada, com &nimo literdrio, a toda a América portuguesa, até a altura do reinado de D. Joso VI. Nova Lusita- nia sofreu, portanto, a mesma preterico que Terra de Santa Cruz, exceto que o nome de Brasil néo tinha procedéncia indigena. ‘Acscolha de Nova Lusitania denota, aids, no primeiro do- natério, certo gosto das humanidades, sabido que o emprego de ‘Lusitania constituiu novidade dos fins do século XV, trazida pelo renascimento dos estudos elissicos, que haviam identificado os portugueses com os lusitanos sublevados outrora contra a domi- nagéo romana, Ao iniciar-se a colonizagio do Brasil, Lusitania e usitani eram vocdbulos postos recentemente em circulagio por autores portugueses e estrangeiros. A citcunstincia pode servir, aliés, para reforar uma das explicag6es aventadas para o nome de Olinda. O mesmo gosto literétio que levara Duarte Coelho a batizar sua capitania pode té-lo induzido a designar a urbe que fundou no angulo do mar e do tio Beberibe com 0 nome de personagem do Amadis de Gaula. Destarte, ficaria descartada a objecio de Sérgio Buarque de Holanda, segundo a qual caracte- rizando-se Olinda, na novela de cavalaria pela qualidade de “me- surada”, ou comedida, resultaria incompativel com as inclinagbes de povoadores risticos. Que, a0 contrétio do seu colega de con- quista no Oriente, 0 donatirio da Bahia, Francisco Pereira Cou- tinho, apelidado de “Rustico”, Duarte Coelho nao o fora, perce- bbeu ha muito o historiador Pedro de Azevedo, a0 observar sua pro- pensio a usar express6es latinas na correspondéncia com El Rei. ‘Asubstituicdo de Nova Lusitinia por Pernambuco simboli- za toponimicamente a mutaco que viria a sofrer 0 programa do primeiro donatério, em breve pervertido pelas circunstincias da colonizagZo. Na ilha da Madeira, constitulra-se, consoante a tra- n

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