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DADOS DE ODINRIGHT

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GUY DE MAUPASSANT

O CEGO
E OUTROS CONTOS
ATROZES
Tradução de Paulo Soriano et alii

2017
TRIUMVIRATUS
www.triumviratus.net
Sumário
SOBRE A COLETÂNEA
SOBRE A ÁGUA
O HORLA
PIERRÔ
O BÊBADO
UMA VENDETTA
O BANDIDO CORSO
O LOBO
NO MAR
A MORTA
O CEGO
CRÉDITOS
TÍTULOS E COLEÇÕES
SOBRE A COLETÂNEA
Henri René Albert Guy de Maupassant (Tourville-sur-
Arques, 5 de agosto de 1850 - Passy, 6 de julho de 1893)
cultivou variados gêneros literários, mas foi no conto que o
seu imenso talento reconheceu a forma inata de expressão.
Era ele essencialmente contista. Ao lado de escritores como
Allan Pöe, Tchekhov e O. Henry, elevou o gênero a
dimensões merecidamente extraordinárias.
Como contista, Maupassant explorou vários temas e
assuntos. E enveredou, com maestria, no ambiente
fantástico e terrível. Às vezes, o excêntrico, o insólito e o
sobrenatural imperam (Sobre a Água, O Horla, A Morta);
noutras, prevalece o horror que deriva das mais sombrias
imperfeições morais do gênero humano, como a avareza
(Pierrô, No Mar), a ira (O Lobo, O Bêbado), o rancor (O
Bandido Corso, Uma Vendetta) e a crueldade pura e
simples (O Cego), com suas atrozes consequências.
SOBRE A ÁGUA
No verão passado, aluguei uma casa de campo à
margem do Sena, a algumas léguas de Paris, na qual ia
dormir todas as noites. Depois de alguns dias, travei
relações com um vizinho, homem de 30 a 40 anos, o tipo
mais curioso que já conhecera. Era um velho remador,
sujeito fanático, que não saía da água. Deve ter nascido
numa canoa e com certeza há de morrer com os remos nas
mãos.
Numa noite em que passeávamos à beira d’água, pedi-
lhe que me contasse uma história de sua vida náutica.
Imediatamente, o meu amigo animou-se, transfigurou-se,
tornando-se eloquente, quase poético. Ele trazia no coração
uma grande, uma aguda e irresistível paixão pelo rio.
—Ah — disse-me ele —, quantas coisas eu sei a
respeito deste rio que corre junto a nós! Quem mora na
cidade não sabe o que é o rio. Ouça, porém, um pescador
que pronuncia esta palavra. Para ele, é uma coisa
misteriosa, profunda, o lugar das miragens e das
fantasmagorias, onde se veem, à noite, coisas que não
existem; onde se ouvem rumores ignotos, ou se treme sem
saber por quê, como quando se atravessa um cemitério. E,
de fato, é o mais terrível cemitério, onde não existem
túmulos.
Na sombra, quando não há lua, o rio não tem limites.
O marinheiro não experimenta no mar a mesma sensação
que o pescador no rio. O mar é grande, é leal: grita, uiva. O
rio é silencioso e pérfido. Não tem vagas. Corre sempre sem
rumor, e o eterno movimento da água que flui me apavora
mais que as ondas do oceano.
Certos sonhadores pretendem que o mar esconda em
seu seio grande cidades azuladas, onde os afogados
turbilhonam entre grandes peixes, em meio a estranhas
florestas e grutas de cristal. As profundezas do rio são
escuras. Entretanto, ele é belo quando esplende ao sol e
docemente murmura entre as margens cobertas de
sussurrantes caniços.
Um poeta[1], falando do oceano, disse:

Oh, ondas, quantas lúgubres histórias conheceis!


Ondas profundas, temidas pelas mães ajoelhadas,
Aquilo que lhes contais quando sobem as marés
É o que faz desesperadas as vozes
Que tendes à noite, quando chegais até nós.

Pois bem, eu creio que as histórias sussurradas pelos


frágeis caniços devem ser mais sinistras do que os lúgubres
dramas narrados pelo urro das ondas. Mas, como o senhor
me pede alguma de minhas recordações, vou contar-lhe um
estranho caso que me sucedeu há cerca de dez anos.
Por esse tempo, eu morava, como ainda hoje moro, na
casa da senhora Lafon, e um dos meus melhores colegas,
Louis Bernet, que depois renunciou ao esporte para entrar
no Conselho do Estado, morava na aldeia de C., duas léguas
abaixo. Jantávamos juntos todas as noites, um dia na casa
dele, outro dia na minha.
Certa noite, em que eu voltava só, e muito cansado,
remando com grande esforço, parei um pouco, fazendo a
canoa encalhar. O tempo estava magnífico. Havia lua, o rio
cintilava, o ar estava calmo e doce.
Aquela tranquilidade me tentou. Veio-me a vontade de
fumar meu cachimbo. Lancei âncora.
A canoa ainda desceu um pouco, esticando a corrente,
e parou. Acomodei-me como pude. Não se ouvia nada,
nada. Só de vez em quando me parecia ouvir um barulhinho
quase imperceptível da água contra o barranco, e então os
maciços de verdura assumiam para mim formas
surpreendentes, agitadas.
O rio estava perfeitamente tranquilo, mas eu me
sentia comovido pelo extraordinário silêncio que me
circundava. Todas as vozes noturnas dos pantanais haviam
se calado pelas margens. De repente, à minha esquerda,
uma rã coaxou. Estremeci. Como o barulho não se repetiu,
pus-me a fumar. Conquanto eu estivesse acostumado a
fumar, nessa noite o fumo me fez mal ao estômago.
Comecei a cantarolar. A minha voz aborreceu-me. Estirei-
me, então, no fundo da canoa, contemplando o céu. Por
algum tempo, permaneci calmo. Logo, porém, certos
movimentos da barca me perturbaram. Parecia-me que ele
oscilava de um modo extraordinário, até tocar ora uma e
ora outra margem. Depois, eu tive a impressão de que um
ser, ou uma força invisível, me arrastava para o fundo da
água. Sentia-me apavorado como em meio a uma
tempestade. Ouvia rumores vindos de todos os lados. De
repente, ergui-me. A água brilhava. Tudo se achava calmo.
Compreendi o meu estado de nervos, e decidi ir-me
embora. Puxei a corrente. A canoa moveu-se, e depois senti
uma resistência. Puxei com mais força e a âncora não
cedeu: tinha-se enroscado em alguma coisa no fundo da
água e eu não podia erguê-la. Tornei a puxar, mas
inutilmente. Então, com os remos, empurrei a canoa rio
acima para mudar a posição da âncora. Em vão. Irritei-me e
sacudi furiosamente a corrente. Nada se moveu. Sentei-me,
desencorajado, e pus-me a refletir sobre a minha situação.
Arrebentar a corrente era impossível. Arrancá-la da borda da
canoa, também, porque estava segura num toro de madeira
da grossura do meu braço. Entretanto, como o tempo
continuava belíssimo, tinha a esperança de que por ali
passaria algum pescador, a quem chamaria em socorro.
Esperei, pois, acalmando-me um pouco, e desta vez pude
fumar. Trazia comigo uma garrafa de rum. Bebi dois ou três
cálices, e a minha situação me fez rir. Fazia muito calor, de
modo que não seria desagradável, na pior das hipóteses,
passar a noite ao relento.
De repente, qualquer coisa bateu na quilha da canoa.
Dei um salto e um suor frio gelou-me da cabeça aos pés.
Com certeza, tinha sido algum pedaço de pau que dera de
encontro ao fundo da embarcação. Mas fora o bastante para
me lançar de novo numa estranha agitação nervosa. Agarrei
a corrente e fiz um esforço desesperado para arrancar a
âncora. Mas a âncora resistia sempre. Tornei a sentar-me,
exausto.
No entanto, o rio fora se cobrindo aos poucos de uma
névoa branca muito densa que tocava na água, de modo
que, erguendo-me, não pude ver o rio, nem a canoa, nem os
meus pés. Eu distinguia apenas o cimo dos caniçais e, ao
longe, palidamente iluminada pelo luar, a planície
manchada de negro pelas árvores que se erguiam para o
céu. Eu me achava como que sepultado, até a cintura,
naquela névoa de estranha alvura. Vinham-me ideias
fantásticas. Parecia-me que alguém que eu não reconhecia
tentava subir para a barca, e que o rio, oculto pela névoa
opaca, estava cheio de seres bizarros que nadavam em
torno de mim. Experimentei um horrível desassossego e,
com as têmporas opressas, o coração a bater-me
violentamente, fora de mim, pensei em salvar-me a nado.
Esta ideia, porém, me arrepiou. Vi-me perdido, joguete do
acaso em meio da bruma, debatendo-me entre perigos que
não podia evitar, gritando de medo, sem ver terra, sem
encontrar o barco, e puxado pelos pés para o fundo da água
sombria.
De fato, como me ere preciso subir a correnteza pelo
menos uns quinhentos metros para encontrar um ponto sem
ervas e juncos onde pudesse firmar o pé, havia para mim
nove probabilidades sobre dez de perder-me na névoa e
afogar-me, por melhor nadador que eu fosse.
Esforcei-me por ver se raciocinava. Sentia uma firme
vontade de não ter medo, mas havia em mim alguma coisa
mais que a vontade, e essa alguma coisa tinha medo.
Perguntava a mim mesmo o que é que podia temer: o meu
eu corajoso encontrava o meu eu covarde, e nunca aprendi
tão bem como nessa noite a luta dos dois seres que vivem
em nós, um que quer e o outro que resiste, e cada um dos
quais ora vence, ora é vencido.
Aquele pavor brutal e inexplicável aumentava sempre
e tornava-se terror. Fiquei imóvel, com os olhos
esbugalhados e ouvindo à espreita, esperando. Esperando o
quê? Não sei, não sabia, mas creio que era qualquer coisa
de terrível. Creio que se um peixe saltasse fora d’água,
como acontece tantas vezes, eu cairia semimorto.
Todavia, graças a um violento esforço, acabei por
dominar ao menos em parte a minha perturbação. Tomei de
novo a garrafa de rum, sorvendo-o a grandes goles. Acudiu-
me, então, uma ideia. Comecei a gritar com toda força,
voltando-me para os quatro pontos cardeais. Quando não
tinha mais fôlego, escutei. Um cão ladrava ao longe.
Bebi mais um pouco e deitei-me, estirado, no fundo da
canoa. Fiquei assim talvez uma hora, talvez duas, sem
dormir, com os olhos abertos, sentindo fantasmas em volta.
Não tinha coragem de levantar-me, apesar de o desejar
ardentemente: deixava de um minuto para o outro. E dizia
com os meus botões: “Vamos, de pé!” e, ao mesmo tempo,
tinha medo de fazer o menor movimento. Finalmente, ergui-
me, com infinitas precauções, como se a minha vida
dependesse do mínimo barulho que eu fizesse. E alonguei o
olhar por sobre as margens.
A névoa, que duas horas antes flutuava sobre a água,
tinha-se pouco a pouco adensado nas margens. Ao longo
delas, a neblina formava uma colina contínua, de seis ou
sete metros de altura, banhando de luar a sua alvura de
neve. Entre as duas montanhas brancas estava o rio. Sobre
a minha cabeça, lá no alto, brilhava a lua cheia num céu de
turquesa esbranquiçada.
Todos os habitantes da água tinham despertado. As rãs
coaxavam furiosas e, de momento em momento, eu ouvia a
nota breve, monótona e triste que a voz metálica dos sapos
lançava às estrelas. Coisa estranha: passara-me o medo.
Cercava-me uma paisagem tão extraordinária que nada
podia me parecer estranho.
Quanto tampo durou isso, não o sei, porque acabei por
adormecer. Quando reabri os olhos, o céu estava cheio de
nuvens e a lua, velada. A água murmurava lugubremente,
ventava, fazia frio e a escuridão era profunda.
Bebi o último gole de rum que me restava, depois
fiquei escutando a tremer o farfalhar da folhagem e o rumor
sinistro do rio. Não enxergava o barco. Aproximei as mãos
dos olhos: não as enxergava também.
Pouco a pouco, porém, a treva diminuía. De repente,
pareceu-me sentir uma sombra passar por cima do meu
corpo. Dei um grito. Uma voz respondeu-me. Era um
pescador. Chamei-o. Ele se aproximou. Contei-lhe o que me
acontecera. Então, ele trouxe o barco para junto do meu e
puxamos juntos a corrente. A âncora não se moveu. A
madrugada estava escura, cinzenta, chuvosa, glacial,
anunciando um desses dias que trazem tristezas e dores.
Lobriguei outro pescador. Chamamo-lo, e ele veio unir aos
nossos os seus esforços. Então, pouco a pouco, a âncora
cedeu. Subiu, mas docemente, e carregada de um peso
considerável. Finalmente, surgiu um fardo negro. Passamo-
lo para a barca.
Era o cadáver de uma velha mulher com uma grande
pedra no pescoço.
O HORLA
(Versão de 1886)

O doutor Marrande, o mais ilustre e o mais eminente


dos alienistas, tinha convidado três de seus colegas e
quatro sábios, que se ocupavam com as ciências naturais,
para passarem uma hora em sua companhia, na casa de
saúde de que ele era o diretor, onde pretendia mostrar-lhes
um de seus doentes.
Logo que os amigos chegaram, disse-lhes:
— Vou mostrar-lhes o caso mais bizarro e mais
inquietador que já encontrei. E nada lhes direi do meu
cliente. Ele mesmo falará.
E o doutor tocou a campainha. Um criado fez entrar
um homem. Este era muito magro, de uma magreza
cadavérica, como são magros certos doidos devorados por
um pensamento, porque o pensamento doentio consome a
carne do corpo mais que a febre e a tuberculose.
Depois de cumprimentar os presentes e sentar-se, ele
disse:
— Meus senhores, eu sei por que estão aqui reunidos,
e estou pronto a contar-lhes a minha história, satisfazendo
ao pedido de meu amigo Marrande.
Durante muito tempo ele considerou-me louco. Hoje
duvida. Daqui a algum tempo, todos os senhores saberão
que eu tenho o espírito tão são, tão lúcido, tão sagaz quanto
o dos senhores, infelizmente para mim, para os senhores, e
para a humanidade inteira.
Mas eu quero começar pelos fatos em si, pelos fatos
em toda a sua simplicidade.
Tenho quarenta e dois anos. Não sou casado e a minha
fortuna é suficiente para uma vida de certo luxo. Eu morava
em um imóvel de minha propriedade, às margens do Sena,
em Biessard, perto de Rouen. Gosto de caçar e de pescar.
Ora, por trás da minha casa, acima dos grandes rochedos
que a dominam, tinha eu uma das mais belas florestas da
França, a de Roumare, e, em frente, um dos mais belos rios
do mundo.
A minha casa é espaçosa, pintada de branco por fora,
bonita, antiga, no meio de um grande jardim plantado de
árvores magníficas, e que vai ter à floresta, subindo pelos
enormes rochedos de que lhes falei há pouco.
O meu pessoal compõe-se — ou antes compunha-se —
de um cocheiro, um jardineiro, um criado de quarto, uma
cozinheira e uma roupeira, que era uma espécie de
governanta. Toda essa gente morava comigo de dez a
dezesseis anos, conhecia-me, conhecia a minha casa, a
região, tudo o que fazia lugar em minha vida. Eram bons e
tranquilos servidores. Isto tem o seu valor para o que vou
dizer.
Acrescento que o Sena, que passa ao longo do meu
jardim, é navegável até Rouen, como sem dúvida os
senhores sabem, e que todos os dias eu via passar grandes
navios, quer a vela, quer a vapor, procedentes de todos os
cantos do mundo.
Pelo outono passado fez um ano que, de repente, senti
um mal-estar estranho e inexplicável. A princípio, foi uma
espécie de inquietação nervosa que me fazia velar noites
inteiras, uma superexcitação tal que o menor ruído me fazia
estremecer. Fiquei sujeito a cóleras repentinas inexplicáveis.
Chamei um médico, que me receitou brometo de potássio e
duchas.
Tomei as duchas de manhã e à noite; pus-me a tomar
o brometo. Em breve, com efeito, voltei a dormir, mas o
meu sonho era mais terrível que a insônia. Mal me deitava,
fechava os olhos e ficava aniquilado.
É verdade. Eu caía no nada, em um nada absoluto, em
uma morte de todo ser, de que era arrancado bruscamente,
horrivelmente, pela terrível sensação de um peso a
esmagar-me o peito, e de uma boca sobre a minha, a sugar-
me a vida pelos meus lábios. Oh, que sobressaltos! Não
conheço coisa mais aterradora!
Imaginem um homem que dorme e que está sendo
assassinado, e acorda com uma faca na garganta; que
agoniza coberto de sangue, que não pode mais respirar, e
vai morrer e não compreende nada — e aí têm o que isso é.
Eu emagreci de um modo inquietador, contínuo; e, de
repente, percebi que o meu cocheiro, que era muito gordo,
começava a emagrecer como eu!
Por fim, perguntei-lhe:
— O que tens tu, Jean? Tu estás doente?
— Eu creio que apanhei a mesma doença que o patrão.
São as noites que passo em claro.
Pensei, portanto, que havia na casa uma influência
febril devido à vizinhança do rio, e estava pronto para me
afastar por dois ou três meses, apesar de estarmos em
plena estação de caça, quando um pequeno fato muito
excêntrico, observado por acaso, levou-me a fazer uma tal
série de descobertas inverossímeis, fantásticas, aterradoras,
que me induziram à decisão de ficar.
Tendo sede uma noite, bebi meio copo d’água, e notei
que a garrafa, posta sobre a cômoda, defronte da minha
cama, estava cheia até a rolha de cristal.
Durante a noite, tive um despertar terrível como o de
que lhes falei. Acendi a vela, cheio de medonha angústia, e,
como quis beber outra vez, vi, com espanto, que a garrafa
estava vazia. Eu não queria acreditar no que via. Ou alguém
tinha entrado no meu quarto, ou então eu era sonâmbulo.
Na noite seguinte, resolvi fazer a mesma experiência.
Fechei a porta à chave, para ter certeza de que ninguém
poderia entrar no meu quarto. Adormeci e acordei como
sempre. Tinham bebido toda a água que vira duas horas
antes. Quem tinha bebido essa água? Eu, sem dúvida, e, no
entanto, julgava ter a certeza, a certeza absoluta, de que
não tinha feito um movimento durante o meu sono profundo
e doloroso.
Então recorri a artifícios para convencer-me de que eu
não praticava esses atos inconscientes. Pus à noite, ao lado
da garrafa d’água, uma outra de Bordeaux velho, uma
xícara de leite (de que tenho horror) e bolos de chocolate
(de que gosto muito).
O vinho e os bolos ficaram intactos. O leite e a água
desapareceram. Então, todos os dias, mudei as bebidas e
os alimentos. Nunca tocaram nas coisas sólidas, compactas,
e, quanto aos líquidos, só beberam leite fresco e
principalmente água.
Mas a dúvida pungente ficava-me na alma. Não seria
eu que me levantava inconsciente, e que bebia mesmo as
coisas de detestava, porque os meus sentidos, entorpecidos
pelo sono de sonâmbulo, podiam ser modificados, ter
perdido a suas repugnâncias ordinárias e adquirido gostos
diferentes?
Servi-me, então, de um artifício novo contra mim
mesmo. Envolvi todos os objetos em que teria
infalivelmente que tocar com tiras de musselina branca e os
cobri com uma toalha fina.
Depois, no momento de me deitar, sujei as mãos, os
lábios e os bigodes com raspadura de lápis.
Quando acordei, todos os objetos estavam
perfeitamente limpos, apesar de terem sido tocados, porque
a toalha já não estava como eu a tinha deixado, e, além
disso, tinham bebido a água e o leite.
Ora, a minha porta, fechada com uma chave de
segurança, e as janelas, fechadas a cadeado, não podiam
ter deixado entrar ninguém.
Então fiz a mim mesmo esta pergunta: quem andava
ali, todas as noites, perto de mim?
Bem vejo, senhores, que estou a contar-lhes isto
depressa demais.
Os senhores sorriem, a sua opinião está feita: “é um
louco”.
Eu lhes deveria descrever, minudentemente, esta
emoção de um homem que, fechado em seu quarto, com o
espírito são, vê, através do vidro de uma garrafa, um pouco
de água que desapareceu enquanto ele dormia.
Eu deveria ter-lhes feito compreender esta tortura, que
se repetia todas as noites e todas as manhãs, e aquele
despertar mais assustador ainda.
Mas eu continuo.
De repente, o fenômeno cessou.
Não tocavam mais em coisa alguma no meu quarto.
Estava acabado. E eu andava melhor. Voltava-me a alegria,
quando eu soube que um dos meus vizinhos, o sr. Legite,
achava-se exatamente no estado em que eu me
encontrava.
Acreditei de novo numa influência febril no lugar.
O meu cocheiro havia saído de casa, um mês antes,
muito doente.
O inverno havia passado, começava a primavera.
Ora, numa bela manhã, eu passeava junto do meu
canteiro de roseiras quando vi, distintamente, pertinho de
mim, a haste de uma das nossas rosas mais bonitas
quebrar-se como se uma mão invisível a colhesse. Depois a
flor seguiu a curva que descrevia um braço, levando-a para
uma boca, e ficou suspensa no ar transparente, sozinha,
imóvel, aterradora, a três passos dos meus olhos.
Possuído por um temor ensandecido, atirei-me a ela,
para agarrá-la.
Não achei coisa alguma.
Tinha desaparecido.
Então senti uma cólera furiosa contra mim mesmo.
Um homem ajuizado e sério não pode ter tais
alucinações.
Mas, seria realmente uma alucinação?
Procurei a haste. Achei-a logo no arbusto, recém-
quebrada, entre outras duas rosas que tinham ficado no
ramo; porque eram três e eu as tinha visto perfeitamente.
Então, voltei para casa com o espírito perturbadíssimo.
Senhores, ouçam-me, eu estou calmo. Eu não acreditava no
sobrenatural e hoje mesmo ainda não acredito. Mas, a partir
desse momento, fiquei certo, como de que há dia e noite,
que existia perto de mim um ente invisível que me tinha
perseguido, que depois me tinha abandonado, e nessa
ocasião retornava.
Pouco tempo depois, tive a prova disso.
Primeiro, entre os meus criados, havia diariamente
discussões furiosas por mil causas aparentemente fúteis,
mas, desde então, significativas para mim.
Um copo — um belo copo de Veneza — quebrou-se
sozinho, no aparador da sala de jantar, em pleno dia.
O criado de quarto acusou a cozinheira, esta a
roupeira e esta não sei quem.
Portas que ficavam fechadas à noite estavam abertas
de manhã. Roubavam leite, todas as noites, na copa. Ah!
Quem era? De que natureza? Uma curiosidade nervosa
— mistura de cólera e terror — mantinha-me dia e noite em
um estado de agitação extrema.
Mas a casa tornou-se outra vez calma; eu pensava de
novo que tinham sido sonhos, quando se deu o fato
seguinte.
Foi no dia 20 de julho, às oito horas da noite. Fazia
muito calor. Eu tinha deixado a janela escancarada, o
lampião aceso em cima da mesa, iluminando um volume de
Musset[2], aberto nas Noites de Maio, e tinha-me estendido
em uma grande poltrona, onde adormeci.
Ora, depois de dormir cerca de quarenta minutos, abri
os olhos, sem me mexer, despertado por não sei que
emoção confusa e extravagante. A princípio, nada vi.
Depois, de repente, pareceu-me que as páginas do livro
viravam-se sozinhas. Nem um sopro de ar entrava pela
janela. Fiquei surpreso. Esperei. Depois de cerca de
quarenta minutos, eu vi — vi, sim, meus senhores —, vi com
os meus olhos, levantar-se uma página e cair contra a
precedente, como se um dedo a folheasse. A minha cadeira
estava vazia, mas eu compreendi que lá estava ele! De um
pulo, atravessei o quarto para apanhá-lo, para tocar-lhe,
para apoderar-me dele se fosse possível... Mas a minha
cadeira, antes que eu lá chegasse, caiu de costas, como se
alguém fugisse diante de mim. O lampião também caiu, e
apagou-se, com o vidro quebrado. E a janela —
bruscamente empurrada, como se um malfeitor, ao escapar,
tivesse-lhe deitado a mão — foi ter no batente... Ah!
Atirei-me à campainha e chamei. Quando o criado
apareceu, eu lhe disse:
— Derrubei e quebrei tudo. Traga-me luz.
Não dormi mais nessa noite. E, no entanto, eu podia
ter sido ainda vítima de uma ilusão. Quando a gente acorda,
os sentidos estão um tanto perturbados. Não teria sido eu
que tinha atirado ao chão a cadeira e o lampião,
precipitando-me como um louco?
Não, não havia sido eu. Eu sabia disto a ponto de não
duvidar por um segundo sequer. E, no entanto, queria crer
nisto.
Esperem. O ente! Como eu o chamarei? O Invisível.
Não, isto não basta. Eu o batizei de o Horla. Por que? Não
sei. O Horla já quase não me deixava. Eu tinha dia e noite a
sensação, a certeza, da presença desse vizinho implacável,
e a certeza também de que ele me sugava a vida, hora a
hora, minuto a minuto.
A impossibilidade de vê-lo me exasperava, e eu acendi
todos os lampiões do meu aposento, como se pudesse
descobri-lo com muita luminosidade.
Por fim, eu o vi.
Os senhores não acreditam em mim. Mas eu o vi!
Eu estava sentado diante de um livro qualquer, não a
ler, mas a espiar, com todos os meus órgãos
superexcitados, à espera daquele que eu sentia estar perto
de mim. Com certeza, lá estava ele. Mas onde? O que
fazia? Como alcançá-lo?
Defronte de mim estava a minha cama, uma antiga
cama de carvalho, com colunas. À direita, a lareira.
À esquerda, a porta, que eu fechara cuidadosamente.
Atrás de mim, um grande armário de porta de espelho,
de que eu me servia todos os dias quando fazia a barba,
quando me vestia, onde costumava mirar-me dos pés à
cabeça toda vez que passava diante dele.
Eu estava, pois, a fingir que lia para enganá-lo, porque
ele também me espreitava e, de repente, senti, tive certeza
que ele lia por cima de meu ombro, que estava ali, a roçar-
me na orelha.
Levantei-me, voltando tão depressa que quase caí.
Pois bem... estava tudo claro como o meio-dia... e eu não
me via no espelho! O espelho estava vazio, claro, cheio de
luz.
A minha imagem não estava nele... e eu estava
defronte...
Via o vidro límpido, de cima a baixo! E olhava para isso
com os olhos de um doido, e não me atrevia a caminhar,
sentindo bem que ele estava entre nós — ele —, e que iria
me escapar outra vez, mas que seu corpo imperceptível
tinha absorvido o meu reflexo.
Como tive medo! E depois, de repente, comecei a ver-
me em uma névoa ao fundo do espelho, como através de
uma toalha d’água. E parecia-me que essa água escorria da
esquerda para a direita, lentamente, tornando-se mais
definida a minha imagem de segundo em segundo.
Era como o acabar de um eclipse.
O que me escondia não parecia ter contornos
claramente delineados, mas uma espécie de transparência
opaca, que ia clareando pouco a pouco.
Por fim, eu pude distinguir-me completamente, assim
como todos os dias em que me contemplo ao espelho.
Eu o tinha visto. Ficou-me, desde então, o terror, que
ainda me arrepia.
No dia seguinte, vim para cá, onde pedi que me
deixassem ficar.
E agora, meus senhores, eu vou concluir.
O doutor Marrande, depois de ter duvidado muito
tempo, decidiu-se a fazer, sozinho, uma viagem ao lugar em
que eu morava.
Três vizinhos meus estão hoje afetados do mesmo mal.
É verdade?
(O médico respondeu:
—É verdade!)
O doutor aconselhou-lhes que deixassem água e leite
todas as noites no quarto, para ver se esses líquidos
desapareciam. Eles obedeceram. Os líquidos
desapareceram, como em minha casa?
(O médico respondeu com uma gravidade solene:
— Desapareceram.)
— Portanto, senhores, um Ente, um Ente novo, que
sem dúvida se multiplicará em breve, assim como nós nos
multiplicamos, acaba de aparecer sobre a terra.
Ah, os senhores sorriem? Por quê? Porque esse Ente
conserva-se invisível. Mas os nossos órgãos, senhores, são
órgãos tão elementares que apenas podem distinguir o
indispensável à nossa existência. O que é pequeno demais,
escapa-lhes; o que é muito grande, escapa-lhes; o que está
muito longe, escapa-lhes também. Eles desconhecem as
miríades de pequenos animais que vivem em uma gota
d’água. Não conhecem os habitantes, as plantas e o solo
das estrelas vizinhas. Não chegam a ver sequer o
transparente. Ponham diante deles um espelho sem
estanho, perfeito, e eles não o distinguirão e irão nos lançar
para cima da lâmina como um pássaro preso em casa, que
quebra a cabeça de encontro às vidraças. Portanto, eles não
veem o ar quente de que nos alimentamos, não veem o
vento, que é a maior força da natureza, que derruba os
homens, abate edifícios, arranca árvores pela raiz, levanta o
mar em montanhas d’água, que derroca as de granito. Que
há de admirável em que não vejam um corpo novo, ao qual
falta talvez somente a propriedade de deter os raios
luminosos?
Os senhores veem a eletricidade? E, no entanto, ela
existe!
Este ente, que eu denominei de Horla, existe, também.
Quem é ele? Senhores, é aquele que a Terra espera,
depois do homem! Aquele que vem destronar-nos, dominar-
nos, escravizar-nos e alimentar-se, talvez, de nós, como nós
nos alimentamos dos bois e dos javalis.
Há séculos que é pressentido, receado, anunciado!
O medo do invisível sempre perseguiu os nossos pais.
E ele chegou.
Todas as lendas das fadas, dos gnomos, dos
vagabundos do ar, impalpáveis e maléficos, era dele que
elas falavam. Dele, já pressentido pelo homem inquieto e
trêmulo.
E tudo o que os senhores fazem há alguns anos, o que
os senhores chamam hipnotismo, sugestão, magnetismo, é
ele que os senhores anunciam, que os senhores profetizam.
Eu digo que ele chegou. Vagueia inquieto ele também,
como os primeiros homens, sem conhecer ainda a sua força
e o seu poder, mas que cedo conhecerá... bem cedo.
E aqui está, senhores, para acabar, o fragmento de um
jornal que me caiu nas mãos e que vem do Rio de Janeiro.
Eu leio: “Uma espécie de epidemia de loucura parece
alastrar-se há algum tempo na província de São Paulo. Os
habitantes de diversas aldeias têm fugido, abandonando as
suas terras e casas, e dizendo-se perseguidos e devorados
por vampiros invisíveis, que se alimentam da respiração
deles durante o sono, e que só bebem água e às vezes
leite.”
Acrescento: dias antes do primeiro ataque do mal de
que estive para morrer, lembro-me perfeitamente de ter
visto passar uma grande galera brasileira, com sua bandeira
posta ao vento... Eu lhes disse que a minha casa fica à
margem d’água... toda branca. Sem dúvida, ele estava
escondido nesse navio.
Nada mais tenho a acrescentar, meus senhores.
O doutor Marrande levantou-se e murmurou:
— Nem eu. Não sei se esse homem é louco, ou se
somos ambos... ou se... se o Ente que nos há de suceder
realmente chegou...
PIERRÔ
Madame Lefèvre era uma senhora do campo, uma
destas semicampesinas que usam fitas e chapéus de folhos,
destas pessoas que falam com pretensões, tomam ares
grandiosos em público, e ocultam uma alma
pretensiosamente brutal sob aparências cômicas e variadas,
da mesma maneira que encobrem mãos grossas e
vermelhas com luvas de seda crua.
Tinha por criada uma camponesa simplória chamada
Rose.
As duas mulheres habitavam uma casinha de
persianas verdes ao longo da estrada, na Normandia, no
centro do país de Came.
Como possuíam um jardinzinho estreito, defronte da
casa, cultivavam ali alguns legumes e hortaliças.
Ora, certa noite surrupiaram-lhe uma dúzia de cebolas.
Rose, assim que deu pelo furto, correu a prevenir a senhora,
que desceu ao jardim em saia curta.
Foi uma desolação e um terror. Tinham furtado, furtado
Madame Lefèvre! Já se vê que havia larápios pela redondeza
e poderia ser que voltassem.
E as duas mulheres, assustadas, contemplavam os
vestígios dos passos, tagarelavam, supunham várias coisas.
—Olhe, passaram por aqui. Puseram os pés no muro.
Saltaram para o alegrete.
E o futuro aterrorizava-as. Como era possível dormirem
agora sossegadas?!
O boato do roubo espalhou-se. Os vizinhos vieram
verificar, discutiram também. E as duas mulheres
explicavam a cada recém-chegado as suas observações e
as suas ideias.
Um fazendeiro, que morava ao lado, deu este
conselho:
—A senhora deveria ter um cão.
Isso era verdade. Deveriam ter um cão, ainda que
apenas para dar o alerta. Não era preciso nenhum
canzarrão. Valha-me Deus! O que haviam de fazer com um
canzarrão? O sustento as arruinaria! Mas um cãozinho —na
Normandia diz-se cãezinho —que latisse.
Logo todos foram embora e Madame Levrève discutiu
muito tempo essa ideia do cão. Depois de refletir, fazia mil
objeções, aterrorizada pela imagem de uma tigela cheia de
comida. Porque era ela desta raça parcimoniosa de damas
campesinas que trazem sempre miúdos na algibeira para
darem esmolas ostensivamente aos pobres das estradas e,
na igreja, no peditório de domingo.
Rose, que gostava de animais, deu suas razões e
defendeu-as astuciosamente. Por consequência, decidiu-se
que teriam um cão. Um cão pequeno.
Começaram à procura dele, mas acharam apenas
grandes devoradores de sopa que eram de arrepiar. O
tendeiro de Rolleville tinha um, pequenino. Mas exigia por
ele dois francos para pagar as despesas da criação.
Madame Lefrève declarou que estava disposta a sustentar
um cãezinho, mas que não queria comprá-lo.
Ora, o padeiro, que estava ciente dos acontecimentos,
trouxe, numa manhã, em sua carroça, um animalzinho
estranho, todo amarelo, quase sem patas, com um corpo de
crocodilo, um focinho de raposa e uma cauda de trombeta,
um verdadeiro penacho, tão grande quanto ele. Um freguês
queria desfazer-se do animal. Madame Lefrève achou lindo
aquele cãozinho imundo que não lhe custava dinheiro. Rose
beijou-o e perguntou como se chamava.
O padeiro respondeu:
—Pierrô.
Instalaram-no num velho caixote de sabão,
ofereceram-lhe água primeiro. Bebeu. Em seguida,
apresentaram-lhe um bocado de pão. Comeu. Madame
Lefèvre, inquieta, teve uma ideia:
—Quando já estiver acostumado à casa, vamos soltá-
lo. Ele há de encontrar comida, farejando aí pelas terras.
Soltaram-no, efetivamente, o que não impediu que ele
andasse esfomeado. Quanto a latir, fazia-o apenas para
reclamar a sua ração. Mas, neste caso, ladrava com
verdadeiro furor.
Todo mundo podia entrar no jardim. Pierrô recebia
todos os recém-chegados com festas e afagos, e ficava
absolutamente mudo.
Madame Lefrève, apesar disso, acostumara-se ao
animal. Chegava até a gostar dele, e dar-lhe com a mão, de
vez em quando, bocadinhos de pão ensopados no molho de
seu guisado.
Mas nunca se lembrara do imposto e quando lhe
pediram oito francos —oito francos, santo Deus! –, por
aquele enguiço que nem mesmo ladrava, esteve quase a
desmaiar de surpresa.
Resolveram, imediatamente, desembaraçar-se de
Pierrô. Os habitantes dos arredores o recusaram. Então, à
falta de outro meio, decidiu-se que fariam “piquer du mas”
“Piquer du mas” é “comer marga”. Quando alguém
quer ver-se livre de um cão, obriga-o a “piquer du mas”.
No meio de uma vasta planície, avista-se uma espécie
de cabana, ou antes um pequeno telhado de colmo
assentado no chão. É a entrada da margueira. Um grande
poço desce direto vinte metros debaixo da terra e vai dar
numa série de galerias de minas.
Desce-se a essa pedreira uma vez por ano, na época
em que se margam as terras. O resto do tempo serve de
cemitério aos cães condenados. E, muitas vezes, quando se
passa junto do edifício, ouvem-se uivos lastimosos,
queixumes suplicantes, latidos furiosos ou desesperados.
Os cães de caça e o gado fogem, espavoridos, das
proximidades dessa cova assustadora. E quando alguém se
curva por cima da abertura, sente um cheiro abominável da
podridão.
Ali, no meio da sombra, desenrolam-se dramas
horríveis.
Quando um animal agoniza, no fundo, há dez ou doze
dias, alimentando-se com os restos de seus predecessores,
outro animal maior, decerto mais vigoroso, é lançado no
poço repentinamente. Estão ambos sós, esfaimados, de
olhos luzentes. Observam-se mutuamente, seguem-se,
hesitam, indecisos. Mas a fome os excita: atacam-se, lutam
durante muito tempo, desesperados. E o mais forte come o
mais fraco, devora-o vivo.
Logo que resolveram levar Pierrô a “piquer du mas”,
tratou-se de procurar o executor. O zelador de estradas
pediu dez soldos pelo trabalho. Madame Lefrève achou isto
um exagero. O garoto vizinho contentava-se com cinco
soldos. Ainda era muito. E, como Rose observara que era
melhor levarem-no elas mesmas, porque assim não seria o
cão maltratado pelo caminho, e nem prevenido da sorte que
o esperava, resolveram ir ambas, ao anoitecer.
Nesta tarde, ofereceram ao cãozinho uma bela sopa,
com dois dedos de manteiga. Ele devorou até a última gora
e, quando estava agitando a cauda de contentamento, Rose
o pegou e o embrulhou no avental.
Caminhavam rapidamente, como ladras, através da
planície. Não tardou que avistassem a margueira e se
aproximassem dela. Madame Levrève debruçou-se para
ouvir se algum animal gemia. Não! Não havia nenhum!
Pierrô ficaria só. Então Rose, que chorava, beijou-o e, sem
seguida, deitou-o pela abertura. E curvaram-se ambas, de
ouvido à escuta.
Primeiro ouviram um ruído surdo. Em seguida, o grito
agudo, dilacerante, horrível, de um animal ferido. Depois,
uma série de gritinhos dolorosos. Em sequência, chamadas
desesperadas, súplicas de cão, que erguia a cabeça para
abertura do fosso.
Como ele gemia agora!
As duas mulheres sentiram-se possuídas de remorso,
de pavor, de um medo louco e inexplicável. E fugiram
correndo. E, como Rose ia mais depressa, Madame Lefèvre
gritava:
—Espera aí, Rose! Espera aí!
Nessa noite, tiveram pesadelos horríveis.
Madame Lefrève sonhou que ia sentar-se à mesa para
tomar a sopa, mas, quando destampava a terrina, Pierrô
estava lá dentro. Saltava e mordia-a no nariz.
Acordou e pareceu-lhe que ainda o ouvia ganir. Pôs-se
à escuta: enganou-se.
Tornou a adormecer e viu-se em uma grande estrada,
uma estrada interminável, por onde ela caminhava. De
repente, no meio do chão, avistou um cesto de junco —um
grande cesto caseiro —abandonado. E aquele cesto a
assustava.
Contudo, acabou por ouvi-lo, e Pierrô, que estava
dentro, agachado, agarrava-lhe a mão e não a largava. E ela
fugia, aflita, levando o cão pendurado no braço, com os
dentes cerrados.
De madrugada, levantou-se quase louca e correu à
margueira.
O cão gania. Gania ainda e ganira a noite toda.
Madame Lefrève começou a soluçar e chamou-o com mil
palavras carinhosas. Ele respondeu com toda as ternas
inflexões da sua voz de cão.
Ela, então, quis tornar a vê-lo, prometendo a si mesma
fazê-lo feliz até a morte.
Foi à casa do homem encarregado da extração da
marga e contou-lhe o acontecido. O homem ouvia sem dizer
palavra. Quando ela acabou, o homem lhe disse:
—A senhora quer o seu cãozinho? São quatro francos.
Madame Lefrève teve um sobressalto. A dor
desapareceu-lhe imediatamente.
—Quatro francos? Era o que me faltava! Quatro
francos!
—A senhora julga —respondeu o homem —que eu vou
buscar as minhas cordas, minhas manivelas, arranjar tudo,
ir lá embaixo com o rapaz, e ser mordido, ainda por cima,
pelo raio do cão, só para lhe dar gosto? Que não o lançasse
lá!
Ela foi-se embora, indignada.
—Quatro francos!
Assim que chegou a casa, chamou Rose e contou-lhe
as pretensões do homem. Rose, sempre resignada, repetia:
—Quatro francos! É muito dinheiro, minha senhora.
Depois acrescentou:
—E se a gente levasse de comer ao pobre cãozinho,
para ele não morrer assim?
Madame Lefrève aprovou, muito contente. E puseram-
se ambas a caminho, com um grande pedaço de pão com
manteiga.
Cortaram aos bocadinhos e deitava-os, um após outro,
falando sempre com Pierrô. E logo que engolia um bocado,
gania para reclamar o seguinte.
Voltaram à noite, no dia seguinte, e todos os dias. Mas
já não faziam senão uma jornada em cada um.
Ora, certa manhã, no momento em que deixaram cair
o primeiro bocado, ouviram, de repente, um latido
formidável dentro do poço. Eram dois cães! Tinham arrojado
lá um outro cão, um enorme canzarrão.
Rose gritou:
—Pierrô!
E Pierrô ganiu, ganiu. Começaram a deitar-lhe a
comida. Mas, a cada bocado que caía, distinguiam
perfeitamente uma algazarra terrível, depois os gritos
lastimosos de Pierrô, mordido pelo companheiro, que, sendo
mais forte, comia tudo.
Era em vão que elas explicavam:
—É para ti, Pierrô!
Pierrô não apanhava nada, era evidente.
As duas mulheres olhavam uma para outra, interditas.
Madame Levrève declarou, em tom azedo:
—Mas eu não posso sustentar todos os cães que
atirarem aqui. Temos de renunciar a isto.
E, sufocada com a ideias de todos esses cães vivendo
à sua custa, foi-se embora, levando até o resto de pão, que
foi comendo pelo caminho.
Rose seguiu-a, enxugando os olhos com o canto do
avental azul.
O BÊBADO
O vento norte rugia em tempestade, arrastando no
firmamento enormes nuvens de inverno, negras e pesadas,
lançando à terra, em sua passagem, torrentes furiosas.
O mar — bravio — zunia, sacudindo a costa, lançado à
praia enormes, lentas e espumosas vagas, que se desfaziam
com estampidos semelhantes aos de artilharia. As vagas
vinham muito suavemente, umas após outras, da altura de
montanhas, espalhando no ar, ao contato das rajadas, a
espuma branca de suas cristas, como se fossem monstros a
suar.
O furacão abismava-se ao pequeno vale de Yport,
sibilava e gemia, arrancando as telhas, quebrando os
alpendres, derrubando as chaminés, lançando nas ruas tais
rajadas de vento que só se podia marchar segurando-se às
paredes. Com tal ímpeto do vento, as crianças seriam
levadas como folhas e atiradas por cima das casas.
Tinham atado os barcos de pesca até dentro da terra,
com medo do mar que invadiria a praia com a enchente.
Alguns marinheiros, amparando-se por trás do ventre
bojudo das embarcações deitadas de flanco, olhavam para
aquela cólera do céu e do mar.
Depois, afastavam-se pouco a pouco, pois a noite caía
em tempestade, envolvendo com uma sombra espessa o
oceano enraivecido e produzindo o estrepitar dos elementos
em fúria.
Só dois homens ficaram, de mãos nas algibeiras, os
costados roliços sob a borrasca, a cabeça enterrada no
barrete de lã até os olhos. Eram dois corpulentos
pescadores normandos, de barba hirsuta e pele crestada
pelas rajadas salgadas do mar largo, os olhos azuis picados
por um grão preto ao centro, os olhos penetrantes de
marinheiros que veem até o fim do horizonte como uma ave
de praia.
Um deles dizia ao seu companheiro:
— Vamos embora, Jérémie. Vamos passar um pouco de
tempo no dominó. Sou eu quem paga.
O outro hesitava, tentado pelo jogo e pela aguardente,
pois sabia muito bem que iria embriagar-se se entrasse na
taverna de Paumelle. Hesitava ao pensar em que tinha a
mulher sozinha em seu casebre. Perguntou:
— Parece que fizeste a aposta de embriagar-me todas
as noites. Se és tu quem paga sempre, não me dirás que
lucras com isso?
E ria com todo o gosto à ideia de toda aquela
aguardente bebida à custa do outro. Ria com um riso
contente de normando que se sente bem.
Mathurin, o seu camarada, continuava a puxá-lo pelo
braço.
— Vamos, apressa-te, Jérémie. Não se pode entrar em
casa, em uma noite destas, sem levar a barriga quente.
Parece que tens medo de que tua mulher te dê pancada...
Jérémie resmungou:
— É que outro dia não encontrei a porta. Quase que foi
necessário pescarem-me na valeta, em frente à minha casa.
E sorria ainda àquela lembrança de ébrio, enquanto se
dirigia lentamente para a taverna de Paumelle, cujos vidros
iluminados brilhavam. Ia puxado por Mathurin e impelido
pelo vento, incapaz de resistir às duas forças.
A sala, baixa, achava-se àquela hora cheia de marujos,
de fumaça e de gritos. Todos aqueles homens, vestidos de
lã, com os cotovelos apoiados sobre as mesas, vociferavam
para se fazerem ouvir. Quanto mais bebedores entravam,
mais era preciso berrar para dominar o ruído das vozes e do
bater dos dominós nas mesas de mármore, o que
aumentava ainda mais o inferneiro. Jérémie e Mathurin
foram sentar-se num conto e começaram a jogar uma
partida. Os cálices desapareciam uns após outros pelas suas
goelas. Depois jogaram mais partidas e beberam mais
cálices. Mathurin continuava e despejar, piscando o olho
para o taverneiro — um homem gordo, vermelho como uma
brasa e que ria com ar de velhaco —, como se estivesse
representando uma longa farsa. Jérémie ia ingerindo o
álcool, balançava a cabeça, soltava gargalhadas que mais
pareciam rugidos, a olhar para o seu compadre com o ar
mais estúpido e contente. Todos os fregueses saíam. E, a
cada vez que cada um deles abria a porta da rua, uma
rajada de vento entrava na taverna, fazendo redemoinhar a
pesada fumaça dos cachimbos, balançando os candeeiros
nas extremidades de seus ganchos e fazendo vacilar as
suas chamas. Ouvia-se, de repente, o choque profundo de
uma vaga que se desfazia e o bramir da borrasca. Jérémie,
com a camisa entreaberta no peito, tomava posições de
bêbado, de perna estendida, um braço pendente, segurando
com a outra mão as pedras do dominó. Por fim, ficaram a
sós com o taverneiro, que se aproximara, cheio de
interesse.
— E então, Jérémie, como vai então esse interior? Já te
refrescaste à força de te regares?
Jérémie balbuciou:
—Uma vez que ela ainda corre, é porque ainda está
seco cá por dentro.
O dono da taverna olhava para Mathurin com ar
malicioso:
— E teu irmão, Mathurin, onde estará ele a esta hora?
O marinheiro teve um riso mudo:
— Está bem aquecido, não te preocupes...
E ambos olharam para Jérémie, que pousava
triunfalmente o duplo seis, anunciando:
— Eis o trunfo.
Ao acabar a partida, o taverneiro declarou:
— Sabem que mais, meus rapazes? Vou ao calor dos
meus lençóis. Deixo-lhes um candeeiro e mais uma garrafa.
Fica-lhes bastante com que se entreterem. Tu, Mathurin,
fecharás depois a porta por fora e meterás a chave por
debaixo dela, como fizeste na noite passada.
Mathurin apressou-se a responder:
— Está entendido, podes ir descansado.
Paumelle apertou a mão dos seus dois fregueses
retardatários e subiu lentamente a escada de pau. Durante
alguns minutos, os seus pesados passos ressoaram na
pequena casa. Depois, um estalido revelou que ele acabava
de meter-se no leito. Os dois homens continuaram a jogar.
De tempos a tempos, um ímpeto mais raivoso do furacão
sacudia a porta, fazendo tremer as paredes. Os dois
bebedores levantavam a cabeça, como a ver se alguém ia
entrar. Depois Mathurin, empunhando a garrafa, enchia o
copo de Jérémie. De repente, o relógio, pendurado por cima
do balcão, deu meia-noite. O seu timbre rouquenho
lembrava um choque de caçarolas. As pancadas vibravam
por muito tempo, com uma ressonância de ferragem.
Mathurin ergueu-se repentinamente, como um marinheiro
que tivesse terminado o seu período de vigília.
— Vamo-nos embora, Jérémie; é preciso desandar.
O outro pôs-se em movimento com mais custo.
Aprumou-se, apoiando-se à mesa. Depois, ganhou a porta,
que abriu, enquanto o seu companheiro apagava o
candeeiro. Quando se acharam na rua, Mathurin, depois de
fechar a porta, disse:
— Agora, boa noite, até amanhã.
E desapareceu na escuridão.

II

Jérémie deu três passos, depois oscilou, estendeu os


braços, encontrou uma parede que o susteve de pé e tornou
a pôr-se em marcha, cambaleando. Por momentos, uma
rajada, acompanhada de chuva, penetrando pela estreita
rua, atirava-o para frente, obrigando-o a correr alguns
passos. Depois, quando a violência do vento passava, o
bêbado estacava de pronto, perdido o impulso, e continuava
a vacilar nas suas pernas caprichosas de beberrão. Ia por
instinto para casa, como os pássaros vão para o ninho.
Reconheceu, enfim, a sua porta e pôs-se a tatear para
descobrir a fechadura e introduzir a chave. Mas não atinava
com o buraco e praguejava a meia voz. Pôs-se, então, o
bater com violência, chamando ao mesmo tempo a mulher,
para que viesse abrir:
— Mélina! Ó Mélina!
De súbito, porém, como apoiava o seu corpo contra o
batente para não cair, este cedeu, a porta abriu-se e
Jérémie, perdendo o equilíbrio, caiu pesadamente dentro de
casa. Nesse momento, sentiu que qualquer coisa pesada lhe
passava por cima e desaparecia na escuridão. Jérémie não
se mexeu, cheio de medo, como louco, com o pavor de
homem que tivesse visto o diabo, e a cuja cabeça viessem
todas as coisas misteriosas das trevas. Esteve muito tempo
sem fazer o menor movimento. Mas, como viu que nada se
movia, veio-lhe um pouco de lucidez, esta lucidez
perturbada dos ébrios. Sentou-se muito vagarosamente.
Esperou ainda bastante tempo. Desentorpecendo afinal,
bradou para dentro:
— Mélina!
A mulher não respondeu.
Uma dúvida então, de repente, lhe atravessou o
cérebro obscurecido. Uma dúvida indecisa, uma vaga
suspeita. Continuava inerte, sentado no chão, na escuridão,
procurando reunir ideias, agarrando-se a reflexões
incompletas e vacilantes como os seus pés...
Bradou de novo:
— Olha cá, ó Mélina: que era aquilo? Dize-me, dize-me
o que era aquilo. Não te faço mal...
Esperou. Nenhuma voz se ergueu no silêncio. Agora
raciocinava alto:
— Não faz mal, estou bêbado! Estou bêbado! Foi ele
quem me pôs neste estado. Foi ele, para que eu não desse
com a casa. Estou bêbado...
E continuava:
— Que era aquilo, ó Melina? Ou me dizes, ou me
desgraço!
Depois de ter tornado a escutar, recomeçava, com
uma lógica lenta e obstinada de ébrio:
— Sim, foi ele quem me reteve na taverna daquele
malandro do Paumelle! E nas outras noites foi a mesma
coisa, para que eu não entrasse em casa... Ele é cúmplice...
Canalha!
Lentamente, equilibrou-se nos joelhos. Ganhava-o uma
cólera surda, que se misturava à fermentação das bebidas.
E repetia:
— Irás ou não, Mélina, me dizer o que foi aquilo? Se
não me disseres, eu te arrebento. Olha que eu te estou
avisando!
Achava-se agora já de pé, tremendo numa cólera
fulminante, como se o álcool que tinha no corpo se lhe
tivesse inflamado nas veias. Deu um passo, tropeçou numa
cadeira, agarrou-a, caminhou para a frente, encontrou o
leito, apalpou-o e sentiu nele o corpo quente da mulher.
Então, sufocado de raiva, bramiu:
— Ah! Estás aqui, infame? Estavas sempre aqui e não
me respondias?
E, levantando a cadeira, que sustinha no seu punho
robusto de marinheiro, atirou-a, com exasperada fúria, para
a frente. Um grito saiu da cama, um grito louco, angustioso.
Então, ele pôs-se a bater como um malhador numa granja.
Dentro em pouco, nada se mexia ali... A cadeira voara em
pedaços, mas restava-lhe ainda um de seus pés, e ele
continuava a bater, a bater, já arquejante. De repente,
parou para perguntar:
— Não me dirás quem era que a uma hora destas...
Mélina não respondeu. Então, abatido de fadiga,
embrutecido com a violência, tornou a sentar-se no chão,
estendeu-se e dormiu...
Ao romper da manhã, um seu vizinho, vendo a porta
aberta, entrou. Viu Jérémie roncando no chão, onde jaziam
dispersos os pedaços de cadeira, e, no seu leito, uma pasta
enorme, uma massa informe de carne e de sangue...
UMA VENDETTA

A viúva de Paolo Saverini morava só com o seu filho


numa casinha pobre, à beira das muralhas de Bonifacio. A
cidade, construída numa saliência da montanha, suspensa
em parte sobre o mar, olha por cima o estreito eriçado de
escolhos da costa mais baixa da Sardenha. A seus pés, do
outro lado, contornando-a quase inteiramente, um recorte
de rocha escarpada, que se assemelha a um gigantesco
corredor, serve-lhe de porto. Este corredor conduz até as
primeiras casas, depois de um longo circuito entre duas
muralhas abruptas, os pequenos barcos dos pescadores
italianos ou sardos e, de quinze em quinze dias, o velho
pacífico vapor que faz o serviço de Ajaccio.
Sobre a montanha branca, o montão de casas põe uma
mancha ainda mais branca.
Essas casas têm o ar de ninho de aves selvagens,
agarradas àquelas rochas, dominando aquelas passagens
onde os navios nunca se aventuram.

O vento, sem repouso, fustiga a costa nua, por ele


roída, vestida apenas de erva, e abisma-se no estreito que
invade as margens. Os pedaços de uma escuma pálida,
agarrados às pontas negras das inúmeras rochas que por
toda parte furam as vagas, têm a aparência de farrapos de
pano flutuando e palpitando à superfície da água.
A casa da viúva Saverini, grudada na borda da falésia,
abria as suas três janelas para aquele horizonte selvagem e
desolado.
Ela vivia ali, só, com o seu filho Antoine e a sua cadela
Semelhante, um animal grande e magro, de compridos
pelos selvagens, da raça dos cães de guardadores de
rebanhos. Semelhante servia também para caçar.
Uma noite, depois de uma briga, Antoine foi morto à
traição, com uma navalhada, por Nicolas Ravolati, que nesta
mesma noite se safou para a Sardenha.
Quando a velha mãe recebeu o corpo de seu filho, que
uns transeuntes lhe trouxeram, não chorou, mas ficou muito
tempo imóvel, a olhá-lo. Depois, estendendo a sua mão
rugosa sobre o cadáver, prometeu vingá-lo.
Não permitiu que ninguém a acompanhasse e fechou-
se com o corpo, ficando imóvel junto a ele com a cadela,
que uivava de um modo contínuo, em pé, próxima ao leito,
a cabeça estendida para o seu dono e a cauda apertada
entre as pernas. Ela não se mexia mais que a mãe do morto.
A mulher, inclinada para o corpo, o olhar fixo, chorava
grossas lágrimas mudas, contemplando-o. O rapaz,
prostrado de costas, vestido com a sua roupa grosseira de
pano esburacado e rasgado no peito, parecia dormir. Mas
tinha sangue por todos os lados: na camisa arrancada pelos
primeiros socorros, no colete, na calça, nas faces, nas mãos.
Pastas de sangue haviam-se coalhado na barba e nos
cabelos.
A velha mãe pôs-se a falar-lhe. Ao ruído daquela voz, a
cadela emudeceu.
— Deixa, deixa, serás vingado, meu filho, meu menino.
Dorme, dorme, que serás vingado, entendes? É a tua mãe
quem te promete. Ela nunca faltou à sua palavra, a tua
mãe, tu bens sabes disto.
E lentamente a viúva de Saverini debruçou-se para o
seu filho, colando os lábios frios naqueles lábios mortos.
Então, Semelhante pôs-se a gemer. Soltava uma
grande queixa monótona, lancinante, horrível.
E ali ficaram ambos, a mulher e o animal, até
amanhecer.
Antoine Saverini foi enterrado no dia seguinte, e daí a
pouco ninguém mais falou dele em Bonifacio.
Ela não tinha nem irmãos nem parentes próximos.
Nenhum homem havia para prosseguir na vingança. Só a
mãe pensava nela, só a velha. Do outro lado do estreito ela
via, de manhã à noite, um ponto branco sobre a costa. Era
uma pequena aldeia sarda, Longosardo, onde se refugiavam
os bandidos corsos perseguidos muito de perto.
São eles quase que exclusivamente quem povoa
aquela aldeia, defronte das costas de sua pátria, esperando
ali o momento de poderem voltar, de regressar ao mato da
Córsega, o maqui, como lá se chama. É lá naquela aldeia —
ela sabe disto — que se refugia Nicolas Ravolati.
Completamente só, ao longo do dia, sentada à sua
janela, a velha olha para as distâncias, pensando na
vendetta. Como ela a levaria a cabo, sem auxílio de
ninguém, enferma, tão perto da morte? Mas prometera,
jurara sobre o cadáver do filho. Não podia esquecer, não
podia esperar. O que faria? Não dormia durante a noite, não
tinha descanso, nem paz. Procurava obstinadamente um
meio. A cadela, a seus pés, dormia e, por vezes, levantando
a cabeça, uivava para longe. Desde que seu dono deixara
de estar ali, o animal uivava muitas vezes assim, como se
ele o chamasse, como se sua alma de irracional,
inconsolável, houvesse também guardado a recordação que
não se apaga.
Ora, uma noite, como Semelhante se pusesse a
gemer, a mãe, de repente, teve uma ideia. Uma ideia
selvagem, vingativa e feroz. Meditou sobre ela até de
manhã. Depois, levantando-se logo à aproximação do dia,
dirigiu-se à igreja.
Rezou, prostrada no lajedo, abatida diante de Deus,
suplicando-lhe que a ajudasse, que lhe conservasse a vida,
que desse ao seu pobre corpo a força que lhe faltava para
vingar o filho.
Depois voltou a casa. Tinha no pátio um velho barril
sem tampa que recolhia a água das goteiras. Tombou-o,
despejou-o, sujeitando-o ao solo por meio de pedras e
estacas. Depois pendeu Semelhante naquele nicho e entrou
em casa.
Marchava, agora, sem descanso, pelo quarto, o olhar
continuamente fixo na costa da Sardenha. Lá, ao longe,
estava o assassino.
A cadela uivou todo o dia e toda a noite. A velha, de
manhã, levou-lhe água numa panela. E nada mais. Nem
sopa, nem pão.
Passou-se ainda um dia. Semelhante, extenuada,
deixou-se dormir. Tinha os olhos luzentes, o pelo eriçado, e
puxava alucinadamente pela corrente que a amarrava.
A velha continuou a não lhe dar nada de comer. O
animal tornou-se furioso e latia em voz rouca. Passou-se
ainda a noite.
Então, ao despontar o dia, a mãe Saverini foi à casa de
um seu vizinho pedir dois molhos de palha. Lançou mão de
um terno velho, que outrora servira a seu marido, e forrou-o
com a palha, de forma a imitar um corpo humano.
Tendo fincado um pau no solo, diante do nicho de
Semelhante, amarrou a ele aquele manequim, que assim
parecia estar de pé.
Depois, compôs a cabeça por meio de uma trouxa de
roupa velha.
A cadela, surpreendida, olhava para aquele homem de
palha, e calava-se, embora devorada pela fome.
Então, a velha foi comprar ao salsicheiro um grande
pedaço de chouriço preto. Voltando a casa, acendeu
fogueira no pátio, perto do nicho, e assou o chouriço.
Semelhante, desesperada, espumava, de olhos fixos na
grelha cuja fumaça lhe entrava no ventre.
Depois, a mãe fez daquele grelhado fumegante uma
gravata para o homem de palha. Atou-o detidamente em
volta do pescoço, como se quisesse enterrá-lo dentro dele.
Feito isto, soltou a cadela.
Com um salto formidável, o animal atingiu o
manequim na garganta, e, com as patas sobre os seus
ombros, pôs-se a estraçalhá-lo. Caía com um pedaço das
goelas de sua presa e depois atirava-se de novo, enterrando
os dentes nos cordéis, arrancando algumas parcelas de
comida, tornando a cair para voltar a atirar-se
encarniçadamente. Arrancava grandes pedaços do rosto do
manequim, fazendo em destroços todo o pescoço.
A velha, imóvel e calada, olhava de olho inflamado.
Depois voltou a prender o animal, impondo-lhe um jejum de
mais dois dias, e recomeçou aquele estranho exercício.
Durante três meses, habituou a cadela àquele gênero
de luta, àquela refeição conquistada às dentadas. Por fim, já
não a prendia; lançava-a com um gesto sobre o manequim.
Ensinara-a a dilacerar, a devorar, por fim, mesmo que
não houvesse comida alguma nas goelas do homem. E em
seguida, como recompensa, dava-lhe o chouriço assado na
grelha.
Assim que via o homem de palha, Semelhante
estremecia, depois voltava os olhos para a dona, que
gritava “vai!” numa voz sibilante, enristando o dedo.
Quando lhe pareceu que era tempo, a mãe Saverini foi
confessar-se e comungou, num domingo de manhã, com um
furor extático. Depois, vestiu-se com terno de homem,
tomando a aparência de um velho mendigo esfarrapado.
Contratou um pescador sardo para conduzi-la,
acompanhada de sua cadela, ao outro lado do estreito.
Levava no seu alforje um grande pedaço de chouriço
preto. Semelhante jejuava há dois dias. A velha fazia-a
cheirar a todo momento aquela comida olorosa, excitando o
animal.
Entraram em Longosardo. A corsa caminhava
coxeando. Dirigiu-se à casa de um padeiro e perguntou
onde morava Nicolas Ravolati. Este retomara o seu antigo
ofício, o de marceneiro. Trabalhava só, como que escondido,
no seu estabelecimento. A velha passou pela porta e
chamou:
— Ei! Nicolas!
Ele voltou-se. Então, soltando a cadela, a velha gritou:
— Vai! Corre! Devora, devora!
O animal, desesperado, atirou-se, ferrando os dentes
na garganta do homem. Este estendeu os braços, estreitou
o animal, e rolou por terra. Durante alguns segundos
contorceu-se, batendo os pés no chão. Depois, ficou imóvel,
enquanto que Semelhante lhe buscava o pescoço,
arrancando-o aos pedaços.
Dois vizinhos, que se achavam sentados às suas
portas, recordam-se perfeitamente de terem visto sair da
aldeia um velho mendigo com um cão negro, magríssimo, e
que comia, ao mesmo tempo em que ia andando, alguma
coisa negra que o seu dono lhe dava.
A velha, à noite, estava de volta em sua casa. E nessa
noite dormiu perfeitamente.
O BANDIDO CORSO
O caminho subia suavemente no início da floresta de
Aitône. Os pinheiros desmedidos alargavam sobre nossas
cabeças uma abóbada gemedora, emitiam uma espécie de
queixume contínuo e triste, enquanto que, à direita e à
esquerda, seus troncos finos e retos formavam uma espécie
de exército de tubos de órgão de onde parecia sair essa
música monótona do vento nos cimos.
No final três horas de caminhada, a multidão destes
longos fustes emaranhados rareou. De espaço em espaço,
um pinheiro — guarda-sol gigantesco, separado dos outros,
aberto como uma sombrinha enorme — ostentava sua
cúpula de um verde escuro. Depois, subitamente,
alcançamos a fronteira da floresta, uns cem metros abaixo
do desfiladeiro que conduz ao vale selvagem do Niolo.
Sabre os dois cumes abruptos, que dominam essa
passagem, algumas velhas árvores disformes parecem ter
subido penosamente, como exploradores que partiram
diante da multidão aglomerada atrás. Ao voltarmos,
avistamos toda a floresta estendida abaixo de nós,
semelhante a uma enorme concha verde, cujas bordas, que
pareciam tocar o céu, eram feitas de rochedos nus,
estreitando-se de todos os lados.
Pusemo-nos a caminho outra vez, e, dez minutos
depois, atingimos o desfiladeiro.
Avistei, então, uma surpreendente região. Do outro
lado de uma outra floresta, estendia-se um vale, mas um
vale como eu nunca tinha visto, uma solidão de pedra, dez
léguas de comprimento, encravada entre montanhas de
dois mil metros de altura e sem um campo, sem uma árvore
visível. É o Niolo, a pátria da liberdade corsa, a cidadela
inacessível de onde nunca os invasores puderam expulsar
os montanheses.
Meu companheiro me disse:
— É também aí onde estão refugiados todos os nossos
bandidos.
Breve nos achamos no fundo dessa furna selvagem e
de inimaginável beleza.
Nem um mato, nem uma planta: granito, só granito. A
perder de vista diante de nós, um deserto de granito
faiscante, aquecido como forno por um furioso sol que
parece propositadamente suspenso acima dessa garganta
de pedra. Quando se levantam os olhos para essas cristas,
para-se estupefato. Elas parecem vermelhas e recortadas
como guirlandas de coral, pois todos os cumes são de
pórfiro. E o céu acima parece roxo, lilás, descolorido pela
vizinhança dessas estranhas montanhas. Mais abaixo o
granito é cinzento cintilante, e sob nossos pés ele parece
fragmentado: andamos sobre pó brilhante. À nossa direita,
num longo e tortuoso trilho, uma torrente tumultuosa ronca
e flui. E cambaleia-se sob esse calor, nessa luz, nesse vale
ardente, árido, selvagem, cortado por esse curso de água
turbulenta que parece ter pressa em fugir, impotente para
fecundar essas rochas, perdida nessa fornalha que a sorve
avidamente sem nunca ser penetrada e refrescada.
Mas, subitamente, apareceu à nossa direita uma
pequena cruz de pau cravada num pequeno monte de
pedras. Um homem havia sido morto ali, e eu disse ao meu
companheiro:
— Fale-me, pois, de seus bandidos.
Ele respondeu:
— Conheci o mais célebre, o mais terrível: Saint-Lucie.
Vou contar-te sua história.
Seu pai tinha sido assassinado numa briga, por um
jovem da mesma localidade, diziam. E Saint-Lucie ficou
sozinho com sua irmã. Era um rapaz fraco e tímido,
pequeno, sempre doente, sem energia alguma. Não
declarou vingança ao assassino de seu pai. Todos seus
parentes vieram ter com ele, suplicaram-lhe que se
vingasse; ele ficava surdo às suas ameaças e às suas
súplicas.
Então, seguindo o velho costume corso, sua irmã,
indignada, tirou-lhe a roupa preta, a fim de que ele não
usasse luto por um morto que não foi vingado. Ele ficou
insensível a esse ultraje e, em vez de pegar a espingarda,
ainda carregada, de seu pai, enclausurou-se, não saiu mais,
não ousando enfrentar os olhares desdenhosos dos rapazes
do lugar.
Passaram-se meses. Ele parecia haver esquecido o
crime e vivia com a irmã nos fundos de sua casa.
Ora, um dia, aquele que suspeitavam ser o assassino
casou-se. Saint-Lucie não pareceu impressionado com essa
notícia. Mas eis que, para provocá-lo, sem dúvida, o noivo, a
caminho da igreja, passou diante da casa dos dois órfãos.
O irmão e a irmã, na sua janela, comiam docinhos
quando o jovem avistou o cortejo nupcial que desfilava
diante de sua residência.
De repente, ele pôs-se a tremer, levantou-se sem dizer
uma palavra, persignou-se, tomou a espingarda que estava
pendurada sobre a lareira e saiu.
Quando, mais tarde, ele falava a respeito disso, dizia:
—Não sei o que tive: foi como um calor no meu
sangue. Senti bem que era necessário; que, apesar de tudo,
eu não poderia resistir, e fui esconder a espingarda no
maqui da estrada de Corte.
Uma hora mais tarde, ele voltava com as mãos vazias,
com seu ar habitual, triste e cansado. Sua irmã julgou que
ele já não pensava em nada. Mas, ao cair da noite, ele
desapareceu.
Seu inimigo devia, nessa mesma noite, voltar a pé a
Corte com seus dois padrinhos de casamento.
Eles seguiam o caminho cantando, quando Saint-Lucie
surgiu diante deles e, olhando de frente o assassino, gritou:
—Chegou a hora!
Em seguida, à queima-roupa, varou-lhe o peito.
Um dos rapazes fugiu. O outro olhava o moço,
repetindo:
—Que fizeste, Saint-Lucie?
Depois ele tentou correr em direção a Corte para
trazer socorro, mas Saint-Lucie lhe gritou:
—Se deres um passo, quebro-te a perna.
O outro, sabendo-o até então tímido, disse-lhe:
—Tu não ousarias!
E seguiu. Mas logo caiu com a coxa atingida por uma
bala.
E Saint-Lucie, aproximando-se dele, disse:
—Vou examinar teu ferimento. Se não for grave,
deixar-te-ei aí; se for mortal, liquidar-te-ei.
Observou a ferida, julgou-a mortal, tornou a carregar
lentamente a sua arma, convidou o ferido a fazer uma
oração e, em seguida, estraçalhou-lhe o crânio.
No dia seguinte, ele foi para a montanha.
E sabe o que fez depois, este Saint-Lucie?
Toda a sua família foi presa pelos soldados de polícia.
Seu tio, o cura, que se tornou suspeito de o haver incitado à
vingança, foi preso e acusado pelos parentes do morto. Mas
ele fugiu, pegou também uma arma e foi ao encontro de
seu sobrinho no maqui.
Então, Saint-Lucie matou, um por um, os acusadores
de seu tio, e lhes arrancou os olhos para ensinar aos outros
a nunca afirmar o que eles não vissem com seus próprios
olhos.
Ele matou todos os parentes, todos os aliados da
família inimiga. Massacrou quatorze gendarmes, incendiou
as casas de seus adversários e foi, até sua morte, o mais
terrível dos bandidos de que há memória.

O sol desaparecia atrás do Monte Cinto e a grande


sombra da montanha de granito se estendia sobre o granito
de vale. Apressávamos o passo para atingir, antes da noite,
a pequena aldeia de Albertase, espécie de monte de rochas
soldadas aos flancos de pedra do desfiladeiro selvagem. E
eu disse, pensando no bandido:
—Que terrível costume o de vossa vendetta.
Meu companheiro respondeu com resignação:
— Que queres? Cumprimos o nosso dever!
O LOBO
Eis o que nos narrou o velho Marquês d’Arville, ao fim
de um jantar em Saint-Hubert, na casa do Barão de Ravels.
Havíamos caçado um cervo durante o dia. O marquês
era o único hóspede que não havia participado da caçada,
porquanto jamais o fazia.
Durante toda a longa refeição, somente se falara do
abate de amimais. Até mesmo as mulheres se interessavam
pelas histórias sangrentas e muitas vezes inverossímeis. E
os narradores gesticulavam, reproduzindo os ataques e
combates dos homens contra os animais. Levantavam os
braços e narravam os fatos com vozes trovejantes.
O Sr. d’Arville falava bem, com alguma poesia enfática,
repleta de efeitos. Deveria ter repetido muitas vezes a
mesma história, pois a contava fluentemente, sem qualquer
hesitação nas palavras habilmente escolhidas para
representar as imagens.
— Senhores, eu nunca cacei. Nem meu pai, o meu avô
ou o meu bisavô. Este último era filho de um homem que
caçou mais que todos vocês juntos. Ele morreu em 1764. Eu
lhes direi como foi.
Seu nome era Jean, era casado, pai dessa criança que
era o meu bisavô, e morava com o seu irmão mais novo,
François d’Arville, em nosso castelo na floresta de Lorraine.
Françoise D’Arville permanecera solteiro por amor à
caça.
Eles caçavam o ano inteiro, sem descanso, sem
interrupção, sem cansaço. Amavam apenas isso, nada
sabiam além da caça, só dela falavam e somente para ela
eles viviam.
Tinham no coração essa terrível e inexorável paixão,
que os consumia, invadia-os completamente, não deixando
espaço para mais nada.
Haviam proibido que os perturbassem durante a caça,
fosse qual fosse o motivo. Meu bisavô nasceu quando o pai
perseguia uma raposa, e Jean d’Arville não interrompeu a
sua corrida, praguejando:
— Diabos! Este patife bem poderia ter esperado pelo
toque de vitória depois de acuado o animal!
O seu irmão François exibia-se ainda mais empolgado
que ele. Assim que se levantava, ia ver os cães, depois os
cavalos e, em seguida, atirava nas aves que voavam ao
redor do castelo até o instante em que deveria partir para
caçar um animal de porte.
Eram chamados na região de Sr. Marquês e Sr. Caçula,
porquanto os nobres daquela época não eram como os de
nossos dias, que pretendem estabelecer os títulos
nobiliárquicos em hierarquia descendente; mas o filho de
marquês não é conde, e nem o filho de um visconde é
barão, da mesma forma que o filho de um general não é
coronel por nascimento. Mas a vaidade mesquinha de
nossos tempos tira proveito desse arranjo.
Mas volto aos meus antepassados.
Ao que consta, eram eles extremamente altos,
ossudos, cabeludos, violentos e vigorosos. O caçula, ainda
mais alto que o irmão, tinha uma voz tão poderosa que,
segundo uma lenda da qual ele se orgulhava, todas as
folhas da floresta se agitavam quando ele gritava.
E quando montavam nas selas para irem à caça,
deveria ser um soberbo espetáculo contemplar esses dois
gigantes cavalgando em seus grandes cavalos.
Ora, em meados do inverno desse ano de 1764, o frio
era excessivo e os lobos tornaram-se ferozes.
Eles atacavam os camponeses retardatários,
rondavam à noite em torno das casas, uivavam ao pôr e ao
nascer do sol e deixavam os estábulos despovoados.
E logo circulou um rumor. Falava-se de um colossal
lobo de pelo cinza, quase branco, que havia comido duas
crianças, devorado o braço de uma mulher, estrangulado
todos os cães de guarda da região e que penetrava nos
campos cercados para farejar sob as portas. Todos os
moradores disseram ter sentido o seu hálito, que fazia
tremer as chamas das velas. E logo o pânico grassou toda a
província. Ninguém mais ousava sair de casa depois do
crepúsculo. As trevas pareciam povoadas da imagem da
besta.
Os irmãos d’Arville resolveram encontrar e matar o
animal, e convidaram os senhores da região para uma
grande caçada.
Foi em vão. Por mais que percorressem as florestas e
esmiuçassem as matas, nunca o encontravam. Mataram
outros, mas não aquele lobo. E toda as noites, após a
caçada, o animal, como que por vingança, atacava algum
viajante ou devorava algumas reses, e sempre em locais
bens distantes daquele em que o haviam procurado.
Por fim, numa noite, ele entrou no celeiro de porcos do
castelo de Arville e comeu os dois mais cevados.
Os dois irmãos ficaram inflamados de ódio,
considerando esse ataque como uma bravata do monstro,
um insulto direto, um desafio. Eles reuniram todos os seus
sabujos, fortes e habituados a perseguir feras formidáveis, e
encetaram a caçada com o coração repleto de cólera.
Desde o amanhecer à hora em que o sol carmesim se
pôs atrás das árvores nuas, eles percorreram os bosques,
sem nada encontrar.
Os dois, enfim, furiosos e desolados, regressaram, aos
passos de seus cavalos, por uma vereda orlada de silvas,
admirados de sua ciência ter sido burlada pelo lobo, e
tomados por uma espécie de temor misterioso.
O mais velho disse:
—Esse animal não é comum. Parece que ele pensa
como um homem.
O mais jovem respondeu:
— Talvez devêssemos mandar benzer uma bala pelo
nosso primo bispo ou rogar a um padre que pronuncie as
palavras adequadas.
Então, ficaram em silêncio.
Jean continuou:
— Olhe para o sol. Veja como está vermelho. O grande
lobo irá causar algum infortúnio esta noite.
Ele mal tinha acabado de falar quando o seu cavalo
empinou e o de Françoise começou a escoicear. Uma grande
touceira forrada de folhas mortas abriu-se à frente deles e
um colossal animal, todo cinza, surgiu e fugiu através da
floresta.
Ambos soltaram uma espécie de grunhido de alegria e,
inclinando-se sobre o pescoço de seus pesados cavalos,
lançaram-nos para frente com um impulso de todo o corpo,
impondo-lhes um tal ritmo acelerado — excitando-os,
incitando-os, enlouquecendo-os com a voz, os gestos e as
esporas — que os fortes cavaleiros pareciam conduzir os
pesados animais com as coxas, como se estivessem
voando.
Iam, portanto, a toda velocidade, atravessando a
mata, cortando as ravinas, galgando as encostas, descendo
as gargantas e tocando a trompa com os plenos pulmões
para atrair suas gentes e seus cães. E, de repente, nesta
corrida frenética, o meu antepassado bateu com a cabeça
num enorme galho que lhe rachou o crânio. E caiu morto no
chão, enquanto o seu cavalo fugia em pânico,
desaparecendo na escuridão que envolvia a floresta.
O mais jovem dos Arville parou prestamente, saltou ao
chão, tomou o irmão nos braços e viu que o cérebro fluía da
ferida, juntamente com o sangue.
Então se sentou ao lado do corpo, repousou a cabeça
vermelha e desfigurada sobre os joelhos e esperou,
contemplando a face imóvel do irmão mais velho.
Paulatinamente, o temor o invadia, um medo singular, que
jamais sentira antes: o medo da escuridão, o medo da
solidão, o medo da floresta desolada e também o medo do
fantástico lobo que acabara de matar seu irmão por pura
vingança.
As trevas adensavam, o agudo frio fazia ranger as
árvores. Françoise se levantou, tremendo, incapaz de
permanecer ali por mais tempo, sentindo-se quase a
desmaiar. Nada mais se ouvia, nem a voz dos cães, nem o
som das trompas. Tudo estava silencioso no horizonte
invisível. E esse tépido silêncio da noite fria tinha algo de
assustador e estranho.
Então tomou em suas mãos enormes o corpanzil de
Jean e colocou-o na sela para levá-lo ao castelo. Depois,
pôs-se lentamente a caminho, com a mente perturbada,
como se estivesse embriagado, perseguido por imagens
terríveis e surpreendentes.
De repente, no caminho que a noite começava a
invadir, passou um grande vulto. Era a fera. Um choque de
pavor sacudiu o caçador. Algo frio, como uma gota d’água,
deslizou ao longo de seus rins e ele, como um monge
atormentado pelo diabo, fez um grande sinal da cruz,
perturbado pelo repentino retorno do vagamundo
assustador. Mas seus olhos caíram sobre o corpo sem vida
deitado à sua frente e, de súbito, passando abruptamente
do medo à cólera, estremeceu, dominado por uma ira
descontrolada.
Esporeou, então, o cavalo e arremeteu contra o lobo.
Ele o perseguiu pelas matas, ravinas e bosques,
atravessando a floresta que já não reconhecia, os olhos
fixos na mancha branca que fugia na noite a descer sobre a
terra.
Seu cavalo parecia também animado por uma força e
um ardor desconhecidos. Avante, ele galopava de pescoço
esticado, batendo nas árvores e nas rochas, com a cabeça e
os pés do morto atravessado na sela. As silvas arranhavam-
lhe os pelos. A testa, chocando-se com os troncos enormes,
borrifava o sangue nos galhos. As esporas extraíam pedaços
de casca das árvores.
E, de repente, o animal e o cavaleiro saíram da floresta
a toda carreira, mergulhando num pequeno vale, no
momento em que a lua surgia sobre os morros. Era um vale
pedregoso, fechado por enormes rochas, sem saída
possível. E o lobo, encurralado, virou-se para ele.
Então Françoise emitiu um brado de alegria, que os
ecos repetiram como o estrondo de um trovão. Ele saltou do
cavalo com a faca na mão.
A fera, eriçada, de costado arqueado, aguardava-o.
Seus olhos reluziam como duas estrelas. Mas, antes de
lançar-se ao combate, o forte caçador, tomando o irmão,
sentou-o numa rocha e, firmando nas pedras a cabeça que
não era senão uma mancha de sangue, gritou-lhe aos
ouvidos, como se falasse com um surdo:
— Jean, olhe! Veja isto!
Em seguida, ele se lançou contra a fera. Sentia-se
suficientemente forte para derrubar uma montanha e
esmigalhar pedras com as mãos. A fera tentou mordê-lo,
buscando cravar os dentes em seu ventre. Mas ele a tinha
agarrado pelo pescoço, mesmo sem o emprego de armas, e
a estrangulava lentamente, ouvindo cessar a respiração na
garganta e as batidas do coração. Ele ria, num desfrute
desvairado, aumentando cada vez mais a pressão
sufocante, gritando num delírio de alegria:
— Olhe, Jean! Olhe!
Toda resistência do animal cessou. O corpo do lobo
tornou-se flácido. Estava morto.
Então Françoise tomou-o nos braços, carregou-o e o
depôs aos pés do morto, a repetir, com a voz emocionada:
— Olhe, olhe, olhe, meu pequeno Jean! Ei-lo aqui!
Então colocou sobre a sela os cadáveres, um sobre o
outro, e retomou o caminho.
E retornou ao castelo, rindo e chorando, como
Gargântua no nascimento de Pantagruel[3], dando gritos de
triunfo e pulando de alegria ao narrar a morte do animal, e
gemendo e arrancando as barbas, ao narrar a do irmão.
E muitas vezes, mais tarde, quando se lembrava desse
dia, proclamava, com lágrimas nos olhos:
— Se pelo menos Jean tivesse me visto a estrangular o
outro, tenho certeza que teria morrido feliz.
A viúva de meu antepassado incutiu no seu filho órfão
o horror pela caça, que se transmitiu de pai para filho, até
chegar a mim.
O Marquês d’Arville se calou. Alguém perguntou:
— Essa história é uma lenda, não?
O narrador respondeu:
— Eu lhes juro que é de todo verdadeira.
Então disse uma mulher, com uma vozinha suave:
— Dá no mesmo: é bom ter semelhantes paixões.
NO MAR
Há pouco tempo, liam-se nos jornais as seguintes
linhas:

“Boulogne-sur-Mer, 22 de janeiro ―Escrevem-nos:


Uma desgraça horrível acaba de consternar a nossa
população marítima, tão perseguida pelo infortúnio
há dois anos. O barco de pesca comandado pelo
mestre Javel, ao entrar no porto, foi arremessado
para Oeste, indo despedaçar-se nos rochedos do
quebra-mar do molhe.
Apesar dos esforços do salva-vidas e dos cabos
arremessados por meio do canhão de amarra,
pereceram quatro homens e o grumete.
O mau tempo continua. Receiam-se novos
acidentes.”

Quem é este Mestre Jarvel? Será o irmão do


amputado?
Será o pobre homem arrebatado pelas ondas e morto,
provavelmente, sob os destroços de seu barco
despedaçado, aquele que, suponho, assistiu, faz agora
dezoito anos, a outro drama, terrível e simples como
sempre são estes dramas formidáveis do mar?
O mais velho dos irmãos Javel era, neste tempo, dono
de uma traineira.
A traineira é o barco de pesca por excelência. Sólida a
ponto de arrostar com qualquer tempo, com o casco
arredondado, constantemente balouçado pelas ondas como
uma rolha de cortiça, sempre à flor da água, sempre
açoitado pelos ventos ásperos e salinos da Mancha, revolve
o mar, infatigável, com a vela a todo pano, arrastando ao
lado uma grande rede que varre o fundo do oceano, que
desprende e agarra todos os peixes adormecidos nas
rochas, os peixes chatos colados à areia, os caranguejos
pesados de patas reviradas, as lagostas de barbas finas e
agudas.
Quando a brisa refresca e as ondas são pequenas,
começa-se a pescar. A rede está pregada a uma haste de
madeira guarnecida de ferro, a qual desce por meio de dois
cabos que escorregam sob dois rolos colocados nas duas
extremidades da embarcação. Esta, impelida pelo vento e
pela corrente, puxa consigo aquele aparelho que devasta o
fundo do mar.
Javel leva a bordo o irmão mais novo, quatro homens e
um grumete. Saíra de Bolonha com um belo tempo claro
para lançar a rede.
Ora, não tardou que se erguesse uma grande ventania,
sobrevindo uma borrasca que obrigou a traineira a fugir.
Alcançou as costas da Inglaterra. Mas o mar furioso açoitava
os rochedos, atirava-se à terra, tornava impossível a
entrada nos portos. O barquinho fez-se ao largo e voltou
para as costas da França. A tempestade tornava os molhes
inabordáveis, envolvendo em espuma, em barulho e em
perigo todas as proximidades dos refúgios.
A traineira tornou a partir, correndo por cima das
ondas, balouçada, agitada, escorrendo água, vergastada
pelos rolos de espuma, mas valente, apesar de tudo,
acostumada àquele que às vezes a conservava cinco ou seis
dias errante entre os dois países vizinhos, sem conseguir
aportar em nenhum.
Finalmente, a tempestade abrandou quando estavam
em alto mar e, não obstante as ondas serem ainda mais
fortes, o mestre mandou deitar a rede.
O grande aparelho de pesca foi, portanto, lançado por
cima da borda e dois homens na proa e dois na popa
começaram a deixar cair por cima dos rolos as amarras que
os seguravam. De repente, tocou no fundo. Mas, a uma
onda maior, fazendo inclinar o barco, o mais novo dos Javel,
que estava na proa e comandava a descida da rede, vacilou
e o braço ficou-lhe preso entre a corda, que o abalo fizera
alargar um instante, e o rolo de madeira por onde ela
escorregava. Fez um esforço desesperado, tentando
levantar a amarra com a outra mão. A rede, porém, já
arrastava e o cabo retesado não cedeu.
O homem, crispado de dor, gritou.
Todos acudiram. O irmão largou a cana do leme.
Atiraram-se à corda, diligenciando soltar o membro que ela
triturava. Foi debalde.
― Devemos cortá-la ― disse um marujo.
E tirou do bolso uma grande faca que, em dois golpes,
podia salvar a vida do Javel caçula.
Mas cortar era perder a rede, que valia muito dinheiro:
mil e quinhentos francos. E a corda pertencia ao irmão mais
velho, que se empenhava em salvar a sua propriedade.
― Não cortes, não cortes, espera! ― gritou ele com o
coração torturado. ― Espera!
E correu para o leme, pondo a barra toda abaixo.
O barco mal obedeceu, paralisado por aquela rede que
lhe imobilizava o impulso, e arrastado, além disso, pela
força do vento e da corrente.
O Javel mais novo deixara-se cair de joelhos, com os
dentes cerrados, o olhar desvairado. Nada dizia. O irmão
voltou, temendo sempre a faca de algum marinheiro.
― Espera, não cortes. Vamos lançar âncora.
Lançou-se a âncora, largando-se a corrente toda. Em
seguida, o mestre Javel virou-se para o cabrestante a fim de
alargar as amarras.
Estas, ao final, cederam, e saltou-se o braço inerte,
dentro da manga de lã ensanguentada.
O Javel caçula parecia idiota. Despiram-lhe a camisa e
viram uma coisa horrível, uma massa de carne de onde o
sangue esguichava em ondas como se fosse lançado por
uma bomba. Ele, então, olhou para o braço e murmurou:
― Pronto.
A hemorragia formava um lago na tolda do barco. Um
marujo gritou:
― Vai esvair-se. É preciso atar a veia.
Pegaram um cordel, um grosso cordel escuro e untado
em alcatrão e, enlaçando o membro, por cima da ferida,
apertaram com toda força. Os jatos de sangue diminuíram
pouco a pouco. Acabaram por cessar completamente.
O Javel caçula ergueu-se. O braço pendia-lhe ao longo
do corpo. Ele segurou-o com a outra mão, levantou-o, virou-
o, sacudiu-o. Tudo estava partido. Os ossos, esmigalhados.
Apenas os músculos seguravam aquele pedaço de seu
corpo. Ele contemplava-o com o olhar triste, refletindo.
Depois, sentou-se em cima de uma vela dobrada, e os
camaradas aconselharam-no a que molhasse
constantemente a ferida para evitar o mal negro .[4]

Puseram um balde ao seu lado e ele, de minuto em


minuto, enchia um copo e banhava a ferida hedionda,
deixando correr sobre ela um fio d’água clara.
―Ficarias melhor lá embaixo ― disse-lhe o irmão.
Ele desceu, mas, passada uma hora, retornou. Não se
sentia bem sozinho. Além disso, preferia o ar livre. Tornou a
sentar-se na vela e continuou a lavar o braço.
A pesca era proveitosa. Ao lado dele jaziam grandes
peixes de ventre branco, agitados por convulsões mortais.
Javel contemplava-os sem deixar de regar as carnes
esmigalhadas.
Quando iam chegar a Bolonha, levantou-se outro
tufão. E o barquinho recomeçou a sua carreira louca,
saltando e voltando-se para todos os lados, sacudindo o
pobre ferido.
Anoiteceu. O tempo esteve bravio até o amanhecer. Ao
nascer do sol, avistou-se novamente a Inglaterra. Mas,
como o mar estava mais suave, partiram para a França,
bordejando.
À tarde, o Javel mais novo chamou os camaradas e
mostrou-lhes sinais negros, uma feia aparência de podridão
na parte do membro que pendia.
Os marujos olhavam, dando cada um a sua opinião.
Viraram o membro. Cheiraram-no.
Disse o irmão:
― O melhor, agora, é jogar isto ao mar.
Mas o mais novo zangou-se:
― Ah, isso é que não! Não quero! É o meu braço e, a
meu ver, ele me pertence!
Pegou o braço e o segurou entre as pernas.
― Nem por isso deixará de apodrecer ―respondeu o
mais velho.
Então o ferido teve uma ideia. Para conservar o peixe,
quando o traziam muito tempo no mar, empilhavam-no em
barricas de sal.
― Não é possível metê-lo na salmoura? ―perguntou
ele.
― Sim, é possível ―declararam os outros.
Despejaram uma das barricas, já cheia com a pesca
dos dias antecedentes; e puseram o braço mesmo no fundo.
Deitaram-lhe sal por cima e tornaram a colocar os peixes,
um por um.
Um dos marujos soltou o seguinte gracejo:
― O diacho é se a gente o vende no mercado.
Todos riram, exceto os irmãos.
O vento continuava. Bordejou-se ainda à vista de
Bolonha até o dia seguinte. O ferido continuava a deitar
água na ferida, sem cessar.
― É provável que seja o negro ―dizia um.
― É preciso deitar água salgada ― declarava outro.
Foram buscar água salgada e entornaram-na por cima
da chaga. O ferido ficou lívido, rangeu os dentes, torceu-se
um pouco, mas não gritou.
Depois, quando o ardor abrandou mais, disse ao irmão:
― Dá cá a faca.
O irmão estendeu a faca.
― Segura-me o braço no ar, bem esticado, e não
largues.
Fizeram-lhe o que pedia.
Ele, então, começou a cortar. Cortava devagar, com
reflexão, separando os últimos tendões com aquela lâmina
aguda como a de uma navalha afiada. Pouco depois,
restava-lhe apenas um coto. Saltou um suspiro profundo e
declarou:
― Foi preciso. Eu estava numa situação terrível.
Parecia aliviado e respirava com força. Começou outra
vez a regar o pedaço de membro que lhe restava.
A noite foi péssima e não puderam chegar à terra.
Quando rompeu o dia, o jovem Javel pegou o braço
amputado e o examinou atentamente. A putrefação fazia-se
evidente. Os camaradas foram também examiná-lo e o
passavam de mão em mão. Apalpavam-no. De vez em
quando, o jovem Javel levantava-se e passeava pelo barco
de um lado para o outro.
O irmão, que segurava a barra do leme, seguia-o com
a vista, abanando a cabeça.
Acabaram por entra no porto.
O médico examinou a ferida e declarou-a em bom
caminho. Fez um curativo completo e ordenou ao ferido que
descansasse. Javel, porém, não quis deitar-se sem pegar
novamente o braço e voltou ao porto a fim de descobrir a
barrica, que marcara com uma cruz.
Despejaram-na diante dele e entregaram-lhe o
membro, bem conservado na salmoura, enrugado,
refrescado. Javel o embrulhou numa toalha que levara para
esse fim e voltou para casa.
A mulher e os filhos examinaram demoradamente
aquele pedaço do pai, apalpando os dedos, tirando as
pedrinhas de sal metidas nas unhas. Depois mandaram
chamar o marceneiro, que tomou as medidas de um
caixãozinho.
No dia seguinte, a tripulação completa da traineira
acompanhou o enterro do braço decepado. Os dois irmãos,
um ao lado do outro, guiavam o cortejo. O sacristão da
paróquia levava o cadáver debaixo do braço.
O Javel mais novo deixou de navegar. Obteve um
humilde emprego no porto e quando, mais tarde, falava
naquele acidente a alguém, dizia-lhe confidencialmente, em
voz baixa:
― Se o meu irmão tivesse deixado cortar a rede, eu
ainda teria o meu braço, com toda certeza. Mas ele só
enxergava os seus pertences.
A MORTA
Eu a amei perdidamente! E por que amamos? É mesmo
estranho ver no mundo somente um ser, ter no espírito um
pensamento único, no coração um desejo, na boca um só
nome: um nome que se eleva incessantemente, que sobe,
como a água de uma fonte, do íntimo da alma à flor dos
lábios, e que se pronuncia, que se repete, que se murmura
continuamente, por toda parte, como uma prece elegíaca.
Não contarei nossa história. O amor tem só uma, a
mesma de sempre. Encontrei-a na vida e amei-a. Eis tudo. E
durante um ano vivi de sua carícia, no aconchego de seus
braços, embalado por sua voz, iluminado por seu olhar,
aprisionado, envolvido, ligado a tudo que emanava de seu
ser, mas de tal maneira que não sabia quando era tarde ou
aurora, que ignorava se era morto ou vivo, sobre a terra ou
fora da terra...
E ela morreu!
Como? Não sei mais!
Ela saiu numa noite chuvosa e retornou encharcada; e,
no outro dia, tossiu. Tossiu por uma semana, de cama.
O que aconteceu? Não sei mais.
Os médicos chegavam, receitavam, partiam... Vinham
remédios e uma mulher os ministrava. Suas mãos ardiam. A
sua fronte estava úmida e quente. Tinha um olhar brilhante
e triste. Eu falava com ela, ela me respondia. O que
dissemos um ao outro? Não sei mais! Esqueci tudo, tudo!
E ela morreu... Lembro-me ainda de seus suspiros, tão
fracos, os últimos. A enfermeira murmurou apenas — “Ah!”.
E eu compreendi, compreendi tudo!
Não soube de mais nada. Nada! Ouvi um padre dizer:
“sua amante”. Parecia que a insultava. Pois já que ela
morrera, ninguém mais tinha o direito de saber disto. Eu o
mandei embora. Veio um outro, muito bom, muito meigo.
Eu chorei quando ele me falou sobre ela.
Consultaram-me a respeito de mil coisas relativas ao
enterro. Não sei mais de nada. Entretanto, recordo-me tão
bem do caixão, do ruído das marteladas, de quando a
encerraram lá dentro!...
E ela foi enterrada! Enterrada! Ela, numa cova!
Vieram poucas pessoas, alguns amigos. Fugi. Saí a caminhar
muito tempo pelas ruas. Depois voltei para casa. No outro
dia, viajei.
Retornei hoje a Paris.
Quando revi o meu quarto — o nosso quarto, o nosso
leito, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara, tudo o
que resta de uma vida após a morte — apoderou-se de mim
uma mágoa tão intensa que tive necessidade de escancarar
as janelas e precipitar-me na rua. Não podia viver no meio
dessas coisas, dessas paredes que a encarceraram, e que
deviam conservar ainda, em suas fissuras imperceptíveis,
átomos dela, da sua carne, do seu hálito. Pus o chapéu para
sair. De repente, ao transpor a porta, passei pelo grande
espelho do vestíbulo, que ela mandara instalar ali para se
ver todos os dias, de alto a baixo, para ver se estava bem
vestida, correta e elegante, das botinas ao arranjo dos
cabelos.
E me detive diante desse espelho que tanta vez a
tinha refletido. Tantas vezes que ainda devia guardar a sua
imagem. Imóvel, trêmulo, fixei os olhos no vidro liso,
profundo, vazio, que encerrara ela toda, que a possuíra
tanto como eu, como o meu olhar apaixonado... Parecia que
esse vidro nunca fora frio! Quanta saudade!
Saudade! Espelho doloroso e ardente, espelho vivo e
horrível que me faz sofrer tantas torturas! Felizes dos
homens cujo coração, como num espelho em que reflexos
deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o
que se passou diante dele, tudo o que se contemplou em
sua aflição e no amor!
Saí torturado e, alheado de mim mesmo, sem desejar,
sem o saber, pus-me a caminho do cemitério. Achei o seu
muito singelo túmulo, na simplicidade de uma cruz de
mármore com algumas palavras:

“Amou, foi amada e morreu”.

Ela estava ali, ali embaixo, putrefeita. Que horror! Eu


chorava, soluçava, à luz de um sol de tarde.
E assim fiquei muito tempo, muito tempo. Depois olhei
em torno: uns farrapos de noite enlutavam o espaço. Então,
um desejo bizarro, louco, um desejo de amante, desvairado,
tomou-me avidamente. Quis passar a noite junto dela, a
noite última, a chorar em seu túmulo.
Mas me veriam. Iriam me expulsar. Que fazer? Ergui-
me e comecei a errar pela cidade morta dos desaparecidos.
E eu andava, andava... Como é pequena esta cidade,
comparada à outra, à outra onde vivemos. Todavia, como os
mortos são mais numerosos do que os vivos! Precisamos de
altas construções, ruas enormes, tanto lugar para as quatro
gerações que, ao mesmo tempo, enxergam a luz do sol,
bebem água da fonte, o vinho das vinhas e comem o trigo
dos campos.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a
escala da humanidade vinda até nós — quase nada —, um
pedaço de chão... quase nada! A terra se apodera deles, o
esquecimento apaga lembranças dos seus rostos. Adeus.
Ao fim do cemitério habitado vi, de repente, o
cemitério em abandono, onde os defuntos, ressequidos de
velhos, acabam por se confundir com o solo, onde as
próprias cruzes apodrecem e onde serão amanhã
enterrados os que vierem por último. Viceja de rosas
silvestres, de ciprestes vigorosos e negros, um jardim triste
e magnífico, nutrido de carne humana.
Estava só, inteiramente só. Apoiei-me a uma árvore
verde. Escondi-me entre as suas ramagens pesadas e
sombrias e esperei, agarrado ao tronco, como um náufrago
sobre destroços.
*

Quando baixou a noite escura, muito escura, deixei


meu refúgio e comecei a caminhar mansamente, a passos
lentos e surdos, sobre essa terra cheia de mortos.
Andei a esmo muito tempo, muito tempo. Não a
encontrava. De braços estendidos, olhos escancarados,
tateando as catacumbas com as mãos, com os joelhos, com
o peito, errava sem a encontrar. Tocava, apalpava, como um
cego à procura de um caminho, apalpava lajes, cruzes,
grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores mutiladas.
Tateava nomes, com meus dedos, correndo-os sobre as
letras. Que noite! Que noite!
Nem uma réstia de luar! Que noite! Tive medo, um
pavor alucinante, nesses caminhos estreitos, entre as
fileiras de túmulos! Túmulos! Túmulos, sempre túmulos! À
minha volta, além, mais além, por toda a parte, túmulos!
Sentei-me sobre uma sepultura. Não podia mais andar,
porque meus joelhos vergavam de exaustos. Ouvia o meu
coração bater. Ouvia outro ruído, também. O que era? Um
ruído confuso, inexplicável. Vinha esse ruído no meu
cérebro alucinado, da noite impenetrável, ou da terra
misteriosa, adubada de cadáveres humanos? Olhei ao redor.
Quanto tempo fiquei assim? Não sei. Estava paralisado
pelo terror, desvairado de espanto, quase a desfalecer,
quase a morrer.
De súbito, tive a impressão de que a laje da tumba em
que eu me sentara se movia. Movia-se como se alguém a
levantasse. De um salto, precipitei-me sobre o túmulo
próximo e vi, sim, eu vi a pedra erguer-se lentamente e
surgir um esqueleto nu, que a empurrava com os ombros.
Via muito bem, via tudo, não obstante a escuridão da hora.
Pude ler sobre a cruz:
“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos.
Amou os seus, foi bom e honesto e morreu na paz do
Senhor”.

Agora o morto lia também as coisas gravadas na


lápide tumular. Tomou depois uma pedra pontiaguda e pôs-
se a raspar com cuidado o epitáfio. Apagou-o lentamente,
cravando a órbita vazia no lugar em que estava escrito. E
com a ponta do osso que fora o seu indicador, escreveu em
letras luminosas, com estas linhas que as crianças riscam
na parede com um pirilampo vivo:

“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos.


Abreviou com crueldade os dias de seu pai, de quem
desejava herdar, maltratou a esposa, atormentou seus
filhos, traiu seus vizinhos, roubou quanto pôde e morreu
miserável”.

Terminando, o morto ficou a contemplar a sua obra. E


eu vi, voltando-me, que todos os túmulos se abriam, que
todos os cadáveres os deixavam, que todos apagavam as
lisonjas, escritas pelos parentes na pedra funerária, para
restabelecer a verdade.
E vi que todos tinham sido carrascos do próximo,
odiosos, hipócritas, mentirosos, caluniadores, invejosos, e
que haviam roubado, traído, praticado os atos mais
vergonhosos, mais abomináveis, todos estes bons pais,
estes maridos fiéis, estes filhos dedicados, estas donzelas
castas, estes comerciantes probos, estes homens e estas
mulheres irrepreensivelmente honestos.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no pórtico de sua
morada eterna, a cruel, a terrível, a santa verdade que os
vivos sobre a terra ignoravam ou fingiam ignorar.
Lembrei-me de que ela devia também riscar a sua
legenda.
Já sem medo algum, correndo por entre as covas
abertas, por entre os cadáveres, precipitei-me para onde
com certeza a encontraria.
E sobre a cruz de mármore, onde antes se lera: “Amou,
foi amada e morreu”, vi agora:

“Saindo um dia para trair o seu amante, adoeceu sob a


chuva e morreu”.

Parece que, ao raiar do dia, levaram-me inanimado da


beira do túmulo.
O CEGO
Que alegria é esta, que nos vem do primeiro sol? Por
que será que esta luz que cai sobre a terra nos enche de
felicidade, de alegria pela vida?
O céu está todo azul, o campo todo verde, as casas
todas brancas. E os nossos olhos encantados bebem as
cores vivas que se tornam a alegria de nossa alma.
E temos a vontade de dançar, de correr, de cantar...
uma ligeireza feliz do pensamento, uma espécie de ternura
larga... e tem-se até a vontade de beijar o sol.
Os cegos às portas, impassíveis na sua eterna
escuridão, ficam calmos como sempre no meio desta alegria
nova, e sem compreender, acalmam a todo o instante o seu
cão que quer pular.
Quando voltam, no fim do dia, pelo braço de um
irmãozinho, ou de uma irmãzinha, se a criança diz: “Que
lindo esteve hoje!”, o cego responde: “Eu bem notei que o
tempo devia estar lindo. Loulou não queria ficar quieto.”
Conheci um destes homens, cuja vida foi um longo
martírio.
Era um camponês, filho de um agricultor normando.
Enquanto os pais viveram, sempre cuidavam dele. Ele não
sofria, senão por causa de sua horrível enfermidade.
Mas assim que os velhos partiram, a existência atroz
começou.
Recolhido por uma irmã, toda gente na quinta o
tratava como um vagabundo, que comia o pão dos outros.
Em cada refeição, censuravam-lhe e notavam o que
comia. Chamavam-no de vadio, patife. E apesar de seu
cunhado ter tomado conta de sua parte na herança, davam-
lhe sempre de má vontade a sopa, apenas o alimento
necessário para não morrer de fome.
Ele tinha o rosto muito pálido e permanecia impassível
sob a injúria, tão concentrado que não sabiam se realmente
a sentia.
Nunca, no entanto, tinha conhecido um caminho. Sua
mãe, tendo-o sempre tratado um pouco brutalmente, não o
estimava muito. Nos campos, os desocupados são
prejudiciais e os camponeses fazem de boa vontade como
com as galinhas, que matam as doentes que estão juntas.
Logo que tomava a sua sopa, ia sentar-se diante da
porta no estio, contra a chaminé no inverno, e não se mexia
mais até à noite.
Não fazia um gesto, um movimento. Só as pálpebras
batiam, e, com uma espécie de sofrimento nervoso, caíam
as neves sobre as manchas brancas de seus olhos abertos.
Teria um espírito? Um pensamento? Uma consciência
justa do que era a sua vida? Ninguém lhe perguntava isto.
Durante anos, as coisas foram assim.
Mas a sua incapacidade de fazer alguma coisa e sua
imobilidade acabaram por exasperar os parentes. Tornou-se
alvo de todo escárnio, uma espécie de palhaço mártir, uma
pureza entregue à ferocidade e à alegria dos brutos que o
rodeavam.
Imaginem todas as farsas cruéis que a sua
enfermidade podia inspirar.
E para se pagarem do que ele comia, fizeram das suas
refeições divertimento para os vizinhos e suplício para o
impotente.
Os camponeses das casas próximas vinham gozar este
divertimento. E chamavam-se de porta em porta, de
maneira que a cozinha da granja enchia-se todos os dias.
Ora pousavam sobre a mesa, diante do seu prato,
onde começava a tomar o caldo, algum gato ou cachorro.
O animal, com seu instinto, sentia a enfermidade do
homem e, bem devagar, aproximava-se, comia sem
barulho, lambendo com delicadeza. E quando o barulho da
língua do animal chamava a atenção do pobre cego, o
animal afastava-se prudentemente, a fim de evitar a
pancada que com a colher ele lhe dava ao acaso.
Então era uma alegria geral, risos, empurrões de
espectadores apertados junto das paredes. E ele, sem dizer
nada, punha-se a comer com a mão direita, enquanto com a
esquerda estendida, protegia e defendia o seu prato.
Outras vezes, faziam-no mastigar rolhas, madeira,
folhas, ou mesmo substâncias pouco limpas, que ele não
podia reconhecer.
Depois, cansaram-se até das caçoadas, e o cunhado
furioso de alimentá-lo sempre, batia-lhe, esbofeteava-o sem
cessar, rindo dos esforços inúteis do outro para aparar os
golpes ou restituí-los.
Foi então um novo divertimento: a brincadeira da
bofetada.
E o moço das charruas, os vadios, os criados,
mandavam-lhe as mãos pelo rosto por qualquer coisa, o que
o fazia bater as pálpebras num movimento precipitado.
Não sabia onde esconder-se e vivia, sem cessar, com
os braços estendidos para evitar que se chegassem.
Enfim, obrigaram-no a mendigar.
Postavam-no nos caminhos em dias de feira, e assim
que ouvia passos ou barulho de rodas, estendia o chapéu,
balbuciando:
—Por caridade, uma esmola!
Mas os camponeses não são pródigos e, durante
semanas inteiras, não arranjava um centavo.
Houve então contra ele um ódio desencadeado, sem
piedade. Eis como ele morreu.
Num inverno, a terra cobriu-se de neve e nevava
horrivelmente.
Então o cunhado, numa manhã, conduziu-o muito
longe em uma grande estrada para o fazer pedir esmola.
Deixou-o lá todo o dia, e quando à noite regressou, ele
afirmara, diante de todos, que não o tinha achado.
Depois disse:
—Ora, não vale a pena ocuparem-se com ele. Alguém
o levou porque tinha frio. Não está perdido. Amanhã
aparece para comer a sua sopa.
No dia seguinte, o cego não apareceu.
Depois de longas horas de espera, arrepiado de frio,
sentindo-se morrer, o cego pôs-se a caminho.
Não podendo conhecê-lo, coberto que estava por
aquela camada de espuma gelada, ele tinha errado ao
acaso, caindo nos buracos, levantando-se, sempre sem
falar, procurando uma casa.
Mas a paralisia da neve tinha-o invadido aos poucos, e
as pernas fracas não o podiam levar mais. Sentara-se no
meio da planície.
E não se levantou.
Os brancos flocos de neve que caíam cobriram-no
cada vez mais.
Seu corpo endurecido desapareceu sob o incessante
acúmulo da multidão infinita: e nada mais indicava o lugar
onde o cadáver estava estirado.
Seus parentes fingiram procurá-lo durante oito dias.
Até choraram.
O inverno foi medonho e a neve custou a derreter.
Ora, num domingo, indo para a missa, os agricultores
notaram um grande voo de corvos, que volteavam sem
cessar por cima da estrada. Depois, desciam como uma
chuva negra, em quantidade, no mesmo lugar, partindo,
voltando sempre.
Na semana seguinte, ainda estavam lá os pássaros
sombrios. O céu tinha uma nuvem, como se as aves
estivessem se reunido de todos os cantos do horizonte. E
deixavam-se cair com grandes gritos na neve imaculada,
que manchavam fantasticamente e esburacavam com
obstinação.
Um garoto foi ver o que faziam e descobriu o corpo do
cego, já meio devorado, despedaçado.
Seus olhos pálidos tinham desaparecido, picados por
longos bicos vorazes.
Eu não posso mais sentir a grande alegria dos dias de
sol sem uma triste recordação e um pensamento
melancólico para o pobre tão deserdado na vida, cuja morte
honrosa foi um alívio para todos que o conheciam.
CRÉDITOS
O CEGO E OUTROS CONTOS DE TERROR
Guy de Maupassant (1850 – 1893).
Texto original de domínio público (Lei nº 9.610/1998, art. 43).
Série Mestres da Literatura de Terror, Horror e Fantasia vol. 21.
Imagem da capa: Paulo Soriano.
Tradução do conto O Lobo: Paulo Soriano.
Tradução dos demais contos de autores desconhecidos dos séculos XIX e XX,
publicados originalmente nos seguintes periódicos: "Pirralho”, 21 de dezembro
de 1912; “Diário da Tarde”, Curitiba/PR, entre 31 de janeiro e 3 de fevereiro de
1905; "Almanaque Correio da Manhã", Rio de Janeiro, 1947; "A Leitura", Lisboa,
tomo VIII, 1895; "O Careta", março de 1912; Fon-Fon, setembro de 1948; A
Leitura, Lisboa, tomo I, 1894; "A Pacotilha", São Luís/MA, 29 de dezembro de
2009 e Fon-Fon, abril de 1915. Traduções de domínio público (Lei nº 9.610/1998,
art. 45, I). Atualização ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.
© da adaptação textual, introdução e notas: Paulo Soriano.
© da tradução do conto O Lobo: Paulo Soriano.

Edições TRIUMVIRATUS, MMXVII.


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O objetivo das Edições Triumviratus é levar ao leitor de língua portuguesa obras de clássicos da
literatura, sobretudo fantástica, escritas por grandes mestres da Literatura Universal. Muitos de nossos
livros eletrônicos contêm obras raras de grandes autores. As traduções são originais e exclusivas ou
de domínio público.
A Série Clássicos do Horror apresenta, a cada edição, uma antologia de contos de consagrados
autores do gênero, abrangendo determinado tema terrífico.
TÍTULOS E COLEÇÕES
SÉRIE MESTRES DA LITERATURA DE TERROR, HORROR E FANTASIA

1. A AVENTURA DO ESTUDANTE ALEMÃO — Washington Irving.


2. CONFISSÃO ENCONTRADA NUMA PRISÃO NA ÉPOCA DE CARLOS II — Charles
Dickens.
3. EL VERDUGO — Honoré de Balzac.
4. O INIMIGO seguido de UMA NOITE TERRÍVEL — Anton Tchekhov.
5. A CABEÇA DECEPADA E OUTROS CONTOS DE TERROR — Alexandre Dumas.
A cabeça decepada, A persistência da vida após a guilhotina, O bracelete de
cabelos cadavéricos.
6. O COLAR DE DIAMANTES E OUTROS CONTOS CRUÉIS — Guy de Maupassant.
O colar de diamantes, O horrível, A mão misteriosa.
7. OS FANTASMAS DE BÉJAR (Novela) — Alexandre Dumas.
8. O MONSTRO DE JERUSALÉM — José Freire Monterroio Mascarenhas.
9. OS GATOS DE ULTHAR E OUTROS CONTOS DE TERROR — H. P. Lovecraft.
Os gatos de Ulthar, O clérigo maldito, O terrível ancião.
10. AVENTURA INCOMPREENSÍVEL seguido de A APARIÇÃO — Marquês de Sade.
11. CONTOS DE FANTASMAS E DEMÔNIOS — Daniel Deföe.
O fantasma acusador, O espectro e o salteador de Estradas, O diabo e o
relojoeiro.
12. CONTOS TERRÍVEIS — Ambrose Bierce.
Óleo de cão, O habitante de Carcosa. Uma prisão, Presente a um enforcamento,
O funeral de John Mortonson.
13. O FUNIL DE COURO seguido de COMO TUDO ACONTECEU— Conan Doyle.
14. O VÉU NEGRO — Charles Dickens.
15. CONTOS DE TERROR JAPONÊS — Koizume Yakumo.
O Devorador de Cadáver, O Segredo da Morta, A Ameaça do Supliciado, A
Aparição.
16. CONTOS ABSURDOS — Franz Kafka.
O Ente Híbrido, O Abutre, O Silêncio das Sereias, O Brasão da Cidade.
17. A VERDADE SOBRE O CASO DO SENHOR VALDEMAR — Edgar Allan Poe.
18. A LENDA DA IRMÃ BÉATRIX — Charles Nodier.
19. LENORE —Gotffried August Bürger.
20. A NOIVA DE CORINTO —Johann W. Goethe.

SÉRIE CLÁSSICOS DO HORROR

1. CONTOS DE TERROR ANIMAL — H. P. Lovecraft, Victor Hugo, Horacio Quiroga


e Guy de Maupassant.
Os gatos de Ulthar (H. P. Lovecraft), A torre das ratazanas (Victor Hugo), O mel
silvestre (Horacio Quiroga), Uma vendeta (Guy de Maupassant).
2. CONTOS DE TERROR ANIMAL VOL. II — Edgar Allan Pöe, Guy de Maupassant,
Horacio Quiroga e Ambrose Bierce.
O gato preto (Edgar Allan Pöe), O lobo (Guy de Maupassant), À deriva (Horacio
Quiroga), O travesseiro de penas (Horácio Quiroga), A alucinação de Staley
Fleming (Ambrose Bierce).
3. CONTOS DE TERROR TUMULAR — Guy de Maupassant, Ambrose Bierce,
Marcel Schwob e Emília Pardo Bazán.
A morta (Guy de Maupassant), O habitante de Carcosa (Ambrose Bierce), A
Tumba (Guy de Maupassant), Lilith (Marcel Schwob), A ressuscitada (Emilia
Pardo Bazán).
4. CONTOS CRUÉIS DE TERROR — Edgar Allan Pöe, W. W. Jacobs e Horacio
Quiroga.
O Coração delator (Edgar Allan Pöe), A mão do macaco (W. W. Jacobs), A galinha
degolada (Horacio Quiroga).
5. HISTÓRIAS DE TERROR DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA — Plínio o Jovem, Petrônio
e Plutarco
A casa mal-assombrada (Plínio o Jovem), O lobisomem (Petrônio), As vampiras
(Petrônio), A matrona de Éfeso (Petrônio), O fantasma de Dámon (Plutarco), O
espírito de Cleonice (Petrônio).
6. CONTOS DE TERROR, CADAFALSO E GUILHOTINA — Alexandre Dumas, Honoré
de Balzac, Washington Irving, Villiers de L’Isle Adam, Emilia Pardo Bazán e
Françoise Guizot.
A aventura do estudante Alemão (Washington Irving), A persistência da vida
após a guilhotina (Alexandre Dumas), O segredo do patíbulo (Villiers de L’Isle
Adam), Idílio (Emília Pardo Bazán), El Verdugo (Honoré de Balzac), A execução
de Carlos I da Inglaterra (Françoise Guizot).
7. HISTÓRIAS DE TERROR DA IDADE MÉDIA — Giovanni Boccaccio, Juan Manuel
de Castela, Frei Hermenegildo de Tancos e autores anônimos árabes.
O vaso macabro (Giovanni Boccaccio), A história de Sidi Noman e Simbad e o
Velho do Mar (anônimos árabes), O mago e o deão e O amigo do Demônio (Juan
Manuel de Castela), O Cavaleiro e o pacto com o Diabo (Frei Hermenegildo de
Tancos).
8.CONTOS DE TERROR MARÍTIMO — Guy de Maupassant, Horacio Quiroga,
Gabriele d’Annunzio.
No Mar, O Martírio de Gialluca, Os Navios Suicidantes.
9. LOBOS, HOMENS-LOBOS E LOBISOMENS — Robert E. Howard, Hector Hugh
Munro (Saki), Paul L. Jacobs.
Na Floresta de VIillefère, Gabriel-Ernest, Os lobos de Gernogratz, A Mão do
Lobisomem.
10. CONTOS DE TEROR: PACTOS DEMONÍACOS — E. T. A. Hoffmann, Heinrich
Zschokke, Juan Manuel de Castela, Marquês de Sade.
O Abade Duncanus (Heinrich Zschokke), Aventura Incompreensível (Marquês de
Sade), O Amigo do Demônio (Juan Manuel de Castela), O Diabo em Berlim (E. T.
A. Hoffmann).
11. CONTOS INSÓLITOS — Franz Kafka, Edgar Allan Pöe, Rubén Darío, Saki,
Erckmann-Chartrian, Mesía de la Cerda.
A tatuagem (Saki), D.Q. (Rubén Darío), Meu Ilustre Amigo Selsam (Erckmann-
Chartrian), As Pernas de Mármore (Mesía de la Cerda), O Ente Híbrido (Franz
Kafka), Silêncio — Uma Fábula (Edgar Allan Pöe).
12. CONTOS DE FANTASMAS E OUTRAS APARIÇÕES — Anatole France, Prosper
Mérimée, Alexandre Puskin, Charles Nordier.
A Missa das Sombras (Anatole France), O Agente Funerário (Alexander Pushkin),
A Visão de Carlos XI (Prosper Mérimée), A Freira Ensanguentada (Charles
Nodier).
13. CONTOS DE FANTASMAS E OUTRAS APARIÇÕES — VOL II — Charlotte Brontë,
Thomas Hardy, HeinrichVon Leist, Alexandre Dumas, Rubén Darío.
O Relato de um Homem Supersticioso (Thomas Hardy), Napoleão e o Espectro
(Charlotte Brontë), A Mendiga de Locarno (Heinrich von Kleist), Os Estranhos
Visitantes (Alexandre Dumas), A Larva (Rubén Darío).
14. CONTOS DE TERROR: MEDO — Guy de Maupassant, Horacio Quiroga, Amado
Nervo, Del Valle-Incán.
O Medo (Guy de Maupassant), O Galpão (Horacio Quiroga), Medo da Morte
(Amado Nervo), O Medo (Del Valle-Incán).
15 CONTOS DE DESESPERO, LOUCURA E MORTE — Horacio Quiroga, Leopoldo
Lugones, Charles Dickens, Daniel Deföe, Edgar Allan Pöe, Humberto de Campos,
João do Rio.
O Filho (Horacio Quiroga), O Homem Morto (Leopoldo Lugones), O Fantasma
Acusador (Daniel Deföe), Confissão Encontrada numa Prisão na Época de Carlos
II (Charles Dickens), O Coração Delator (Edgar Allan Pöe”), Morfina (Humberto
de Campos), Uma História de Gente Alegre (João do Rio).
16. CONTOS DE TERROR ANIMAL VOL. III —Guy de Maupassant, Horacio Quiroga,
Franz Kafka, Mary Anne Hoare.
Pierrô (Guy de Maupassant), Uma Luta Aérea (Mary Anne Hoare), O Caçador de
Ratos, O Lobisomem (Horacio Quiroga), O Abutre (Franz Kafka).
17. HISTÓRIAS DE DRAGÕES E OUTROS MONSTROS FABULOSOS — Franz Kafka,
Alexandre Dumas, Hesíodo, Jacopo de Varazze, Pero de Magalhães Gândavo,
Padre Manuel Bernardes, José Monterroio.
O Silêncio das Sereias (Franz Kafka), O Rochedo do Dragão (Alexandre Dumas),
Tifonomaquia (Hesíodo), A Lenda de São Jorge e o Dragão (Jacopo de Varazze),
O Monstro Marinho (Pero de Magalhães Gândavo), O Dragão de Rodes (Padre
Manuel Bernardes), O Monstro de Jerusalém (José Monterroio).
18. HISTÓRIAS FANTÁSTICAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA - Platão, Flégon de
Trales, Filóstrato de Atenas, Apolônio de Afrodísias.
A Amante Defunta (Flégon de Trales), O Julgamento das Almas (Platão), A Noiva
de Corinto (Filóstrato de Atenas), Histórias Assombrosas (Apolônio de
Afrodísias).

SÉRIE MESTRES DA LITERATURA UNIVERSAL


1. GABRIEL LAMBERT (Romance) — Alexandre Dumas.
2. O DISCO DA MORTE E OUTROS CONTOS BREVES — Mark Twain.
3. A CASA MISTERIOSA — Charles Dickens, com a colaboração de Wilkie Collins e
Elizabeth Gaskell.
4. CONTOS LICENCIOSOS DO DECAMERÃO — Giovanni Boccaccio.

SÉRIE MESTRES DA LITERATURA FANTÁSTICA


1. A FEITICEIRA — Ana de Castro Osório.
2. A MULHER VAMPIRO — E. T. A. Hoffmann.
3. O ELIXIR DA LONGA VIDA — Honoré de Balzac.
4. A METAMORFOSE — Franz Kafka.

OUTROS TÍTULOS
1. O CEMITÉRIO DE REGGOR E OUTROS CONTOS DE TERROR — Paulo Soriano.
2. CONTOS FANTÁSTICOS GALEGOS — Adela Figueroa, Ángeles Pacho, Ângelo
Brea, José Manuel Barbosa, José Manuel Nunes Vilar.
3.OS VAMPIROS ESTÃO SOLTOS —Paulo Valença.

[1]
Victor Hugo (1802 – 1885). Os versos citados por Maupassant sãos os
últimos do poema Oceano Nox, publicado em 1840.
[2]
Alfred de Musset (1810 — 1857), poeta, dramaturgo e novelista romântico
francês.
[3]
Personagens de Rebelais no romance Les horribles et épouvantables faits et
prouesses du très renommé Pantagruel Roi des Dipsodes, fils du Grand Géant
Gargantua ("Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado
Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua"). A mãe de
Pentagruel, filho de Gargântua, faleceu ao dar à luz ao filho.

[4]
Ou seja, carbúnculo: afecção gangrenosa, que provoca lesões purulentas,
produzida pela inoculação de princípios pútridos de origem bacteriana.

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