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Kant 2 Jinhas, nem superficies nem volumes. Ti isto mesmo € um argu mento de que tais provas sdo de espécie divina e que deve dar-te, leitor, um prazer divino uma vez que, em Dens € 2 mesma coisa conhecer € crit. KANT (1724-1804) Isnsanven Kanr nasceu em Kénisberg em 1724. A partir de 1740 frequentou a universidade de Kénisherg como estudante de teologia, ‘mas dedicou-se sobretudo 4 filosofia e & matemitiea. Apés um periodo em que deserapenhou 0 papel de tutor no seio de families notaveis, regressou para leccionar na Universidade, onde passou finalmente a ser professor em 1770; deu entéo cursos sobre uma ampla drea de assun- 208 que tratavam no 6 da metafisica ¢ da légica, mas também das cciéncias naturais, da geografia, da antropologia, da fisica e da matemé- tica, Morreu em 1804. [As obras mais importantes de Kant preocupam-se, evidentemente, com problemas de metafisica e de epistemologia, da moral ¢ da esté- tica; © na sua anilise do conhecimento na Crifica da Rago Pura era 0 conhecimento cientifico ¢ matemitico o que cle tinha em mente. Apesat disso, publicou em 1784 um pequeno ensaio sobre histéria, a0 qual deu o desajeitado titulo de «A Tdeia de uma Historie Universal de um Ponto de Vista Cosmopolitar. Este ensaio tem interesse por uma série de razdes. Exprime muito claramente os motivos que deram origem ‘amuitas ¢ mais complicadas «ilosofias da histéria»; apresenta, em forma esquemitica, 0 tipo de saciocinio que subjaz muitas vezes a tais teorias; ¢ € um produto caracteristico do seu tempo 20 corporizar uma crenea rho progresso humano a0 assentar numa concepgio bem definida da ‘natureza humana e do seu lugar no esquema geral das coisas, Ao longo de todo o ensaio, Kant sugere que, se pretendemos que 0 curso da hhistéria humana tenha sentido, temos que pressupor a acgio de um. «plano secreto», ou de um principio teleoldgico, segundo 0 qual os males imediatos da histétia se podem ver justificados por aquilo que final- mente ajudaram a promover: ideia que provow ter grandes atractivos emma 23 4 Interpretagiio do Proceso Histérico ‘pars muitos dos sucessores de Kant (incluindo Hegel), mas que foi de = criticada pelo seu contemporanco Herder. .Ao principio que tem em mente chama Kant dos unis alguns dos mais conhecidos, exceptuadas as sus Tdeen zur Philo- Sopbie der Guehiscbte der Menadibit (1784-99), 39 Von Deutscher Art ee Kans! (ensaios sobre Shakespeare e poesia antiga, 1773) Volksieder, ema colectinen de poesia popular, 1775), © Gott (conver sobre epinoza, 1887). Dois dos sens tikimos eseritos eram ataques mordazes aaeina de Kant, que ele nuaca comprecndex bem e que considerava totalmente errada- Tender foi um homem spaionado e inquieto, insatisfeito ‘2000 com as suas proprias realizagBes como com a época em que Vive: No cornet, as suas ideias tiveram uma importincia enorme, especialmente cmitfonexzo com o desenvolvimento do movimento roméntico; por remplo, a sua crenga de que a literatura duma nagio deve ser verda- Geira para com as tradigbes e 0 caricter intimo da mesma nasi, © & Sit auitude para com a natureza. Mas foi talver com a soa concepgio de hhstOria que ele mais contribuiu para 2 formagio do pensamento romén- flea, Tsto implicava uma ruptura com 0 pressuposto de que 0 Pent neato e 0 comportamento humanos podem interpretar-se como sendo mittee a urn padtio uniforme, a0 longo de perfodos histricos dife- contest @ implicava também a rejeigio da pritica de julgar idades pas: ‘adas mediante pontos de vista contemporincos, sejam eles morals 8 Sultwrais, © pensamento histbrico de Herder exté no seu todo impeeg” caffe da conviegzo de que a caractcristice mais marcante da histSria sae rariedade ¢ a individualidade apresentadas pelas diferentes nagies- seurnodo, € errado discutir a histérie como se cla fosse a manifes- tagio de certas caractersticas da natureza humana; nem ela deverd ser rernelalmente encarada como a exposicio de ligics a aprender © e*ros Sevine, tal como o sugerem alguns autores do Ltuminismo, se bem que Herder nfo fosse avesso a consideri-la uma cescolay, no sentido Gin que a contemplacio das cealizagies ¢ eriagdes do ‘pasado podem jaspiar os homens das épocts posteriores a lntarem Pelas formas espe- isis de perfeigio que sio capazes de aleangat. a Cacertos que se seguem foram escolhidos para ifustrar algneias das idelas principais de Herder: a énfase que dé 4 importinelt dos a os de carieter nacional ¢ de meio ambiente 20 descrever ¢ inter pectar a evolugio ¢ a mutaglo historicas; a sa insisténeia na. impar- Prceide ¢ na compreensio do historiador; a sua erenga nas les de eres- Henpen | Ideias para a Filosofia da Historia 8 cimento ¢ decadéncia que presidem a evolugio do «organismo» nacio- nal; 0 Ambito a catolicidade da sua apreciagio das diferentes formas culturais; e, finalmente, a necessidade que ele vé de os homens obser- varem os limites impostos pelas sitmagies e pelas circunstincias hi téricas. Ideias para a Filosofia da Histéria da Humanidade () A kei fundamental da Historia. — Qual a lei fandamental que obser- ‘vamos em todos os grandes fenémenos da Histéria? A mim parece-me set esta: que por toda a parte, na Terra, acontece tudo quanto nela pode acon- secer, em parte de acordo com a sitnagao e as necessidades,do lugar, em parte de acordo com as circunstincias ¢ as condigies da ipoca, em parte de acordo com © cardater nato on adguirido dos povos. Ponde Forgas vivas humanas. em determinadas relagGes de Iugar c tempo sobre a Terra, ¢ produzit-se-i0 todas as transformagées da histéria humana. Aqué cristalizam reinos ¢ estados, ali dissolvem-se € assumem outras formas; aqui, duma tribo de némadas, surge uma Babilénia; ali, dum povo apertado num lito- zal, nasce unia ‘Tito; aqui forma-se em Africa um Egipto, ali, no deserto da Arabia, surge um Estado judaico. E tudo isto numa snica parte do mundo, em proximidade vizinha uns dos outros. S6 tempos, lugares, catacteres nacionais — em resumo, 2 ac¢io combinada de forgas vivas ‘na sua mais especifica individualidade é que decidem de todos os acon- tecimentos que ocorrem no reino dos homens, tal como decidem de todos os fenémenos da natureza Coloquemos esta lei predominante da criaglo 4 luz que Ihe é devida 1. As forgas vrvas do homem so as molas da historia humana, € como ‘© homem tem a sua otigern a partir de, ¢ dentzo de uma raga, a sua for- magio, educa¢io e modo de pensar sio desde logo genéticds. Dai aqueles caracteres nacionais especificos que, profundamente gravados ()_ Este selecsio compreende 0 cap. VI, Livro XII, extraetos do cap. VI, Livro XIII, e a Introdusio ¢ partes dos eaps. Ie V, Livro XV, da obra de Herder ‘deen zur Philosophie der Geschichte dee Menscheio, “ A Interpretagio do Processo Histérico ‘nos povos mais antigos, se manifestam inequlvocamente em todas as sass ccalizagies sobre a Terra. Tal como ¢ égua de uma nascente recebe do solo donde brota 2 sua composigio, as suas qualidades actuantes © sex sabor, assim 0 antigo carécter dos povos proveio de tragos raciais, do lima, do tipo de vida e da educagio, das ocupagies primitivas das acgies peculiares a cada um desses povos. Os costumes dos ante- passados enraizaram-se profundamente ¢ tornaram-sc 0 ptotétipo fntimo da raga. Sirva como exemplo a forma de pensar dos Judeus, que todos conhecemos bem dos seus livros dos seus feitos: na terra dos antepassados, como no meio de outras aagdes, eles permaneceram sempre 0 que eram, ¢ até mesmo quando misturados com outros povos € possivel distingui-los através de varias geracdes. © mesmo aconteceu € acontece com todos os povos da antiguidade: Egipcios, Chineses, Arabes, Hindus, etc. Quanto mais segregados viveram ¢ até mesmo quanto mais oprimidos, tanto mais firme se fez 0 seu carécter; de tal forma que, se cada uma dessas nagles tivesse ficado no seu ambiente, a Tetra se poderia considerar um jardim, onde cada planta nacional humana floresceria, aqui uma, acold outta, com a sua propria forma € natureza e onde cada espécie animal, aqui uma, acolé outra, seguiria 2 sua evolugio, de acordo com os seus instintos ¢ caricter. Como, porém, os homens nio sio plantas firmemente enraizadas, puderam e tiveram, de, com o tempo, merc? frequentes vezes de duros acasos como a fome, os tremores de terra, a guerra, etc. —_mudar de lugar ¢ estabelecer-se noutra regiio mais ou menos diferente. E, embora com obstinagéo’ quase igual ao iastinto animal eles permanecessem ape- gados aos costumes dos seus antepassados e dessem mesmo as novas montanhas, rios, cidades ¢ instituigdes nomes da sua primitiva pitria, apesar disso, no conseguiram continuar etemamente idénticos em todos os aspectos, sempre que se verificou uma grande alteragio de dlima e de solo. Aqui 0 povo transplantado continuou a fazer um yespeizo ou um formigueiro 4 sua propria maneita. A. construgio surgiu de ideias da terra origindria e de ideias do novo local. A isto costuma chamar-se a florescéncia juvenil dos povos. Assim se insta- laram os Fenicios na costa mediterrinea, quando se retiraram do Mar Vermelho; assim pretendeu Moisés instalat os Israclitas; assim acon- teceu com varios povos asifticos; pois quase todos os povos da ‘Terra migraram pelo menos sma vez, mais cedo ou mais tarde, por mais ou por menos tempo. E ficil de supor que neste processo muito dependeu da altura em que essa migragio se deu, das citcunstincias que a provo- ccaram, da distancia a percorrer, do grau de cultura do povo na altura da sua deslocagio, das afinidades ou divergéncias que encontrou 20 seu novo pais, etc. E tio complicado proceder a0 balaago histérico, mesmo de povos no mesclados, devido jé a causas geogréficas e poli- Henpex / Ideias para a Filosofia da Histéria 45 slcas, que se torna dificil a um espirito livre de hipéteses aio perder o 0 meada; muito mais facilmente o perde quem mostrar preferéncia por uma detetminada raga de povos ¢ desprezar tudo 0 mais que nao Ihe diga respeito. © histotiador da humanidade, semelhanga do ctiador da nossa espécie ou do génio da Tetra, deve saber ver com olhos imparciais e julgar sem paixio. © naturalista que queira conhe- cer ¢ ordenar todas as classes dos reinos que estuda, vota igual interesse 4 rosa, 20 cardo, & doninha, 4 preguica ou 2o elefante; e 0 objecto da sua investigacio mais atenta € aquele que mais ensinamentos Ihe pode fornecer. Ora a natureza deu a Terra inteita aos homens, seus filhos, ¢ nela decidiu que brotasse tudo quanto pudesse brotar segundo o local, o tempo e as forgas activas. Tudo quanto pode existit, existe; tudo quanto pode produzir-se, ¢ produzido; se nao hoje, amanha. O ano da natureza & longo e a flor das suas plantas € to variada como as proprias plantas e como os elementos que as sustentam... 2. Se, portanto, a formagio de um seino depende primordiabmente do tempo ¢ do lugar em que nasce, das partes que o compiem e das circunsténciat exteriares que 0 redearam, vemos entio que em grande parte o destino desse rcino depende destes factores. Uma monarquia constituida por aémadas, cujo sistema politico € a continuagio da sua forma de vida, dificilmente teré uma longa duragio; destruiné ¢ subjugari, até set Por sua vez destruida: a tomada da capital do reino e muitas vezes a morte de um tei é 0 bastante para fazer cessar os seus actos de pilhagem. Assim aconteceu com a Babiléaia e com Ninive, com Persépolis e com Echatana, ¢ assim acontece ainda com a Pérsia. © império dos Mong6is. na India esté quase a desaparecer € 0 dos Turcos desapareceré, se con- Yinuarem a ser Caldeus, isto é, conquistadores estrangeiros, ¢ nio esta- belecerem o seu governo nunna base mais mortal, Pode a érvore chegat a0 céu e estendet a sua sombra a continentes inteizos; se nio estiver bem enraizada na terra, um simples golpe de vento bastari muitas vezes Para a derrubar. Poder cair pela asticia de um sé escravo infiel, ou pelo machado de um satrapa audacioso. A hist6ria antiga e, moderna da Asia esta cheia de revalugdes destas, por isso a flosofia dos estados Pouco encontra que aprender nelas. Escorracam-se déspotas do trono, Para neste se colocarem outros déspotas: 0 reino depende da pessoa do monarca, da sua tenda, da sua coroa; quem tiver esta na mio, seré 0 novo pai do povo, quer dizer, o chefe de um bando preponderante de salteadores. Um Nabucodonosor foi o terror de toda a Asia ocidental ¢ nas mos do seu segundo sucessor o seu reino desfez-se em pé, por falta de alicerces; trés batalhas de Alexandre bastaram para destruir completamente 0 enorme impétio persa, * ‘A Interpretagao do Proceso Histérico Muito diferente € o que se passa com aqueles estados que, tendo cxescido das proprias raizes, se mantém nos seus prdprios alicerces. Podem ser subjagados, mas a nagio permanece. Foi o que aconteccu ‘com 2 China, onde se sabe 0 que custo 20s conquistadores a introducio de um simples costume, 0 corte de cabelo & maneira mongol; assim acontece com os Brimanes ¢ os Istaclites, cujo espirito de cerimonial ‘basta para os separar eternamente de todos os outros povos da terra; assim resistiu durante muito tempo 0 Egipto a cruzar-se com outros povos. E como foi dificil exterminar os Fenicios, por set um povo }4 muito enraizndo neste local! Se Ciro tivesse conseguido fandar ‘um reino como os de Yao, de Krishna ou de Moisés, ainda hoje exis- tiria com todos os seus membros, embora mutilados... 5. Finalmente: de toda a regiio pot onde temos andado, vemos como é transitiria toda « obra humana, e até mesnro guao oprestiva vem a tor- nar-se a melbor das instituigits a0 fim de algimas geragies. planta floresce ¢ fenece; os vossos pais morreram € tornaram-se pd; 0 vosso templo cai por teita; 0 teu tabernéculo, as twas tébuas da lei jé no existems 2 propria linguagem, eterno elo entre os homens, eater em desuso, E. uma constituigio feita pelos homens, uma instituigio politica ou religiosa, que sé podem construit-se com base naquelas, essa devia, hhavia de durar eternamente? Para isso seria necessirio prender com cadeias as asas do tempo e transformar a esfera terrestre, sempre em movimento, num bloco de gelo, inerte sobre o abismo. Que senti- ramos nds se hoje vissemos o rei Salomdo sactificar 22.009 bois ¢ 120.000 cordeiros numa tinica festa, ou 2 rainha do Sabi, propondo-lhe adivinhas num banquete? Que ditiamos de toda a sabedoria dos Egip- ios, se nos exibissem 0 boi Apis, 0 gato ¢ o bode sagrados em templos sumptuosissimos? O mesmo se pode dizer do pesado cerimonial dos Beimanes, das superstigies dos Parses, das ocas pretensbes dos Judeus, do absurdo orgulho dos Chineses ¢ de tudo o mais que, seja onde for, pretenda basear-se nas antiquissimas instituigdes humanas de hé teés mil anos. A doutrina de Zoroastro pode tet sido uma tentativa notivel para explicar a existéncia do mal no mundo e para estimular os seus Contemporineos a praticar boas obras; mas qual o significado actual dessa teodiceia, mesmo aos olhos de um maometano? A metempsicose dos Brimanes pode tet 0 seu valor como sonho juvenil da imaginagio rumana, que deseja manter a alma imottal dentro da esfera do visi- vel, ligando conceitos morais 2 esta ilusio bem intencionada; mas silo se tornou ela numa lei religiosa absurda, com milhares de adita- mentos em forma de preceitos ¢ de normas priticas? A tradicio é em siums cxcclente instituigio da natureza, indispensével ao género humano; Jogo, porém, que ela cerceia a faculdade de pensar, quer nas institui- Herver | Ideias para a Filosofia da Histéria 1 ‘goes politicas priticas, quer na educaclo, impedindo todo o progresso 2 azio humana ¢ todo 0 melhoramento adequado a novas circuns- tancias € a novos tempos, entio cla € o verdadciro dpio do espirito, tanto para os estados como para os partidos ¢ pata os individuos. A grande Asia, mie de todo o esclarecimento intelectual da parte habi- tada do nosso planeta, ingeriu muito deste doce veneno ¢ dele deu muito a beber a outros. Grandes estados e partidos dormem dentro dela como, segundo reza a lenda, S. Joao dorme no seu timulo: res- pirando suavemente, embora tenha morrido hi quase 2.0cc anos © Gormitando, & espera que chegue aquele que o hé-de despertar... Refesies sobre a Historia da Gricia—O naturalista s6 & capaz de obter um conhecimento completo sobre uma planta, se a seguit na sua evolugio a partir da semente, ¢ através da sua germinagio, flores- cimento € morte. A historia da Grécia ¢ para nés como uma planta. $6 é pena que pelos processos até agora usados ela ainda esteja longe de ter sido tZ0 ‘estudada como a histéria de Roma. Chegou agora a altura de, daquilo que tem sido dito, destacar alguns pontos de vista que desde logo se impéem aos olhos do obser- vador nessc fragmento importante da hist6ria geral da humanidade. E aqui comeso por repetir este grande principio: Primeito—O gue pode acontecer no reina da bamanidade, dentro do ambito de determinadas

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