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Olímpio-Ferreira Grácio - Retórica e Comunicação
Olímpio-Ferreira Grácio - Retórica e Comunicação
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO
MULTIDIMENSIONAL
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio (Org.)
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO
MULTIDIMENSIONAL
[Ficha Técnica]
Título
Retórica e Comunicação Multidimensional
Organização
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio
Conselho editorial
Christiani Margareth de Menezes e Silva (Universidade Estadual de Londrina – Brasil)
Eduardo Lopes Piris (Universidade Estadual de Santa Cruz – Brasil)
Isabel Cristina Michelan de Azevedo (Universidade Federal de Sergipe – Brasil)
Loïc Nicolas (Université Libre de Bruxelles – Belgique)
María Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires – Argentina)
Maria Helena Cruz Pistori (PUC São Paulo – Brasil)
Maria Manuel Baptista (Universidade de Aveiro – Portugal)
Paulo Roberto Gonçalves Segundo (Universidade de São Paulo – Brasil)
Soraya Maria Romano Pacífico (Universidade de São Paulo – Brasil)
Coordenação Editorial
Grácio Editor
Capa
Grácio Editor
ISBN: 978-989-99682-6-4
© Grácio Editor
Travessa da Vila União, n.º 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO:
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL...............................................7
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio
Carla Baiense e Maite Nora Blanquaert Mendes Dias analisam os debates pú-
blicos a respeito do sentido de ser jovem, sobretudo na mídia brasileira, em pu-
blicações no jornal O Globo. O estudo investiga, retórica e argumentativamente,
como o conceito de juventude foi discursivamente concebido durante as aguerri-
das discussões sobre a redução da maioridade penal no Brasil. As controvérsias
em torno desse tema são postas em evidência e confrontadas com questões so-
ciológicas e com conquistas do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O texto
mostra que os estereótipos forjados pela retórica midiática, além de serem de-
masiadamente redutores, já que respondem ao problema do adolescente infrator
apenas pelo viés da polícia e da prisão, são também forças contrárias ao direito
da juventude, tão presentes na arena dos progressivos debates que se animam
em torno do assunto.
Eduardo Chagas Oliveira, passando pela Retórica Clássica e pela Nova Retórica
e reconhecendo a presença de gêneros discursivos segundo os novos tipos de au-
ditório, apresenta a Nuper-Retórica, que, orientada conceptualmente nos diversos
matizes da Retórica, sobretudo no que se refere à persuasão e ao assentimento,
objetiva dar conta da multiplicidade dos novos meios de comunicação em massa
(os contextos multimidiáticos), em sua velocidade de transmissão por tecnologia
recente e em sua capacidade de conectar os indivíduos e de ampliar os limites e
as modalidades de linguagem (verbal e não-verbal), com seus símbolos indicado-
res de status, poder, competência, crenças e valores.
Angie Biondi
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens
Universidade Tuiuti do Paraná 11
angiebiondina@gmail.com
RESUMO
Neste texto buscamos observar como as vítimas articulam seus posts na forma enunciativa
dos “relatos de si” (BUTLER, 2015), a fim de convocar as maneiras de adesão às suas vivên-
cias de dor e sofrimento que perpassam variados campos de afinidade, e também se cons-
tituem como um chamado à responsabilidade ética. O esforço de análise privilegia as
materialidades linguageiras de alguns exemplares recentes veiculados em redes sociais.
Tais relatos revelam certo trabalho ético de construção subjetiva da vítima na experiência
da escrita e do registro online, que permite ao sujeito examinar criticamente sua condição
em relação aos discursos normalizadores, em busca da afirmação de novos modos de ex-
pressão subjetiva, política e também social.
PALAVRAS-ChAVE
Enunciação. Relato. Vítima. Redes sociais. Política.
Introdução
Este texto apresenta dois aspectos principais de pesquisa: o primeiro pre-
tende problematizar certa legitimidade da palavra reivindicada pela própria vítima,
a partir da declaração e exibição de suas vivências de dor e sofrimento cotidianas,
agora produzidas e compartilhadas em rede; o segundo pretende identificar como
essas formas enunciativas, enquanto “relato de si” (BUTLER, 2015), observadas
nesses relatos-postagens, manejam os variados campos de afinidade e interações
afetivas às suas histórias e causas.
Dentro da grade da pesquisa qualitativa que utilizamos, a abordagem da “etno-
grafia virtual” (HINE, 2004; 2015; RECUERO, 2013) comparece conciliada e asso-
ciada às chamadas “metodologias de análise biográfica e autobiográfica” (BARROS;
SILVA, 2002; GOLDENBERG, 2004). A referência comum entre as metodologias que
1
Este texto é resultado parcial da pesquisa “Solidariedade em redes: visibilidade e experiência de ví-
timas na cultura contemporânea”, com recursos do CNPq.
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS
Neste caso, ir a campo aqui não é refletir uma sobreposição da lógica comer-
cial ou institucional do meio ou dispositivo técnico sobre os materiais produzidos
pelos sujeitos, mas observá-los em cotejo. Trata-se de uma pesquisa que busca
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
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1. “You will not silence me”: a palavra reivindicada pelo sujeito
No dia 6 de janeiro de 2016, a jovem de 27 anos, Amber Amour, publicou o
relato da agressão sexual que tinha sofrido, minutos antes, em sua página no Ins-
tagram. A ativista de direitos humanos estava na cidade do Cabo, na África do Sul,
promovendo a campanha Stop rape. Educate, que tinha como objetivo informar
a população local sobre a violência e dar apoio às mulheres vítimas de agressões.
A jovem contou que estava hospedada em hostel com um grupo de colegas
quando encontrou um rapaz, que já havia beijado uma vez. Na conversa, ela diz
que o jovem lhe ofereceu o banheiro de sua casa, já que o do hostel só tinha água
fria, e ela estava, há dois dias, enferma:
No entanto, com mais de 20 mil seguidores até então, a própria Amber anun-
cia que o seu post já tinha viralizado e fora visualizado milhares de vezes. Em se-
guida, o Instagram pediu desculpas em público, liberou a exibição do conteúdo
da postagem e ainda ressaltou a coragem da iniciativa da jovem em compartilhar
sua experiência e oferecer a oportunidade de uma discussão coletiva sobre uma
temática importante.
comparecem nas redes sociais –, adquire contornos mais intensos quando explo-
ramos um pouco mais as questões que envolvem a experiência narrativizada da
intimidade (aqui inscrita pelo sofrimento e violência) de um sujeito, constituída
pelo olhar do outro, a partir dos dispositivos tecnológicos.
A produção de uma subjetividade em que o eu é pautado pelo olhar do outro
16 parece se tornar um consenso teórico de muitos dos estudos da comunicação na
atualidade (BRUNO, 2013; SIBILIA, 2008). As práticas contemporâneas de enun-
ciação do sujeito, das quais as redes sociais e de relacionamento fazem parte, evi-
denciam a centralidade assumida pela exibição, pela aparência e pela imagem
como uma demarcação sociocultural predominante para a consolidação de um
eu-sujeito:
Sua declaração indica ainda que há uma força afirmativa marcada pela utili-
zação enfática de sua vontade repetida nas oposições não importa o que ele versus
eu nunca disse. A expressão afirmativa e reivindicatória de um eu-sujeito que pode
e deve contar sua experiência é que legitimaria qualquer ação ou atitude. Se não
se pode submeter um à vontade do outro também não se pode submeter a pala-
vra de um ao outro. Desse modo, silenciar Amber, nesse contexto, se configura
como outra agressão, outra forma violenta pela submissão da palavra e do sujeito.
Aqui, o interdito da confissão e o segredo da dor íntima realmente não poderiam
ser contidos, uma vez que todo investimento da enunciação de sua dor já comparece
pautado pela imagem; está voltado para fora, para o exterior; busca realizar-se no
devir coletivo da narrativa, ou seja, no outrem:
existencial e política: “há uma estética da enunciação, que se abre a algo de novo
e permite emergir a potência do sujeito e o sujeito em sua potencialidade” (LAZ-
ZARATO, 2014, p. 199). Nesse sentido, podemos afirmar que essas técnicas de si
são capazes de promover novas formas de experiências e subjetividades na me-
dida em que instauram outra cena enunciativa, devolvendo-nos ao mundo modi-
22 ficados. A prática política da parresía acontece quando um sujeito que assume o
risco de falar a verdade, expressando o que realmente pensa e conectando-se ao
enunciado e à enunciação de modo a não só produzir efeitos sobre os outros, mas
a “afetar o objeto da enunciação, produzindo uma transformação existencial” (LAZ-
ZARATO, 2014, p. 151).
Parece-nos que as apropriações das chamadas redes sociais e de relaciona-
mentos, aqui atualizadas pelos sujeitos, fizeram delas um espaço que permitiu,
em alguma medida, utilizações criativas e subversivas/insubmissas das técnicas
de si, uma vez que figuram como “campo de possibilidades de ação para uma mul-
tiplicidade de condutas a serem inventadas (...) trata-se sempre de gestos, manei-
ras, modos, variações, resistências, por minúsculas que pareçam, ou inaparentes
que sejam” (PELBART, 2013, p.232).
Mesmo demarcada por outros objetivos, o autor deixa claro, portanto, que
a ocorrência de um sofrimento contingente hoje só se justifica pela negligência e
omissão, sobretudo, exercidas pela política do Estado. Daí a correlação imediata
da enunciação declarativa da vítima quanto ao fato ocorrido, a violência sofrida,
trazida a público através da denúncia e da convocação. Os relatos-postagens de
Amber, Thais, entre tantas outras vítimas, reivindicam lugar à voz para exortar
uma responsabilidade comum, pois a declaração de uma dor vivida vincula sua
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS
Considerações finais
Os perfis de vítimas elaborados por meio das formas dos relatos-postagens
de si, como vimos, conjugam os aspectos políticos e morais que estão implicados
no processo de produção/exposição/compartilhamento da dor e do sofrimento vi-
vidos. Narrar e narrar-se nas redes assumem, simultaneamente, as conjugações do 25
ver e do ver-se, do contar e também do contar-se, em conjunto. É possível dizer
que os relatos trazidos nos breves exemplares de nossa pesquisa se constituem
como técnica de si na qual a parresía – o gesto de dizer a verdade sem medo, uma
verdade política que fere, provoca e desmonta o stablishment – rompeu, pelas bre-
chas, o espaço normalizado (da palavra e da imagem) das redes. A produção do re-
lato dessas jovens revela clara intenção de assumir o controle da própria vida, de
tornar-se sujeito de si mesmo por meio do trabalho de reinvenção da própria sub-
jetividade, possibilitada pelo relato de si como forma de ação ética e política. Trata-se
de tornarem-se autoras do próprio script para afirmar um outro eu à violação. Trata-
se também de buscar elementos capazes de apontar para um tipo de resistência
às formas de vida prontas, ao apagamento e desaparição dos sujeitos em narrativas
que apenas “encaixam” os indivíduos em molduras discursivas previamente arqui-
tetadas, capturando seus gestos, rotinas, corpos e falas em operações consensuais,
constrangimentos e submissões de toda ordem. Nesse sentido, a exposição e o
aparecimento do corpo e do rosto nos relatos de si aqui apresentados são capazes
de tensionar enunciados e cenas de enunciação que nos revelam uma potenciali-
dade política de desidentificação, do dissenso e da ruptura.
As vítimas e suas vozes transitam nessa dinâmica da vulnerabilidade e da dor
comum, para uma reivindicação, na voz e na palavra, de fazer ouvir todos aqueles
que são evocados e invocados nessa forma de partilha.
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DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE
PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA
Carla Baiense
Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPFMC/UFF)
carlabaienses@yahoo.com.br 27
Resumo
Num momento em que a juventude está no centro do debate público, examinamos os sen-
tidos de ser jovem no contexto latino-americano, a partir das construções midiáticas em
torno da categoria. Sob a perspectiva da retórica e da argumentação, vamos investigar de
que maneira a juventude é concebida discursivamente. Nosso objeto são as reportagens
publicadas no jornal O Globo, a partir da segunda metade do século XX, até o ano de 2015,
sobre a redução da maioridade penal no Brasil, dos 18 para os 16 anos, cujo projeto en-
contra-se no Congresso Nacional. Tendo como pano de fundo o conceito sociológico de ju-
ventude e as conquistas asseguradas pelo Estatuto da Criança e do adolescente,
confrontamos a argumentação em torno da maioridade com o direito à juventude.
PalavRas-chave
Juventude. Maioridade penal. Mídia. O Globo. Retórica.
Introdução
Pensar a juventude, no contemporâneo, requer um olhar que vá além do cri-
tério etário, adotado nas pesquisas demográficas, que estabelece os marcos tem-
porais a partir dos quais deve-se olhar para este enorme contingente: cerca de ¼
dos brasileiros, segundo o IBGE1. Reduzir o conceito sob essa perspectiva é pro-
blemático, sobretudo nos países latino-americanos, nos quais há clara distinção
entre os modos de ser jovem de acordo com a condição social, região, gênero,
entre outras variáveis (MARGULIS e URRESTIS, 1996; REGUILLO, 2003; MARTÍN-
BARBERO, 2008). Nas palavras da pesquisadora Rossana Reguillo:
1
No Brasil, considera-se juventude o contingente populacional compreendido entre os 15 e os 29
anos, conforme estabelecido pelo Conselho Nacional da Juventude.
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA
senta Orlandi (2009), trabalha a língua como a mediação entre o homem e a rea-
lidade natural e social, e entende o discurso como objeto sócio-histórico. Seu ob-
jetivo não é encontrar “o” sentido verdadeiro do discurso, uma verdade oculta
atrás do texto, mas compreender quais os gestos de interpretação que o consti-
tuem e de que maneira eles produzem sentidos. Para a AD, os sentidos não são
naturais e nem transparentes, ou seja, não estão prontos, e são constituídos na 29
interação entre quem escreve e quem lê dentro de determinadas condições sócio
históricas (ORLANDI, 1991).
1. O nascimento da juventude
É importante notar a relação intrínseca entre a imprensa e o surgimento da
juventude enquanto categoria, na primeira metade do século XX. Durante o século
XIX, alguns países já demonstravam preocupação com o problema da “delinquên-
cia juvenil”. Nos Estados Unidos, diante do surgimento das gangues urbanas, o es-
tado de Nova Iorque criou, em 1824, uma legislação específica para punir
indivíduos menores de 21 anos. A mesma preocupação permeou nações euro-
peias, que deram respostas diversas à questão da disciplina e incorporação social
dos sujeitos que ainda não haviam chegado à vida adulta, muitas delas ligadas ao
recrutamento militar (SAVAGE, 2009).
Só no final do século XIX, no entanto, aparece o primeiro conceito para definir
essa fase da vida. G. Stanley Hall, psicólogo norte-americano, cunhou, em 1898,
o termo adolescense para nomear o período que vai do final da infância ao início
da vida adulta, um estado definido não apenas em termos biológicos, mas cons-
truído socialmente (LAMY, 2016).
Na Sociologia, o conceito passa por revisão, nos anos 1940, quando autores,
como Karl Mannheim (GROPPO, 2009), começam a pensar as rebeldias juvenis
sob a perspectiva do protagonismo político. No pós-guerra, diante da derrocada
das democracias no continente europeu, Mannheim considera a juventude como
força social capaz de impulsionar sua reconstrução. Nessa mesma formulação, vai
definir a juventude como direito, no sentido de que deve ser concedida a todo ci-
dadão. Dessa concepção resulta o conceito de “moratória social”, como “um
tempo especial do curso da vida para a experimentação (...) em espaços mais ou
menos separados das instituições sociais ‘oficiais’” (GROPPO, 2009, p. 41)3.
Os jovens que emergem do pós-guerra, no entanto, começam a desempe-
nhar papeis diversos nas sociedades ocidentais. Se, por um lado, muitos haviam
compartilhado os horrores da guerra, não podendo mais usufruir do universo ju-
venil, outros ingressavam nessa fase através do consumo. Em 1944, nos Estados
3
O que resiste desta formulação, a partir dos anos 1960, no entanto, é a tese da juventude como mo-
ratória social. Se por um lado essa perspectiva garante uma proteção especial aos sujeitos nessa fase
da vida, por outro, enfraquece seu protagonismo político.
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA
Unidos, chega às bancas a que seria não apenas uma representante, mas também
um modelo para essa geração: a revista Seventeen. Nos anúncios publicitários de
suas páginas, nasce o termo teenagers, logo adotado pelos especialistas do mar-
keting e pelos próprios jovens. “Eles não eram os adolescentes de Hall e nem os
delinquentes juvenis que as autoridades tentavam controlar desde o século ante-
30 rior” (LAMY, 2016, p. 8). Eram uma nova força do consumo.
Se nas páginas da Seventeen, os adolescentes emergem como potência, que
não aceitam o não como resposta e têm seu próprio dinheiro para ascender ao
mundo do consumo, outras representações midiáticas de juventude vão surgir ao
longo do século XX, demarcando diferenças para as quais a perspectiva etária não
oferece explicações. No Brasil, especificamente, onde os diferentes modos de ser
jovem revelam as discrepâncias socioculturais, há um farto material a respeito da
juventude. Algumas vezes representados como esperança, noutras como ameaça,
os jovens brasileiros ganham destaque no jornalismo, sobretudo a partir dos anos
1990, quando voltam às ruas sob a forma de caras pintadas4, ou quando protago-
nizam cenas de crimes associados à violência urbana. É nesse contexto – em que
os jovens “já têm idade para votar, mas não para serem presos”5 – que emergem
as discussões sobre a redução da maioridade penal.
2. Mídia e discurso
O debate midiático a respeito da idade mínima para infringir penas mais
duras no Brasil ganha corpo ainda no início dos anos 1970, na reforma do código
penal, que vigoraria a partir de primeiro de janeiro de 1974. Como se pode per-
ceber numa pesquisa por palavra-chave, no acervo digitalizado do jornal O Globo,
embora as primeiras ocorrências do termo “maioridade penal” surjam nos anos
1930, a discussão em si aparece de forma mais representativa a partir da década
de 70, ganhando enorme destaque a partir dos anos 1990.
Na reportagem “Juiz e promotor divergem quanto à maioridade penal”, pu-
blicada no dia 23 de outubro de 1971, por exemplo, apesar do título, percebe-se
que o assunto gerava controversias menos nos círculos jurídicos do que na esfera
pública, conforme o texto explicita:
4
Movimento juvenil que ganhou as ruas, no ano de 1992, reivindicando o impeachment do então
presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, acusado de corrupção.
5
O voto facultativo aos 16 anos foi instituído no Brasil em 1988, com a aprovação de emenda constitu-
cional. Seus opositores usavam como argumento o descompasso entre a legislação eleitoral e a
legislação penal. Segundo o vice-presidente da Associação Internacional de Juízes de Menores, à época,
Alyrio Cavalieri, a redução da idade para o alistamento eleitoral poderia dar margem a interpretações
do tipo: “se pode votar aos 16 anos, também se pode ir para a cadeira” (CAVALIERI, 1988, p.6). A partir
dos anos 2000, esse mesmo argumento será usado para defender a redução da maioridade.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
uma tarja preta sobre os olhos – quanto a retranca – menor bandido, adulto esperto
– fixam os sentidos e direcionam o pathos8 do leitor para o lugar de vítima.
Em várias reportagens, ao longo da década, será retomado o interdiscurso
do direito ao voto como prerrogativa para se reivindicar a redução da maioridade.
Os opositores da medida, por outro lado, invocarão o ECA para defender a ideia
34 de que os menores já são punidos, inclusive com reclusão, mas respeitando as ca-
racterísticas e os direitos da faixa etária.
Mas outro tipo de argumento começa a aparecer em meados dos anos 1990
para defender a redução da maioridade: o acesso à informação. A ideia de que
um jovem de 16 anos no fim do século XX não tem paralelo com o jovem das dé-
cadas anteriores tenta produzir um deslocamento semântico do conceito de ju-
ventude, relocalizando os indivíduos no interior das faixas etárias a partir de um
novo contexto histórico. Segundo essa construção discursiva, sob determinadas
circunstâncias, alguns indivíduos deixam de ser jovens, ingressando no mundo
adulto mais cedo e, portanto, devem responder por seus atos como adultos. Mais
uma vez, a conquista de direitos – o acesso à informação, da mesma forma que o
direito de votar e de dirigir – passa a constituir uma ameaça ao direito à juventude.
Nas palavras do secretário de Segurança de Minas Gerais, Santos Moreira,
que se uniu ao secretário Nilton Cerqueira, do Rio de Janeiro, para defender a re-
clusão para menores de 14 a 18 anos: “Com a globalização dos meios de comuni-
cação, os menores de 14, 15 e 16 anos têm plena consciência de que estão
cometendo atos infracionais. Logo, eles cometem crimes de adultos e devem ser
punidos como adultos” (CERQUEIRA…, O Globo, 27.02.1996, p. 16).
Um dos mais coerentes opositores dessa argumentação é justo o ex-juiz de
menores que antecipou o problema, na época da aprovação do voto para os me-
nores de 18 anos. Cavallieri argumentava, em artigos e cartas para o jornal, o que
considerava um retrocesso em termos jurídicos, uma vez que o sistema de discer-
nimento, ou seja, o que levava o indivíduo à prisão desde que soubesse o que es-
tava fazendo, fora abandonado no Brasil em 1921. Em vez dele, adotou-se o
critério universal da idade, aplicável tanto ao caso da imputabilidade penal quanto
a outras situações, como a aposentadoria compulsória de juízes aos 70 anos. E re-
coloca a questão do menor em conflito com a lei nos termos corretos: “Cadeia re-
solve?” (CAVALLIERI. O Globo 18.12.1997, p. 7).
No início do século XXI, o referendo sobre o comércio de armas, que aconte-
ceu em outubro de 2005, trouxe à pauta do dia a oportunidade de colocar para
votação popular outros temas relacionados à segurança pública, entre eles, a re-
dução da maioridade penal. O argumento da aprovação popular, via referendo ou
plebiscito, apareceu em diversas reportagens de O Globo daquele ano em diante,
até 2015:
8
Tomamos aqui o conceito de pathos conforme Plantin, para quem se refere à “construção discursiva
da emoção que o locutor pretende provocar em seu auditório” (PLANTIN, apud AMOSSY, 2011).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
“a medida (da redução da maioridade penal) precisa tramitar sem obstruções para
que o país adeque a legislação penal ao que acontece nas ruas”, reforçando a ideia
de que o jovem representa uma ameaça à sociedade.
A segunda década do século XXI é o momento em que a discussão sobre a
maioridade penal aparece com mais frequência nesse jornal, em especial 2015,
ano da aprovação inédita na Câmara dos Deputados da proposta de emenda cons- 37
titucional que previa a redução da maioridade para 16 anos. Foram 365 páginas
ao longo do ano que trataram tanto do debate político em torno do assunto
quanto de outro episódio violento com participação de um adolescente.
Em maio de 2015, um assalto seguido de morte de um ciclista na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, ponto turístico do Rio de Janeiro, teve como principais suspeitos
dois adolescentes. Assim como nos crimes de João Hélio e do casal Liana e Felipe,
o caso foi usado como argumento para redução da maioridade penal, desta vez,
ainda com mais peso, já que a proposta podia de fato se tornar realidade.
Repercutindo o caso, O Globo trouxe, sob a retranca “Luto na Lagoa”, a re-
portagem “Na região, número de jovens detidos é maior que adultos”. Embora a
porcentagem de adolescentes detidos referente a todo o estado do Rio de Janeiro
fosse de 25%, o jornal buscou enfatizar o dado mais negativo – que dizia respeito
a apenas uma região da capital –, reforçando os sentidos de que a juventude apre-
senta uma ameaça à sociedade.
Considerações finais
O direito à juventude, definido no campo sociológico e legitimado pela legis-
lação brasileira no Estatuto da Criança e do Adolescente, encontra barreiras para
sua efetivação nos planos prático e simbólico. Os jovens brasileiros são a vítima
preferencial da violência. Segundo o relatório final da CPI do Assassinato de Jo-
vens, apresentado em junho de 2016 no Senado, das mais de 50 mil pessoas as-
sassinadas anualmente, quase metade dos mortos está na faixa etária entre 16 e
17 anos.
Mas a morte, nesse caso, mostra-se um evento bastante seletivo, já que o
perfil da vítima de assassinato é bastante específico: são meninos (93% das víti-
mas), negros (morrem três vezes mais que brancos), com baixa escolaridade e ví-
timas de armas de fogo (mais de 80% dos casos de assassinatos).
No plano simbólico, por trás das técnicas sofisticadas de fotografia e de ar-
gumentos nem tão sofisticados assim, aparecem as mesmas vítimas de uma re-
presentação que encarcera o indivíduo num estereótipo e reduz sua existência a
um problema de polícia. A retórica midiática em torno da maioridade penal mos-
tra-se um campo fértil para o estudo da batalha cotidiana pelo direito à juventude,
sua seletividade e seus impactos sobre a construção de uma sociedade democrá-
tica de fato e de direito.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
RefeRências
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EM BOA VISTA, adolescente é assaltado por menor de 15 anos. Vítima de 13 anos disse
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40
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AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO
E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)
Resumo
O presente texto tem como objetivo apresentar algumas reflexões acerca das feições que
a retórica ganhou nos dias atuais. Pretende-se indicar o sentido e os mecanismos que a re-
tórica se utiliza para persuadir os indivíduos no mundo contemporâneo e os limites da ar-
gumentação nesse contexto. Não obstante, verifica-se a natureza dos argumentos no
âmbito da Nuper-retórica e sugere a existência de uma modalidade argumentativa que ex-
trapola as fronteiras do verbal, mantendo-se no limite da apresentação das provas. Assim,
oferecendo um resgate histórico de conceitos e entendimentos acerca da retórica em di-
ferentes momentos da história do pensamento ocidental, procura-se sustentar uma uni-
dade central do pensamento retórico em torno da ideia de persuasão.
PalavRas-chave
Retórica. Persuasão. Nova Retórica. Nuper-retórica. Multimeios.
Introdução
Qualquer veículo pressupõe uma trajetória, um meio e um fim específico.
Não obstante, seu ponto de partida deve ser perfeitamente demarcável, para que
se possa aferir o deslocamento desde a origem até a chegada. Afinal, veicular im-
plica transportar algo de um lugar a outro. Trata-se de um processo de condução,
passível de ocorrer nos domínios do público ou do privado. Na esfera das cons-
truções discursivo-argumentativas, por exemplo, a retórica se apresenta como
uma espécie de veículo cuja trajetória perfaz o caminho existente entre os inter-
locutores, que utilizam diversos meios para alcançar – exclusivamente – a persua-
são: o fim último de qualquer retórica.
Durante a antiguidade, o meio era o discurso, e o espaço de aplicação desse
discurso era a ekklēsía1. O fim do discurso dentro daquele contexto já era a per-
suasão, com o objetivo de conquistar a adesão dos ouvintes à(s) teses do orador
ou do perfil ideológico que ele representa. Nesse sentido, a força do vocábulo re-
1
A ekklēsía é, no campo de experiência do profano, a assembleia do dēmos, a assembleia popular,
Como em Atenas e também em todos os Estados gregos. A palavra refere-se normalmente, portanto,
à assembleia geral de todos os homens livres com direito a voto, os cidadãos plenos de uma pólis. Os
membros da ekklēsía eram os cidadãos, porém os cidadãos nunca constituíam a população total de
uma pólis grega; possivelmente, não existiu uma única cidade-estado em que meramente um quarto
dos habitantes gozassem do status de cidadãos (Cf. STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 311).
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)
tórica pode ser traduzida pelo próprio efeito persuasivo contido em sua enuncia-
ção. Trata-se de um daqueles conceitos que bem sabemos o que significa até que
sejamos compelidos a falar acerca dele, tal como sugere Agostinho de Hipona e
ratifica Ludwig Wittgenstein, em Investigações Filosóficas (1952, 1979). Quando
se fala de um efeito retórico, pode-se querer dizer muitas coisas. Pode-se, por
42 exemplo, estabelecer um vínculo entre o que se diz e algo enganador, superficial. É
possível, igualmente, que se queira mencionar algo de caráter eminentemente per-
suasivo, capaz de promover uma inquietude no interlocutor ou, quiçá, mover-lhe
no sentido de agir em conformidade com aquilo que se propõe. Essas aplicações
do verbete estão associadas ao sentido da retórica como uma ferramenta de per-
suasão, um poderoso instrumento de produção de convicções nos interlocutores.
Nesse sentido, o termo se mostra ambíguo e relacionado ao sentido negativo que
lhe fora concedido por Sócrates e Platão. Mas, há que se falar da existência de
uma retórica que está aquém dos sofistas e perpassa a existência desses, trans-
portando os seus ensinamentos eficazes para além do medievo. Podemos falar de
uma retórica clássica associada a Córax e Tísias, assim como se mostra possível
tratar de uma retórica que amparou a construção dos discursos de grandes ora-
dores da Grécia Antiga, sobretudo durante o século de Péricles. Há lugar, igual-
mente, para uma discussão específica acerca da retórica em Aristóteles, Cícero ou
Quintiliano. Transcendendo aos limites da antiguidade, encontraremos a retórica
instrumental integrando o Trivium e o Quadrivium, flertando com a formação mo-
nástica da Idade Média e culminando em um consorte da composição textual que
lhe fará restringir-se à estilística no período compreendido entre os séculos XVII e
XIX.
No universo da Nova retórica, o meio é a argumentação – em substituição
ao simples discurso, amalgamado à representatividade do orador. O meio se con-
solida através os argumentos – elaborados e estruturados para serem – proferidos
pela oralidade ou pela escrita, com o intuito de converter o auditório às teses que
se lhe apresentam ao assentimento. O fim permanece imutável: a persuasão. No
contexto de uma Nuper-retórica, os multimeios conectam os indivíduos aos es-
paços – físicos e virtuais – ampliando os limites e as modalidades de linguagem
que se formam e transmutam, fragilizando as fronteiras do(s) conhecimento(s) e
tornando os indivíduos crédulos acerca da validade (imutável) e da solidez do
saber superficial que se oferta nos múltiplos espaços, formando generalistas per-
suadidos pela suposta apreensão de saberes que lhe são ofertados de modo ins-
tantâneo. A mediação do conhecimento (entre o sujeito cognitivo e o objeto
cognoscente) passa a ser regida pela instabilidade das certezas, fazendo com que
esse conhecimento revestido de um imediatismo indesejável, se apresente tra-
vestido de verdade(s). Entre os atores do saber, apresentam-se os multimeios,
cuja velocidade de transmissão – e o menor rigor de aferição – amplia a carga de-
sejável de informações despejada sobre os indivíduos, fazendo-os crer que a ra-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
persuasão por meio da linguagem. Além de ser a ideia mais disseminada, essa
compreensão corresponde ao sentido preconizado por Aristóteles (2005, p.95-
96), segundo o qual “a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir
os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que,
como arte, as suas regras não se aplicam a nenhum gênero específico de coisas” 2.
44 Trata-se, portanto, de uma arte do desvelar. Uma competência que se desen-
volve com o intuito específico de identificar aquilo que se deve (des-)cobrir ou
velar, conforme o contexto, para atingir a finalidade precípua da persuasão. Seu
campo de abrangência transcende as especificidades dos campos do saber, motivo
pelo qual perpassa os múltiplos segmentos do conhecimento, fomentando o de-
senvolvimento da faculdade de aplicar os mecanismos mais adequados à persua-
são do interlocutor. Ao sugerir que compete à retórica identificar tais meios,
Aristóteles abre um horizonte de abordagem que permite a manutenção da atua-
lidade da retórica. Ainda que a retórica tenha ultrapassado os limites da acusação
e da defesa de opiniões, que se mostram mais ou menos favoráveis à sustentação
(oral) de um posicionamento – por meio de argumentos produzidos em linguagem
natural – manteve-se a singular característica de alinhar-se com o propósito de
vencer o interlocutor, persuadindo-o. Permanecendo como a nobre arte de pro-
duzir discursos de excelência, em quaisquer segmentos do saber, atravessa os tem-
pos apropriando-se de novas linguagens e mecanismos persuasivos que sejam
capazes de converter o interlocutor ao assentimento das ideias do orador, ou das
ideologias que ele representa.
Desde as suas origens a retórica oferece um conjunto de elementos capazes
de cativar a atenção do ouvinte e modificar a sua tomada de decisão. Esse enten-
dimento ganha reforço quando se analisam as observações concernentes à retó-
rica clássica proferidas por Chaïm Perelman, o idealizador da Nova Retórica,
segundo o qual
a Retórica clássica, a arte de bem falar, ou seja, a arte de falar (ou es-
crever) de modo persuasivo se propunha estudar os meios discursi-
vos de ação sobre um auditório, com o intuito de conquistar ou
aumentar sua adesão às teses que se apresentavam ao seu assenti-
mento (PERELMAN, 1997, p. 177).
linguagem e passando a ser vista como uma técnica de elaboração de belos dis-
cursos, limitando-se ao tratamento das figuras linguísticas e afastando-se propor-
cionalmente do universo filosófico à medida que se aproxima do gênero literário.
Consagrada à persuasão, na antiguidade, a Retórica representava uma forma
de expressão suasória, que se convertia em uma maneira especificamente política
de falar. Sua repercussão entre os atenienses, que se orgulhavam de conduzir os 47
seus assuntos políticos pelo método discursivo, transformou a retórica em uma
arte política por excelência, fundamentada no princípio da persuasão. Essa incur-
são, aliás, revela a existência de um liame necessário entre as questões acerca da
retórica antiga e os problemas da Retórica no mundo contemporâneo, motivo pelo
qual se faz imprescindível identificar os traços constitutivos da retórica antiga entre
os principais pensadores que se dedicaram ao tratamento das questões que lhe
estão associadas. É inegável a contribuição da Arte Retórica à(s) nova(s) Teoria(s)
da Argumentação, donde se mostram meramente depreciativos os comentários
que são esboçados ao seu respeito, em detrimento das suas inúmeras contribui-
ções. A Nova Retórica desenvolvida por Perelman, por exemplo, possui um traço
distintivo em relação às demais modalidades retóricas, porque
designá-la como uma Nova Dialética, tendo evitado esta nomenclatura em virtude
da aproximação entre o termo e a tradição pós-hegeliana. Há outras razões que
lhe fizeram preferir uma aproximação com a Retórica:
linguagens, por sua vez, manifestam-se por multimeios e formam redes – e sub-
redes – de comunicação. Enquanto a Retórica se caracterizava pela atenção espe-
cial ao orador e a Nova Retórica nos argumentos, a Nuper-retórica procura se
consolidar com a ideia de Estrutura Dialógica do Conhecimento, segundo a qual a
participação dos entes envolvidos propicia a formação de um saber sólido e cons-
truído coletivamente. 51
As fragilidades da Nova Retórica, não superadas pela Novíssima Retórica de
Santos, dão azo à possibilidade de uma Nuper-retórica. A concepção de uma
Nuper-retórica incorpora elementos próprios da estruturação perelmaniana, mas
sugere uma inversão de algo proposto pela teoria hermenêutica de Schleierma-
cher, numa perspectiva que antepõe a Hermenêutica à Retórica, embora ampa-
rando esta naquela. Schleiermacher sugere que
Considerações finais
Entre os gregos antigos, a retórica favorecia a inserção política do indivíduo.
Cumpria, nesse sentido, a função de promover a integração social (dos hómoi) e
amplificava a capacidade de ouvir e ser ouvido. Auxiliava, por assim dizer, na cria-
52
ção de uma identidade. Com isso, propiciava o reconhecimento do indivíduo em
virtude do seu caráter único e distintivo. Pela retórica procurava-se exacerbar a
autenticidade de um orador. Em outras palavras, a retórica estava essencialmente
ligada ao falar persuasivo, motivo pelo qual se confunde, ainda nos dias de hoje,
retórica e oratória. No entanto, mesmo existindo uma conexão entre os termos,
uma vez que a oratória assume uma das feições mais tradicionais da retórica, não
se pode restringir o seu campo de atuação aos domínios da oralidade. A essência
da tradição retórica reserva consigo aquilo que se configura como a sua própria
natureza: a persuasão. Ser persuasivo é o objetivo último do orador. Por conta
disso, permanece atual o entendimento que encontra na retórica um sentido ins-
trumental, pragmático e dedicado à persuasão.
Aristóteles já assinalava a imprescindibilidade do estudo da retórica para
identificar os meios de persuasão. Tais meios, no entanto, sofrem mudanças con-
forme o contexto e as transformações sociais. No decorrer dos tempos, novas lin-
guagens, tecnologias e mecanismos de persuasão se desenvolveram com o
objetivo de adequar-se aos tipos de auditórios e interlocutores que foram sur-
gindo. Conforme o nível de esclarecimento e informação de um interlocutor, os
argumentos e estratagemas de persuasão precisam de maior precisão. Para aten-
der às exigências de um público mais rigoroso, se faz mister a utilização de um
maior arcabouço de elementos conceituais, mais abrangente e especializado. Uma
vez que a retórica ganha novas feições, conforme avançam os meios que se mos-
tram adequados para cativar os interlocutores, precisamos desvelar esses meios
e identificar quais elementos se mantêm imutáveis no decorrer da sua trajetória.
Um traço constitutivo da retórica, que se incorpora à Nuper-retórica, consiste
no pressuposto persuasivo que lhe orienta e condiciona a sua aplicação. Quem
argumenta, busca conquistar a atenção do interlocutor para modificar – ou moti-
var – a sua decisão. É preciso, portanto, afetar o público. Isso significa que a retó-
rica atinge o campo das inclinações pessoais, porque move o interlocutor a tomar
um posicionamento que corresponde aos interesses do orador. Assim, seu com-
promisso com a eficácia se reitera e corrobora o entendimento de que se trata de
uma arte, a arte de argumentar, de persuadir.
A Nuper-retórica preenche um nicho que se formou com o esvaziamento de
valores da sociedade. Esse esvaziamento se traduz pela multiplicidade de meios
e pela fragilidade dos princípios. Os fins da Nuper-retórica são os mesmos que ca-
racterizaram todas as feições assumidas pela retórica no decurso da história: a
persuasão e o assentimento às teses formuladas para conquistar a adesão de mais
interlocutores. Por esse motivo, pode-se dizer que os fins permaneceram intactos,
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
imutáveis e invariáveis; suasórios como o canto das ninfas e das sereias. O fulcro
da Nuper-retórica se mostra análogo ao pressuposto orientador das múltiplas ma-
nifestações da retórica: a persecução suasória.
De contornos nitidamente pragmáticos, os argumentos se revestem de uma
simplicidade indelével. Aquilo que originalmente integrava o campo da retórica,
pela expressão de uma linguagem acessível e pela expressão enfática da segurança 53
do orador, foi incorporado pela Nuper-retórica através de codinomes e caracte-
rísticas como intuitivo, produtivo e dotado de mobilidade. Não se trata desses
conceitos, mas dos seus respectivos significados, enquanto elementos constituti-
vos de um objeto que cativa, seduz e conduz pela sua própria forma. Aquilo que
vale para os objetos, também ocupa lugar de destaque no campo dos aplicativos
e softwares para dispositivos eletrônicos, incluindo os seus respetivos sistemas
operacionais. A marca, enquanto expressão gráfica de um fabricante, passa a in-
tegrar um arcabouço de símbolos linguísticos que, amalgamados, indicam status,
poder, posição social e competência profissional.
Esse é o motivo pelo qual apresentamos esse conjunto amorfo de aponta-
mentos, que sinalizam a possibilidade de criação de um sistema complexo de con-
ceitos, técnicas e procedimentos, que resgatam os elementos que servem para
consubstanciar uma Nuper-retórica, calcada nos pressupostos da ação voluntária,
no interesse da persuasão e ajustada a um modelo de pensamento que se pauta
na ideia de Fast Thinking (Cf. BOURDIEU, 1997, p. 38-42). Orientada pelo resgate
de traços essenciais da retórica, em seus diversos matizes, sua configuração trans-
cende o campo do verbal indicado por Eemeren e Grootendorst (2004) em sua
Pragma-dialética, mas permanece ligada ao ambiente persuasivo das peças argu-
mentativas, implicando uma forma de argumentação não-verbal, cujos modelos
de retórica – da antiguidade às pretensões da Novíssima retórica – não contem-
plaram. Aquilo que se designa como argumentação não-verbal, nos estreitos limi-
tes deste esboço, corresponde à organização sistemática de elementos e
componentes não-verbais de grande valor persuasivo. Trata-se de uma argumen-
tação, porque não deixa de ser uma forma de apresentar justificativas para uma
ideia que se pretender incutir em outrem, mas foge do escopo verbal, porque não
comporta a oralidade, sem, entretanto, desprezá-la.
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AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)
Geder Parzianello
55
Universidade Federal do Pampa
gederparzianello@yahoo.com.br
Resumo
As dimensões sociais e contextuais da Retórica e da Argumentação ganharam especial mol-
dura no cenário recente da vida política brasileira com a discussão em curso do processo de
impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff. A midiatização do evento jurídico-político
do processo favoreceu a multidimensão dos efeitos de linguagem. No jogo retórico-argu-
mentativo projetou-se o embate interpretativo e de sentidos em torno da compreensão dos
fatos que poderiam conduzir à verdade. O imaginário social no cotidiano dos brasileiros os-
cilou, de um lado, entre a consciência da necessidade de mudanças, do combate à corrupção
e do fim da impunidade, e, de outro lado, a interpretação do processo como golpe contra a
democracia brasileira. No espaço tenso das controvérsias, identificou-se a atuação de uma
retórica dos imorais, um discurso ético coletivo que servia a ambos os lados para encobrir a
imoralidade do indivíduo.
PalavRas-chave
Impeachment. Retórica. Argumentação. Mídia. Golpe.
Suas imorais condições foram, no entanto, sucumbindo frente a apelos éticos, que
falaram mais alto no contexto de instauração do processo de impeachment, quando
então os parlamentares avaliaram, primeiramente na Câmara e depois no Senado,
os indícios de que o crime de responsabilidade teria sinais mínimos de presumibi-
lidade, ainda sem receber avaliação de mérito ou ajuizamento de provas.
A ética sobrepondo-se à moral. A retórica dos imorais impondo-se pela ética 57
da coletividade. O discurso da ética parece quase sempre privatizado nos atos co-
municacionais de quem nos fala em nome de suas coletividades, em nome de seus
partidos, de sua classe social ou profissional, de empresas ou instituições. Tomado
de forma isolada, esse tipo de discurso acaba supervalorizando a ética e confun-
dindo muitas vezes sua dimensão com a moral.
Com efeito, a ética e a moral são objetos distintos. Para Hegel (2002), filósofo
idealista alemão, por exemplo, a ética era coletiva. Nela, não haveria lugar para o
indivíduo. Os ditos “proprietários” da ética se apoiavam nas suas coletividades
para darem status de correção a suas decisões e condutas. No discurso da política
brasileira, a ética tem servido justamente para encobrir a retórica dos imorais por
trás da coletividade e criar no imaginário social a fantasia das decisões moralmente
perfeitas.
Quando se leva o ideal de uma sociedade eticamente perfeita ao extremo da
coletividade, a ética pode conduzir a sociedade ao esmagamento da moral, que é
a consciência do indivíduo diante dos dilemas naturais de sua existência. Mas é o
juízo moral que dá sentido às escolhas individuais.
Tomar decisões por princípios morais e não necessariamente éticos ou cole-
tivos, e defender a liberdade e a consciência individual deveriam prevalecer sobre
as consciências coletivas. Esse humanismo de consciência, todavia, foi duramente
criticado ao longo da história, como sendo um desvio ideológico, mesmo por quem
defendia curiosamente o pensamento crítico. Nessa contradição, acaba-se presu-
mindo que o indivíduo deveria abdicar de sua forma de pensar conforme sua cons-
ciência, por conta de uma ética convencionada em sua coletividade próxima para
não ser individualista, embora se deseje sua emancipação como sujeito crítico,
capaz de fazê-lo guiar-se por sua própria consciência. Trata-se de uma contradição,
uma lógica anacrônica, arbitrada na ideologia que autoriza a anulação e alienação
da subjetividade e da individualidade humanas.
O linguista francês Émile Benveniste (2008) dizia que há palavras-embreagem,
aquelas que se levam adiante, como slogans, por falta de elementos empíricos ou
lógicos. Usadas como palavras de guerra, essas palavras-embreagem não formam
consciências críticas nem contribuem na dialética desejável às sociedades con-
temporâneas. Servem tão somente para desacelerar a argumentação de quem
controversa e contradiz, supondo prevalecer uma ética sobre as outras e revelam
a retórica dos imorais. Foi assim com o emprego da palavra “golpe” no episódio
do impeachment.
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF
A retórica, desde Chaïm Perelman (1996), com seu estudo datado de 1957,
enquanto estudo das formas de comunicação em favor da busca por adesão a
ideias e argumentos (diferentemente da tradição clássica grega de quatro séculos
antes de Cristo) nos revela que há um discurso em torno da ética que parece muito
mais intencionado em relação a seus efeitos do que propriamente mantido para
58 que se defenda o que ele de fato deveria inspirar.
O momento político atual e o futuro próximo no Brasil exigem ainda mais
que se reflita sobre isso. Os esforços argumentativos em torno da questão do im-
peachment da presidenta Dilma Rousseff tiveram diferentes auditórios particulares
e universais, distribuídos entre as esferas congressistas, a sociedade e a mídia de
cobertura dos sucessivos eventos relacionados ao acontecimento do impeachment
e a todas as racionalidades e emotividades envolvidas.
Acerca do papel da emoção e do racional na sociedade midiatizada, Michel
Maffesoli (2008, p. 9) lembra que “não se trata mais de pensarmos apenas no in-
divíduo racional, mas, em termos de pessoas emocionais. A mídia é o vetor dessa
contaminação”, escreve o sociólogo francês. Conforme ele explica, a pós-moder-
nidade tem na superação do indivíduo e na emergência da pessoa (persona, ou
máscara) uma das saturações de nosso tempo.
O não-racional é da ordem do afeto, do emocional. A sociologia compreensiva
francesa dedicou nos últimos anos considerável esforço na direção de uma expli-
cação de mundos por uma episteme radicalmente nova. Em Latim, explicare equi-
vale a retirar as dobras. Tudo é plano e liso. Maffesoli, por sua vez, trabalha na
inversão desse processo, compreendendo na percepção sensível sobre o cotidiano
uma realidade a ser considerada, menos monoteísta, que leve em conta as apa-
rências e as interações simbólicas, bem como o politeísmo de valores.
Perelman (1996, p. 107) lembra que uma ética e uma estética poderiam ser
fundadas na superioridade do que melhor encarna a essência e na obrigação que
há em chegar a eles, na beleza de quem aí chega. É porque o homem é feito para
pensar que, para Pascal, bem pensar é o primeiro princípio da moral. Tal condição
moral se espera, portanto, de forma indissociável aos homens públicos. A sua con-
dição de imoralidade se encontra justamente na contradição entre essa encarna-
ção de que fala Perelman e as presunções públicas em torno de suas condutas
impróprias relativamente a crimes, como sonegação, corrupção, falsidade ideoló-
gica, mentiras e desvio de recursos públicos. Com efeito, como poderiam sujeitos
marcados por suspeitas dessa natureza emprestarem alguma credibilidade ao juízo
que dão a terceiros no julgamento sobre crimes de natureza similar, mais ou
menos graves que esses?
Arautos da razão, esses sujeitos invocam fatos e verdades com apego ao real
em presunções que jamais se considerariam válidas para eles mesmos. Suas es-
tratégias argumentativas aproximam opiniões formais a valores. Olímpio-Ferreira
(2011, p. 609) interessado em como o enunciador se constrói no discurso e nas
diferentes estratégias argumentativas frente a diversificados auditórios pontua
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
de forma autônoma, por meio das redes sociais e das ruas, a inquietação em torno
de acordos que se faziam sentir para blindar alguns em detrimento de outros. Na
metáfora criada para descrever esse comportamento social da população brasi-
leira, e também em alusão à extensão do território nacional, chegava-se a dizer
abertamente por todo o país que “o gigante acordou”.
60 A retórica dos discursos de maior apelo e a adesão popular empunharam for-
malmente a duplicidade da questão em torno do impeachment, trazendo ao de-
bate os argumentos em torno da moralidade questionável daqueles que ali
estavam, em tese, na condição de seu espaço de fala, para justamente restabele-
cer a verdade.
Estavam dadas as condições reais de argumentação. Na disputa em torno das
controvérsias relativas ao impeachment, surgiram as mais variadas posições. Para
efeito deste artigo, interessa identificar pontualmente que, de ambos os lados, os
que eram a favor e também os que eram contra, dadas as suas próprias condutas
que entravam em questionamento moral, tiveram dificuldades para firmarem
acordos com finalidade argumentativa e sustentarem assim suas posições a res-
peito do tema. Mesmo na condição de seu lugar de argumentação enquanto par-
lamentares, estes não conseguiram enfrentar a deslegitimação de seus pontos de
vista, dada a fragilidade que sua própria condição emprestava à credibilidade de
seus argumentos.
Acerca da argumentação, escreve Perelman (1996) que, ao tratar dos tipos
de objeto de acordo, sobre fatos e verdades, presunções e valores, há dois modos
normais para que um acontecimento perca o estatuto de fato: quando são levan-
tadas dúvidas no seio do auditório ao qual ele fora apresentado e quando se am-
plia esse auditório, acrescendo-lhe outros membros, cuja qualidade para julgar é
reconhecida e que não admitem que se trata de um fato. As duas condições foram
dadas no caso da discussão acerca do impeachment no Brasil. Perelman (1996, p.
75) afirma que “esse segundo processo entra em jogo a partir do momento em
que é possível mostrar eficazmente que o auditório que admitia o fato é apenas
um auditório particular, a cujas concepções opõem-se os membros de um audi-
tório ampliado”.
Em seu texto Para além do sujeito: Nietzsche, Heidegger e a hermenêutica,
Vattimo (1989) analisa o que Nietzsche escrevera sobre verdade e mentira em
1873, e que, no entender do filósofo alemão, toma status de sistema metafórico
canônico na consideração de todos. A experiência de interpretação teria, assim,
uma espécie de desfundamentação, um Abgrund, por meio do qual se perde o
sentido de continuidade de mundo e que, portanto, converte a própria interpre-
tação a uma verdade enquanto possibilidade de sentido.
Foi mesmo Baudrillard (1996) quem, por fim, mostrou o quanto a possibili-
dade de múltiplas visões de mundo é constituinte de um sentido de realidade.
Disse ele que o mundo contemporâneo está na idade da simulação. A interpreta-
ção do simulacro nos oferece como retórica de nosso tempo o modelo de intera-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
ções em que se baseia a sociedade pós-moderna. Baudrillard vai nos ensinar a ver
o outro por nós mesmos, em meio a uma cultura de excessos de real.
A obscenidade fria do visível, responsiva na mídia por programas como reality
shows, tem também sua materialização na retórica e na política. Governos traba-
lham na busca pela aparência de uma transparência de suas políticas e ações,
tanto quanto toda a sociedade aprenderá cada vez mais a reclamá-la. Essa visibi- 61
lidade, todavia, é encenada. No discurso da defesa de seus próprios interesses, os
homens públicos encontrarão formações retóricas estratégicas para dizer de um
estar-no-mundo que difere ligeiramente da forma como lhes são imputadas acu-
sações e críticas.
Dirão que suas contas em paraísos fiscais são trusts ou operações off-shore,
e não contas próprias no exterior; também dirão que a antecipação de recursos
por parte dos bancos públicos ao governo não se configuram empréstimos nem
operações financeiras ilegais; dirão que os recursos desviados foram para progra-
mas sociais, mesmo que tenham sido usados nesse sentido em menor proporção
do que para outras finalidades; dirão, ainda, na lógica do interesse pela simulação,
que os fatos descritos por um ou outro lado serão sempre uma forma equivocada
de reconstruir a realidade e, portanto, de forçar deliberadamente a inversão dos
fundamentos da verdade.
Essa reconstrução será sempre um jogo. Na esteira do pensamento socioló-
gico francês contemporâneo, diremos que se trata de um jogo de aparências.
Nesse jogo, vale não exatamente o que é, mas o que aparenta. A essência está no
parecer. A realidade importa menos, haja vista que é pela convicção em torno dos
argumentos e do que parece ser verossímil, que se dará o assentimento do audi-
tório. Não temos, evidentemente, como alcançar a chave para a explicação do
mundo contemporâneo. Importa pelo menos compreendê-lo. E nossa compreen-
são se dá invariavelmente por indícios. E os indícios que temos nos oferecem uma
visão de que a retórica contemporânea de fato privilegia o campo do aparente, o
domínio das estratégias de sedução num jogo em que a racionalidade objetiva e
instrumental conta cada vez menos.
Só visto o mundo dessa forma parece fazer sentido que o sujo fale do mal la-
vado, como se diz em expressão popular, em português corrente no Brasil. Ocorre
que a controvérsia sentida pela imoralidade dos que acusam fere a coerência com
que ainda se deixam levar pelo paradigma da modernidade. Da mesma forma, a
imoralidade dos que governam não será mais tolerada. As primeiras quatro se-
manas do governo interino de Michel Temer, em maio de 2016, se viram forte-
mente marcadas por novas denúncias e dois de seus ministros foram então
afastados, envolvidos em denúncias de corrupção praticada em anos anteriores.
O New York Times, em 06 de junho, trouxe como imagem de título o Brasil como
medalhista de ouro em corrupção, estampada a figura de Temer como presidente
interino diante das acusações envolvendo seus ministros. A alusão à imagem de
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF
lógicas, conforme Perelman), mas, sobretudo, psíquicas e sociais, será natural re-
conhecermos uma função dinâmica na moralidade, pelo que se ordenam ou se
desordenam os mundos em suas múltiplas realidades.
A moralidade, portanto, ultrapassa o diâmetro de uma questão filosófica. Ela
responde pela condição dos sujeitos no mundo da vida, através da forma de seus
64 discursos sentidos como forma de ação sobre outrem. Essa concepção claramente
estruturalista da linguagem materializada no discurso político em torno do juízo
ético e da moral nos permite pensar o que estamos fazendo de nós-no-mundo,
quanto a nossas representações e produções de sentido.
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CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO
MIDIATIZADA: O EThOS TESTEMUNhAL
DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O ABUSO DE DROGAS
Igor Sacramento
65
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
igor.sacramento@icict.fiocruz.br
Resumo
Este texto analisa a entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta, no Fantástico de 13 de
setembro de 2009, com o objetivo de demonstrar como, numa sociedade midiatizada como
a nossa, o ethos testemunhal se reordena. As formas de produção de confiança e de sin-
ceridade no enunciado e no enunciador também se transformam. Os regimes contempo-
râneos de visibilidade midiática configuram um novo papel para a imagem. A prova ética
não se produz apenas no âmbito da oralidade e da escrita, mas também no audiovisual.
Nesse contexto, emergem formas e protocolos audiovisuais que permitem a construção
de uma cena fiadora: a autorreferencialidade, a correferencialidade e a dramatização.
PalavRas-chave
Ethos. Midiatização. Testemunho. Confiança. Sinceridade.
Introdução
Enquanto ainda é presente a constituição de celebridades pela perfeição (cor-
poral, moral, estética, artística, sentimental), há segmentos da mídia que se dedi-
cam a noticiar as falibilidades, os infortúnios, os lamentos e as doenças
experimentadas por elas. De vício em drogas a distúrbios alimentares, a mídia,
contemporaneamente, com frequência, apresenta a “realidade suja”, imperfeita,
da vida das celebridades (HARPER, 2006). De diferentes formas, a constituição
delas como vítimas sofredoras pode ser tão ou mais lucrativa do que aquelas cons-
truções como heróis ou heroínas inabaláveis – olimpianos.
O crescimento do consumo de sites, programas, revistas e jornais sobre ce-
lebridades comprovam a formação de um interesse público por tropos de intimi-
dade, de reflexividade e de autenticidade nas formas e linguagens da exposição
midiática dos sofrimentos íntimos. Ou seja, é cada vez maior a construção discur-
siva de celebridades e o interesse por elas como “elas realmente são”.
A cultura midiática contemporânea está repleta de produtos que têm o relato
pessoal como fonte para a produção simbólica. O imperativo por testemunhar, ou
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS
gumentação pelo uso da linguagem, dos conteúdos transmitidos, das figuras e dos
recursos empregados.
Neste capítulo, analisaremos o ethos testemunhal construído na entrevista
de Fábio Assunção à Patrícia Poeta sobre o abuso de drogas, no Fantástico de 13
de setembro de 2009, com o objetivo de demonstrar as rearticulações da confiança
68 e da sinceridade nas narrativas de si, numa sociedade midiatizada, marcada por
processos, dispositivos e protocolos midiáticos que reconfiguram a produção de
subjetividades e identidades, bem como as práticas de sociabilidade, em diversos
aspectos da vida social. Além desta introdução, o texto conta com mais três partes.
Discorremos sobre as mudanças do ethos testemunhal numa sociedade midiatizada
para, depois, analisarmos a entrevista do galã da TV Globo sobre seu processo de
recuperação em rede nacional. Como deixamos claro, nossa análise privilegiará,
neste momento, o ethos em detrimento do pathos e do logos no sistema retórico.
ciso que tal discurso crie um ethos que produza uma “eficiência social, uma vez
que permitem definir cenas de enunciação nas quais os atores sociais dão sentido
a suas atividades” (MAINGUENEAU, 2008, p. 26).
Em nossa avaliação, em larga medida, essa eficiência social tem no discurso
midiático um vetor absolutamente poderoso, isso porque, ao concordarmos com
74 Maingueneau, identifica-se que o poder “de persuasão de um discurso deve-se,
em parte, ao fato de ele constranger o destinatário a se identificar com o movi-
mento do corpo, seja ele esquemático ou investido de valores historicamente es-
pecificados” (2008, p. 29). Mais do que o dito, busca observar em que condições
é dito. O contrato entre enunciador e enunciatário se estabele a partir de um “es-
coramento recíproco entre a cena de enunciação e o conteúdo nela desdobrado”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 29). Esse movimento nos conduz àquilo que Fausto Neto
(2008) qualificou como enunciação midiatizada. O que tal expressão parece en-
sejar é o movimento pelo qual a sociedade vai gradativamente se transformando
na direção do que o autor identifica como uma sociedade em vias de midiatização.
Uma das características da enunciação midiatizada é contar com estratégias de
autorreferência, visando a um conjunto de operações voltadas para “a realidade
da construção que é convertida na própria realidade do acontecimento” (FAUSTO
NETO, 2008, p. 142). A entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta começou
mostrando a relação íntima entre os dois, por meio de imagens deles conversando
e rindo, num clima de informalidade e descontração, indo em direção ao local da
entrevista, à beira da piscina do quintal da casa do ator. Desse modo, a entrevista
construía a relação íntima encenada entre eles como correferência enunciativa.
Assim, além dessas imagens, outras de diversas personagens do ator em novelas
da TV Globo e da relevação do envolvimento dele com drogas no Jornal Nacional
contribuem para a construção de uma trajetória decante (da fama ao vício). Ao
mesmo tempo em que promove uma ancoragem da lembrança sobre Fábio As-
sunção, propõe uma expectativa em relação à própria entrevista: como espaço
para o ator falar sobre os seus problemas, sua remição e sua superação.
Mesmo admitindo que a midiatização seja um processo que afete toda a so-
ciedade, ao privilegiar o trabalho de produção de sentido das práticas jornalísticas
como esteio para a produção de referências e de sua própria autorreferência,
Fausto Neto (2008) acentua uma dupla dimensão da linguagem constitutiva da
enunciação midiática: uma como prática discursiva do jornalismo (que chamare-
mos de hipótese instrumentalista) e outra como constituinte das operações enun-
ciativas que engendram manifestações discursivas (que nomearemos hipótese
construcionista). Esta última nos interessa mais frontalmente, pois, se a midiati-
zação toma forma através das operações de linguagens e se tais operações inter-
ferem tanto nas condições de produção quanto nas de circulação e
reconhecimento, envolvendo o topoi de dada sociedade, então a entrevista não é
apenas uma enunciação midiática, que atua como mediadora do público com dada
realidade social, é um acontecimento. Nesses termos, a entrevista não é uma
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
Fábio Assunção conta em seguida que se internou pela primeira vez, logo
depois do término da novela Paraíso Tropical, em 2007, numa clínica no Arizona,
nos Estados Unidos. Passou lá dois períodos, como contou:
trabalho, a revelação da doença por Ana Maria Braga se estabelece dentro dos
códigos da sinceridade. Ela se sente na obrigação de contar em detalhes para seus
fãs a verdade sobre o seu processo de adoecimento, que até então não tinha se
tornado de conhecimento público. Antes mesmo da imprensa, ela buscou manter
com seus telespectadores uma relação baseada na sinceridade e na confiança, em
78 que a verdade deve ser dita e não escondida. Compartilhar experiências de sofri-
mento envolve, numa sociedade que sobrevalora as relações íntimas e o calor hu-
mano, a identificação, a compaixão e o acolhimento.
A revelação de Fábio Assunção não é só por uma dívida para com o público
ou por um desejo de estabelecer uma relação sincera, mas se configura, ao mesmo
tempo, como um alerta e um exemplo de superação. A partir de sua experiência,
ele procurava encorajar os telespectadores a agirem em benefício de sua própria
saúde. Nessa configuração da própria doença como um alerta, ele contou: “Eu es-
pero que o que estou construindo nesse momento seja bom para quem esteja”.
Sendo assim, a própria experiência do ator é narrada para demonstrar uma exem-
plo de êxito e positividade na resolução de problemas com drogas, mas também
com outras adversidades da vida. O que ele buscava demonstrar ao público era a
sua capacidade de autocontrole que permitira a superação da doença e a reto-
mada da carreira, sobretudo na medida em que evitava comportamentos de risco
à sua própria saúde. Desse modo, ator respondia à demanda social de transfor-
mação das celebridades em exemplos de “heróis de si mesmos”, na medida em
que o processo de salvação é fundamentalmente configurado na cultura contem-
porânea como uma atividade individual, que, mesmo quando o indivíduo conta
com ajuda especializada, cabe a si mesmo a escolha pela vida saudável e feliz, uma
vez que a vida é cada vez mais configurada como se estivesse dentro do espaço
de responsabilidade individual (SACRAMENTO e FRUMENTO, 2015). Essa conexão
entre riscos e práticas diárias imediatamente coloca o autocontrole no centro de
atenção social e individual. A ansiedade diante da configuração de inúmeros fa-
tores de risco transforma a relação individual com as formas de desejo e os pró-
prios comportamentos. Afinal, é entendido na sociedade contemporânea que é
na capacidade individual de controle e monitoramento da própria relação com di-
versas práticas cotidianas, bem como na adoção de hábitos considerados saudá-
veis que se encontra a garantia de evitação de doenças e sofrimentos (VAZ e
BRUNO, 2003).
Nesse sentido, é importante observar o quanto em narrativas pessoais de so-
frimento por celebridades como essa se promovem por meio de um ethos tera-
pêutico, isto é, um modo de agir, pensar e sentir apropriado para a passagem do
que Eva Illouz (2012) chamou de modo automático do ser (“doente”) para o modo
autorrealizado do ser (“saudável”). No primeiro modo, se não doentes, todos
podem se sentir cada vez mais num estado de quase-doença, vulneráveis a um
mundo visto como ameaçador à segurança individual, física e psicologicamente.
Essa situação é, então, configurada como o ponto de partida da narrativa sobre a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
PATRÍCIA: Eu acho que a pergunta que todo mundo se fez é: “Por que
o Fábio Assunção, esse homem bonito, bem sucedido, famoso, que-
rido por tantas pessoas, acabou sendo atraído por drogas?”. Você
tem resposta essa resposta?
FÁBIO: [uma breve pausa]. Tenho. Eu acho que o espírito da gente...
É... [mais uma pausa breve]. Ele não está interessado se você tem
tudo, se você não tem tudo, se você faz sucesso, se você não faz su-
cesso. Eu fui, sei lá, brincar com uma coisa que não tinha dimensão
do quanto era perigosa.
pelas cenas de arquivo exibidas. Uma delas aparece logo depois de a apresenta-
dora ter acionado a opinião corrente sobre o ator pelo recurso da exclusividade
sintética: “a gente” e “todo mundo” como inclusão da jornalista no conjunto de
telespectadores e como exclusão do entrevistado (o “tu”) na situação enunciativa.
Dessa forma, a jornalista assume o papel de representante da opinião do público
sobre o ator, bem como de sua preocupação com seu estado de saúde, sobretudo 81
no que envolvia o seu retorno ao trabalho. Essa dinâmica entre inclusividade
(“nós”, a entrevistadora e nós, como telespectadores) e exclusividade (o entrevis-
tado como “tu”, tanto para a apresentadora quanto para nós, numa relação de
forte intimidade e proximidade) possibilitou reforçar o imaginário de êxito sobre
o ator e a exigência de os célebres terem vidas exemplares. Exacerba, portanto, a
surpresa em relação ao adoecimento do ator (que “tem tudo”) e cobre que ele se
recupere logo (“volte a contracenar”), como aparece em outros momentos da en-
trevista. Assim, nessa operação, as imagens ancoram um trabalho memorável pro-
posto ao telespectador em relação à vida e ao caráter de Fábio Assunção. Ele teve
bastante sucesso e, mesmo assim, sucumbiu à drogadição.
Além disso, a edição desse pequeno trecho da entrevista conforma a relação
entre a doxa, a memória e a moral. O trecho de outra entrevista do ator, em 27
de dezembro de 2003, para o mesmo programa Fantástico, ele afirmou: “Eu não
posso pedir mais nada, eu tenho saúde, uma família linda, eu tenho trabalho.
Assim, eu só tenho a agradecer”. A inserção dessa pergunta se deu justamente,
quando, na de 2009, a apresentadora concluiu a sua pergunta. A pergunta, como
vimos, buscava mobilizar a opinião corrente sobre o ator, mas também exercer
um tipo de trabalho memorável duplamente referente e autorreferente: primei-
ramente por demonstrar um depoimento do galã provavelmente na época em
que ele estava mais prejudicado pela drogadição e por inserir o próprio programa
- para além da TV Globo - como objeto e elemento participante da realidade apre-
sentada, da própria vida do ator e da nossa como telespectadores. Afinal, são ima-
gens que orientam nossa memória sobre o ator pela exibição e propõe para nós
um tipo bem específico de conformação de imagem moral sobre ele: de alguém
com muito sucesso, muito bonito, dinheiro e talento, que passou por uma grave
experiência com as drogas, mas que conseguiu superar os problemas e retornar
ao status de exemplo de pessoa. Agora, conta com um ethos testemunhal: como
aquele que teve e superou uma experiência de sofrimento e pode ser alçado à
posição de legitimação do relato pela própria experiência. Em relação ao relato
do ator, somos convidados a acreditar que há maior sinceridade na entrevista de
2009. A julgar pelo que disse, que vivia com a doença por anos e que ela tinha se
intensificado “nos últimos 3, 4 anos”, é possível que ele estava escondendo a ver-
dade na entrevista de 2003. Ele tinha, de fato, algo a pedir: pela superação do pro-
blema. Embora àquela época o uso de drogas não tenha sido percebido como um
problema para o ator, a construção da narrativa da entrevista de 2009 pela edição
reforça uma oposição: entre o mascaramento do realmente vivido como segredo
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS
emocionais e encenados, mesmo quando essa encenação tem como texto a pró-
pria vida.
A sensação de intimidade se deu, primeiramente, no ethos cúmplice da jor-
nalista. Como observa Fechine (2009), no jornalismo televisivo, a atuação de re-
pórteres e apresentadores tem sido cada vez mais orientada dentro dos códigos
84 do ethos da cumplicidade do que do distanciamento, que caracterizou a atividade
profissional fortemente, pelo menos até final dos anos 1990. Nesse ponto, como
já comentamos, há muitos momentos de trocas de olhares, sorrisos, proximidades.
Outro exemplo dessa ambientação íntima está noutro momento. Quando a jor-
nalista pergunta ao ator, quem mais esteve ao seu lado. Ele responde que, além
dos seus pais, sua então namorada, Karina. O plano abre bastante e vemos a na-
morada junto a um amigo do casal. Patrícia Poeta que diz: “A Karina está aqui co-
nosco”. Esse movimento de câmera faz com que mais uma vez percebamos
mudanças na enunciação midiatizada: a realidade da construção do enunciado se
assume como referente no lugar da construção da realidade. Obviamente, toda
realidade enunciativa é construída por meio de um conjunto de signos. No en-
tanto, quando o referente para a construção da credibilidade deixa de ser uso de
fontes e a linguagem dessubjetivada e passa a primar pela subjetivação, pela ex-
periência íntima encenada para as telas e pela referência os bastidores da cons-
trução do acontecimento, há uma mudança no processo de enunciação
jornalística: não busca mais exercer a função de mediador entre campos e agentes
da sociedade, senão toma a própria ambiência constituída pela enunciação como
referente fundamental da própria atividade enunciativa.
Imerso numa sociedade midiatizada, Fábio Assunção afirmou que se sentiu
aliviado com a exposição pública de sua drogadição. Segundo ele, foi o momento
em que “não precisou mais esconder”, pôde finalmente assumir seus problemas
e buscar tratamento. Sobre a relevação de seu problema nos jornais, ele concluiu
para a apresentadora: “Eu me senti aliviado”. O que é interessante pontuar nessa
afirmação é o quanto ela demonstra o rearranjo da subjetividade a partir dos re-
gimes midiáticos de visibilidade. Embora o processo de tratamento do ator não
tenha sido exposto, ele mesmo reconheceu a necessidade de se tratar por conta
da exposição. A exposição de sua condição impulsionou-o ao tratamento, para
poder assim não apenas controlar o vício, mas, sobretudo, para reposicionar a sua
imagem diante do público: como a de um sobrevivente.
Considerações finais
A existência de uma entrevista como essa – na qual uma celebridade revela
ao público sua dependência química e conta que iniciou o tratamento por ter tido
a doença exposta – evidencia as transformações contemporâneas da sociedade
vetorizadas por processos, dispositivos e práticas midiáticas que reorganizam a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
sua conscientização para busca tratamento. Sua imagem havia sido abalada, e ele
precisava de algum modo repará-la. Não precisa mais preservar uma imagem de
perfeição, depois da revelação, e podia se tratar.
Sendo assim, intrínseca à transformação do tecido moral da revelação dos
sofrimentos íntimos por meio de testemunhos, está uma mudança no valor colo-
86 cado na ancoragem da produção de subjetividades contemporâneas: a sinceri-
dade, a pessoalidade, a intimidade e a expressão aberta de sentimentos. O
processo testemunhal de celebridades foi concebido para ser uma demonstração
de competência e sucesso, ou, em caso de fracasso, de sobrevivência exemplar,
de reconstrução de uma carreira ou de um retorno. Mas as aparências que estão
em questão não são as de redenção do “eu privado” da celebridade. São as de re-
produção ou de remodelação de uma imagem de prestígio, ou uma persona ge-
neralizadamente reconhecida e desejada com a qual Fábio Assunção tem que lidar
nos processos de autoidentificação e de performance social.
Neste texto, procuramos demonstrar como a entrevista de Fábio Assunção
exemplifica o processo de midiatização do ethos testemunhal, reordenando a con-
fiança no enunciado, não só no caráter do enunciador, mas na constituição da
cena enunciativa e de estratégias cênicas de construção da intimidade com o pú-
blico, da cumplicidade entre a entrevistadora e entrevistado, da veracidade do re-
lato e da sinceridade do enunciador por meio da imagem. Além disso, observamos
o quanto o ethos testemunhal se vincula ao terapêutico, na medida em que o so-
frimento pessoal sempre possa ser reconfigurado dentro de uma trama de reden-
ção progressiva, cuja responsabilidade é do próprio indivíduo, como enunciador
e como sujeito.
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CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS
víDeo consultaDo
Entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta, exibida no programa Fantástico da TV Globo
no dia 13/08/2009. Disponível em: https://youtu.be/HenJsd8Pr7E . Acessado em 12 de
julho de 2016.
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO
POLÍTICA DO DISCURSO
Resumo
A retórica do discurso argumentativo configura-se na dinâmica entre três dimensões inte-
gradas: racionalizadora, estética e política. Na primeira, a argumentação se desenvolve
como fundamentação de uma tese; na segunda, como produção estética e, na última, como
relação intersubjetiva entre quem propõe uma tese e aquele(s) a quem é dirigida. Dada a
sua relevância e complexidade, esta dimensão – a política – será abordada neste capítulo.
Orador e Auditório serão caracterizados, respectivamente, como instâncias argumentativas
Proponente e Propositária: representam lugares sociais e posições históricas onde se cons-
tituem crenças, valores ou conhecimentos que fundamentam uma tese, a partir do que é
disputada a adesão ou a rejeição. Assim, o discurso argumentativo é, por princípio, tenso:
implica posicionamento divergente e, portanto, desencadeia relações de poder, o que incide
no acionamento de diferentes estratégias retóricas pelas instâncias envolvidas. Uma retó-
rica discursiva assim estabelecida pode contribuir para a análise da interface política da ar-
gumentação.
PalavRas-chave
Discurso. Argumentação. Estratégia retórica. Proponente. Propositário.
Introdução
Dizer que o discurso, especialmente o argumentativo, compreende uma di-
mensão política implica aprofundar a compreensão de um aspecto relevante: a
dinâmica da argumentação pressupõe um relacionamento tenso entre os envol-
vidos neste modo discursivo, mesmo na circunstância de um interlocutor (leitor)
fisicamente ausente. Mais teórico do que propriamente analítico, este capítulo
pretende mostrar ou, pelo menos discutir, que o modo argumentativo de organi-
zação do discurso (CHARAUDEAU, 2008b) compreende uma dimensão política:
implica relações de poder entre interlocutores. Ao mesmo tempo, dado às cir-
cunstâncias da argumentação, assume natureza estratégica: é planejado e articu-
lado para alcançar o principal objetivo do Orador, ou seja, a aceitação de sua tese
por parte daquele(s) de quem busca a adesão – o Auditório. Considerando que a
situação argumentativa é extremamente versátil e dinâmica, e, por isso, complexa,
passa a ser relevante compreender a relação entre os interlocutores, alçando-a
ao nível de instâncias argumentativas em interação.
Observe-se que certa assimetria é acentuada no discurso argumentativo: de-
senvolve-se em diversas rotinas que exigem atenção quanto à natureza da intera-
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO
com o interlocutor. Além disso, considerando sua inserção social, cultural, histó-
rica, seu modo de pensar e dizer, aparece influenciado por essas diferentes deter-
minações: o lugar de que fala e como fala produz sentidos e a tese que propõe
revela uma diversidade de representações com base no seu universo de crenças
e valores. Desse modo, não diz apenas o que quer; fica submetido a, também, a
dizer o que diferentes coerções lhe permitem. Não se apaga, mas sua iniciativa e 91
sua intencionalidade aparecem balizadas, de um lado pela linguagem, de outro
pela doxa. Assim, é importante considerar o Orador como instância Proponente,
porque se inscreve no discurso como aquele que propõe uma tese e, na mesma
ordem de raciocínio, o Auditório, como instância Propositária1, porque é instau-
rado como aquele(s) a quem é endereçada:
3
Conforme Dicionário Aurélio (2010, p. 1721).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
Vale acrescentar que se trata de uma relação política, principalmente se, além
do seu sentido de ciência ou práxis das coisas do governo, for entendida como
forma de poder do homem sobre o homem. No caso do discurso argumentativo,
pode-se falar de competência retórica como potencialidade de dominar o discurso
para exercer influência sobre as verdades, as crenças ou os valores do outro. “A
influência decisiva sobre a ‘mente’ das pessoas dá-se por meio de um controle
antes simbólico que econômico” (VAN DIJK, 2008, p. 46). E o poder do discurso é
da ordem do simbólico, envolvendo estratégias de controle sobre as circunstâncias
e as instâncias envolvidas na argumentação.
Por essas e outras razões, o discurso argumentativo também compreende os
esforços do Proponente para tornar sua tese interessante, apontando possíveis
vantagens que o interlocutor eventualmente possa auferir ao aceitá-la. E isso im-
plica não querer sua imposição a qualquer custo; a interação exige compreender
que, mesmo na sua ausência (física e imediata), as expectativas podem não coin-
cidir. Assim, por alguma razão nem sempre explicitada, o Propositário resguarda-
se o direito, legítimo, de não atribuir importância ao que lhe está sendo
apresentado. É um poder oculto, silencioso, nem sempre fácil de observar, mas
que interfere na adesão em maior ou menor grau ou, mesmo, na rejeição com-
pleta. Pode-se dizer, assim, que ambas as instâncias também pretendem (e preci-
sam) legitimar-se enquanto interagem: sabem da autoridade e do conhecimento
de um e de outro sobre a tese em apreço.
Quando Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) propõem o Auditório como
construção do Orador e se referem à importância de este se adaptar àquele, acen-
tuam esse caráter instável, mas nem por isso caótico, em que se desenrola a rela-
ção entre ambos. O fundamento que subjaz é aquele do poder: o Orador,
principalmente a partir do seu conhecimento de causa, sente-se na legitimidade
de propor a tese, fixando-se no princípio de que uma vez sustentada e compreen-
6
Consulte-se, a respeito, van Dijk (2008).
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO
dida, deveria (ou poderia) ser aceita por um possível auditório universal – aquele
composto pelos seres dotados de racionalidade. Segundo os autores, trata-se de
um ideal de Auditório que orienta a argumentação bem sucedida. Todavia, este
poderia fazer valer o seu poder de não aceitar uma tese pelo simples fato de tra-
tar-se de um direito que lhe assiste. Significa acentuar que ele, uma vez colocado
96 na condição de submeter-se à proposição de uma tese passa a usufruir o direito
de aceitá-la, rejeitá-la ou, mesmo, permanecer indiferente. Por isso, também a le-
gitimidade do Propositário é fator importante no processo de argumentação. Acio-
nam-se, portanto, diferentes estratégias retóricas no espaço que separa, aproxima
ou diferencia, objetiva ou virtualmente, ambas as instâncias.
3. Estratégias retóricas
Partir do princípio de que o discurso argumentativo abrange uma dimensão
política implica considerá-lo como “jogo” de possibilidades e movimentos: dife-
rentes estratégias discursivas são desenvolvidas, mediante as quais o Proponente
pretende ordenar e controlar o seu projeto argumentativo, cuidando de aproxi-
mar-se do Propositário e, na medida do possível, buscar a mútua identificação
possível, considerando as circunstâncias em que ambos se pronunciam e o uni-
verso de crença de que partem. Para isso, e para o bom êxito dos seus propósitos,
tentará legitimar-se como Proponente, com base nas credenciais que reúne antes
e durante o discurso. Resta-lhe, todavia, antecipar-se às prováveis objeções ou re-
futações em relação ao que propõe: aciona, por isso, estratégias mediante as quais
procura se não derrubá-las, pelo menos minimizá-las, conferindo maior reconhe-
cimento ao tema sustentado em sua proposta.
Parece pertinente, portanto, estudar essas estratégias, vinculadas à dinâmica
das projeções entre as instâncias: por mais que se aponte para a transparência e
a solidariedade no discurso argumentativo, é preciso considerar que a aceitação
ou não de uma proposta passa pelo acionamento de estratégias discursivas que
favoreçam um relacionamento positivo entre ambas. Van Dijk (2008, p. 57), ao
analisar as relações de poder no discurso acentua que:
duzir o passo até certo ponto delicado de contrapor-se ao que, pelo menos por
hipótese, poderia ser objetado. Parece, assim, o momento em que mais determi-
nadamente se dirige a um “você(s)” com expressões do tipo: a) Vocês poderiam
estar pensando na possibilidade de; b) ainda que se trate de um modo de pensar
interessante, não poderia concordar; c) certamente seria possível imaginar um en-
102 caminhamento diferente. No lugar de um enfrentamento imediato, o discurso ce-
deria lugar à diplomacia mediante a inserção de ressalvas ou de possíveis
concessões, favorecendo a manutenção e a continuidade da interlocução, mesmo
que no espaço da discordância.
Considerações finais
Ainda que não se trate de estudo concludente, considerando a complexidade
das diferentes situações interativas e, particularmente, naquelas de configuração
argumentativa, pode-se dizer que os conceitos e categorias apresentados se mos-
tram, pelo menos, como indicativos para a análise de discursos argumentativos:
as instâncias representam não apenas papéis actanciais, mas crenças e valores
que permeiam o lugar de que falam e, portanto, podem revelar pressupostos que
ordenam o modo de raciocinar e os pontos de vista que privilegiam. Falar da re-
lação entre instância argumentativa Proponente e instância argumentativa Pro-
positária como instauração de uma cena em que se configura o poder simbólico
da palavra estrategicamente utilizada requer compreender que, embora as repre-
sentações sejam construídas na interatividade social e cultural, cabe aos instan-
ciados o planejamento e a execução (mais, ou menos, consciente) das estratégias
que lhes pareçam favorecer o alcance do que pretendem.
Denominar essas estratégias como de aproximação, identificação, legitima-
ção e antecipação é tão somente uma alternativa, entre outras possíveis, para ca-
tegorizar, pelo menos como ponto de partida, um conjunto de “manobras
discursivas” que dizem respeito ao “como” da relação entre os instanciados no
discurso argumentativo. Assim, a dimensão política pretende enfatizar a impor-
tância do aspecto relacional – intersubjetivo – entre sujeitos que interagem numa
situação argumentativa, considerando que um discurso bem organizado e uma
tese bem fundamentada podem não ser suficientes para conquistar a adesão.
Ainda que se trate de uma abordagem em fase de consolidação, parece pertinente
continuar investindo na compreensão desse aspecto através do desenvolvimento
de análises que tomem como base os princípios e categorias apresentadas, con-
tribuindo, assim, para apontar caminhos para seu aprimoramento ou para, quem
sabe, indicar suas limitações.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
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CABELO LISO E SOLTO AO VENTO:
O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARêNCIA.
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
Moisés Olímpio-Ferreira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFMG - Bambuí)
moisesolim@usp.br
Resumo
Este estudo pretende analisar a atual circulação do discurso racista em práticas sociais, sob a
forma de metáfora da boa aparência. O corpus é composto por notícias de jornais (BBC-Brasil,
Globo.com e Extra.Globo) relativas a um caso que ganhou notoriedade após divulgação, em
redes sociais, na forma de protesto, de um comunicado de escola de São Paulo, dirigido aos
pais de seus alunos. O fato noticiado gerou diversos comentários críticos e, em consequência
deles, um pedido oficial de desculpas da escola. O tema torna-se relevante porque comprova
que o racismo continua presente, naturalizado, fazendo parte das práticas comuns do coti-
diano brasileiro, ainda que, por anos, ele tenha se escondido atrás da boa aparência. Preten-
demos analisar, portanto, uma prática social que moveu várias outras, numa rede, produzindo,
assim, reações e ações, tanto nos produtores quanto nos leitores das mídias jornalísticas e
sociais. Para nossa análise, utilizaremos o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso,
desenvolvido por Fairclough (2001, 2003), que, baseado em estudos do Realismo Crítico, es-
tuda a linguagem numa relação dialética com a vida social. Lançaremos mão também do con-
ceito de racismo em van Dijk (2010), que o considera um sistema social de dominação bem
complexo, envolvendo fundamentações éticas e questões de desigualdade, além de ser com-
posto por um subsistema social e cognitivo. Além desses autores, faremos uso do ferramental
de Argumentação da Nova Retórica, formulado por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca
(2000).
PalavRas-chave
Racismo. Escola. Redes Sociais. Análise Crítica do Discurso.
Introdução
Está evidente a importância dos sites de redes sociais na sociedade contem-
porânea. Entre eles, está o Facebook, que já registrou mais de um bilhão de aces-
sos em um único dia, segundo o jornal BBC (PELA 1ª. VEZ..., 25.08.2015).
Constituído por pessoas das mais anônimas às celebridades, por grupos com na-
turezas e interesses diversos, por instituições e empresas de setores e atividades
variados, ele permite, pela conexão virtual, a interação de seus usuários numa
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
limpa a candidatos a cargos efetivos, e outras investigações contra políticos envolvidos com corrupção,
várias pessoas se mobilizaram no Facebook para manifestação popular em junho de 2013 (MANI-
FESTANTES..., 1/07/2013).
6
Campanhas de arrecadação de fundos existem para ajudar pessoas que foram vítimas de tragédias
naturais, com grande impacto na sociedade, tais como tsunamis, furações, terremotos etc. As cam-
panhas eram feitas apenas pela mass media. Entretanto, com a expansão da Internet e com o
advento da rede social Facebook, pessoas anônimas podem pedir auxílio para defender uma causa
ou problema pessoal. No Facebook, é possível adicionar um aplicativo (APP) de arrecadação de
fundos, tais como GoGetFunding.com e FundRazr, que auxiliam os doadores no modo como devem
proceder online. Há também pedidos ligados à área da saúde, como o de doação de medula óssea
feito por Juliana Chermont, de Bauru - SP. Segundo Moraes (2016), do jornal online JCNET, a família
criou uma página no Facebook para encontrar um doador para a jovem e sensibilizou mais de 25 mil
pessoas.
7
Entendemos passeatas como manifestações populares para defender posições políticas, sociais,
ideológicas ou religiosas. No Brasil, destacam-se: “marchas pelo direito das mulheres sobre os seus
corpos (Marcha das Vadias), das trabalhadoras do campo (Marcha das Margaridas), da população
negra (Marcha Zumbi), de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (Paradas do Orgulho
LGBT), de grupos religiosos (Marcha para Jesus), pela liberalização do uso de drogas (Marcha da Ma-
conha)” (JESUS, 2012, p. 163).
8
Em razão do foco deste artigo, não abordaremos questões emblemáticas sobre o mau uso das redes
sociais, tais como doenças patológicas geradas pelo excesso de uso, convocações para brigas entre
torcidas de futebol, roubo de dados pessoais, pedofilia, manifestações de ódio contra minorias ou
religiões, rumores, desinformações e tanto outros assuntos que afetam a sociedade negativamente.
9
A Associação, fundada em 1947, está situada em bairro nobre de São Paulo, na região Sul. Consta,
em seu próprio site, que atende, aproximadamente, a 2.700 crianças e jovens de 0 a 18 anos. Trata-
se de uma Associação que depende de doações, bazares e que mantém parceria com a Prefeitura de
São Paulo e com o Governo do Estado de São Paulo.
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
do que aquelas da mass media, permitindo, assim, um debate mais aberto, mais
plural. Delas, qualquer anônimo pode participar, tem a possibilidade de reconhe-
cer-se no que está sendo discutido e de passar a fazer parte de uma identidade
coletiva, de um grupo constituído virtualmente no ciberespaço, composto por pes-
soas em interação de diversas origens, idades, religiões, classes sociais etc., na
maioria das vezes sem qualquer contato físico, compartilhando formas de sentir, 109
ver e de fazer ver o mundo.
Inverte-se, nesse ponto, a relação de poder unilateral advinda da mass media,
financiada por grandes empresários, políticos e corporações poderosas, em rela-
ção ao povo, à massa. Integrado à rede social, é o anônimo não jornalista, não fi-
lósofo, não político, que passa a ter a possibilidade de agir, de ser produtor crítico,
de (re)criar a realidade, atraindo um grande número de seguidores de suas ideias.
Quando isso acontece, a rede social passa a se tornar fonte de pautas para jorna-
listas12, programas televisivos, rádio e internet, alcançando um público maior nú-
mero. Dessa forma, o velho jornalismo deixa de ser a única fonte de produção de
“verdades”13, passando, mesmo, a ser questionado.
Nessa perspectiva, o sujeito não é entendido como assujeitado (interpelado)
ideologicamente de forma definitiva. Se, por um lado, é evidente que ele não é
totalmente livre, visto que é constrangido pelas estruturas sociais14 a que está sub-
metido e, por isso mesmo, conforme nota Fairclough (2001, p. 121), ainda se en-
contra posicionado ideologicamente15, por outro lado, ele é sujeito acional ou
agente, porque pratica ações, individuais ou coletivas, por meio de suas próprias
práticas sociais que se materializam em forma de eventos, ainda que em rede. O
12
Trata-se do que Rublescki (2011) denomina jornalismo líquido. Baseada nos estudos do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman sobre sociedade líquido-moderna, a autora discute uma nova forma de
jornalismo que não é construída apenas por pautas numa mediação apenas verticalizada. O jorna-
lismo líquido, esclarece, “é antes um cenário instável, em aberto, permeado por um contínuo de
mudanças que aparentemente desencadeiam um processo de alargamento das fronteiras do campo,
cujo ponto de equilíbrio é uma questão que permanece em aberto na sociedade e na academia”
(ibid., p. 17) e “isso porque as práticas sociais propiciadas pelas redes digitais ultrapassam o conjunto
de regras referentes aos modelos tradicionais do jornalismo (ibid., p. 37).
13
Rublescki (2011, p. 67), baseada nos estudos de Charaudeau (2009), esclarece que há uma legitimi-
dade social pré-construída, dada a priori e não-negociável que “estabelece que o Jornalismo é
apto, é legítimo para captar informações e transmiti-las de forma verdadeira, tornando público o
que de relevante há na sociedade para o leitor”.
14
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 19), baseados nos estudos do Realismo Crítico, entendem a vida
social como um sistema aberto, não previsível, dividido em dimensões: a) estruturas sociais, isto é,
entidades mais abstratas, mais rígidas, tais como a estrutura econômica, a classe social, a classe
racial, a língua etc., que definem um potencial, um conjunto de possibilidades de práticas sociais; b)
práticas sociais, ou seja, ações sociais que os sujeitos agentes são capazes de realizar nas estruturas
sociais, sempre ligadas a um tempo e espaço determinados. Nessas ações, aplicam-se recursos ma-
teriais e simbólicos, bem como elementos que fazem parte da vida, tais como atividade material,
relações sociais e processos, fenômenos mentais e discurso, todos esses elementos são articulados
entre si; e c) eventos que são materializações das práticas sociais, podendo ser discursivas, como
textos, ou não discursivas, como construções, viadutos etc.
15
O discurso, quando incorpora significações (semiose) que contribuem para a estruturação e manutenção
de poder, adquire um sentido negativo e, por isso, é considerado ideológico (FAIRCLOUGH, 2001, p.121).
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
Van Dijk (2010, p. 135) admite, por sua vez, que a definição de racismo não
pode ser pensada de forma tão simplista e vai além da ideia de ideologia racista.
Ele (ibid., p. 134) esclarece que o racismo não é inato ao ser humano e tão pouco
se desenvolve espontaneamente, visto que é adquirido e aprendido na sociedade,
em suas práticas diárias. Ele advém de um sistema social bem complexo de domi-
nação que envolve fundamentações éticas e questões de desigualdade, além de
ser composto por um subsistema social e cognitivo. Esse subsistema envolve prá-
ticas sociais de discriminação nos níveis micro (local) e macro (grupos, organizações,
instituições dominantes) que mantêm relações de abusos discursivos de poder pra-
ticadas pelas elites simbólicas16, isto é, mantêm relações de dominação. O autor
(ibid., p. 234) entende que a manipulação é um fenômeno social, porque a “inte-
ração e abuso de poder ocorrem entre grupos e atores sociais” (ibid., p. 236), em
16
Van Dijk (2010, p. 134) define elites simbólicas como “aquelas elites que literalmente têm tudo ‘a
dizer’ na sociedade, assim como suas instituições e organizações”. Seus membros podem ser pro-
fessores, jornalistas, acadêmicos, políticos, escritores etc.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
17
De acordo com Fairclough (2003, p. 22-25), uma análise discursiva deve considerar não só as
relações internas da língua, mas também as relações extralinguísticas, tais como as estruturas
sociais, as práticas sociais e os eventos sociais. Os textos fazem parte dos eventos sociais e, por
isso, são capazes de modificá-los, e, ao mesmo tempo, serem moldados pelos mesmos eventos.
Eles são estruturados e estruturantes socialmente. É ainda por meio de textos que os sujeitos agem
e interagem na sociedade.
18
Nossa tradução para: “En disant d’un homme que c’est un ours, un lion, un loup, un porc ou un ag-
neau, on décrit métaphoriquement son caractère, son comportement, ou sa place parmi les autres
hommes, grâce à l’idée que l’on se forme du caractère, du comportement ou de la place de telle ou
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
Para este autor, elas estão tão enraizadas e naturalizadas nas culturas que
sua identificação, muitas vezes, pode ser impossível, assim como escapar delas
no seu discurso, pensamento ou ação e, por isso, elas podem servir para legitimar
ideologias hegemônicas de poder19.
Nessa perspectiva, a metáfora da boa aparência resulta de nosso sistema
cultural que considera belo tudo o que é branco e feio tudo o que é negro, pen-
samento advindo da elite branca ocidental. Para pôr em prática essa metáfora, é
preciso criar no imaginário coletivo a representação de uma estética padrão, eli-
tizada, do que seja belo. Isso se constrói socialmente e discursivamente, como van
Dijk (2008, p. 20) esclarece:
telle espèce dans le monde animal, en essayant de susciter à son égard les mêmes réactions que
celles que l’on éprouve communément à l’égard de ces mêmes espèces”.
19
Fairclough (2001) utiliza a noção hegemônica de Gramsci (1971, p. 12). Para este, o poder hegemônico
é o “espontâneo” consentimento dado pela grande massa da população para a direção geral imposta à
vida social, pelo grupo essencialmente dominante (e.g., por meio de seus intelectuais que atuam como
agentes ou adjuntos) é “historicamente” causado pelo prestígio (e consequente confiança) de que o
grupo dominante se serve, por causa da sua posição e função no mundo da produção. Nossa tradução
para: “The ‘spontaneous’ consent given by the great masses of the population to the general direction
imposed on social life by the dominant fundamental group [i.e, through their intellectuals who act as
their agents or deputies]; this consent is ‘historically’ caused by the prestige (and consequent confidence)
which the dominant group enjoys because of its position and function in the world of production”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
branco e, assim, produzir uma mudança física nesse indivíduo. Esse ideal estético
do branco ganha uma dimensão ideológica, quando re(produzido) pela mass
media, principalmente em revistas e programas relacionados à beleza, e pelas di-
versas instituições, nem sempre de modo impositivo, mas fazendo com os não-
brancos aceitem esse modelo como o ideal. Dentre as instituições que perpetuam
essas crenças e padrões culturalmente definidos, destacamos a escola. 113
Tradicionalmente entendida como o lugar onde se manifestam as relações as-
simétricas de poder (professor/aluno), a escola padroniza as normas de conduta,
(re)produz práticas que asseguram o funcionamento ideológico do Estado20. Para
Gomes (2002), a escola é impositora de padrões de currículo, de conhecimento, de
comportamento e, de certa forma, também de estética, já que ela impõe um padrão,
uma uniformização física e moral, havendo uma “exigência na aparência, e os argu-
mentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito” (p. 45).
Entretanto, baseados nos estudos da Análise Crítica do Discurso, entendemos
que as ideologias21, que também advém do Estado, não têm poder de ação per-
manente. As estruturas sociais mais rígidas podem ser modificadas por meio das
práticas sociais exercidas pelos sujeitos agentes, a longo prazo. Por essa razão, en-
tende-se também a escola como um lugar de resistência às ideologias impostas
pelo Estado, ou seja, o lugar de onde saem reflexões críticas visando a alterar a
lógica do sistema, não apenas perpetuando-a22.
Quanto ao corpus, foram selecionados: o bilhete enviado aos pais, postado
no Facebook e difundido na mass media; três notícias sobre esse bilhete, divulga-
das nos jornais BBC Brasil, Globo.com e Extra.Globo, na forma digital; duas notas
de esclarecimento da Associação Cedro do Líbano, dos dias 1º. e 2 de dezembro
de 2015, divulgadas no próprio site da escola; e, finalmente, dois comentários de
internautas, um do Facebook da escola e outro da notícia do Globo.com, que re-
presentam exemplos de opiniões naturalizadoras do racismo.
20
A escola, nessa perspectiva, advém dos estudos de Althusser que a considera parte de um dos Aparelhos
Ideológicos do Estado (AIE). Para o autor (1987, p. 22), ela ensina o “‘know-how’ mas sob a forma de
assegurar a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua ‘prática’”, ou seja, a escola torna-se
instrumento de reprodução dos valores sociais capitalistas, por meio da inculcação constante da
ideologia dominante e do ensino que garanta o bom funcionamento do sistema produtivo.
21
A definição de ideologia adotada é a de Fairclough (2003, p.9), que a entende como forma de repre-
sentação de aspectos do mundo que pode contribuir para o estabelecimento, manutenção e mudança
de relações sociais de poder, domínio e exploração.
22
A esse respeito, citamos o caso de alunas de uma escola do ensino médio de São Paulo que, in-
fluenciadas por discursos feministas, amplamente divulgados nas mídias sociais movimentaram-se
contra as normas de vestimenta do renomado colégio Etapa. Como regra, a escola pedia para que
alunas usassem shorts e saias abaixo do joelho. Houve uma manifestação na rede social Facebook
denominada “Vai ter shortinho sim”, convocando alunas a refletir e a lutar contras as normas esco-
lares tidas como machistas, pois eram impostas apenas às meninas. Após a manifestação na rede
social, o caso recebeu atenção da mass media ( ver COLLUCI e GRAGNANI, 2015). Um mês após o
ocorrido, com a coleta de 4.000 assinaturas de pessoas aderindo ao ato, a escola repensou suas re-
gras, aceitando vestimentas mais curtas.
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
Nesse contexto, o alisamento de cabelo significa algo maior do que a bela es-
tética: significa a aceitação ou rejeição social. É por meio do olhar do outro, da re-
lação de alteridade, que os afrodescendentes aceitam ou não sua identidade, que
é um construto psíquico24 e discursivo social: o sujeito se constrói em contexto re-
pleto de valores, crenças e práticas sociais. Apesar de o contexto compor as rela-
ções externas ao discurso, aquele está sempre numa relação dialética com este,
que é socialmente construído e colabora na (re)construção social da realidade. O
discurso é, portanto, parte irredutível da vida social. Esse conceito é desenvolvido
por Fairclough (2001, p. 91) que, baseado nos estudos de Foucault, entende que
23
Domingues (2002, p. 1) baseado em Andreas Hofbauer , relata que o branqueamento é uma categoria
analítica que pode ser estudada tanto como interiorização de modelos culturais brancos pelos negros,
acarretando na própria perda de sua identidade africana, quanto como o processo de clareamento
da população por meio da miscigenação. Adotaremos a primeira opção para este trabalho.
24
Segundo Hall (2008, p. 114), há um ponto de intersecção entre o psíquico, social e o linguístico. En-
tretanto, há uma dificuldade em estabelecer uma articulação conceitual entre o social e psíquico,
por isso este é sempre adiado, mas nunca abandonado. Nesta pesquisa, centraremos nos campos
social e linguístico e, brevemente, na questão cognitiva discutida por van Dijk (2008 e 2010).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
Para que a nossa apresentação fique ainda mais bonita, conto com
a sua colaboração enviando o seu(a) filho(a) no dia da nossa apre-
sentação de natal 03/12 com o seguinte penteado: MENINAS: CA-
BELO liso SOLTO. OBS: sem a tiara. [grifos nossos]
http://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2015/12/03/noticias-
saude,186628/cabelo-liso-e-solto-mae-afirma-que-nao-e-a-primeira-
vez-que-escol.shtml
25
Seja na forma institucional, seja, como relata Cordeiro (2011), no racismo presente nos colegas de
classe.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
118
“Meu deus e muito mimimi, minha nossa senhora, não dá pra fazer nada
que já gera revoltinha, pqp que época horrível pra se viver, o politicamente cor-
reto esta destruindo as interações humanas, nos deixando cada vez mais distantes
e nem percebemos, triste muito triste. [sic]. [grifos nossos]
“Não achei nada de racismo!!! O problema é que tem mães que mandam
os filhos todos largados pro colégio com o cabelo todo despentiado cheio de pio-
lhos e não estão nem ai com a vida ...(...)” [sic] [grifos nossos]
Uma apresentação mais bonita requer cabelo liso por parte das meninas.
[Só as meninas brancas têm cabelo liso,
Logo, somente elas poderão torná-la assim]
por outro lado, a identidade metafórica de seu conteúdo produz o efeito de pre-
sença do objeto e a sua admissão como prática social naturalizada corresponde à
aceitação do juízo de importância das características que ela põe em evidência.
O mesmo ocorre no comentário de Marcelo, que associa o cabelo não-liso,
crespo, à falta de higiene, e “nada de racismo”. Sua postagem teve oito “curtidas”
a favor e dezessete contra. De fato, Marcelo assume a postura de quem confirma
“a presunção de credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento
seja acolher como verdadeiro o que nos dizem, e que é admitida enquanto e na
medida em que não tivermos motivo para desconfiar” (PERELMAN e OLBRECHTS-
TYTECA, 2008, p. 79), ou seja, ele parte do que é normal, do habitual, do que pre-
sume ser fato ou verdade ao auditório universal, e, ao assim admitir, assume a
função de porta-voz desse seu grupo de referência, interpretando o comunicado
sob a presunção da naturalidade: “Não achei nada de racismo!!! O problema é...”,
ainda que associe o par liso/crespo a limpo/sujo. Nesse sentido, coloca-se em prá-
tica o funcionamento da estética do sujo (preto de cabelo crespo, já que a resposta
diz respeito a uma discussão gerada por causa do racismo) em contraposto à do
limpo (branco de cabelo liso). Note que a estética está associada a uma identidade
étnica, logo, ao criticar a estética, critica-se a etnia de um povo.
Para a Análise Crítica do Discurso, embora existam diversas maneiras para
exercer a dominação, como, por exemplo, os modos coercivo ou persuasivo, ela
não é feita pela imposição, de maneira que há um consentimento “espontâneo”
por parte das demais classes. Os discursos dominantes são tão presentes que
levam à naturalização ou à automatização no modo como entendemos e vemos
o mundo. Passamos, então, a reproduzir o sistema de crenças e valores, o sistema
de relações e identidade dos grupos sociais, conforme afirmam Chouliaraki e Fair-
clough (1999, p. 24).
Entretanto, Fairclough (2003, p. 160) também cita a capacidade de pessoas,
que nasceram em certas sociedades e classes sociais menos favorecidas, de mudar
seu estado por meio da própria capacidade de reflexão e ação:
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM
120 Por causa dessa possibilidade de mudança hegemônica é que a Análise Crítica
do Discurso, de Fairclough, entende os sujeitos como agentes sociais, porque são
parcialmente afetados pelas estruturas, mas isso não os impede de, quando ati-
vadas suas potencialidades, serem capazes de ter autorreflexão para agir social-
mente e transformar as relações de poder. Dessa forma, o agente social é capaz
de agir sobre o mundo e sobre os outros, dentro de uma liberdade relativa.
Foi exatamente exercendo essa capacidade de reflexão que o caso não foi
tratado por todos de maneira naturalizadora, como os que destacamos. A asses-
soria de imprensa da atriz Larissa Manoela, por exemplo, fez questão de se mani-
festar sobre o ocorrido, pois a imagem da atriz foi vinculada a uma mensagem que
gerou polêmica. Em nota à imprensa, relatou-se que a imagem foi usada sem au-
torização, que a atriz “não tinha conhecimento do uso da foto e sempre se mos-
trou contrária a qualquer tipo de preconceito, e sempre orienta as crianças sobre
a importância da diversidade” (CRECHE..., 02.12.2015) Além disso, mais de mil
usuários do Facebook e as principais mídias também criticaram a escola, trazendo
à tona questões importantes sobre a imposição de padrão estético.
cionário produziu, pois foi feito sem autorização da Direção. Van Dijk (2008, p. 18-
19) relata que há estratégias globais discursivas que enfatizam o racismo do Eles,
do grupo de fora, e não o do Nós, do grupo de dentro. O uso de eufemismo, en-
quanto técnica de atenuação (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2008, p. 530),
faz parte dessa estratégia argumentativa à busca de produzir a impressão favorável
de ponderação, de sinceridade. 121
A escola, nesse momento, está salvando a sua face (GOFFMAN, 1985), já que
o caso alcançou repercussão negativa na mass media e ela vive de doações. Por
essa razão, ela reforça, em sua nota, que a escola que atua há 68 anos com traba-
lhos contra qualquer forma de preconceito. Além disso, argumenta que a comu-
nidade, pais e alunos, a avaliaram muito bem e que isso consta nos indicadores
de Qualidade de Educação, como pode ser lido na mesma nota:
O que pode ser discutido aqui é o entendimento da gravidade dos fatos pela
escola, visto que, como já mencionado, tem papel fundamental na constituição
das identidades sociais. Isso ocorre no segundo comunicado da Associação:
Verifica-se que a escola se inclui para construir uma “visão coletiva” de edu-
cação, nossa visão, e não culpa o(a) professor(a) individualmente, como fizera no
122 comunicado anterior. Por fim, diz que irá se engajar para combater o racismo, o
preconceito e outras formas de discriminação.
É importante ressaltar que o que deve ser combatido não é apenas o racismo
declarado, facilmente identificado, mas também aquele que está disfarçado na
metáfora da boa aparência, como estudado por Damasceno (2000) e, neste caso,
na forma do cabelo liso. O que foi revelado à sociedade, via rede social Facebook,
e mais tarde, pela mass media, é apenas parte de algumas práticas escolares que
ainda tentam impor a estética do branco ocidental aos não-brancos. Cabe aos que
constituem a escola (professores, alunos, diretores e outros), o papel de refletir
sobre as suas próprias práticas, por vezes internalizadas, como adverte van Dijk
(2008, p. 16): “Se o ‘racismo’ não se tornar um assunto público, a dominação étnica
continuará inalterada”.
Considerações finais
O sentido de boa aparência ou, neste estudo, mais bonita, ainda encontra-se
estritamente relacionado à estética de branqueamento, amplamente disseminado
no século XIX e perpetuado por meio de práticas que o naturalizaram. A ideia de
“brancura limpa” como padrão de beleza contra o “sujo não-branco” representou,
segundo Domingues (2004, p. 292), “um entrave para a formação positiva da au-
toestima do negro, pois este passou a alimentar um certo autodesprezo”.
Entretanto, pode-se dizer que há vozes de resistência que permitem a refle-
xão crítica acerca dessas condutas. Surgem, nesse processo, os sujeitos agentes
capazes de transformar o limite de seus posicionamentos, como afirmou Fair-
clough (2003, p. 160), e “empoderar-se”27 de suas raízes, identidades, culturas,
por meio de ações assertivas que rejeitem toda e qualquer imposição de padrões
estéticos do branco. A rede social torna-se, nesse processo, um lugar onde se rea-
liza a participação cívica de anônimos, o lugar onde as opiniões, as decisões e as
ações coletivas sobre determinado assunto são mobilizadas pelo e para o cidadão.
É preciso, contudo, que essa reflexão possa atingir a sociedade de forma mais
abrangente, começando pelo lugar onde são formadas as consciências dos peque-
nos cidadãos: a escola. Nesse sentido, a educação passa a ter um papel social
27
“Processo pelo qual um indivíduo, um grupo social ou uma instituição adquire autonomia para realizar,
por si, as ações e mudanças necessárias ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal e social numa
determinada área ou tema. Implica, essencialmente, a obtenção de informações adequadas, um pro-
cesso de reflexão e tomada de consciência quanto a sua condição atual, uma clara formulação das
mudanças desejadas e da condição a ser construída” (SCHIAVO e MOREIRA, 2005, p. 59).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
transformador que visa menos ao aumento da adesão àquilo que está aceito e
mais a uma reavaliação das crenças e valores; deve ser ela lugar de espírito inves-
tigativo crítico, de força de resistência contra toda manifestação que menospreza
e exclui a diferença. Isso implica opor-se às concepções, às perspectivas estabili-
zadas, naturalizadas, ou seja, pôr-se em conflito com a doxa, ainda que responsá-
vel pela construção da identidade social, quando estiver tendente ao estático. 123
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A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL
SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII
Mônica Lucas
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes 127
Departamento de Música
monicalucas@usp.br
Resumo
O mundo luterano produziu um enorme arcabouço teórico e prático para a composição,
interpretação e análise musical. Entre os séculos XVII e XVIII, autores da disciplina que ficou
conhecida como musica poetica propuseram preceptivas cuja sistemática e terminologia
foram emprestadas da Retórica e da Poética clássicas. Os escritos compreendidos na insti-
tuição da musica poetica têm em comum a noção de que a música seja um discurso ali-
nhado com as disciplinas do trivium, e de que sua finalidade seja ensinar, deleitar e mover
o ouvinte, aplicando engenhosamente lugares-comuns, dispondo artisticamente as ideias e
adequando-se às circunstâncias de público, ocasião e lugar. O presente texto concentra-se
na sistemática da composição musical – inventio, dispositivo, elocutio – mostrando como
preceptivas musicais seiscentistas e setecentistas emularam oratórias clássicas, no sentido
de produzir poéticas musicais alinhadas às retóricas latinas de Cícero e Quintiliano.
PalavRas-chave
Musica poetica. Música dos séculos XVII e XVIII. Inventio. Dispositio. Elocutio.
Introdução
O mundo luterano produziu um enorme arcabouço teórico e prático para a
composição, interpretação e análise musical. Entre os séculos XVII e XVIII, autores
da disciplina que ficou conhecida como musica poetica propuseram preceptivas
cuja sistemática e terminologia foram emprestadas da Retórica e da Poética clás-
sicas – em especial a Poética aristotélica, que previa princípios únicos para todas
as artes, o Orator e o De Oratore (1942) de Cícero e a Institutio Oratoria de Quin-
tiliano, leituras obrigatórias em todas as escolas luteranas a partir da reforma do
ensino consolidada em 1528 por Martinho Lutero e Philipp Melanchton.
As ordenanças escolares reformadas recomendavam o estudo diário e siste-
mático da música para os alunos de todas as classes escolares. De acordo com
essas prescrições, a música só era secundária, em importância, ao estudo da elo-
quência latina e da teologia. Nessas escolas, a música era estudada tanto no âm-
bito da musica practica, que “tem como finalidade a ação [a interpretação e a
composição musical]” 1 (LISTENIUS, 1541, I), quanto da musica poetica, a compo-
1
“THEORICA est, quae in ingenji contemplatione ac rei cognitione versatur, cujus finis est scire. (…).
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII
sição musical, ciência que “não se contenta nem com o puro conhecimento nem
com o mero exercício”2 (Id. Ibid., I). A musica theorica, estudo universitário da mú-
sica alinhado às disciplinas numéricas do quadrivium, que visava “o conhecimento
das coisas [rei cognitione] e a contemplação”3 (Id. Ibid. 1541, I), não fazia parte
do currículo dessas escolas que, assim, alinhavam a música às demais artes do tri-
128 vium, em especial à gramática e à retórica.
Os escritos compreendidos na musica poetica têm em comum a noção de
que a música seja um discurso alinhado às disciplinas do trivium, e de que sua fi-
nalidade seja ensinar, deleitar e mover o ouvinte, adequando-se às circunstâncias
de público, ocasião e lugar. O cálculo dessas circunstâncias permite ao compositor
planejar os efeitos musicais, movendo os afetos do ouvinte. Por trás desse pensa-
mento, figura a compreensão platônica de que a palavra tem primazia sobre a me-
lodia, sobre a harmonia e sobre o ritmo. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, esses
tratados chegaram a contemplar todas as etapas do processo de composição e in-
terpretação musical, descrevendo-as segundo as fases descritas em preceptivas
retóricas clássicas: inventio, dispositio, elocutio, memoria, actio.
As poéticas musicais luteranas estão compreendidas, em grandes linhas,
entre as publicações de Joachim Burmeister (2004 [1606]) e Johann Nikolaus For-
kel (1788). Burmeister é o primeiro a adotar sistematicamente a terminologia re-
tórica para descrever procedimentos musicais, fato de que demonstra estar
plenamente ciente, quando enfatiza a novitas vocabulorum de suas publicações
(BURMEISTER, 2004 [1606], p. 6). Tratados posteriores a Forkel não deixam de
lado a orientação poético-retórica, mas neles, encontra-se influência cada vez mais
marcante da Estética, disciplina que gradualmente passa a substituir a Retórica
como parâmetro de juízo sobre as artes.
O presente texto concentra-se na sistemática da composição do discurso es-
crito – inventio, dispositio, elocutio – mostrando como preceptivas musicais seis-
centistas e setecentistas emularam oratórias clássicas, no sentido de produzir
poéticas musicais alinhadas às retóricas latinas de Cícero e Quintiliano.
No mundo contrarreformado, o jesuíta Athanasius Kircher discorre sobre as
partes da criação musical retórica (De partibus rhetoricae musurgica) em seu Mu-
surgia Universalis (1650) e já afirma que “assim como a retórica consiste de três
partes: invenção, disposição e elocução, o mesmo [ocorre com] nossa retórica mu-
PRACTICA, quae non solum in in ingeji penetralibus delitescit, sed in opus ipsum podit [?], nullo
tamen post actum relicto opera, cujus finis est agere”.
2
“POETICA, quae necque rei cognitione necque solo exercitio contenta, sed aliquid post laborem re-
linquit operis, ueluti cum a quopiam Musica, aut musicum carmen conscribitur, cujus finis est opus
consummatum & effectum. Consistit enim in faciendo siue fabricando, hoc est, in labore tali, qui
post se, etiam articie mortuo, opus perfectum & absolutum relinquat”.
3
“THEORICA est, quae in ingenji contemplatione ac rei cognitione versatur, cujus finis est scire. (…).
PRACTICA, quae non solum in in ingeji penetralibus delitescit, sed in opus ipsum podit [?], nullo
tamen post actum relicto opera, cujus finis est agere”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
sical” 4 (KIRCHER, 2006 [1650], II, 8, 4, p. 143). Kircher, contudo, fornece poucos de-
talhes a respeito de como se daria essa transposição. É no mundo reformado que
a musica poetica se organiza detalhadamente no plano retórico, como veremos.
1. Inventio 129
mentos musicais visam não apenas a representar mas também a explicar a palavra,
evidenciando seu sentido oculto, geralmente fundamentado nos dogmas da dou-
trina. Isso ocorre, sobretudo, quando essas palavras advêm de textos tidos como
autoridade, como a Bíblia.
Em escritos musicais seiscentistas, palavras essenciais do texto, portadoras
130 de sentido, aparecem reunidas em catálogos voltados para a representação mu-
sical. A primeira obra a fornecer uma lista de palavras representáveis na inventio
musical é o Musicae poeticae sive de compositione cantus (1613), de Johannes
Nucius. Sua lista é repetida durante todo o século XVII por autores como Wolfgang
Schonsleder (1631), Johann Andreas Herbst (1643) e Daniel Speer (1697).7
Herbst, em seu Musica Poetica (1643), organiza a lista de Nucius em quatro
categorias de palavras musicalmente representáveis: 1. palavras que exprimem
afecção [verba affectuum]: palavras que devem ser expressas pela modificação
ou troca de notas: alegrar-se, chorar, temer etc.; 2. palavras que indicam movi-
mento e lugar [verba motus & locorum]: figuras imagéticas musicais, em parte
também figuras afetivas: correr, saltar, exaltar, destruir; céu, abismo, montes etc.;
3. advérbios de tempo e número [adverbia temporis, numeri]: rapidamente, logo,
lentamente, amanhã etc.; palavras que indicam números indefinidos: novamente,
frequentemente, raramente etc.; palavras com representação ótica: luz, dia, noite,
escuridão etc. 4. idades e hábitos do homem [aetates hominum]: infância, velhice,
orgulho, humildade, inveja etc.8 (HERBST, 1643, XI, 2, p. 111-112).
Nas poéticas musicais do século XVIII, essa ideia é desenvolvida e sistemati-
zada. Transpõe-se para a música o sistema dos lugares-comuns, fontes de onde
se tiram argumentos para qualquer assunto, das retóricas antigas. O tratamento
mais extenso sobre os lugares-comuns na inventio [Finde-Kunst] musical está con-
tido no Der Generalbass in der Composition, [“o baixo-contínuo na composição”],
de Johann David Heinichen (1994 [1728]), que tem cerca de 50 páginas dedicadas
ao assunto. Ele diz: “em minha opinião, nada é melhor para dirigir nossos pensa-
mentos para boas ideias e animar a fantasia natural do que o uso dos locos topicos
7
Para mais informações sobre este assunto, cf. UNGER, 1992 [1941], p. 41 ss.,
8
“1. Verba affectuum bewegungs Wörter/als: Laetari, gaudere, frewen und frölich seyn. Lacrymari,
flere weinen. Timere fürchten. Ejulare heulen. Lugêre trawren. Supplicare flehen und bitten. Irasci
zürnen. Ridêre lachen. Misereri erbarmen. Welche alle mit dem Sono oder Klang/durch veränderung
und abwechsslung der Noten zu exprimirem und zuszudrucken seyn 2. Verba Motus &locorum. Be-
wegungs Wörter von einem raumichen Ort/als: Stare stehen. Currere lauffen. Saltare tanzen. Quiescere
ruhen. Salire springen. Extollere erheben. Dejicere ernidrigen. Adscendere auffsteigen. Descendere
absteigen. Coelum Himmel. Abyssus Abgrund. Montes Berg. Profundum Tieffen. Altum Höhe/ und
dergleichen. 3. Adverbia temporis, numeri, von der Zeit und Zahl/als: Celeriter behend. Velociter
geschwind. Citò bald. Tardè langsam. Manè früh. Serò spät. Bis, ter, quater, 2. 3. 4Mal. Item, quae
numerum indefinitum significant, welche kein endliche und gewisse Zahl bedeuten/als: Rursus wi-
derumb. Iterum abermal. Saepè, raro, offt/selten. (...) 4. Aetates hominu, der Menschen Alter/als:
Infantia Kindheit. Pueritia Jugend. Senectus eorumque; mores, das Alter und derselben Sitten/als:
Superbus Hoffertig. Humilisdemütig. Contemptus veracht. Vilis gering. Odiosus beschwerlich und ve-
rhasst etc.”
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
[sic] da oratória”9 (HEINICHEN, 1994 [1728], p. 3). Em seguida, ele determina três
categorias principais de lugares ligados à circunstância – antecedentia, concomi-
tantia, consequentia.
Mattheson também se dedica a esse assunto no capítulo dedicado à invenção
melódica em seu Der vollkommene Capellmeister (“O mestre-de-capela perfeito”).
Para ele, a inventio consiste em um “engenhar ou pensar em cantos agradáveis 131
ao ouvido”10 (MATTHESON, 1991 [1739], II, 4, 2, p. 121). Ele inclui uma lista com
17 lugares-comuns: notação, descrição, gênero e espécie, todo e partes, causas
eficiente, material, formal, final, efeito, características, circunstanciais, compara-
ção, oposição, exemplo e testemunho. Ele os explica e exemplifica (id. ibid., II, 4,
1-84). A base de seu texto são os lugares expostos em Die allerneuerste Art reinen
und galanten Poesie zu gelangen (“a mais nova maneira de lograr a poesia pura e
galante”, 1707), de Christian Friedrich Hunold, que Mattheson cita quase literal-
mente.
Preceptivas retóricas antigas e seiscentistas, como o Cannocchiale Aristote-
lico, de Emanuele Tesauro (2000 [1652]), mencionam, além dos lugares-comuns,
fontes naturais para a inventio, como o furor e o entusiasmo. Contudo, para Te-
sauro, assim como para a maioria de seus antecessores clássicos, as fontes irra-
cionais são tidas como recursos não-artísticos, uma vez que não são ensináveis.
Mauritius Vogt (1719) também admite seu uso na composição musical: “não des-
prezes um generoso copo de vinho, para que te tornes mais apto para a invenção
e a composição”11 (1719, III, 6, p. 157).
Mattheson (1991 [1739]), como Vogt, também indica a “invenção inopinada,
repentina, como se advinda do entusiasmo” [inventio ex abrupto, inopinato, quase
ex ethusiasmo] como caminho alternativo para a inventio. Ela ocorre quando “ima-
ginamos fortemente um afeto e nos aprofundamos nele, como se estivéssemos
de fato contemplativos, apaixonados, irados, irônicos, preocupados, alegres etc.:
esse é o caminho mais seguro para invenções inesperadas”12 (MATTHESON, 1991
[1739], II, 4, 85, p. 132).
Para autores da segunda metade do século XVIII, a inspiração passa a cons-
tituir a principal fonte da invenção. Isso pode explicar porque Johann Nikolaus For-
kel, autor da última preceptiva que descreve claramente a sistemática da retórica
9
“Unsre Gedanken aber auf gute Ideen zu leiten und die natürliche Phantasie auzumuntern solches
kann meines Erachtens nicht besser geschehen als durch die Oratorischen Locos Topicos“.
10
“Die Erfindung (...) ist eine Ersinnung oder Erdenckung solcher Sang Weise, die den Ohren ungenehm
fällt.“
11
“Et ut sim aptior ad inveniendum & componendum, (nihil com gravi Cerere) generosi vitelli vinum
non abjiciam”.
12
“Doch ist eine besondere Erfindugs-Art, welche man eine unvermuthliche, unverwartet und gleichsam
ausserordentlich-eingegebene nenet, (inventio ex abrupto, inopinato, quase ex enthusiasmo musico),
und dazu hilft (...) wenn man sich eine Leidenschafft fest eindrückt, und sich gleichsam drin vertiefft,
als wäre man in der That andächtig, verliebt, zornig, hönisch, betrübt, erfreuet, u.s.w. dieses ist
gewiss der sicherste Weg zu ganz unvermutheten Erfindungen”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII
2. Dispositio
132
A disposição retórica não corresponde à ideia romântica de forma musical.
Esta última constitui um molde fixo imposto à obra, ao passo que a dispositio é
uma estrutura flexível que se conforma de maneira particular a cada matéria.
Nesse sentido, parece anacrônico considerar a estrutura de obras musicais sete-
centistas segundo o prisma comumente aceito pelos manuais teóricos românticos
e modernos da forma musical, em especial a “forma-sonata”. Essa concepção tem
sido discutida por autores como Bonds (1991),Webster (1992) e, no Brasil, Barros
(2006).
Teóricos musicais dos séculos XVII e XVIII entendem a dispositio como uma
ordem natural do discurso sonoro. Mattheson afirma que
13
“Die Natur selbst [lehret uns] (…) gewisse Argumente oder Gründe [zu] gebrauchen, und in denselben
eine gehörige Ordnung zu halten (…). Und eben aus diesem natürlichen Triebe des Verstandes, der
uns locket, alles mit einer guten Ordnung und Zierlichkeit vorzubringen, sind endlich von sinnreichen
Köpffen die Regeln entdecket und angegeben worden”.
14
“Exordium; prima carminis periodus, sive affectio...qua auditoris aures et animus ad cantum attenta
reduntur, illiusque benevolentia captatur (...). Corpus Cantilenarum est intra Exordium & Finem
affectionum sive periodorum comprehensa congerie,s quibu textus velut varjs Confirmationis Rhe-
toricae argumentis, animis insinuantur, ad sententiam clarius arripiendm & considerandam. (...).Finis
(...), quod supplementum vocatur, eo, ut dilucidior in animos attendentium penetret a modulando
instans desinentia”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
3. Elocutio
Para Cícero, na elocução retórica, vestem-se os conceitos [res] encontrados na
inventio e ordenados na dispositio com palavras [verba] (CÍCERO, 1942, I, 31, 142,
p. 98). Com isso, ele se refere principalmente às expressões utilizadas no discurso.
A elocução musical constitui, com a inventio e a dispositio, a totalidade da 135
composição musical. Nela, os argumentos da inventio são ordenados, e as partes,
ligadas, de modo a fazerem sentido.
Vimos que as preceptivas musicais seiscentistas se concentram na represen-
tação musical de palavras portadoras do sentido do texto. Essas transposições não
se limitam à inventio, mas também são amplamente aplicáveis à elocutio musical.
As figuras encontradas na inventio são refinadas na elocutio. Tratados seiscentistas
fornecem tratamento substancial às listas de figuras musicais, que são caracteri-
zadas com termos técnicos transpostos da retórica. Este é um aspecto historica-
mente importante do Musica Poetica de Burmeister (2004 [1606]), que inaugura
essa tradição descrevendo 27 figuras musicais. Com isso, ele transforma as rela-
ções entre música e linguagem (já existentes na música quinhentista) em ferra-
mentas de composição. Após Burmeister, as poéticas musicais luteranas passaram
oferecer apanhados de figuras musicais, geralmente emprestadas da Retórica. Isso
ocorre em Nucius, Thuringus, Kircher, Walther, Bernhard, Printz, Ahle, Janovka,
Vogt, Mattheson, Spiess, Scheibe, Forkel etc.22
Nesses tratados, o emprego de figuras retóricas para nomear artifícios técni-
cos musicais dá a esses procedimentos qualidades extramusicais, verbalmente de-
finidas: climax, hyperbole, hypotiposis... A ideia de que as figuras contenham
ensinamento já está proposta na Retórica aristotélica. Nela, lemos que “[a metá-
fora] causa prazer ao que procura ensinamento” (ARISTÓTELES, 1991, 1412b12,
p. 156). Similarmente, lemos no Cannocchiale Aristotelico, o tratado de agudeza
de Emanuele Tesauro (2000 [1652]), que “as figuras retóricas não são outra coisa
que uma beleza peregrina que varia a oração do estilo cotidiano e vulgar para que
ela traga ensinamento conjunto com a novidade, e o ouvinte simultaneamente
aprenda gozando e goze aprendendo” (TESAURO, 2000 [1652], I, 4, p. 124).23
No pensamento musical luterano, esse ensinamento inclui também as pro-
porções musicais e sua relação com a Ordem divina. Essas proporções se referem
a aspectos puramente instrumentais da linguagem musical. Na instituição da mu-
sica poetica, esses procedimentos numéricos também passam a ser carregados
de valor semântico.
É interessante notar que, para Burmeister, figura musica não é apenas um
procedimento técnico incluído em um período musical; ela representa um princí-
22
BARTEL (1998) traz um apanhado de descrições de figuras realizadas por esses autores.
23
“Conchiudo, le Figure Rettoriche altro non esser, che Un vezzo pellegrino, variante la Oratione dallo
stile cotidiano & volgare: accioch’ ell’ habbia insegnamento congiunto com la novità: & l’uditore in
um tempo impari godendo, & goda imparando”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII
pio estrutural constitutivo dele. Por isso, a unidade período-figura é também de-
nominada afecção [affectio, sive periodus] (BURMEISTER, 2004 [1606], XV).
24
“Ornamentum, sive figura musica est tractus [região] musicus; tam in harmonia, quam in melodia,
certa periodo [volta completa], quae a clausula initium sumit, & in clausulam desinit circumscriptus,
que a simplici compositionis ratione discedit, & cum virtute ornatiorem habitum assumit & induit
(...).Melodiam ornamentum est, quod salem voci ornatum addit”.
25
“Elocutio denique est ipsa Meloshesiae omnibus numeris absolutae, tropis figurisque exornatae
per cantum exhibitio”.
26
“constitit autem figura rhetorica in varia eiusdem verbi additione, geminatione, multiplicatione
sive repetitione, per modum alloquentis, interrogantis, increpantis proponentis res magnas, altas,
admirabiles, viles, indignas”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
Considerações finais
No que diz respeito às partes do discurso, pudemos constatar no decorrer
deste texto que poéticas musicais seiscentistas e setecentistas dão grande ênfase
à inventio musical, dedicando extensas porções de suas obras a essa parte do pro-
cesso de composição Na inventio retórica, palavras portadoras de sentido do texto
29
“Onde la Cadenza è di tanto yalore nella Mufica quanto il Punto nella Oratione ; &fi può yeramente
chiamare Punto della Cantilena . É ben yero chefi pone anco douefi ripofa cioè doue fi troua la ter-
minatone di yna parte dell’harmonia nel modo chefifermiamo etiandio nel conte/lo della Oratone,
quando ftroua non folamente la didi/itone mezana ma ancora la finale”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
140 RefeRências:
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93). Hildesheim [Rudolstadt]: Georg Olms [Adam Friedrich Böhme], 1969 [1782-
1793] (fac-simile)
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
Rubens Damasceno-Morais
Universidade Federal de Goiás/UFG
r.damasceno.morais@uol.com.br 143
Resumo
Observar a dinâmica da interação argumentativa em tribunal brasileiro de Segunda Instân-
cia, em julgamentos acerca do dano moral, é o principal objeto deste estudo. Para tal, em-
preenderemos um mergulho mais atento na função exercida pelo clássico terceiro/tiers,
no movimento do discurso-em-interação, para mostrar possibilidades de espraiamento da
função desse clássico papel de atuação. Tudo isso será examinado à luz de estudo de caso
(corpus TRIBUNAL), a partir do qual mostraremos um pouco da dificuldade que têm os ma-
gistrados no momento de definição do montante a ser pago como compensação por um
dano moral sofrido (suum cuique tribuere). Nesse sentido, buscaremos apoio na noção de
situação argumentativa, que abriga o conceito de estase, e que poderá nos ajudar a com-
preender a dinâmica de um julgamento em Segunda Instância.
PalavRas-chave
Interação argumentativa. Estase. Dano moral. Terceiro. Tribunal.
Introdução
Na presente pesquisa, prestamos atenção na forma como os papéis de atua-
ção (rôles actantiels) representados pelo proponente (proposant), oponente (op-
posant) e terceiro (tiers) se desdobram em interações argumentativas que têm,
como pano de fundo, um tribunal brasileiro de 2ª Instância1. Neste exercício de
análise, os dados de que dispomos, oriundos do corpus TRIBUNAL2, ajudam-nos a
enxergar de que forma acontece a interação argumentativa entre magistrados em
algumas deliberações jurídicas sobre dano moral. Mais precisamente, nos dete-
1
Este estudo faz uma releitura de análise apresentada na tese Le prix de la douleur: gestion des dé-
saccords entre magistrats, dans un tribunal brésilien de Seconde Instance (“O preço da dor – gestão
do desacordo entre magistrados em um tribunal brasileiro de Segunda Instância”), defendida em
2013, na Université Lumière Lyon 2, França.
2
O corpus TRIBUNAL é composto por audiências gravadas em um tribunal brasileiro de 2ª Instância,
em sessões de deliberação entre magistrados. Os julgamentos selecionados referem-se sempre a
questões de danos morais, uma vez que a tese da qual foi retirada a reflexão aqui apresentada
buscou estudar a gestão do desacordo entre magistrados em processos de dano moral. Apesar de
termos tido autorização do referido tribunal para utilização anônima dos dados, preferimos não in-
formar a cidade brasileira na qual o tribunal está instalado. Essa é apenas mais uma medida para ga-
rantir o sigilo quanto às identidades dos participantes (juízes e desembargadores) ou mesmo dos
nomes das partes envolvidas nos casos julgados. As deliberações selecionadas foram julgadas entre
os anos 2000-2010.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
3
Aderirei à versão proposta por Rui Grácio para a expressão rôle actantiel, que foi por ele traduzida
como papel de actuação.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
2. O modelo interacional
Em um modelo dialogal de argumentação, a linguagem não é mera linguagem
de objetos, mas linguagem constituída por interlocutores/interagentes, marcada
por pontos de vista. Em tal contexto, a palavra “dialética” carrega múltiplos senti-
dos. Neste trabalho, vamos entendê-la, sobretudo, como “diálogo racional”, con- 147
duzido de acordo com regras institucionais precisas. A concepção aqui
desenvolvida busca evitar reduzir o objeto da argumentação a mera disputa ou a
um discurso institucional extremamente rígido. Em nosso trabalho, vamos sempre
observar o valor dos argumentos nas interações, nesses dois tipos de situação. A
dialética que aqui vislumbramos situa, de uma forma ou de outra, a argumentação
no interstício entre o monólogo e o diálogo.
Para Plantin (2002, p. 231), a argumentação “não se localiza ‘na língua’; tam-
pouco se mostra como mera postura enunciativa monológica”. Segundo o autor,
a argumentação está irredutivelmente no enunciativo e no interacional, em um
vai-e-vem perpétuo entre o face-a-face e a reflexão, cujo motor seria a contradi-
ção. Tais reflexões lembram-nos que a elaboração de discursos não pode se resu-
mir a uma “matemática tópica” (Ibid., p. 62). De acordo com a concepção de
argumentação com que trabalhamos, é no seio de uma interação verbal que o te-
cido discursivo se torna a obra comum de participantes, perpétua e sistematica-
mente modificada por intervenções de parceiros em conversações, seja em
situações de conflito ou de colaboração. O mais instigante em se debruçar sobre
argumentações em contexto de interação é percebermos que, geralmente, o fio
da interação está diretamente relacionado à pressão do momento real e às vicis-
situdes de cada situação vivida e sobre as quais os locutores não têm nenhum
controle devido à espontaneidade das situações, mesmo em situações institucio-
nais, como o debate em âmbito jurídico.
Aqui, examinaremos os excertos que descrevem interações reativas (proposi-
ções seguidas de contraproposições), nas quais os interactantes buscam persuadir
uns aos outros (em alguns dos casos analisados), no momento da definição de mon-
tantes a serem pagos como dano moral. Esse contexto jurídico é particularmente
delicado, pois existem consideráveis controvérsias na doutrina brasileira acerca do
significado das palavras “dano” e “moral” (MORAES, 2003, p. 38, 45, 99), como ve-
remos. Não à toa, muitos magistrados reclamam do desconforto no momento de
definição do montante a ser pago em situações de dano moral comprovado, ale-
gando que em alguns casos é impossível saber com certeza o valor adequado e
justo a ser pago como compensação por um dano moral sofrido (REIS, 2010).
Desse modo, as análises nos ajudarão a perceber o que se ganha quando se
analisam trocas verbais em seara tão polêmica como a jurídica, sob olhar dos es-
tudos pragmáticos que tomam a dinâmica da interação verbal como prioridade.
Desse modo, tentaremos destacar, sobretudo, aspectos das forças ilocutórias das
falas pronunciadas pelos interactantes/magistrados, ao longo dos debates, pois
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
acreditamos que tentar enxergar de perto os meandros das interações nos mo-
mentos em que o desacordo/estase se manifesta, isto é, no fio da interação, nos
permitirá constatar, por exemplo, “certos fenônemos de retroação imediata” (KER-
BRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 17), que poderão ampliar nossa forma de compreen-
der argumentação em contexto de interação. Esse olhar mais minucioso nos
148 mostrará que argumentar não é apenas um jogo de argumentos e contra-argu-
mentos. Tal ação, em interlocução face-a-face, propicia muitos aspectos que vão
além da mera troca de razões/justificativas.
As análises propostas tentarão extrair algum sentido dos argumentos empre-
gados, sem perder de vista as reações que acompanham tais momentos, pois,
como buscamos deixar claro, é o ato da interação argumentativa que nos inte-
ressa, e não meramente a quantidade de argumentos utilizados, suas premissas,
conclusões etc. Desse modo, as reações, os efeitos perlocutórios de uma fala, o
resultado final da negociação, a forma como uma intervenção pode interferir no
valor do montante em debate, tudo isso precisará sempre ser visto em conjunto,
o que, acreditamos, metodologicamente pode nos levar a resultados mais insti-
gantes e menos mecanizados, como acontece em elaboração de meras listas de
argumentos utilizados em determinadas situações em que se lança mão de argu-
mentos para a defesa de posicionamentos diversos, em situações cotidianas.
Para Kerbrat-Orecchioni (1995, p. 8), as trocas realizadas entre participantes
de interações trilogais (com três participantes), pouco importando o tipo de con-
texto, reserva sempre boas surpresas ou, no mínimo, apresenta estruturas inte-
racionais pouco ordinárias. E não é por acaso que escolhemos os dados que
apresentaremos, isto é, dados de situação de interação oral, interativa, muitas
vezes polêmicas, em que, por exemplo, o teor emocional se faz notar por meca-
nismos paraverbais, como tom de voz, hesitações, palavras pronunciadas pela me-
tade, gaguejamentos etc. Esse tipo de dado, cabe destacar, é bastante comum em
trabalhos etnográficos, os quais, “sem se envergonhar de sua ignorância” (LATOUR,
2004, p. 205), lançam-se a descrever situações desconhecidas “na forma como elas
realmente acontecem” (Ibid.). Desse modo, tomando por base os dados etnográ-
ficos coletados em tribunal brasileiro, a pesquisa que apresentamos é o resultado
da descrição de procedimentos de magistrados atuantes na Segunda Instância
(Relator + Revisor + 1º ou 2º vogais), no momento de deliberações conflituosas,
em que se evidenciam divergências de opinião, num estudo que prioriza “o fazer
e dizer em contexto” (DUPRET, 2006, p. 17).
O exercício de tentar enxergar o momento de dissonância, de dúvidas ou de
conflitos de opinião (uma forma de estase irreversível) em deliberações entre de-
sembargadores, quando cada um dos três interagentes pode assumir tríptico papel
no fio da interação (isto é, os papéis de atuação: proponente, oponente e terceiro),
torna o tipo de análise aqui proposto mais complexo, porque ainda ousaremos
sugerir um desdobramento da terceira função atuacional, além daquelas indicadas
por Plantin. Como bem resume Grácio (2010, p. 77): “A vantagem da concepção
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
3. O direito em ação
O universo jurídico é estrito e formal, e os eventos que ali acontecem (julga-
mentos, deliberações, interrogatórios etc.) obedecem sempre a procedimentos
rígidos. A observação atenta das gravações que fazem parte do corpus coletado
em tribunal do Brasil nos permitiu constatar que os julgamentos em Segunda Ins-
tância se dividem em dois momentos principais: ETAPA 1: o momento em que os
magistrados qualificam um fato; ETAPA 2: momento em que os desembargadores
definem o montante que deverá ser versado, como reparação a ato ilícito causado
a alguém, isto é, um dano moral. Na primeira etapa do julgamento, os magistrados
tomarão decisão com base nos critérios propostos pela lei; sempre com funda-
mento nas provas e documentos apresentados já no julgamento em Primeira Ins-
tância para, enfim, analisarem se de fato acatam os pedidos do autor ou do réu.
Em processos de alegado dano moral, as partes geralmente dizem-se vítimas de
“sofrimento, dor, angústia etc.”, mas nem sempre apresentam o vínculo causal
entre a “dor” invocada e os fatos em si. E isso será avaliado pelos magistrados
nesse primeiro momento: a ilicitude do fato alegado.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
2005, p. 3) e que caiu nas graças populares, sendo repetida a torto e a direito, mas
por pessoas que não sabem exatamente o que isso significa. Na verdade, o que
os juristas tentam esclarecer é que as decisões relativas a danos morais não são
julgamentos morais, mas julgamentos estritamente jurídicos (COELHO, 2009, p.
16; REIS, 2010, p. 149).
Para Latour (2004, p. 251), os juristas lidam com “conceitos imprecisos” e, 151
parece-nos, a própria definição de “dano moral” é um bom exemplo dessa impre-
cisão, considerando-se a polêmica que tal noção suscita entre os juristas brasileiros
contemporâneos, como destacado por autores como Reis (2010), Coelho (2009)
e Cahali (2005)”.
4. As situações de negociação
Podemos considerar a segunda parte de cada julgamento como um tipo de
negociação entre os magistrados, reunidos para decidir o valor mais adequado para
cada caso. A escola de Amsterdam, por exemplo, considera a negociação como um
tipo de discurso argumentativo (van EEMEREN & GROOTENDORST, R., 2005; MO-
HAMMED, 2007). A fim de definir o que entendemos por “negociação”, é impor-
tante retomarmos alguns estudos que fazem da negociação o seu objeto de
pesquisa. Apesar de não termos a pretensão de conduzir uma análise puramente
etnometodológica, falaremos de negociação utilizando as noções definidas no bojo
de estudos em Análise da Conversação (como o conceito de “turno de fala”, “so-
breposição”, “fio da interação” etc.), para descrevermos os tipos de estase que
emergem das negociações/argumentações entre os magistrados no momento da
definição dos montantes demandados pelas partes nos processos em julgamento.
Como observamos, é no intervalo entre a proposição do montante sugerido
pelo relator e a ratificação desse valor pelos magistrados que se constrói o se-
gundo momento mais importante de cada julgamento, isto é, definir o montante
a ser pago, via negociação. Em realidade, independentemente do grau de pole-
micidade do caso, o processo de negociação entre os magistrados é sempre imi-
nente, pois os juízes precisarão achar uma cifra a ser paga como dano moral, o
que pode levar a debates, muitas vezes, estásicos. Não obstante, e de acordo com
Traverso (2003, p. 12), “a noção de negociação, se ela é praticamente indispensável
na análise dos discursos e das interações, está longe da unanimidade quanto a
sua definição, seu potencial ou quanto ao tipo de abordagem que melhor lhe con-
vém”5.
5
Retomamos essa ideia de negociação aqui empregada em artigo que será brevemente publicado
nos Proceedings do Congresso “Argumentation, Objectivity and Bias”, ocorrido em junho/2016, na
Universidade de Windsor, na ocasião da 11ª edição do OSSA (Ontario Society for the Study of Argu-
mentation). O site é: http://scholar.uwindsor.ca/ossaarchive/OSSA11/
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
Desse modo, na falta de uma definição consensual acerca do que seja uma
negociação em contexto de interação (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 98), consi-
deraremos que, nos breves excertos aqui analisados, haverá uma situação de ne-
gociação toda vez que o primeiro/segundo vogais recusarem a proposição de
montante sugerida pelo relator, o que obrigará, ao menos, a ocorrência de um
152 terceiro turno de fala (uma contraproposição) entre o relator e seu interlocutor.
Em realidade, tal recusa de ratificar o montante proposto por um dos magistrados
participantes da deliberação em 2a Instância já representa uma forma de estase
entre os magistrados, uma vez que a questão (argumentativa) foi indubitavel-
mente suscitada: Quanto vale o dano moral em debate?
De acordo com Plantin (1996, p. 153), uma negociação, em contexto de inte-
ração argumentativa, “pode levar uma conclusão P a transformações radicais e, a
priori, imprevisíveis”. Efetivamente, em razão da natureza dos dados de que dis-
pomos, nesse segundo momento de cada julgado consideraremos o montante su-
gerido por cada magistrado um tipo de conclusão, pois, como veremos, para
sugerir um valor monetário (com valor de conclusão), o magistrado deve justificar
e argumentar para sustentar o valor financeiro proposto. E essa característica é o
que torna argumentativa uma questão, como explicamos na primeira parte deste
trabalho.
(o primeiro critério visa à baixa do montante arbitrado pelo magistrado de 1ª. Ins-
tância; o segundo sugere o aumento etc.). Desse modo, uma situação estásica se
instaurará, e os magistrados terão por missão argumentar para sustentarem seus
pontos de vista. Importante destacar também que os papéis de atuação se evi-
denciarão, permitindo-nos inclusive observar que um espraiamento desses clás-
sicos papéis ocorrerá, deixando uma brecha para que entre em cena o avaliador, 153
uma função que apresenta missão distinta dos papéis de atuação representados
pelo proponente, oponente e pelo terceiro.
Como veremos mais em detalhes no fio da interação a seguir, há uma estase
irreversível entre o montante inicialmente proposto pelo relator (R$ 3.000) e o
montante que fora arbitrado pelo magistrado de 1ª. Instância/JPI (R$ 6.000).
Vemos que, apesar de o relator reconhecer que a empresa de transporte cometeu
um ato ilícito ao recusar a venda de passes estudantis a uma aluna, ele não con-
corda com o valor outrora proposto pelo magistrado de 1ª. Instância, sugerindo,
assim, a baixa de 50% no valor da indenização arbitrado por aquele (6.000 →
3.000). O primeiro vogal estará, inicialmente, de acordo com o relator sobre tal
baixa no valor (R$3.000) e, sem resistência, ratificará o montante. Por outro lado,
o segundo vogal, último a votar, proporá valor diferente daquele sugerido por seus
colegas de sessão deliberativa. Em resumo, M2 acaba com a possibilidade de de-
cisão por unanimidade em relação ao montante sugerido por seus colegas. Em
realidade, ele manifesta resistência contra o montante proposto por REL (e ratifi-
cado por M1) e, num desacordo explicitamente declarado, propõe um valor mais
alto. De forma incisiva, e como veremos, M2 chega mesmo a convencer os dois
magistrados a mudarem de opinião e de aumentarem o montante inicialmente
proposto por REL (e ratificado por M1). Isso evidencia a importância de estabele-
cermos o fio da interação em momentos de deliberação, para compreendermos,
em situações como a que ora analisamos, de que forma o exercício da argumen-
tação (e de persuasão eventualmente) se estabelece entre os interlocutores, nesse
momento do debate que qualificamos de “negociação”.
Nesse primeiro excerto, reproduzimos o momento em que o relator exprime
seu desacordo acerca do montante arbitrado em 1a Instância (R$ 6.000,00) e pro-
põe uma baixa de 50% no valor arbitrado (R$ 3.000,00); a isso se segue o acordo
de M1 ao valor proposto por REL, seguido do desacordo de M2, o qual, nesse mo-
mento, não sugere ainda um novo valor, mas apenas questiona o valor proposto
por REL (e acatado por M1), num momento de indubitável estase. Vejamos:
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
Esse primeiro excerto mostra que, nas deliberações em 2a Instância que fazem
parte do corpus de que dispomos, mesmo quando uma maioria já tenha sido es-
tabelecida (o caso de REL e M1 concordarem acerca de um mesmo valor), é sem-
pre possível modificar-se um entendimento e fazer prevalecer um outro ponto de
vista. Como vemos, a determinação pelos magistrados do montante suficiente
para compensar um dano sofrido não é um cálculo mecânico, automático. Em rea-
lidade, os critérios utilizados pelos representantes da lei para justificarem suas es-
colhas são muitas vezes pouco exatos, como podemos constatar no caso em
análise. Como já aludimos anteriormente, a legislação brasileira reconhece a pos-
sibilidade do pagamento de indenizações em casos de dano moral, mas nem sem-
pre ensina aos magistrados como encontrarem tal valor. Cada juiz, desse modo,
tem ampla liberdade para opinar um montante, em função das justificativas apre-
sentadas. A essa prerrogativa os juristas chamam de arbitrium boni viri o que, tro-
cando em miúdos, representa o lado subjetivo que compõe a decisão de um
magistrado (REIS, 2010, p. 7).
Não obstante, precisamos ter cautela para não nos perdermos em um tipo
de reflexão estritamente jurídica, pois esse é um território mais técnico. Nosso
objetivo é simplesmente observar como os magistrados fazem a gestão do desa-
cordo nos momentos de conflito (estase); e é isso o que veremos na próxima se-
quência do caso em análise, na qual examinaremos sobretudo o jogo de papéis
de atuação (rôles actanciels) que ali acontece, entre os interlocutores. Assim, no
momento de responder à questão argumentativa: Qual deve ser o valor da inde-
nização?, mostraremos de que forma o avaliador entrará em ação.
6
Códigos de transcrição: / entonação ascendente, \ entonação descendente, (.) pausa curta, (..) pausa
média, (...) pausa longa, (0.6) pausa descrita em segundos, [ ] sobreposição de falas, xxx trecho inau-
dível, ((risos)) descrição da situação, ( ) incerteza na transcrição, & ausência de intervalo entre dois
turnos de fala, = continuação de um mesmo turno de fala, XXxx ênfase, : alongamento de uma pro-
núncia, - interrupção, ° ° voz baixa, ˂(( )) comentário de tradutor˃, # # voz acelerada. Essas convenções
baseiam-se nas normas de transcrição adotadas pelo laboratório ICAR – Interactions, Corpus, Ap-
prentissages, Représentations, ligado à Université Lumière Lyon 2/França, no ano de 2013.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
não pra três mas pelo menos”/l. 55-57), sempre acentuando seu principal argu-
mento de oposição: “pa- porque me parece que que realmente foi tem esse efeito
pedagógico elas têm que sentir realmente essa (.) [essa condenação\” (l.57-59).
Em suma, o magistrado, que naquele instante ocupa a posição atuacional de opo-
nente, não demonstra grande entusiasmo pelo montante sugerido pelo relator e,
156 de forma estratégica, em vez de refutar completamente o montante sugerido e
propor um outro (algo que ele poderia tranquilamente ter feito), ele reage, sim-
plesmente, dizendo: “então é por isso é que eu °num° apesar de que (#até) o emi-
nente# juiz ((identificação)) já votou que (não) pudéssemos não pra três mas pelo
menos pa-” (l.56-57). Assim, o magistrado deixa a redefinição do valor da indeni-
zação a cargo do relator, o qual replica a objeção de M2, dizendo: “xxxxxx o meu
voto não é eh-eh irredutível ne/ ou intransigente podemos se houver consenso au-
mentar por exemplo para quatro mil reais” (l. 60-62).
Nesse momento, o relator exerce os papéis de atuação representados pelo
proponente e pelo avaliador. Esse prolongamento do papel atuacional de terceiro,
como vemos, age em momentos de estase deflagrada7 como uma espécie de “co-
merciante” que avalia um produto e cuja função é tentar encontrar o melhor valor
de um produto. Esse momento do fio da interação teria, em fim de contas, carac-
terísticas de negociação de valores. Não obstante, tal comparação é meramente
ilustrativa, uma vez que, certamente, os magistrados não tirarão nenhum proveito
do valor que estão “negociando” na deliberação, ao contrário do que fará um co-
merciante ao negociar o preço de seu produto. Em realidade, a deontologia pro-
fissional não permite que um magistrado tenha qualquer tipo de envolvimento
pessoal com o caso em julgamento. Os desembargadores julgam sempre pessoas
alheias a seu convívio, a fim de que se garanta a imparcialidade do julgamento.
Para que a análise proposta não vá deixando dúvidas, é importante acentuar
que tal redimensionamento do papel do terceiro/tiers é aliás bastante recorrente
no corpus de que dispomos. Em realidade, perscrutando os dados do corpus TRI-
BUNAL, nos demos conta de que somente falar em terceiro soaria um pouco ge-
nérico demais e não descreveria as sutilezas da função exercida pelo avaliador. E,
por essa razão, vislumbramos falar em desdobramento/redimensionamento do
papel atuacional do terceiro, na tentativa de melhor caracterizar os momentos de
estase acima transcritos e o tipo de questão ali proposta e que, sob nossa ótica,
tão bem descreve o que se passa no contexto de interação argumentativa que
aqui estamos tentando descrever: o momento de quantificação do valor de dano
moral ou o suum cuique tribuere.
Desse modo, vemos que o relator aproveita o espaço interlocutivo engenho-
samente criado por M2 e propõe um novo montante (“podemos se houver con-
senso aumentar por exemplo para quatro mil reais”/l. 61-62), o que demonstra
7
Falamos em “estase deflagrada” porque existem momentos no corpus de que dispomos que o desa-
cordo não é explícito, isto é, que a estase é sutil e não deflagrada.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL
que ele fora persuadido pelos argumentos utilizados por M2. Além disso, o relator
condiciona a aprovação de M1 (que já havia pronunciado seu acordo em relação
ao valor de R$ 3.000,00 proposto por REL) à sua própria aprovação. Em outros
termos, o relator chama à conversa M1, solicitando que ele se pronuncie acerca
do novo valor (R$ 4 mil), o que proporciona uma dinâmica peculiar à interação.
Antes da reação de M1 (“falou foi seis mil/” / l. 64), bastante positiva, ele se mos- 157
tra, em realidade, aberto e disposto a mudar de opinião e a aumentar o montante
que acaba de ser sugerido pelo relator; de forma hábil, M2, novamente manifes-
tando uma resistência ao montante de 4 mil sugerido pelo relator, diz: “ou até
mais eu ((riso)) xxxxxx”/l. 63). Não obstante, a resposta de M2 indica que, em fim
de contas, esse magistrado acaba de recusar a nova “oferta” do relator, o que mos-
tra sem ambiguidade sua posição atuacional de oponente e a manifestação do
papel atuacional do avaliador, que direciona o debate no sentido de que se façam
novas propostas de montantes.
Percebemos, assim, que, após algumas tergiversações (l. 64 a 67), M2 se co-
loca na posição de proponente e, após ter recusado duas propostas de montante
feitas pelo relator, ele sugere finalmente um valor: “vamo por quatro mil e qui-
nhentos <((hesitação)) não sei se xxxxxx vossa excelê[ncia concordaria”/ (l. 68-9).
Vemos, então, que tal proposição é imediatamente aceita pelo relator (“°de acordo
de acordo°”/l. 70). Assim, após ter conseguido a adesão do relator, o segundo
vogal, em um longo turno de fala, empreende, mais uma vez, a defesa de seu po-
sicionamento, mesmo após o voto abertamente favorável de seus colegas de de-
liberação, quando diz: “até pela gravidade e acho que nós não podemos perder
de vista também esse caráter aí pedagógico que tem que ter essa (.) essa penali-
zação”/ (l. 71-73), repetindo, desse modo, o argumento que, aparentemente, per-
mitiu que ele ganhasse a adesão de seus pares, isto é, a defesa do critério
pedagógico. Por fim, a cifra de R$ 4.500,00 proposta pelo magistrado conselheiro
será anunciada como o montante oficial, arbitrado pelos magistrados em 2a Ins-
tância, após uma deliberação apertada, em que o avaliador exerceu um papel não
negligenciável.
Considerações finais
No universo jurídico, o julgamento de uma ação praticada por alguém sempre
apresenta a possibilidade de se colocar em xeque uma série de valores, no mo-
mento da análise, pelos magistrados, da qualificação de uma ação como lícita ou
ilícita. A expressão de tais valores pode ser explícita e anunciada abertamente
pelo magistrado, nos casos de estase clara, expressada por uma questão argu-
mentativa. Ou, ao contrário, esses valores podem vir implícitos, na fala e atitudes
de um magistrado, no momento de proferir o seu voto. Quando se trata de julgar
o montante de dano moral, tem-se não somente os valores éticos, mas também
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO
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www.ruigracio.com