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Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio (Org.

RETÓRICA E COMUNICAÇÃO
MULTIDIMENSIONAL
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio (Org.)

RETÓRICA E COMUNICAÇÃO
MULTIDIMENSIONAL
[Ficha Técnica]

Título
Retórica e Comunicação Multidimensional

Organização
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio

Conselho editorial
Christiani Margareth de Menezes e Silva (Universidade Estadual de Londrina – Brasil)
Eduardo Lopes Piris (Universidade Estadual de Santa Cruz – Brasil)
Isabel Cristina Michelan de Azevedo (Universidade Federal de Sergipe – Brasil)
Loïc Nicolas (Université Libre de Bruxelles – Belgique)
María Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires – Argentina)
Maria Helena Cruz Pistori (PUC São Paulo – Brasil)
Maria Manuel Baptista (Universidade de Aveiro – Portugal)
Paulo Roberto Gonçalves Segundo (Universidade de São Paulo – Brasil)
Soraya Maria Romano Pacífico (Universidade de São Paulo – Brasil)

Coordenação Editorial
Grácio Editor

Capa
Grácio Editor

Design gráfico e paginação


Grácio Editor

1ª edição em janeiro de 2017

ISBN: 978-989-99682-6-4

© Grácio Editor
Travessa da Vila União, n.º 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO:
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL...............................................7
Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio

O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA


EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS ...................................................................11
Angie Biondi & Ângela Salgueiro Marques

DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL


NA MÍDIA BRASILEIRA .........................................................................................27
Carla Baiense & Maite Nora Blancquaert Mendes Dias

AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO


EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S) ...............................................................41
Eduardo Chagas Oliveira

A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA


ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF ......55
Geder Parzianello

CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA:


O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O ABUSO DE DROGAS ...........65
Igor Sacramento & Wilson Couto Borges

RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO:


A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO ................................................................89
Ivo José Dittrich

CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA


DA BOA APARÊNCIA. UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM .....105
Kelly Cristina de Oliveira & Moisés Olímpio-Ferreira

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS


DOS SÉCULOS XVII E XVIII ..................................................................................127
Mônica Lucas

O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO ....143


Rubens Damasceno-Morais
APRESENTAÇÃO

RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Moisés Olímpio-Ferreira & Rui Alexandre Grácio


7

Qualquer breve pesquisa a respeito da Retórica e da Argumentação concluirá


que uma e outra têm sido, ao longo do tempo, objetos de diversas perspectivas
teóricas que as enfatizam de modos bem distintos, ora como ação pelo próprio
mecanismo linguístico, ora como ferramental persuasivo situado no discurso de
um orador com o fim de influenciar, ora como objetos em que se focalizam os as-
pectos informais do raciocínio lógico com avaliação dos possíveis modelos nor-
mativos de raciocínio numa dada situação, ora como um conjunto de elementos
pelos quais se estabelecem critérios e um código de conduta na interlocução, ora
como fontes de dados averiguáveis a partir das atividades cognitivas subjacentes
pautadas na lógica natural, ou da pragmática interacionista, ou da ação pragmática
sociológica, ou do ponto de vista ontogenético da psicolinguística etc. Enfim, as
pesquisas desenvolvem-se nos mais diversos campos disciplinares.

Partindo da simples ideia de que o centro das atenções da Retórica e Argu-


mentação não pode ser desconectado das dinâmicas sociais e contextuais, não é
possível deixar de reconhecer que ele encontra-se vinculado necessariamente ao
mundo sociológico, regido pela contingência, pela incerteza, pela multidimensão.

É tendo em vista essa multidimensionalidade que propomos para leitura da


Retórica/Argumentação, que acolhemos no presente volume um conjunto de tex-
tos com temáticas diferenciadas, mas com o ponto comum de partilharem uma
visão retórico-argumentativa da racionalidade. Dito de outra maneira, os autores
dos textos que compõem o presente livro estão bem cientes dos poderes da lin-
guagem na construção social da realidade, do modo como os discursos carregam
orientações não alheias a pressupostos ideológicos e a visões do mundo, da reto-
ricidade em que estão envoltos os próprios conceitos, enfim, de dimensões sutis
que modelam os discursos e as formações discursivas, as quais, apesar da sutileza,
têm todavia um impacto decisivo nos modos reais de pensar, sentir e viver em
conjunto.
Neste sentido a Retórica e a Argumentação cruzam com a análise do discurso
e da comunicação que muitos do autores deste livro praticam, tomando por base
diversas materialidades textuais.

Angie Biondi e Ângela Salgueiro Marques analisam a construção subjetiva em


8 discursos de vítimas de estupro, divulgados em redes sociais na forma de relatos-
-postagens de si. As autoras apontam o processo de produção, exposição e com-
partilhamento das vivências traumatizantes, indicando que o objetivo dos relatos
é convocar maneiras de adesão do público-leitor às experiências de dor e de so-
frimento. As vítimas, rompendo com as molduras discursivas constringentes pre-
viamente estabelecidas e reconhecendo o poder da assunção da palavra
partilhada, expõem suas confissões incômodas e embaraçantes. Por meio da ex-
periência narrativizada, reivindica-se a presença da voz e a legitimação de sua ver-
dade, a fim de convocar a sociedade à sua responsabilidade ética e política.

Carla Baiense e Maite Nora Blanquaert Mendes Dias analisam os debates pú-
blicos a respeito do sentido de ser jovem, sobretudo na mídia brasileira, em pu-
blicações no jornal O Globo. O estudo investiga, retórica e argumentativamente,
como o conceito de juventude foi discursivamente concebido durante as aguerri-
das discussões sobre a redução da maioridade penal no Brasil. As controvérsias
em torno desse tema são postas em evidência e confrontadas com questões so-
ciológicas e com conquistas do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O texto
mostra que os estereótipos forjados pela retórica midiática, além de serem de-
masiadamente redutores, já que respondem ao problema do adolescente infrator
apenas pelo viés da polícia e da prisão, são também forças contrárias ao direito
da juventude, tão presentes na arena dos progressivos debates que se animam
em torno do assunto.

Eduardo Chagas Oliveira, passando pela Retórica Clássica e pela Nova Retórica
e reconhecendo a presença de gêneros discursivos segundo os novos tipos de au-
ditório, apresenta a Nuper-Retórica, que, orientada conceptualmente nos diversos
matizes da Retórica, sobretudo no que se refere à persuasão e ao assentimento,
objetiva dar conta da multiplicidade dos novos meios de comunicação em massa
(os contextos multimidiáticos), em sua velocidade de transmissão por tecnologia
recente e em sua capacidade de conectar os indivíduos e de ampliar os limites e
as modalidades de linguagem (verbal e não-verbal), com seus símbolos indicado-
res de status, poder, competência, crenças e valores.

Geder Parzianello examina a polêmica em torno do processo de impeach-


ment contra a Presidente Dilma Rousseff. Em cenário de rivalidade entre discursos
e contradiscursos na sociedade brasileira, a multidimensionalidade produzida
pelos efeitos linguageiros de sentido tornou-se objeto de investigação deste tra-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

balho. A interpretação dos dados no espaço tensivo jurídico-político aponta a atua-


ção de uma retórica dos imorais, ou seja, de um discurso ético coletivo, acima dos
princípios da moralidade, modelado em ideologia que promove a alienação do ci-
dadão em sua subjetividade e individualidade, sem consciência crítica e sem dis-
posição ao diálogo. Guiados pela lógica do interesse e construídos na base da
encenação, os fatos descritos constroem um ethos forjado na mera aparência, que 9
busca encobrir a imoralidade de ambos os lados da disputa.

Igor Sacramento e Wilson Couto Borges analisam a enunciação tecnome-


diada, tendo como estudo de caso a entrevista de Fábio Assunção ao programa
Fantástico da Rede Globo, em 13.09.2009. O objetivo é mostrar como o ethos tes-
temunhal se reordena e se remodela na sociedade moderna midiatizada por meio
da revelação de suas experiências, para a produção de subjetividades e identida-
des, de confiança, sinceridade e veracidade, de relações e interações sociais, de
autoimagem prestigiosa. O audiovisual passa a ter papel relevante neste mo-
mento, já que permite a construção de cena fiadora, em sua autorreferencialidade,
correferencialidade e dramatização. Nessa sociedade contemporânea, em que
imagens constituem uma “grade de visibilidade da existência”, os indivíduos bus-
cam mostrar abertamente seus êxitos e fracassos íntimos, suas alegrias e tristezas,
sua saúde e doenças, ora para mostrar competência e sucesso pessoais, ora para
indicar sobrevivência exemplar a todos que sofrem como eles.

Ivo José Dittrich apresenta as relações de poder na argumentação a partir da


dimensão política do discurso, da interação intersubjetiva entre o Proponente e o
Propositário, instâncias discursivas estas que representam lugares sociais e posi-
ções históricas, crenças e valores perspectivados. Cabem-lhes as diferentes estra-
tégias como aproximação, identificação, legitimação e antecipação. Agem, um e
outro, em processo relacional, numa dada situação argumentativa, tanto para
constituir uma aproximação positiva e uma doxa comum possível, quanto para es-
tabelecer certo grau de legitimação, com antecipação dos possíveis contra-argu-
mentos.

Kelly Cristina de Oliveira e Moisés Olímpio-Ferreira analisam a circulação na-


turalizada de discurso racista sob a forma de metáfora da boa aparência. O capítulo
põe em destaque o fato de que o racismo continua fazendo parte das práticas co-
muns do cotidiano brasileiro. Ele aborda o assunto a partir da perspectiva da lin-
guagem em relação dialética com a vida social, levando em conta o papel das redes
sociais e do discurso institucional escolar. Relacionada à ideia da estética de bran-
queamento, perpetuada e naturalizada, uma apresentação mais bonita somente
é possível quando se tem cabelos lisos. Além da importância de a reflexão crítica
de sujeitos agentes se impor como força de resistência, os autores defendem que
a escola, ao contrário do que o corpus evidenciou, deve ser o lugar onde espíritos
investigativos críticos devem ser formados à busca da rejeição das perspectivas
estabilizadoras e normatizadoras que excluem o valor da diferença na sociedade.

Mônica Lucas estuda a construção do discurso musical durante os séculos


XVII e XVIII, em suas preceptivas elaboradas a partir da Retórica e da Poética clás-
10 sicas. A composição, adequada ao auditório, segundo as suas circunstâncias e o
seu lugar, estava alinhada às concepções retóricas de Aristóteles, de Cícero e de
Quintiliano. Concebidos no fundamento das disciplinas do trivium, os discursos
insistiam no objetivo de que a Música Poética deveria ensinar, deleitar e mover o
seu ouvinte, já que implica o discurso dos afetos. A sistemática de composição cal-
cada na inventio, dispositivo e elocutio, determinava o engenho do compositor,
seja na delimitação e escolha das figuras musicais, seja na organização musical fi-
xada pela concordância dos elementos internos e pela finalidade, seja, ainda, pela
preocupação com a representação musical das palavras, postas em sons. De fato,
a identidade construída entre Música Poética e Retórica foi a responsável pela es-
truturação do conhecimento musical dos séculos XVII e XVIII.

Rubens Damasceno-Morais, partindo da concepção de argumentação en-


quanto discurso em interação, apresenta um estudo de caso relativo a um julga-
mento para definição de montante financeiro, como compensação por danos
morais, em tribunal do Brasil. Analisando os papéis dos magistrados na decisão,
o autor focaliza o discurso e o contradiscurso, ou seja, os momentos de conflito
aberto na mesa de negociação. É por meio da interação argumentativa em-se-fa-
zendo que se torna possível fazer a avaliação e a reavaliação dos argumentos dos
interlocutores, com registro tensional das divergências na dinâmica interativa.

É pois na expectativa de uma abertura à multidimensionalidade da Retórica


e das práticas argumentativas — e da correspondente implementação de uma
transversalidade que supere os espartilhos disciplinares e os atavismos dos mo-
noteísmos metodológicos que tendem a debilitar a perspectiva de uma formação
integral dos cidadãos — que o presente livro foi elaborado. Privilegiando o pen-
samento dialógico, ele segue o lema retórico «onde há divergência, haja debate»,
retomando, deste modo, a ideia fundadora da vivência democrática.
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA
VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS 1

Angie Biondi
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens
Universidade Tuiuti do Paraná 11
angiebiondina@gmail.com

Ângela Salgueiro Marques


Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
Universidade Federal de Minas Gerais
angelasalgueiro@gmail.com

RESUMO
Neste texto buscamos observar como as vítimas articulam seus posts na forma enunciativa
dos “relatos de si” (BUTLER, 2015), a fim de convocar as maneiras de adesão às suas vivên-
cias de dor e sofrimento que perpassam variados campos de afinidade, e também se cons-
tituem como um chamado à responsabilidade ética. O esforço de análise privilegia as
materialidades linguageiras de alguns exemplares recentes veiculados em redes sociais.
Tais relatos revelam certo trabalho ético de construção subjetiva da vítima na experiência
da escrita e do registro online, que permite ao sujeito examinar criticamente sua condição
em relação aos discursos normalizadores, em busca da afirmação de novos modos de ex-
pressão subjetiva, política e também social.

PALAVRAS-ChAVE
Enunciação. Relato. Vítima. Redes sociais. Política.

Introdução
Este texto apresenta dois aspectos principais de pesquisa: o primeiro pre-
tende problematizar certa legitimidade da palavra reivindicada pela própria vítima,
a partir da declaração e exibição de suas vivências de dor e sofrimento cotidianas,
agora produzidas e compartilhadas em rede; o segundo pretende identificar como
essas formas enunciativas, enquanto “relato de si” (BUTLER, 2015), observadas
nesses relatos-postagens, manejam os variados campos de afinidade e interações
afetivas às suas histórias e causas.
Dentro da grade da pesquisa qualitativa que utilizamos, a abordagem da “etno-
grafia virtual” (HINE, 2004; 2015; RECUERO, 2013) comparece conciliada e asso-
ciada às chamadas “metodologias de análise biográfica e autobiográfica” (BARROS;
SILVA, 2002; GOLDENBERG, 2004). A referência comum entre as metodologias que
1
Este texto é resultado parcial da pesquisa “Solidariedade em redes: visibilidade e experiência de ví-
timas na cultura contemporânea”, com recursos do CNPq.
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

se pretendem autobiográficas se refere, sobretudo, ao que constitui o núcleo cen-


tral do método: a dimensão do contar e da narrativa (BARROS; SILVA, 2002, p.
136). Daí porque retomamos os relatos das vítimas de modo a preservar sua di-
mensão material e narrativa, no intuito de observar os seguintes pontos: a) a ma-
neira descritiva contada pelo próprio sujeito; b) a organização sequencial dos fatos;
12 c) a intencionalidade subjacente ou exposta no próprio relato-postagem; d) a in-
terpelação do leitor, de modo a compreender, ainda que preliminarmente, como
a vítima se enuncia, criando e compartilhando sua experiência vivida de dor e so-
frimento por meio das redes sociais e de relacionamento.
Aliado ao método autobiográfico, entendemos que a emergência dessas
novas formas de enunciação que atravessam, entrecruzam, reconfiguram, enfim,
a enunciação da vítima sublinhadas neste estudo, além de indicar certa autonomia
dos processos que surgem e se proliferam nas redes, também expõe modificações
nos modos de estabelecimento dos vínculos e interações, propriamente afetivas,
que se promovem entre os sujeitos e suas causas. Segundo Christine Hine (2004),
é produtivo considerar a internet como elemento ou artefato cultural, pois se trata
de um espaço constituído por pessoas concretas, com objetivos e prioridades con-
textualmente situados e definidos, conformados pelos modos com que as redes,
assim como os dispositivos, têm sido comercializados, ensinados e utilizados. Ou
seja, é preciso considerar sua natureza efetivamente prática, concreta e cotidiana.
Pensamos que este olhar que acompanha e observa os usos, as apropriações e os
movimentos dos sujeitos nesse campo – poroso e flexível – permite uma com-
preensão do que se efetiva nos usos cotidianos e situados das redes sociais em
nossa sociedade.
Os fenômenos observados no contexto da internet devem ser tomados como
fenômenos permeados, incorporados e cotidianos (HINE, 2015, p. 170). Portanto,
trata-se de um modo adequado para delimitação de um campo de observação e
de coleta de materiais, na medida em que respeita a densidade descritiva e inter-
pretativa envolvida, tanto no fenômeno quanto na pesquisa, mas, principalmente,
porque ressalta a dimensão complexa do processamento e cotejo das informações
e análises. A opção por essa abordagem e metodologia mostra-se, então, um mo-
delo pertinente e produtivo se se considera o cuidado com a manutenção das di-
ferenças descritivas, devidamente problematizadas, das dimensões on e off-line:

(...) tanto em relação aos usos e apropriações de formas diferentes


que são feitos pelos informantes, quanto pelo recorte e delineamento
do campo, pela coleta dos dados e níveis de engajamento e relacio-
namento do pesquisador com a comunidade (RECUERO, 2013, 178).

Neste caso, ir a campo aqui não é refletir uma sobreposição da lógica comer-
cial ou institucional do meio ou dispositivo técnico sobre os materiais produzidos
pelos sujeitos, mas observá-los em cotejo. Trata-se de uma pesquisa que busca
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

observar, documentar, questionar e analisar o material tendo em conta que o pro-


cesso descritivo-interpretativo é permanente e ativo.
Segundo Goldenberg (2004), é preciso enxergar, nas trajetórias singulares,
os reflexos das condições históricas e culturais nas quais elas se encontram. As
chamadas abordagens etnográficas, com suas metodologias qualitativas de pes-
quisa, possibilitam essa aproximação com as vivências reais dos sujeitos e suas 13
formas expressivas, considerando as articulações produtivas entre as duas dimen-
sões: da vida e da escrita. Nesta pesquisa, a abordagem qualitativa da etnografia
virtual cria um tipo especial de documento de análise no qual a experiência pes-
soal se entrelaça à compreensão ativa de um contexto social e histórico mais
amplo, no qual estão imiscuídas, diluindo, assim, os antagonismos canônicos que
demarcavam as distinções entre a subjetividade de um relato individual e objeti-
vidade da vida social.
Buscamos assegurar a observação de alguns casos exemplares, de modo que
os materiais não perdessem seu caráter singular e, ao mesmo tempo, típico de
um tempo-espaço. É importante ressaltar que não há qualquer pretensão de ana-
lisar os exemplos como representação do fenômeno, pois não há qualquer ensejo
à dimensão distributiva e generalizada desses relatos-postagens de vítimas, que
conduziria ao pretenso desvelamento de uma “verdade única” sobre o fenômeno
pesquisado. Ao contrário, buscamos desenvolver uma acuidade para as nuances
que se apresentam nesses materiais como forma expressiva de uma experiência
singular de dor e sofrimento e, desse modo, traçar paralelos e associações com
os aspectos socioculturais e políticos mais próprios de nosso tempo, para enten-
der, em cotejo, como se processam tais articulações. Trata-se de dispender aten-
ção mais detida aos materiais, a fim de compreender como o sujeito, a partir de
sua própria fala, nesse tipo de enunciação que objetiva, sobretudo, o comparti-
lhamento, organiza sua experiência vivida, relatando-a por meio dos recursos tec-
nológicos e comunicacionais cada vez mais comuns cotidianamente, como são as
redes sociais.
Junto com o estudo das matrizes teóricas que animam as formas de enun-
ciação da vítima como objeto de estudo, esta pesquisa realizou coleta e seleção
dos materiais empíricos que não se descolassem do seu contexto de compartilha-
mento. Esse conjunto recolhido consiste em um diário de cases, captado das duas
mais expressivas redes sociais (Facebook e Instagram), a partir de fevereiro de
2015. Utiliza-se do diário como recurso de coleta, acompanhamento e análise pré-
via, de caráter descritivo, que organiza as informações de cada exemplar, mas tam-
bém apresenta uma coluna paralela, em que o pesquisador indica e levanta
comentários sobre expressões, palavras e temáticas recorrentes que emergem da
observação conjunta. O exame do entrecruzamento desses aspectos enfatiza os
relatos-postagens de vítimas, buscando associar tais gestos enunciativos às formas
de compartilhamento disponíveis nas redes sociais, indicando algumas de suas
maneiras de interpelação e aderências.
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

Goldenberg salienta que “a utilização do método biográfico em ciências so-


ciais é uma maneira de revelar como as pessoas universalizam, através de suas
vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem” (2004, p. 43). Toda forma
biográfica é sempre um retrato de conversações e também de negociações.

14
1. “You will not silence me”: a palavra reivindicada pelo sujeito
No dia 6 de janeiro de 2016, a jovem de 27 anos, Amber Amour, publicou o
relato da agressão sexual que tinha sofrido, minutos antes, em sua página no Ins-
tagram. A ativista de direitos humanos estava na cidade do Cabo, na África do Sul,
promovendo a campanha Stop rape. Educate, que tinha como objetivo informar
a população local sobre a violência e dar apoio às mulheres vítimas de agressões.
A jovem contou que estava hospedada em hostel com um grupo de colegas
quando encontrou um rapaz, que já havia beijado uma vez. Na conversa, ela diz
que o jovem lhe ofereceu o banheiro de sua casa, já que o do hostel só tinha água
fria, e ela estava, há dois dias, enferma:

Aceitei, porque a água do hostel onde eu estava hospedada era ge-


lada e, há dois dias, eu estava bastante doente [com intoxicação ali-
mentar]. Só queria um banho quente. Assim que entrei no banheiro,
ele forçou meus joelhos. Eu pedi para parar. Mas ele ficou mais vio-
lento. Levantou-me e penetrou. Pedi para que parasse novamente e
comecei a chorar. Quando ele empurrou minha bunda, desmaiei.
Acordei alguns minutos depois e o vi tentando rastejar para fora da
porta. Quando ele me viu acordada, voltou para acabar comigo no
chuveiro2.

Ela também postou duas fotografias; uma a caminho do hospital, e outra


ainda no leito, enquanto aguardava a realização do exame comprovativo da vio-
lência. Na imagem, é possível ver parte das pernas cobertas com o lençol do hos-
pital, de cima para baixo, como uma perspectiva em primeira pessoa. A
visualização das pernas, em posição que se equivale ao olhar da jovem sobre os
membros inferiores de seu corpo, é apresentada pela ironia da própria Amber:
Minha visão do kit de estupro, diz.
Dias depois, o Instagram retirou do ar a mensagem e as fotos de Amber. Se-
gundo a plataforma, sua política de comunidade de usuários proíbe o comparti-
lhamento de conteúdo considerado impróprio. No mesmo dia, a jovem postou
uma breve mensagem cobrando uma resposta imediata do Instagram sobre o de-
saparecimento de seu relato:
2
Todos os excertos do relato citados neste trabalho foram por nós traduzidos e estão disponíveis, em
página de livre acesso, postados em 21 de novembro de 2015, por Amber Amour. Disponível em
https://www.instagram.com/ambertheactivist. Acesso em 06.01.2016.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Com licença, Instagram, onde foi parar minha postagem? A minha


postagem logo após o estupro desapareceu e tinha essa mensagem
do IG quando entrei nesta manhã. Que diabos mesmo está aconte-
cendo? Desde quando é contra as regras da comunidade usar a si
mesmo? Eu gostaria de uma explicação atualizada do @instagram.
Vocês não vão me silenciar. Vocês apagaram de minha página a pos-
15
tagem documentando o estupro, mas adivinhem, aquela merda já
tinha viralizado. Está em toda a Internet, então, o que quer que esteja
por trás da exclusão, na realidade, não deu em nada! As sobreviven-
tes de estupro são chamadas de mentirosas e fraudes todos os dias!
Acho absolutamente chocante que a postagem tenha sido excluída.
Eu não serei silenciada. Eu vou continuar a falar minha verdade.

No entanto, com mais de 20 mil seguidores até então, a própria Amber anun-
cia que o seu post já tinha viralizado e fora visualizado milhares de vezes. Em se-
guida, o Instagram pediu desculpas em público, liberou a exibição do conteúdo
da postagem e ainda ressaltou a coragem da iniciativa da jovem em compartilhar
sua experiência e oferecer a oportunidade de uma discussão coletiva sobre uma
temática importante.

Foi preciso muita coragem da Amber em compartilhar sua história, e


queremos dirigir-lhe nossas profundas desculpas. Nós cometemos
um engano e o conteúdo já se encontra publicado. Sempre deseja-
mos que nossa comunidade se sinta segura e apoiada, e que seja
capaz de discutir temas e experiência uns com os outros.

Sabemos que esses recursos tecnológicos que ampliam as possibilidades de


produção e compartilhamento de conteúdo tornam-se, ao mesmo tempo, instru-
mentos potenciais de vigilância e controle: “as dinâmicas de vigilância na Internet
estão hoje intimamente atreladas às formas de participação dos usuários e aos
embates que lhes correspondem” (BRUNO, 2013, p. 125). A exclusão do relato e
das fotos de Amber é apenas um dos tantos exemplos das práticas de vigilância
exercidas pelos próprios gestores das redes sociais sobre todo material produzido
e compartilhado por seus usuários. Nesse contexto, sabemos que as interseções
entre enunciação e visibilidade estão imiscuídas às práticas de vigilância e controle
que movimentam os processos de sociabilidade contemporânea.
Sobre esse aspecto, queremos destacar o quanto a demanda de Amber tem
se tornado cada vez mais comum entre os sujeitos – os usuários –, que hoje com-
preendem e reivindicam para si o direito e a legitimidade de proclamarem suas
próprias causas, já que são os responsáveis diretos por gerar e disponibilizar, vo-
luntariamente, suas histórias de vida e experiências cotidianas. A tensão entre a
livre enunciação, atualmente tomada como um direito do sujeito comum, e a vi-
sibilidade ainda normalizada de algumas práticas comunicacionais – como as que
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

comparecem nas redes sociais –, adquire contornos mais intensos quando explo-
ramos um pouco mais as questões que envolvem a experiência narrativizada da
intimidade (aqui inscrita pelo sofrimento e violência) de um sujeito, constituída
pelo olhar do outro, a partir dos dispositivos tecnológicos.
A produção de uma subjetividade em que o eu é pautado pelo olhar do outro
16 parece se tornar um consenso teórico de muitos dos estudos da comunicação na
atualidade (BRUNO, 2013; SIBILIA, 2008). As práticas contemporâneas de enun-
ciação do sujeito, das quais as redes sociais e de relacionamento fazem parte, evi-
denciam a centralidade assumida pela exibição, pela aparência e pela imagem
como uma demarcação sociocultural predominante para a consolidação de um
eu-sujeito:

Se os dispositivos de visibilidade modernos escavavam uma subjeti-


vidade interiorizada que, a partir do olhar do outro, instaurava a au-
tovigilância, hoje parece estar se constituindo uma subjetividade
exteriorizada, em que as esferas de cuidado e controle de si se fazem
na exposição pública, no alcance do olhar, escrutínio ou conheci-
mento do outro. O decisivo aqui é compreender essa subjetividade
que se modula como exterioridade, no movimento mesmo de se
fazer visível ao outro (BRUNO, 2013, p. 67).

Seguindo essa perspectiva, os aspectos constitutivos e legitimadores postos


na narrativa de um eu-sujeito, como autenticidade e verdade, ainda seriam parti-
cipantes desse processo, porém, igualmente modulados pelo valor da exibição.
Mostrar-se, fazer-se imagem, contar-se, é também se constituir como sujeito e, em
boa medida, garantir o seu lugar de fala. Desse modo, nas efetuações do par ver/ser
visto, contar/contar-se, “nas práticas em questão, o lugar onde o eu se realiza e se
efetiva é na proximidade do olhar do outro, na sua potencialidade de ser visto, e
não tanto no recolhimento de uma interioridade opaca” (BRUNO, 2013, p. 70). Daí
a exigência de Amber parecer respaldada na convocação do valor de verdade que
constitui sua narrativa. Seu direito à palavra não pode ser dissociado do seu lugar
de imagem, pois ambos se constituem e se legitimam pelo olhar do outro.
Tal direito à palavra e à imagem comparece cada vez mais nessas práticas
como reivindicação justa dos sujeitos comuns às experiências que compartilham.
Vou continuar a falar minha verdade, proclama Amber, cuja voz parece multipli-
cada por meio das diversas formas extensivas dos compartilhamentos, curtidas e
visualizações subsequentes. Ora, na produção da subjetividade contemporânea,
o autêntico e o verdadeiro de uma experiência narrativizada não estão mais cir-
cunscritos à dimensão da intimidade como interioridade, isto é, em sua radical
preservação e abrigo, mas comparece afirmada pelo valor de apresentação e ex-
posição que assume. Assim, essa inversão fortaleceria uma atitude revelatória que
é reforçada pelas formas de enunciação que o sujeito encontra hoje e que aden-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

saria o caráter do autêntico e do verdadeiro pelas formas da apresentação ime-


diata e direta como seu franco valor.
No relato-postagem de Amber, a jovem declara “sua verdade” e a justifica
quando contrasta à possibilidade de recolher seu sofrimento e de se resguardar
em sua experiência íntima da dor a opção de revelar a verdade aos inúmeros ou-
tros. Desse modo, a sua verdade e a verdade da situação se equivalem na mesma 17
instância enunciativa e visual, mas, sobretudo, moral (FASSIN, 2011). A experiência
narrativizada de sofrimento apresenta aqui um caráter fortemente reivindicatório
que não admite a suspeição ou a suspensão da palavra da vítima. Uma grande
questão seria saber como os homens se governam, eles mesmos e entre eles, por
meio da produção social de suas verdades, dizia Foucault (2004). “A vítima e sua
experiência traumática designam uma realidade irrecusável associada a um sen-
timento de empatia que invade todo espaço moral das sociedades contemporâ-
neas” (FASSIN, 2011, p. 17).

Obrigada a todos pelo apoio durante esse tempo. Suas mensagens


me incentivaram a tomar iniciativa e me colocar de pé por mim e por
todas as sobreviventes de estupro. Para todos aqueles que preferem
me culpar ou qualquer outra sobrevivente por aí, quero que saibam
que vocês são o motivo pelo qual sou brutalmente franca. Eu poderia
ter escondido os detalhes, ter mantido algumas informações só para
mim, mas não. Vocês precisam saber da verdade e ver a realidade da
situação. Não importa o que a pessoa faça, nada é um convite para
o estupro. Não importa se eu o beijei. Não importa se ele estava bê-
bado. Não importa se eu disse sim a um banho. Eu nunca disse que
ele poderia ser violento comigo. Eu nunca disse que ele poderia me
ferir. Eu nunca disse que ele poderia me estuprar.

Sua declaração indica ainda que há uma força afirmativa marcada pela utili-
zação enfática de sua vontade repetida nas oposições não importa o que ele versus
eu nunca disse. A expressão afirmativa e reivindicatória de um eu-sujeito que pode
e deve contar sua experiência é que legitimaria qualquer ação ou atitude. Se não
se pode submeter um à vontade do outro também não se pode submeter a pala-
vra de um ao outro. Desse modo, silenciar Amber, nesse contexto, se configura
como outra agressão, outra forma violenta pela submissão da palavra e do sujeito.
Aqui, o interdito da confissão e o segredo da dor íntima realmente não poderiam
ser contidos, uma vez que todo investimento da enunciação de sua dor já comparece
pautado pela imagem; está voltado para fora, para o exterior; busca realizar-se no
devir coletivo da narrativa, ou seja, no outrem:

No entanto, podemos pensar na emergência de outras zonas de in-


vestimento que se configuram segundo uma outra topologia: a inte-
rioridade, ainda que permaneça presente, deixa de ser o foco
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

privilegiado de cuidados e controles, assim como talvez deixe de ser


a morada mesma da verdade ou do desejo. Se a modernidade pro-
duziu uma topologia da subjetividade e do cotidiano que circunscre-
via o espaço privado e seus diversos níveis de vida interior – casa,
família, intimidade, psiquismo –, a atualidade inverte essa topologia
18 e volta a subjetividade para o espaço aberto dos meios de comuni-
cação e seus diversos níveis de vida exterior – tela, imagem, inter-
face, interatividade. (BRUNO, 2013, p. 81).

O registro imediato e seu compartilhamento assumem um papel importante


nesse processo da constituição da subjetividade exteriorizada, não apenas por
possibilitar a publicização dos acontecimentos da vida de sujeitos comuns, mas
porque também adquire uma função moral na legitimidade de quem fala e se
expõe. É a própria vítima que se apresenta e reivindica a imagem e a palavra, pois
é ela quem encarna a legítima instância moral e política de suas dores e vivências
singulares. Tem-se uma construção do lugar de fala do sujeito que, consciente de
seu status e da projeção que pode alcançar, se põe como agente qualificado das
dores reais e legítimas que vivencia, isto é, como autêntico portador de uma ex-
periência originária capaz de mostrar a verdade das coisas que merece ser com-
partilhada: “A construção da pessoa como vítima no mundo contemporâneo é
pensada como uma forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, cir-
cunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade” (SARTI, 2011, p. 54).
Desse modo, diríamos que compartilhar se torna uma ação complementar e
extensiva à situação de dor e sofrimento em que se encontra o sujeito que vive e
narra ao mesmo tempo; daquele que ocupa, portanto, os papeis de narrador e
personagem, simultaneamente.
Além disso, é preciso ressaltar que a denúncia se torna um imperativo à ví-
tima que, para além de expressar sua dor, é constrangida à confissão, pois recai
sobre ela a responsabilidade da experiência partilhada. Em nome das tantas outras
vítimas, efetivas ou potenciais, não se pode calar; é preciso contar, seja entre gritos
ou soluços.
Sob essa perspectiva, as práticas de exposição do eu envolvidas nessas tec-
nologias de comunicação só adquirem essa significativa relevância na reordenação
da dor e sofrimento entre as esferas pública e privada, do recato da dor íntima à
exposição da denúncia, por conta de uma política do olhar que se institui, cada
vez mais, totalmente comprometida com o valor de exibição manejado por entre
os diversos recursos tecnológicos de produção e compartilhamento de conteúdos
hoje disponíveis.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

2. “Raspei minha cabeça porque cansei de ser assediada. Não me


calo mais.”: o relato de si na produção da fala política da vítima
Outro aspecto que parece ampliar a reflexão desse problema busca aprofun-
dar a perspectiva que explora o lugar da enunciação pelo adensamento da noção
do eu-sujeito embutida na figura do relato como expressão privilegiada da visibi-
19
lidade da vítima. A escrita de si, o contar-se, o “relatar a si mesmo” (BUTLER, 2015)
estão implicados na construção da subjetividade que mantém sua abertura e o
caráter processual do ser como devir pelo outro.
É importante lembrar que o relato de si se desenvolve em uma cena de in-
terpelação na qual, segundo Butler (2015), se conjuga uma ética da responsabili-
dade tanto com relação à veracidade do relato, quanto ao tipo de vínculo que ele
pode estabelecer com os interlocutores. O relato é sempre uma ação voltada, ao
mesmo tempo, para a auto-revelação, auto-transformação e a configuração dos
termos e quadros de sentido discursivos que definem quem fala. “Quando agimos
e falamos, não só nos revelamos, mas também agimos sobre os esquemas de in-
teligibilidade que determinam quem será o ser que fala, sujeitando-os à ruptura
ou revisão, consolidando suas normas ou contestando sua hegemonia” (BUTLER,
2015, p. 167).
A escrita ou o relato de si empreendido por Amber, apesar de ter sido de-
sencadeado mediante acusação violenta, não se confunde com a confissão que
supõe um indivíduo culpado, pecador, que desconfia de si mesmo e que deve en-
contrar os erros e desvios do seu caráter para justificar a violência sexual, de modo
a corrigir-se e adaptar-se às normas instituídas e ao regime consensual dominante.
Muito pelo contrário: seu relato nos revela um trabalho ético de construção sub-
jetiva na experiência dissensual da escrita e do registro online, que permite ao in-
divíduo examinar criticamente sua condição em relação aos discursos
normalizadores, em busca da afirmação de novos modos de expressão subjetiva,
política e social (RAGO, 2013).
Em outro caso que observamos, a estudante Thais Moya, posta, em sua pá-
gina do Facebook, um relato, sob forma de protesto, do assédio sexual que sofreu
por parte de seu orientador de doutorado. Segundo a pesquisadora, o caso já
tinha sido informado à secretaria da Coordenação do Programa de Pós-Graduação
ao qual estava vinculada, porém, foi ignorado. Como o assédio continuou, Thais
resolveu usar sua página da rede de relacionamento para “dar voz” ao caso e con-
tar a verdade dos fatos.
No dia 11 de dezembro de 2014, a jovem postou uma selfie com a cabeça
raspada junto ao relato de sua dor em protesto:

Raspei minha cabeça como forma de protesto. Raspei meus cabelos


porque eu fui, duas vezes, agarrada e beijada por meu professor e
(ex-)orientador sem o meu consentimento. Raspei a cabeça porque,
como quase toda vítima de assédio, passei dois anos amedrontada e
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

coagida pelas relações de poder que perpassam as consequências de


denunciar o ocorrido. Senti-me responsável não apenas pela minha
carreira profissional, mas pela do professor em questão e pelas con-
sequências negativas que recairiam no Programa de Pós-Graduação
e nos colegas do núcleo de estudos. Calei-me, acovardada. Raspei
meus cabelos porque, depois de ser agarrada pelo professor e recu-
20
sar, ele progressivamente me tirou dos projetos do núcleo de estudos
que ele coordena, dizendo em uma ocasião que sou ‘uma franga sem
doutorado, que precisa colocar o rabo entre as pernas, parar de en-
frentar professor doutor e aprender a jogar o jogo da academia, caso
eu queira mesmo continuar nela’. Além de em nada orientar minha
pesquisa. Raspei minha cabeça porque a coordenação elaborou um
survey para as/os estudantes avaliarem o Programa. Tal survey foi
apresentado como anônimo e vi nele a única oportunidade segura
de relatar os assédios que sofri e também aqueles que testemunhei.
No entanto, a coordenação do programa divulgou as respostas aber-
tas do survey para todas/os estudantes. Raspei meus cabelos porque
um grupo de estudantes leu os relatos de assédios e se mobilizou,
escrevendo uma carta para as/os docentes (CPG), reivindicando uma
posição delas/es, principalmente, porque elas/es haviam ignorado
por completo os relatos. Boa parte dos/as docentes ficou muito irri-
tada e começou coagir seus orientandos com intuito de desmobilizar
o processo de reivindicação em curso. Raspei minha cabeça porque
a coordenadora do Programa postou no seu facebook que os estu-
dantes estavam ‘criminalizando a expressão sensual’. Raspei meus
cabelos porque, ontem, houve uma reunião marcada pelas/os do-
centes com as/os estudantes. Sem qualquer escrúpulo, a professora,
que falava em nome do corpo docente, pronunciou os nomes dos re-
latados, que até então eram anônimos, e afirmou - baseada em ar-
gumentos que apelam para tradição – que meus relatos são
mentirosos, pois conhece o professor há 20 anos e, segundo ela,
trata-se de um homem comprometido e galante (!!). Raspei minha
cabeça porque as/os docentes exigiram a retirada da carta elaborada
pelas/os estudantes, senão processariam judicialmente os represen-
tantes discentes. Instauraram um clima de terror e chantagem, que
desmobilizou todas/os estudantes presentes. Raspei meus cabelos
porque as/os docentes compararam as/os estudantes aos nazistas,
além de insinuar que os professores relatados estavam sendo vítimas
de racismo e homofobia, já que se trata de um professor negro e
outro gay. Houve uma estratégia sórdida de inverter o cenário, colo-
cando-me como agressora, assim como todas/os estudantes. Raspei
minha cabeça porque cansei de ser assediada, coagida e chanta-
geada. Raspei meus cabelos porque eu fui publicamente humilhada,
ofendida e desrespeitada por docentes que afirmaram que meus re-
latos de assédios são mentirosos sem nem ao menos me ouvirem
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

pessoal e detalhadamente. Raspei minha cabeça porque sofri um lin-


chamento moral de um Programa de Pós-Graduação que tentei até
aqui preservar, tanto seus docentes, quanto discentes. Raspei meus
cabelos porque eu poderia me calar por mais 7 dias e defender meu
doutorado sem mais constrangimentos e coações, mas eu me recuso
fazer parte dessa lógica opressora que o corpo docente instaurou no
21
Programa. Eu, mesmo com medo de mais retaliações, não me calo
mais. Raspei minha cabeça. Raspei meus cabelos. Mas permaneço
em pé.

O caso de Thais ganhou grande repercussão nas redes sociais e na imprensa.


A estudante abriu um processo contra o professor e chegou a ser ouvida pela Co-
missão Parlamentar de Inquérito, na CPI que investiga denúncias de violação aos
direitos humanos nas universidades. Até o último dia de coleta das informações
sobre este exemplar de pesquisa, ainda não havia uma data definida para a apu-
ração do caso.
É preciso destacar que relatar a si mesmo buscando um compromisso com a
verdade é também um trabalho ético-político. Toda “técnica de si” contempla um
movimento ativo de autoconstituição da subjetividade, a partir de práticas da li-
berdade, segundo Foucault (2004). Assim, essa é uma técnica de si que almeja a
transformação política de si às modalidades de produção de enunciados que criam
uma “relação entre o existencial e a enunciação, entre a afirmação de si e a fala
política” (LAZZARATO, 2014, p. 193).
Foucault (1995) destaca que novos modos de subjetivação emergem quando
um indivíduo arrisca-se para expor e explicar as maneiras desumanas que fabricam
o assujeitamento. Isso exige coragem de dizer a verdade e de desvelar mecanismos
de poder.

Se as relações de poder pesam sobre mim enquanto digo a verdade,


e se, ao dizê-la, exerço o peso do poder sobre os outros, então não
estou apenas comunicando a verdade quando digo a verdade. Tam-
bém estou exercendo o poder no discurso, usando-o, distribuindo-o,
tornando-me o lugar de sua transmissão e replicação. (BUTLER, 2015,
p. 159).

A parresía3 associada ao relato de si reestrutura e redefine o campo de ação


possível, tanto para si como para os outros, em uma dinâmica de autoconstituição
3
Foucault (1995, 2004) considera como técnicas de si os procedimentos por meio dos quais um indi-
víduo se “apropria de si”, transformando-se em sujeito de suas próprias práticas e construindo a si
mesmo a partir de uma perspectiva ética que busca distanciar-se das regulações e normatividades
do Estado. Para ele, essas técnicas (meditação, a escrita de si, a dieta, os exercícios físicos e espirituais,
a parresía ou coragem da verdade) dizem respeito à capacidade que os indivíduos possuem de “efe-
tuar, por si mesmos, um certo número de operações sobre o seu corpo, sua alma, seus pensamentos
e condutas de modo a produzir neles uma transformação” (FOUCAULT, 1984, p.785).
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

existencial e política: “há uma estética da enunciação, que se abre a algo de novo
e permite emergir a potência do sujeito e o sujeito em sua potencialidade” (LAZ-
ZARATO, 2014, p. 199). Nesse sentido, podemos afirmar que essas técnicas de si
são capazes de promover novas formas de experiências e subjetividades na me-
dida em que instauram outra cena enunciativa, devolvendo-nos ao mundo modi-
22 ficados. A prática política da parresía acontece quando um sujeito que assume o
risco de falar a verdade, expressando o que realmente pensa e conectando-se ao
enunciado e à enunciação de modo a não só produzir efeitos sobre os outros, mas
a “afetar o objeto da enunciação, produzindo uma transformação existencial” (LAZ-
ZARATO, 2014, p. 151).
Parece-nos que as apropriações das chamadas redes sociais e de relaciona-
mentos, aqui atualizadas pelos sujeitos, fizeram delas um espaço que permitiu,
em alguma medida, utilizações criativas e subversivas/insubmissas das técnicas
de si, uma vez que figuram como “campo de possibilidades de ação para uma mul-
tiplicidade de condutas a serem inventadas (...) trata-se sempre de gestos, manei-
ras, modos, variações, resistências, por minúsculas que pareçam, ou inaparentes
que sejam” (PELBART, 2013, p.232).

3. O comum da dor e a comunidade de vítimas


Nesses exemplares, a vivência episódica de uma dor ou sofrimento se interpõe
como uma emergência sobreposta a todas as outras postagens anteriores que ali-
mentavam o transcorrer de uma vida comum e banal, na trivialidade que suposta-
mente deveria ter. Nesse lugar, a vítima se apresenta como o exemplo real de uma
contingência infeliz e desnecessária que não deveria ocorrer. Nesse grupo obser-
vado, é a vivência da dor atribuída pela experiência de uma violência sexual que se
soma aos inúmeros outros casos no cotidiano de jovens e mulheres, sobretudo,
que partilham suas vivências de dor e sofrimento e denunciam a precariedade e a
insegurança que ameaçam constantemente a vida e a dignidade comuns.
A instância que legitima a declaração de vulnerabilidade desse tipo de vítima
não está para a produção de um vínculo testemunhal apenas, mas para o apelo à
multiplicação das vozes, a convocação a “engrossar o coro”, à participação que se
multiplica pela repostagem, pelo retuíte, pelo compartilhamento ou pelas visua-
lizações. O êxito (se pudermos observá-los como uma estratégia) desses relatos-
postagens trazidos nesses casos parece proporcional ao alcance dos
compartilhamentos e visualizações possíveis. Seu objetivo é produzir ecos à voz,
ao apelo, à convocação, enfim, produzir um corpo, formar um rosto, pois, só assim
pode ser possível chamar a atenção pública para o que não deveria acontecer.
Se nos meios tradicionais da imprensa os filtros editoriais, políticos, merca-
dológicos, entre tantos outros, revestem os fatos para oferecer seus discursos pré-
-concebidos, os registros e escritas que têm surgido e se multiplicado pelas
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

diversas redes sociais e de compartilhamentos tenderiam a ser tomados como


meios da (livre) expressão do sujeito real e comum. Afinal, o que traz essas breves
formas narrativas ao centro das discussões hoje é a inegável existência de certa
força mobilizadora – tão afetiva quanto real –, que se constitui a partir da conjun-
ção das histórias de vida pessoais com os dispositivos tecnológicos de comunica-
ção instantânea que produzem, armazenam, compartilham e conectam, 23
instantaneamente, em torno de certas situações vivenciadas, antes tão intolerá-
veis quanto invisíveis no espaço público.
Advêm dessa articulação as variações e deslocamentos significativos dos agen-
tes imiscuídos na situação narrativa que mobiliza, simultaneamente, as instâncias
da enunciação e visibilidade do eu-sujeito em um arranjo íntimo e peculiar. Essa
reciprocidade entre instâncias, de parte a parte, explica, em primeiro lugar, que
essa experiência narrativizada comparece de certo modo desvinculada de uma po-
sição hierárquica, tradicionalmente controlada pelos meios e gêneros da comuni-
cação midiática, e perpassa os diferentes domínios do cotidiano de modo
instantâneo e mais direto. Em segundo lugar, que sua potencialidade prática é atua-
lizada por um campo de diversos acionamentos dos sujeitos em relação. Portanto,
o par enunciação/visibilidade é situado e contextualizado por materiais expressivos
que, em arranjo, tensiona, de diferentes modos, a relação entre o sujeito, a expe-
riência e o meio, produzindo outras recomposições nas cenas de enunciação e in-
terpelação, através dos mais diversos tipos de deslocamentos interativos e afetivos.
Paulo Vaz (2010) estabelece uma relação interessante entre os sofrimentos
(classificados hoje como contingentes) e a ação humana na cultura contemporâ-
nea. Segundo ele, o desenvolvimento de uma sociedade, medido graças aos avan-
ços tecnológicos, científicos, aprimoramento social e político, promove outra
observação dos sofrimentos cotidianos, antes tidos como necessários, mas que
hoje são vistos como dependentes da ação humana:

(...) ela deve também considerar, em primeiro lugar, que sofrimentos


são selecionados como contingentes, como estando ao alcance da
ação humana, e, em segundo lugar, qual é a distribuição de respon-
sabilidade entre a ação individual e a ação coletiva pela existência
desses sofrimentos selecionados (VAZ, 2010, p. 135).

Mesmo demarcada por outros objetivos, o autor deixa claro, portanto, que
a ocorrência de um sofrimento contingente hoje só se justifica pela negligência e
omissão, sobretudo, exercidas pela política do Estado. Daí a correlação imediata
da enunciação declarativa da vítima quanto ao fato ocorrido, a violência sofrida,
trazida a público através da denúncia e da convocação. Os relatos-postagens de
Amber, Thais, entre tantas outras vítimas, reivindicam lugar à voz para exortar
uma responsabilidade comum, pois a declaração de uma dor vivida vincula sua
O RELATO DE SI E A PRODUÇÃO DA FALA POLÍTICA DA VÍTIMA EM POSTAGENS DAS REDES SOCIAIS

posição de “vítima desnecessária” a um culpado negligente e ineficaz, seja indi-


cado na figura do Estado, da política, da cultura, da norma, entre outros.
Não é por acaso que esse tipo de relato-postagem se apresenta com intenso
teor declarativo e de denúncia, pois não basta exibir as marcas para suplicar um
olhar cúmplice e silencioso, mas convocar, aos berros e aos gritos, o compartilha-
24 mento da dor em sua ocorrência, em sua ação no próprio corpo. A produção dos
relatos de si de Amber ou Thais não suplicam o lamento ou consolo de quem quer
que seja, como vistos nos casos de vítimas de doenças, por parecerem submetidas
ao jugo do destino e da fatalidade. A negligência e a omissão que caracterizam a
postura das instituições políticas responsáveis e da sociedade, como um todo,
quando mantêm o silêncio frente à violência denunciada, constituem o ponto cen-
tral de onde se desdobram os tais casos violentos e desnecessários que buscam
promover o sentimento coletivo de indignação, comoção e, sobretudo, revolta da-
quele que tem o direito presumido de viver em sua dignidade de gênero, religiosa,
étnica, humana.
Observamos que os perfis de vítimas que se apresentam estão diretamente
relacionados às formas diferenciadas de produção e utilização dos relatos de si.
Nesse grupo exemplar, ele é produzido para uma atitude de resposta imediata,
ou seja, pela tomada de posição que atende, de súbito, à urgência da força decla-
rativa da dor vivida e compartilhada dos relatos-postagens.
Segundo Valadier (2011/12), a vulnerabilidade é um estado do humano que
pode acometer qualquer um, em qualquer momento da vida, e por isso mesmo
surge pelo dever de ser compartilhada. Todo ser humano é vulnerável, porque é
um ser de carne, que pode ser afetado e tocado em sua sensibilidade e corporei-
dade radical.
Butler (2011) afirma que dependemos de outros anônimos para sermos con-
siderados e reconhecidos. Nessa dependência estaria nossa condição de preca-
riedade e vulnerabilidade conjugadas. Ela desenvolve o argumento de que a
precariedade da vida pode se manifestar sobretudo no modo como o espaço de
aparência (frequentemente marcado pelos enquadramentos midiáticos) produz
formas diferentes de distribuir a vulnerabilidade, fazendo com que algumas po-
pulações e grupos estejam mais sujeitos à violência que outros.
Na argumentação de Butler, a representação da alteridade se constitui em
um meio de humanização/desumanização, de reconhecimento do vínculo ético-
moral com o Outro ou de justificativa para sua violação ou eliminação. Aquilo que
nos vincula moralmente teria a ver com o modo como o discurso do Outro se dirige
a nós de maneira que não podemos evitá-lo ou mesmo dele desviar. Assim, os re-
latos de si possuem potencialmente a força de constituírem um apelo moral, um
clamor nascido do padecimento, que produz um comum, ou seja, aciona uma
forma de construir conjuntamente uma experiência da “escuta” dos sons do so-
frimento humano e da proximidade com a precariedade da vida.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Considerações finais
Os perfis de vítimas elaborados por meio das formas dos relatos-postagens
de si, como vimos, conjugam os aspectos políticos e morais que estão implicados
no processo de produção/exposição/compartilhamento da dor e do sofrimento vi-
vidos. Narrar e narrar-se nas redes assumem, simultaneamente, as conjugações do 25
ver e do ver-se, do contar e também do contar-se, em conjunto. É possível dizer
que os relatos trazidos nos breves exemplares de nossa pesquisa se constituem
como técnica de si na qual a parresía – o gesto de dizer a verdade sem medo, uma
verdade política que fere, provoca e desmonta o stablishment – rompeu, pelas bre-
chas, o espaço normalizado (da palavra e da imagem) das redes. A produção do re-
lato dessas jovens revela clara intenção de assumir o controle da própria vida, de
tornar-se sujeito de si mesmo por meio do trabalho de reinvenção da própria sub-
jetividade, possibilitada pelo relato de si como forma de ação ética e política. Trata-se
de tornarem-se autoras do próprio script para afirmar um outro eu à violação. Trata-
se também de buscar elementos capazes de apontar para um tipo de resistência
às formas de vida prontas, ao apagamento e desaparição dos sujeitos em narrativas
que apenas “encaixam” os indivíduos em molduras discursivas previamente arqui-
tetadas, capturando seus gestos, rotinas, corpos e falas em operações consensuais,
constrangimentos e submissões de toda ordem. Nesse sentido, a exposição e o
aparecimento do corpo e do rosto nos relatos de si aqui apresentados são capazes
de tensionar enunciados e cenas de enunciação que nos revelam uma potenciali-
dade política de desidentificação, do dissenso e da ruptura.
As vítimas e suas vozes transitam nessa dinâmica da vulnerabilidade e da dor
comum, para uma reivindicação, na voz e na palavra, de fazer ouvir todos aqueles
que são evocados e invocados nessa forma de partilha.

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DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE
PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

Carla Baiense
Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPFMC/UFF)
carlabaienses@yahoo.com.br 27

Maite Nora Blancquaert Mendes Dias


Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPFMC/UFF)
maitemendes@yahoo.com.br

Resumo
Num momento em que a juventude está no centro do debate público, examinamos os sen-
tidos de ser jovem no contexto latino-americano, a partir das construções midiáticas em
torno da categoria. Sob a perspectiva da retórica e da argumentação, vamos investigar de
que maneira a juventude é concebida discursivamente. Nosso objeto são as reportagens
publicadas no jornal O Globo, a partir da segunda metade do século XX, até o ano de 2015,
sobre a redução da maioridade penal no Brasil, dos 18 para os 16 anos, cujo projeto en-
contra-se no Congresso Nacional. Tendo como pano de fundo o conceito sociológico de ju-
ventude e as conquistas asseguradas pelo Estatuto da Criança e do adolescente,
confrontamos a argumentação em torno da maioridade com o direito à juventude.

PalavRas-chave
Juventude. Maioridade penal. Mídia. O Globo. Retórica.

Introdução
Pensar a juventude, no contemporâneo, requer um olhar que vá além do cri-
tério etário, adotado nas pesquisas demográficas, que estabelece os marcos tem-
porais a partir dos quais deve-se olhar para este enorme contingente: cerca de ¼
dos brasileiros, segundo o IBGE1. Reduzir o conceito sob essa perspectiva é pro-
blemático, sobretudo nos países latino-americanos, nos quais há clara distinção
entre os modos de ser jovem de acordo com a condição social, região, gênero,
entre outras variáveis (MARGULIS e URRESTIS, 1996; REGUILLO, 2003; MARTÍN-
BARBERO, 2008). Nas palavras da pesquisadora Rossana Reguillo:

La pobreza define en buena medida las biografías y trayectorias ju-


veniles en muchos países y regiones del mundo; desempleo, preca-
riedad, inseguridad y criminalización de la juventud y la pobreza,
hacen parte de la experiencia cotidiana y subjetiva de millones de jó-

1
No Brasil, considera-se juventude o contingente populacional compreendido entre os 15 e os 29
anos, conforme estabelecido pelo Conselho Nacional da Juventude.
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

venes. Con este panorama, al que podría añadir cifras terribles, no


es difícil imaginar que la subjetividad está atravesada por el “desen-
canto” (SCOLARI, mimeo).

Mas a juventude não é apenas experimentada de maneira específica, con-


28 forme a posição social dos indivíduos; ela também é construída retoricamente de
modo particular. O paradoxo atinge seu nível mais explícito em manchetes como
a do portal G1, publicada no dia 18 de abril de 2013: “Em Boa Vista, adolescente
é assaltado por menor de 15 anos”. Os marcos que separam irremediavelmente
os dois sujeitos descritos no episódio – o adolescente e o menor – certamente
não são etários.
Neste artigo, propomos uma reflexão a respeito da retórica midiática em
torno da juventude pobre do Rio de Janeiro, a partir das discussões sobre a redu-
ção da maioridade penal na grande imprensa. Examinamos como o debate trans-
corre ao longo do século XX, a partir de reportagens do jornal O Globo, o mais
importante da cidade, até 2015, quando a Comissão de Constituição e Justiça e
de Cidadania aprova o encaminhamento da Proposta de Emenda Constitucional
171/93, engavetada há mais de 20 anos, para votação no Congresso.
Em 17 de junho daquele ano, a Comissão aprovou o relatório que propunha
a diminuição da maioridade penal de 18 para 16 anos para os crimes listados no
Inciso XLIII do Artigo 5° da Constituição Federal de 1988 (tortura, tráfico e crimes
hediondos2), além de homicídio doloso, lesão corporal grave, lesão corporal se-
guida de morte e roubo qualificado. O projeto prevê prisão em espaços separados
dos adultos, embora não defina os locais. Para entrar em vigor, a PEC precisa ser
aprovada em dois turnos pelo plenário da Câmara dos Deputados, com pelo
menos três quintos dos votos (308 dos 513 deputados), e votada no Senado.
Pretendemos identificar de que forma o debate direciona os sujeitos no in-
terior do discurso, construindo o paciente da redução de modo específico, em que
o critério etário aplica-se a casos específicos. Na perspectiva da retórica, preten-
demos entender como “esses discursos destinados a, antes de tudo, informar, des-
crever, narrar, testemunhar, direcionam o olhar do alocutário para fazê-lo perceber
as coisas de uma certa maneira” (AMOSSY, 2011, p. 132)
O corpus foi selecionado a partir de busca por palavra-chave no acervo digital
do jornal O Globo. Utilizamos a expressão “maioridade penal” para obtermos as
páginas em que foram publicadas reportagens sobre o assunto. Como método de
análise, usaremos o arcabouço teórico da Análise do Discurso, que, conforme apre-
2
Crimes hediondos são aqueles enumerados na Lei Nº 8.0702, de 25 de julho de 1990. Homicídio,
quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente,
e homicídio qualificado; latrocínio, extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante sequestro e
na forma qualificada; estupro; estupro de vulnerável; epidemia com resultado morte; falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; favo-
recimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de
vulnerável; crime de genocídio.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

senta Orlandi (2009), trabalha a língua como a mediação entre o homem e a rea-
lidade natural e social, e entende o discurso como objeto sócio-histórico. Seu ob-
jetivo não é encontrar “o” sentido verdadeiro do discurso, uma verdade oculta
atrás do texto, mas compreender quais os gestos de interpretação que o consti-
tuem e de que maneira eles produzem sentidos. Para a AD, os sentidos não são
naturais e nem transparentes, ou seja, não estão prontos, e são constituídos na 29
interação entre quem escreve e quem lê dentro de determinadas condições sócio
históricas (ORLANDI, 1991).

1. O nascimento da juventude
É importante notar a relação intrínseca entre a imprensa e o surgimento da
juventude enquanto categoria, na primeira metade do século XX. Durante o século
XIX, alguns países já demonstravam preocupação com o problema da “delinquên-
cia juvenil”. Nos Estados Unidos, diante do surgimento das gangues urbanas, o es-
tado de Nova Iorque criou, em 1824, uma legislação específica para punir
indivíduos menores de 21 anos. A mesma preocupação permeou nações euro-
peias, que deram respostas diversas à questão da disciplina e incorporação social
dos sujeitos que ainda não haviam chegado à vida adulta, muitas delas ligadas ao
recrutamento militar (SAVAGE, 2009).
Só no final do século XIX, no entanto, aparece o primeiro conceito para definir
essa fase da vida. G. Stanley Hall, psicólogo norte-americano, cunhou, em 1898,
o termo adolescense para nomear o período que vai do final da infância ao início
da vida adulta, um estado definido não apenas em termos biológicos, mas cons-
truído socialmente (LAMY, 2016).
Na Sociologia, o conceito passa por revisão, nos anos 1940, quando autores,
como Karl Mannheim (GROPPO, 2009), começam a pensar as rebeldias juvenis
sob a perspectiva do protagonismo político. No pós-guerra, diante da derrocada
das democracias no continente europeu, Mannheim considera a juventude como
força social capaz de impulsionar sua reconstrução. Nessa mesma formulação, vai
definir a juventude como direito, no sentido de que deve ser concedida a todo ci-
dadão. Dessa concepção resulta o conceito de “moratória social”, como “um
tempo especial do curso da vida para a experimentação (...) em espaços mais ou
menos separados das instituições sociais ‘oficiais’” (GROPPO, 2009, p. 41)3.
Os jovens que emergem do pós-guerra, no entanto, começam a desempe-
nhar papeis diversos nas sociedades ocidentais. Se, por um lado, muitos haviam
compartilhado os horrores da guerra, não podendo mais usufruir do universo ju-
venil, outros ingressavam nessa fase através do consumo. Em 1944, nos Estados
3
O que resiste desta formulação, a partir dos anos 1960, no entanto, é a tese da juventude como mo-
ratória social. Se por um lado essa perspectiva garante uma proteção especial aos sujeitos nessa fase
da vida, por outro, enfraquece seu protagonismo político.
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

Unidos, chega às bancas a que seria não apenas uma representante, mas também
um modelo para essa geração: a revista Seventeen. Nos anúncios publicitários de
suas páginas, nasce o termo teenagers, logo adotado pelos especialistas do mar-
keting e pelos próprios jovens. “Eles não eram os adolescentes de Hall e nem os
delinquentes juvenis que as autoridades tentavam controlar desde o século ante-
30 rior” (LAMY, 2016, p. 8). Eram uma nova força do consumo.
Se nas páginas da Seventeen, os adolescentes emergem como potência, que
não aceitam o não como resposta e têm seu próprio dinheiro para ascender ao
mundo do consumo, outras representações midiáticas de juventude vão surgir ao
longo do século XX, demarcando diferenças para as quais a perspectiva etária não
oferece explicações. No Brasil, especificamente, onde os diferentes modos de ser
jovem revelam as discrepâncias socioculturais, há um farto material a respeito da
juventude. Algumas vezes representados como esperança, noutras como ameaça,
os jovens brasileiros ganham destaque no jornalismo, sobretudo a partir dos anos
1990, quando voltam às ruas sob a forma de caras pintadas4, ou quando protago-
nizam cenas de crimes associados à violência urbana. É nesse contexto – em que
os jovens “já têm idade para votar, mas não para serem presos”5 – que emergem
as discussões sobre a redução da maioridade penal.

2. Mídia e discurso
O debate midiático a respeito da idade mínima para infringir penas mais
duras no Brasil ganha corpo ainda no início dos anos 1970, na reforma do código
penal, que vigoraria a partir de primeiro de janeiro de 1974. Como se pode per-
ceber numa pesquisa por palavra-chave, no acervo digitalizado do jornal O Globo,
embora as primeiras ocorrências do termo “maioridade penal” surjam nos anos
1930, a discussão em si aparece de forma mais representativa a partir da década
de 70, ganhando enorme destaque a partir dos anos 1990.
Na reportagem “Juiz e promotor divergem quanto à maioridade penal”, pu-
blicada no dia 23 de outubro de 1971, por exemplo, apesar do título, percebe-se
que o assunto gerava controversias menos nos círculos jurídicos do que na esfera
pública, conforme o texto explicita:

Na opinião de Cavalcânti de Gusmão, é acertada a orientação da


maioria dos códigos modernos, quando elevam ao limite de 18 anos

4
Movimento juvenil que ganhou as ruas, no ano de 1992, reivindicando o impeachment do então
presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, acusado de corrupção.
5
O voto facultativo aos 16 anos foi instituído no Brasil em 1988, com a aprovação de emenda constitu-
cional. Seus opositores usavam como argumento o descompasso entre a legislação eleitoral e a
legislação penal. Segundo o vice-presidente da Associação Internacional de Juízes de Menores, à época,
Alyrio Cavalieri, a redução da idade para o alistamento eleitoral poderia dar margem a interpretações
do tipo: “se pode votar aos 16 anos, também se pode ir para a cadeira” (CAVALIERI, 1988, p.6). A partir
dos anos 2000, esse mesmo argumento será usado para defender a redução da maioridade.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

a inimputabilidade penal “sem quaisquer transações ou conciliações


com movimentos de opinião pública exasperada quanto ao recrudes-
cimento da delinquência juvenil” (JUIZ..., O Globo, 23.10.1973. p. 12).

Vale ressaltar duas informações do trecho reproduzido. A primeira, o uso da


expressão “delinquência juvenil”, endereçando o tipo de jovem a que se destina 31
a punição. A segunda, a ideia de que havia um debate entre a opinião pública, ou
uma espécie de clamor popular, pela redução da maioridade, debate esse em que
a mídia, sem dúvida, tem papel de destaque.
Ao lado da própria reportagem, um suelto6 nos ajuda a compreender melhor
a que tipo de jovem se destina a discussão sobre a inimputabilidade penal. Ex-
pressões como pivete, meninos delinquentes e pequenos assaltantes são usadas
ao lado de outras como garotos e menores, para caracterizar os jovens para os
quais o jornal pede punição mais rigorosa. O caso selecionado para ilustrar a si-
tuação é o de um garoto de 14 anos, morador de Porto Alegre, “que liderava uma
das mais perigosas quadrilhas da cidade” (OS PIVETES..., O Globo, 23.10.1973. p.
12). Outro personagem citado é o de J.F.L, de 16 anos, “chefe de uma quadrilha
paulista” (ibidem) cuja ascensão é assim explicada: “A liderança, muitas vezes,
surge da valentia de um dos pivetes” (ibidem).
É curioso como a indignação se dirige a um grupo específico de jovens, si-
tuado nos níveis mais baixos da cadeia social. A expressão “pivete” não pode ser
pensada como um sinônimo para jovem ou menor de idade, ela qualifica o menor
pobre que infringe a lei de modo específico: comete pequenos furtos ou rouba
nas ruas. Não se trata, portanto, da juventude transviada, dos anos 1950, ou de
qualquer outro possível tipo de infração, mas caracteriza-se justamente por sua
seletividade.
O contraponto dessa representação está no extremo oposto das ruas: no
lugar do “pivete” que ameaça nas calçadas, os motoristas precoces que vêm “de
classe média alta e possuem mais de um carro na garagem”. Para estes, a maiori-
dade penal é um “entrave”, conforme explicita o menor M.B: “Quero minha car-
teira com responsabilidade penal. Não quero que ninguém responda por mim”
(DE OLHO..., O Globo, 13.10.1988, p. 3).
Nos anos 1980, período de intensas mudanças na conjuntura social e política
no Brasil, a retórica midiática a respeito do papel do jovem se amplia. O fim da di-
tadura, com a eleição indireta do primeiro presidente civil em 20 anos, a promul-
gação da nova carta constitucional – conhecida como a Constituição Cidadão – e
as transformações na paisagem urbana trouxeram novas perspectivas sobre a ju-
ventude. Na mídia, sua representação transita entre a figura do “menor abando-
nado” ou “o menor carente”, que merece atenção do Estado para “prevenção do
6
Pequeno editorial expressando a opinião do jornal a respeito de um assunto tratado em alguma re-
portagem. Difere-se do editorial tradicional porque não é publicado na página de opinião, mas ao
lado da matéria de cujo assunto trata. Caiu em desuso no final do século XX.
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

crime” (ANÁLISE..., O Globo, 29.08.1984, p. 12) e o sujeito de direitos, que começa


a reivindicar mais espaço para exercer sua plena cidadania, ainda que, como vimos
no exemplo acima, pela via do consumo.
Visto como um indivíduo em transição entre a infância e a vida adulta, o
jovem ora é construído como um quase adulto, ora como quase criança, de acordo
32 com o interesse em jogo. Nas reportagens sobre a emenda constitucional estabe-
lecendo a redução da idade para o alistamento eleitoral, por exemplo, o jovem é
posicionado no limite inferior da vida adulta.
Dentro dessa lógica argumentativa, a conquista do voto facultativo aos 16 anos
é retratada como ameaça à estabilidade de uma frágil democracia, recém-saída
das trevas, conforme chamada de capa de O Globo: “(...) para o Governo, a medida
poderá colocar as principais decisões do País ‘nas mãos de crianças’” (SARNEY...,
04.03.1988, capa). A opinião do presidente é endossada em editorial de capa na
mesma edição, que questiona:

Como explicar, então, que a Constituinte, de maneira arbitrária e gra-


tuita, baixe para 16 anos a idade mínima para o voto? (...) Para uns e
outros está criado o mesmo perigo: o canto de sereia de ideologias,
propostas e personalidades que eles ainda não têm como avaliar (A
ILUSÃO..., O Globo, 04.03.1988, capa).

As lutas políticas e discursivas em torno do tema permanecerão em pauta


por muitos meses ao longo do ano de 1988. Os jovens, no entanto, aparecem
como pacientes dessa disputa, não como agentes, e a conquista definitiva do di-
reito ao voto a partir dos 16 anos será retratada como concessão do mundo adulto
ao universo juvenil. As reportagens não apenas calam as lutas dos movimentos
juvenis, como retratam seus sujeitos pelo viés da emotividade.
No plenário, durante a votação que derrubou a emenda supressiva da depu-
tada Rita Furtado (PFL-RO), os 80 jovens presentes aparecem em segundo plano,
já que os protagonistas eram os próprios constituintes. Interrompem os oradores
com palmas e vaias, entoam o coro “chegou a nossa vez. Voto aos 16”, mas não
têm uma liderança, embora estivessem “sob o comando da União da Juventude
Socialista”, nem dão um depoimento pessoal a respeito do tema. Mas vencida a
tentativa de derrubar o direito conquistado, a retórica midiática a respeito da ju-
ventude se inverte. Se antes a inimputabilidade era usada como argumento contra
o voto aos 16, agora o voto será cada vez mais usado como argumento a favor da
redução da maioridade penal.
Os anos 1990 marcaram a promulgação do que é considerada a maior con-
quista dos jovens: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em julho de 1990,
que substituiu o Código de Menores. Além de todas as garantias em relação aos
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

direitos fundamentais, a legislação assegurou uma que diz respeito diretamente


à ação da mídia: o direito à privacidade7.
Se, por um lado, essa prerrogativa garantiu a proteção dos jovens, sobretudo
daqueles cuja divulgação da identidade poderia significar um risco, por outro, hu-
manizou sua representação. A garantia da privacidade exigiu dos jornais o em-
33
prego de novas técnicas fotográficas para descaracterizar as personagens, como
o uso de filtros, para tornar os traços do rosto mais opacos, luz baixa, planos dis-
tantes, bem diferente das tarjas pretas sobre os olhos, usadas para “encobrir” a
face de menores em conflito com a lei, e que se tornou, na imprensa, um sinal de
estigma (GOFFMAN, 1988).
Mas se no plano imagético a retórica a respeito da juventude teve avanços,
no nível textual os discursos em torno da periculosidade do menor de 18 ganhou
cada vez mais espaço e defensores na arena política. Os mesmos deputados que
votaram contra o voto aos 16 voltaram à cena para defender a redução da maio-
ridade, sob a alegação de que direitos e deveres devem ser equiparados. Ainda
que usando argumentos aplicáveis a quaisquer menores, os discursos endereçam
os sentidos para um mesmo lugar: o risco representado pelo menor em conflito
com a lei. Em reportagem sobre a concessão do direito de dirigir para maiores de
16 anos, o jornal O Globo volta a questionar:

O Brasil que se moderniza, concedendo o direito ao voto aos meno-


res, vendo ser aprovada, esta semana, pela Câmara dos Deputados,
a concessão de carteira de motorista aos jovens com pelo menos 16
anos, além de premiá-los com acesso a contas bancárias e cartões
de crédito, ainda não se preocupou em impor contrapartidas legais
a esses novos cidadãos. Num país com 150 milhões de habitantes,
75 milhões têm salvo-conduto para delinquir. (PARA OS JOVENS..., O
Globo, 29.09.1991, p. 8)

A argumentação poderia ser aplicada tanto aos casos de menores de classe


alta que saem com o carro do pai – caso do deputado Guilherme Afif Domingues,
ouvido pela reportagem – quanto por aqueles que cometem pequenos furtos nas
ruas – como os que agrediram as mineiras assustadas fotografadas pelo jornal. No
entanto, tanto o selo que ilustra a página – o desenho de um rosto sem traços com
7
Segundo o Art. 247, será punido com multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o
dobro em caso de reincidência, quem “Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por
qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo
ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional. (...) § 1º Incorre na
mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em
ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuí-
dos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente (ESTATUTO, 1990).
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

uma tarja preta sobre os olhos – quanto a retranca – menor bandido, adulto esperto
– fixam os sentidos e direcionam o pathos8 do leitor para o lugar de vítima.
Em várias reportagens, ao longo da década, será retomado o interdiscurso
do direito ao voto como prerrogativa para se reivindicar a redução da maioridade.
Os opositores da medida, por outro lado, invocarão o ECA para defender a ideia
34 de que os menores já são punidos, inclusive com reclusão, mas respeitando as ca-
racterísticas e os direitos da faixa etária.
Mas outro tipo de argumento começa a aparecer em meados dos anos 1990
para defender a redução da maioridade: o acesso à informação. A ideia de que
um jovem de 16 anos no fim do século XX não tem paralelo com o jovem das dé-
cadas anteriores tenta produzir um deslocamento semântico do conceito de ju-
ventude, relocalizando os indivíduos no interior das faixas etárias a partir de um
novo contexto histórico. Segundo essa construção discursiva, sob determinadas
circunstâncias, alguns indivíduos deixam de ser jovens, ingressando no mundo
adulto mais cedo e, portanto, devem responder por seus atos como adultos. Mais
uma vez, a conquista de direitos – o acesso à informação, da mesma forma que o
direito de votar e de dirigir – passa a constituir uma ameaça ao direito à juventude.
Nas palavras do secretário de Segurança de Minas Gerais, Santos Moreira,
que se uniu ao secretário Nilton Cerqueira, do Rio de Janeiro, para defender a re-
clusão para menores de 14 a 18 anos: “Com a globalização dos meios de comuni-
cação, os menores de 14, 15 e 16 anos têm plena consciência de que estão
cometendo atos infracionais. Logo, eles cometem crimes de adultos e devem ser
punidos como adultos” (CERQUEIRA…, O Globo, 27.02.1996, p. 16).
Um dos mais coerentes opositores dessa argumentação é justo o ex-juiz de
menores que antecipou o problema, na época da aprovação do voto para os me-
nores de 18 anos. Cavallieri argumentava, em artigos e cartas para o jornal, o que
considerava um retrocesso em termos jurídicos, uma vez que o sistema de discer-
nimento, ou seja, o que levava o indivíduo à prisão desde que soubesse o que es-
tava fazendo, fora abandonado no Brasil em 1921. Em vez dele, adotou-se o
critério universal da idade, aplicável tanto ao caso da imputabilidade penal quanto
a outras situações, como a aposentadoria compulsória de juízes aos 70 anos. E re-
coloca a questão do menor em conflito com a lei nos termos corretos: “Cadeia re-
solve?” (CAVALLIERI. O Globo 18.12.1997, p. 7).
No início do século XXI, o referendo sobre o comércio de armas, que aconte-
ceu em outubro de 2005, trouxe à pauta do dia a oportunidade de colocar para
votação popular outros temas relacionados à segurança pública, entre eles, a re-
dução da maioridade penal. O argumento da aprovação popular, via referendo ou
plebiscito, apareceu em diversas reportagens de O Globo daquele ano em diante,
até 2015:
8
Tomamos aqui o conceito de pathos conforme Plantin, para quem se refere à “construção discursiva
da emoção que o locutor pretende provocar em seu auditório” (PLANTIN, apud AMOSSY, 2011).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Partidários das duas frentes estão prevendo que o referendo, res-


ponsável pelo mais amplo debate já feito sobre segurança pública,
exumará velhas polêmicas como a ampliação das penas para crimes
hediondos, redução da maioridade penal e até a retomada do debate
em torno de teses como prisão perpétua e pena de morte (PRÓ-
XIMO..., 2005, p. 3).
35

Fora isso, os momentos de discussão sobre a maioridade penal na mídia nos


anos 2000 se atrelaram, principalmente, a atos violentos com participação de ado-
lescentes. Os dois principais foram o assassinato do casal de namorados Liana Bei
Friedenbach e Felipe Caffé, em um sítio abandonado em São Paulo, em novembro
de 2003, e o roubo a carro que resultou na morte do menino João Hélio, de seis
anos, em fevereiro de 2007, no Rio de Janeiro.
Embora episódios como esses sejam exceção no contexto de criminalidade
juvenil – em 2007, em todo o país, pouco mais de 150 adolescentes cumpriam
medidas socioeducativas por crimes hediondos, segundo a Subsecretaria de Pro-
moção dos Direitos da Criança e do Adolescentes, do Ministério da Justiça –, a ex-
ploração midiática de casos especialmente violentos corrobora o direcionamento
de sentidos de uma juventude perigosa e cruel. O adolescente em conflito com a
lei que, em sua grande maioria, pratica infrações ligadas ao patrimônio e ao tráfico
de drogas, passa a ser visto como “bárbaro”, “cruel”, “monstro”, uma ameaça à
sociedade, conforme é visto nas diversas reportagens sobre os casos.
“A reação à barbárie”, dizia o título da reportagem de O Globo após a morte de
João Hélio, que trazia em destaque no topo da página a mensagem de um leitor:

Mudanças no Judiciário já! Redução da maioridade já! Mesmo que


estes monstros tivessem 10 anos. Pena de morte! (...) Direitos huma-
nos existem apenas para proteger a marginalidade, André de Oliveira
em mensagem para O Globo Online (A REAÇÃO..., O Globo,
10.02.2007, p. 16).

No episódio do casal Liana e Felipe, as reportagens direcionavam os sentidos


para fazer do adolescente mais do que um participante do crime, um protagonista,
reforçando a ideia do adolescente em conflito com a lei como cruel e desumano.

A polícia de São Paulo considerou ontem esclarecida a morte dos na-


morados Felipe Silva Caffé, de 19 anos, e Liana Friedenbach, de 16
anos, e responsabilizou C., de 16 anos, como mentor do crime e o
único autor do assassinato da adolescente. O casal foi morto quando
acampava num sítio abandonado na divisa de Embu-Guaçu e Juqui-
tiba, na Grande São Paulo. O adolescente disse que matou porque
teve vontade. “Só um estômago de aço para ouvir ele sobre o crime.
Várias vezes ele fala como se tivesse a impressão que é impune por
ser menor” – disse o delegado de Taboão da Serra, Silvio Balangio
Júnior (MENOR..., O Globo, 15.11.2003, p. 3).

Mesmo a palavra “menor” sendo considerado inapropriado pelo ECA9 por


ser estigmatizadora e fortemente ligada a crianças e adolescentes de segmentos
36 pobres “a serem tuteladas pelo Estado para a preservação da ordem” (BATISTA,
2003, p. 69), o termo ainda é usado com frequência nos jornais nos anos 2000.
Em 2007, O Globo fez uma série de reportagens nomeada “Dimenor: os adultos
de hoje” sobre o “destino de uma geração de menores infratores ao chegar à maio-
ridade” (METADE..., 2007, capa). Uma delas trouxe o título “Eles fazem vítimas”,
com o subtítulo “Após a maioridade, 81 infratores mataram ou tentaram matar”.
Segundo o texto, a reportagem “mostra como um menino que entra para a vida
do crime cometendo um furto pode se tornar um assassino” (ELES..., O Globo,
05.12.2007, p. 16). Mais uma vez, percebe-se a tentativa de O Globo de direcionar
os sentidos sobre os jovens como violentos e perigosos.
O contraponto ao discurso do “menor infrator” como um grande problema
de segurança pública vem das diversas instituições que se manifestaram contrárias
à redução da maioridade penal e utilizaram os dados sobre adolescentes cum-
prindo medidas socioeducativas. Ao longo das décadas, o discurso apareceu em
falas de representantes da Igreja Católica, do Instituto de Segurança Pública, da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de criminalistas, sociólogos, entre outros.
Em 2015, quando a PEC da redução foi aprovada na Comissão de Constituição
e Justiça e colocada para análise e votação na Câmara dos Deputados, a Unicef se
posicionou, em nota10, contrária à redução da maioridade penal, alegando que, no
Brasil, os adolescentes são mais vítimas do que autores da violência e que dos 21
milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida.
A estratégia de O Globo, então, foi tentar descontruir essa fala. Indícios disso
podem ser vistos na reportagem “Unicef estima em 1% os homicídios cometidos
por menores no Brasil” (UNICEF..., O Globo, 02.04.2015, p. 6). O subtítulo, no en-
tanto, aponta que “dois em cada três adolescentes infratores apreendidos no país
têm 16 anos ou mais”, numa tentativa de direcionamento de sentido para crimi-
nalização dessa faixa etária específica, que seria considerada como maior de idade
com a aprovação da PEC 171. O texto, embora admita que a incidência de assas-
sinatos por adolescentes é baixa e que a aprovação da PEC resultaria num au
mento da população carcerária - num sistema que já apresenta 40% de déficit de
vagas -, contrapõe o argumento afirmando que os dados da Unicef estão desatua-
lizados, e que “não existem dados oficiais sobre o número de homicídios pratica-
dos por adolescentes no Brasil”, destacado no subtítulo “Debate no escuro”.
Além disso, O Globo faz um esforço ainda mais significativo para tirar o foco
do argumento da Unicef ao colocar, no meio da página, um suelto que afirma que
9
Glossário da Andi – Comunicação e Direitos - http://www.andi.org.br/glossario/menor
10
Site da Unicef - https://www.unicef.org/brazil/pt/media_29163.htm
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

“a medida (da redução da maioridade penal) precisa tramitar sem obstruções para
que o país adeque a legislação penal ao que acontece nas ruas”, reforçando a ideia
de que o jovem representa uma ameaça à sociedade.
A segunda década do século XXI é o momento em que a discussão sobre a
maioridade penal aparece com mais frequência nesse jornal, em especial 2015,
ano da aprovação inédita na Câmara dos Deputados da proposta de emenda cons- 37
titucional que previa a redução da maioridade para 16 anos. Foram 365 páginas
ao longo do ano que trataram tanto do debate político em torno do assunto
quanto de outro episódio violento com participação de um adolescente.
Em maio de 2015, um assalto seguido de morte de um ciclista na Lagoa Ro-
drigo de Freitas, ponto turístico do Rio de Janeiro, teve como principais suspeitos
dois adolescentes. Assim como nos crimes de João Hélio e do casal Liana e Felipe,
o caso foi usado como argumento para redução da maioridade penal, desta vez,
ainda com mais peso, já que a proposta podia de fato se tornar realidade.
Repercutindo o caso, O Globo trouxe, sob a retranca “Luto na Lagoa”, a re-
portagem “Na região, número de jovens detidos é maior que adultos”. Embora a
porcentagem de adolescentes detidos referente a todo o estado do Rio de Janeiro
fosse de 25%, o jornal buscou enfatizar o dado mais negativo – que dizia respeito
a apenas uma região da capital –, reforçando os sentidos de que a juventude apre-
senta uma ameaça à sociedade.

O número de adolescente detidos em abril na área do 23°BPM (Le-


blon), que compreende a Lagoa, foi maior que o de adultos presos.
No mês, foram 40 jovens apreendidos na região em flagrante pelos
crimes de roubo e tráfico, contra 30 adultos levados para cadeia. Ou
seja, eles representaram 57% do total de 70 casos. A proporção é
maior que em todo o estado, onde, no mês passado, adolescentes
representaram 25% da soma de pessoas detidas e presas. (NA RE-
GIÃO..., O Globo, 21.05.2015, p.14).

Ao lado, um box relacionava o caso à possibilidade de redução da maioridade


penal: “A suspeita de que o ataque ao médico Jaime Gole tenha sido cometido
por adolescentes esquentou o já acalorado debate sobre a redução da maioridade
penal e dividiu especialistas” (MAIORIDADE..., O Globo, 21.05.2015, p. 14). Nos
dias que se seguiram, o jornal trouxe dois editoriais em apoio à medida, nova-
mente utilizando casos excepcionais de violência como argumento.

Crimes como a morte do médico Jaime Gold, e outros com o envol-


vimento de adolescentes, são tragédias anunciadas que se alimentam
na esquizofrênica resistência de parte da sociedade a enxergar uma
realidade insustentável. Como em ocorrências anteriores em que a
violência dos criminosos levou ao óbito, ou provocou ferimentos gra-
ves nas vítimas, também desta vez há fortes indícios de participação
DIREITO À JUVENTUDE: A RETÓRICA DA MAIORIDADE PENAL NA MÍDIA BRASILEIRA

de jovens com idade inferior a 18 anos (CRIME..., O Globo,


22.052015, p. 18).

A exploração de episódios de violência com envolvimento de adolescentes re-


força o medo de um grupo que não se caracteriza pela sua faixa etária, mas sim por
38 suas condições sociais. Segundo Batista (2003), no Rio de Janeiro, a partir da década
de 1990, o estereótipo do bandido vai se configurando “na figura de um jovem
negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis,
boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho” (BATISTA, 2003, p. 36).
Coimbra (2001) mostra como na história do Rio de Janeiro, principalmente
no decorrer do século XX, foi construída a associação entre pobreza e a ideia de
“classes perigosas”, aquelas que representam ameaças para as classes dominantes
e às quais serão impostas medidas de controle e eliminação. Entre esses perso-
nagens que compõem essas “classes perigosas” está a infância pobre, “em perigo”,
aquela que poderia compor, num futuro próximo, a ameaça à segurança pública
e que, por isso, deveria ter “suas virtualidades sob controle permanente” (COIM-
BRA, 2001, p. 92)

Considerações finais
O direito à juventude, definido no campo sociológico e legitimado pela legis-
lação brasileira no Estatuto da Criança e do Adolescente, encontra barreiras para
sua efetivação nos planos prático e simbólico. Os jovens brasileiros são a vítima
preferencial da violência. Segundo o relatório final da CPI do Assassinato de Jo-
vens, apresentado em junho de 2016 no Senado, das mais de 50 mil pessoas as-
sassinadas anualmente, quase metade dos mortos está na faixa etária entre 16 e
17 anos.
Mas a morte, nesse caso, mostra-se um evento bastante seletivo, já que o
perfil da vítima de assassinato é bastante específico: são meninos (93% das víti-
mas), negros (morrem três vezes mais que brancos), com baixa escolaridade e ví-
timas de armas de fogo (mais de 80% dos casos de assassinatos).
No plano simbólico, por trás das técnicas sofisticadas de fotografia e de ar-
gumentos nem tão sofisticados assim, aparecem as mesmas vítimas de uma re-
presentação que encarcera o indivíduo num estereótipo e reduz sua existência a
um problema de polícia. A retórica midiática em torno da maioridade penal mos-
tra-se um campo fértil para o estudo da batalha cotidiana pelo direito à juventude,
sua seletividade e seus impactos sobre a construção de uma sociedade democrá-
tica de fato e de direito.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

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EM BOA VISTA, adolescente é assaltado por menor de 15 anos. Vítima de 13 anos disse
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40
encaminhado ao Centro Sócioeducativo. G1, 18/04/2013. Disponível em
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AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO
E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

Eduardo Chagas Oliveira


Universidade Estadual de Feira de Santana
echagas@uefs.br 41

Resumo
O presente texto tem como objetivo apresentar algumas reflexões acerca das feições que
a retórica ganhou nos dias atuais. Pretende-se indicar o sentido e os mecanismos que a re-
tórica se utiliza para persuadir os indivíduos no mundo contemporâneo e os limites da ar-
gumentação nesse contexto. Não obstante, verifica-se a natureza dos argumentos no
âmbito da Nuper-retórica e sugere a existência de uma modalidade argumentativa que ex-
trapola as fronteiras do verbal, mantendo-se no limite da apresentação das provas. Assim,
oferecendo um resgate histórico de conceitos e entendimentos acerca da retórica em di-
ferentes momentos da história do pensamento ocidental, procura-se sustentar uma uni-
dade central do pensamento retórico em torno da ideia de persuasão.

PalavRas-chave
Retórica. Persuasão. Nova Retórica. Nuper-retórica. Multimeios.

Introdução
Qualquer veículo pressupõe uma trajetória, um meio e um fim específico.
Não obstante, seu ponto de partida deve ser perfeitamente demarcável, para que
se possa aferir o deslocamento desde a origem até a chegada. Afinal, veicular im-
plica transportar algo de um lugar a outro. Trata-se de um processo de condução,
passível de ocorrer nos domínios do público ou do privado. Na esfera das cons-
truções discursivo-argumentativas, por exemplo, a retórica se apresenta como
uma espécie de veículo cuja trajetória perfaz o caminho existente entre os inter-
locutores, que utilizam diversos meios para alcançar – exclusivamente – a persua-
são: o fim último de qualquer retórica.
Durante a antiguidade, o meio era o discurso, e o espaço de aplicação desse
discurso era a ekklēsía1. O fim do discurso dentro daquele contexto já era a per-
suasão, com o objetivo de conquistar a adesão dos ouvintes à(s) teses do orador
ou do perfil ideológico que ele representa. Nesse sentido, a força do vocábulo re-
1
A ekklēsía é, no campo de experiência do profano, a assembleia do dēmos, a assembleia popular,
Como em Atenas e também em todos os Estados gregos. A palavra refere-se normalmente, portanto,
à assembleia geral de todos os homens livres com direito a voto, os cidadãos plenos de uma pólis. Os
membros da ekklēsía eram os cidadãos, porém os cidadãos nunca constituíam a população total de
uma pólis grega; possivelmente, não existiu uma única cidade-estado em que meramente um quarto
dos habitantes gozassem do status de cidadãos (Cf. STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 311).
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

tórica pode ser traduzida pelo próprio efeito persuasivo contido em sua enuncia-
ção. Trata-se de um daqueles conceitos que bem sabemos o que significa até que
sejamos compelidos a falar acerca dele, tal como sugere Agostinho de Hipona e
ratifica Ludwig Wittgenstein, em Investigações Filosóficas (1952, 1979). Quando
se fala de um efeito retórico, pode-se querer dizer muitas coisas. Pode-se, por
42 exemplo, estabelecer um vínculo entre o que se diz e algo enganador, superficial. É
possível, igualmente, que se queira mencionar algo de caráter eminentemente per-
suasivo, capaz de promover uma inquietude no interlocutor ou, quiçá, mover-lhe
no sentido de agir em conformidade com aquilo que se propõe. Essas aplicações
do verbete estão associadas ao sentido da retórica como uma ferramenta de per-
suasão, um poderoso instrumento de produção de convicções nos interlocutores.
Nesse sentido, o termo se mostra ambíguo e relacionado ao sentido negativo que
lhe fora concedido por Sócrates e Platão. Mas, há que se falar da existência de
uma retórica que está aquém dos sofistas e perpassa a existência desses, trans-
portando os seus ensinamentos eficazes para além do medievo. Podemos falar de
uma retórica clássica associada a Córax e Tísias, assim como se mostra possível
tratar de uma retórica que amparou a construção dos discursos de grandes ora-
dores da Grécia Antiga, sobretudo durante o século de Péricles. Há lugar, igual-
mente, para uma discussão específica acerca da retórica em Aristóteles, Cícero ou
Quintiliano. Transcendendo aos limites da antiguidade, encontraremos a retórica
instrumental integrando o Trivium e o Quadrivium, flertando com a formação mo-
nástica da Idade Média e culminando em um consorte da composição textual que
lhe fará restringir-se à estilística no período compreendido entre os séculos XVII e
XIX.
No universo da Nova retórica, o meio é a argumentação – em substituição
ao simples discurso, amalgamado à representatividade do orador. O meio se con-
solida através os argumentos – elaborados e estruturados para serem – proferidos
pela oralidade ou pela escrita, com o intuito de converter o auditório às teses que
se lhe apresentam ao assentimento. O fim permanece imutável: a persuasão. No
contexto de uma Nuper-retórica, os multimeios conectam os indivíduos aos es-
paços – físicos e virtuais – ampliando os limites e as modalidades de linguagem
que se formam e transmutam, fragilizando as fronteiras do(s) conhecimento(s) e
tornando os indivíduos crédulos acerca da validade (imutável) e da solidez do
saber superficial que se oferta nos múltiplos espaços, formando generalistas per-
suadidos pela suposta apreensão de saberes que lhe são ofertados de modo ins-
tantâneo. A mediação do conhecimento (entre o sujeito cognitivo e o objeto
cognoscente) passa a ser regida pela instabilidade das certezas, fazendo com que
esse conhecimento revestido de um imediatismo indesejável, se apresente tra-
vestido de verdade(s). Entre os atores do saber, apresentam-se os multimeios,
cuja velocidade de transmissão – e o menor rigor de aferição – amplia a carga de-
sejável de informações despejada sobre os indivíduos, fazendo-os crer que a ra-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

pidez se converte em certeza inequívoca, um traço de indubitável convicção acerca


de algo.
Essa discussão parece-nos remeter ao entendimento de que a retórica pode
ser a mesma, mudando a sua configuração conforme a aplicação que o orador lhe
confere. Nesse caso, a retórica não perderia o seu caráter instrumental, mas não
conteria – em sua gênese – uma característica que lhe encarcerasse dentro de cer- 43
tos limites positivos ou negativos. Assim, o sentido polissêmico que se lhe acos-
tumaram atribuir, perde consistência e cede lugar para um mesmo conceito que
ganha sentido na aplicação técnica ou pragmática que se lhe atribui. Por esse mo-
tivo, para que possamos bem delinear o propósito da nossa investigação, convém
que façamos (inicialmente) uma breve incursão aos sentidos de retórica desde a
antiguidade. Com isso poderemos identificar os resquícios de cada uma das feições
da retórica que ainda permanecem subjacentes ao escopo de uma Nuper-retórica.

As múltiplas faces da Retórica


O imaginário coletivo vincula variados entendimentos acerca dos usos da lin-
guagem a um conjunto de ideias, que se lhes mostram irremediavelmente asso-
ciadas a conteúdos que pertencem à esfera da retórica ou orbitam no seu entorno.
Esse é o caso exemplar de noções ou conceitos como oratória, dialética e eloquên-
cia. Tais associações não são motivadas pelo acaso. Sua adesão está contida no
matiz etimológico desses conceitos supra, uma vez que são vocábulos cujas raízes
pertencem a universos distintos, mas guardam consigo uma proximidade semân-
tica, pois estão conectados, essencialmente, à ideia de falar. A esse respeito des-
taca Tringali (1988, p. 9):

Quando, hoje, se fala em retórica, urge esclarecer de qual retórica se


trata, porque há várias retóricas. A primeira delas, a Retórica por ex-
celência, a retórica integral, nascida na Grécia e chamada, por con-
venção, Retórica Antiga, sofreu, no decorrer do tempo, mutilações
sucessivas e, algumas de suas partes, que se tornaram autônomas,
pretenderam representar toda a Retórica. Não obstante, as novas re-
tóricas, surgidas por esse processo, nunca invalidaram as anteriores
e, atualmente, convivemos com muitas retóricas, a saber: a Retórica
Antiga, a Retórica Clássica, a Retórica das figuras, a Retórica Nova e
a Retórica Semiótica.

Quaisquer que sejam as suas variantes, a natureza da retórica se mostra ca-


racterizada pelos fins que propicia. Assim, por estar desprovida de natureza autô-
noma, que lhe desvincule do sentido persuasivo, que é o seu fim por excelência,
as retóricas são interpretadas pelo seu mero caráter instrumental. Isso justifica o
motivo pelo qual prevalece o entendimento de que a retórica consiste na arte da
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

persuasão por meio da linguagem. Além de ser a ideia mais disseminada, essa
compreensão corresponde ao sentido preconizado por Aristóteles (2005, p.95-
96), segundo o qual “a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir
os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que,
como arte, as suas regras não se aplicam a nenhum gênero específico de coisas” 2.
44 Trata-se, portanto, de uma arte do desvelar. Uma competência que se desen-
volve com o intuito específico de identificar aquilo que se deve (des-)cobrir ou
velar, conforme o contexto, para atingir a finalidade precípua da persuasão. Seu
campo de abrangência transcende as especificidades dos campos do saber, motivo
pelo qual perpassa os múltiplos segmentos do conhecimento, fomentando o de-
senvolvimento da faculdade de aplicar os mecanismos mais adequados à persua-
são do interlocutor. Ao sugerir que compete à retórica identificar tais meios,
Aristóteles abre um horizonte de abordagem que permite a manutenção da atua-
lidade da retórica. Ainda que a retórica tenha ultrapassado os limites da acusação
e da defesa de opiniões, que se mostram mais ou menos favoráveis à sustentação
(oral) de um posicionamento – por meio de argumentos produzidos em linguagem
natural – manteve-se a singular característica de alinhar-se com o propósito de
vencer o interlocutor, persuadindo-o. Permanecendo como a nobre arte de pro-
duzir discursos de excelência, em quaisquer segmentos do saber, atravessa os tem-
pos apropriando-se de novas linguagens e mecanismos persuasivos que sejam
capazes de converter o interlocutor ao assentimento das ideias do orador, ou das
ideologias que ele representa.
Desde as suas origens a retórica oferece um conjunto de elementos capazes
de cativar a atenção do ouvinte e modificar a sua tomada de decisão. Esse enten-
dimento ganha reforço quando se analisam as observações concernentes à retó-
rica clássica proferidas por Chaïm Perelman, o idealizador da Nova Retórica,
segundo o qual

a Retórica clássica, a arte de bem falar, ou seja, a arte de falar (ou es-
crever) de modo persuasivo se propunha estudar os meios discursi-
vos de ação sobre um auditório, com o intuito de conquistar ou
aumentar sua adesão às teses que se apresentavam ao seu assenti-
mento (PERELMAN, 1997, p. 177).

Transcendendo os limites da clareza e da (desejável) objetividade comuns


aos argumentos, a retórica enfatiza a necessidade de formulação de expressões
persuasivas, que se mostrem convincentes. Prevalece, no campo da retórica, a apli-
2
Embora costume-se atribuir ao pensamento aristotélico o sentido original do termo Retórica, deve-
se salientar que há uma antiga lenda que sugere ter o nascimento da arte da persuasão sua origem
fundamentada na Sicília por volta do século V a.C., quando Hiéron (tirano de Siracusa) cerceou os
seus súditos do direito da fala, despertando, assim, a atenção de Tísias e Corax que, conscientes da
imensa importância da palavra, desenvolveram uma retórica sintagmática, uma arte discursiva que
se ocupava essencialmente das partes do discurso (Cf. OLIVEIRA, 2001, p. 39).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

cação da máxima emergente do senso comum, segundo a qual “à mulher de César


não basta ser honesta, há de parecer honesta”. Esse brocardo se ajusta ao campo
das estratégias persuasivas tipicamente retóricas, uma vez que não basta ser ver-
dadeiro, convincente; há de ser capaz de converter, persuadir. Para além de favo-
recer o entendimento, a retórica se ocupa com o entretenimento, com a ação. A
retórica seduz pelas afecções. Para persuadir, procura afetar o interlocutor. Isso 45
permanece com a retórica desde as bases de sua formação, entre os antigos.
No campo da retórica prevalece o entendimento segundo o qual a forma
ideal de discurso consiste naquela que objetiva a eficiência, a eficácia, a persuasão
do interlocutor. Observar o comportamento e o desempenho do(s) inter-
locutor(es) na enunciação dos discursos ou antever as possibilidades de objeção
a certas ideias, com base no reconhecimento de valores que são admitidos pelos
auditórios aos quais se destinam os argumentos, são procedimentos de suma im-
portância no campo da retórica. Verificar o modo como repercute o discurso ou
evitar objeções previsíveis são estratégias que favorecem a força persuasiva dos
discursos/argumentos e reforçam a competência daquele a quem compete a atri-
buição de conduzir o discurso ou a elaboração dos argumentos. Nesse contexto
em que se edificam os espaços de inserção das figuras retóricas que emerge o as-
pecto artístico da argumentação.
As regras da argumentação, no campo retórico, objetivam especificamente
a persuasão. Ainda que haja uma arbitrariedade na escolha dos pontos de partida,
porque não há um princípio norteador, mas um fim a ser atingido, não se trata de
um barco sem rumo. Existe, igualmente, um percurso. Este, por sua vez, caracte-
riza-se pelas estratégias utilizadas para assegurar o assentimento do interlocutor
às teses que o orador pretende sustentar. Um elemento constitutivo dessa traje-
tória consiste na criatividade, a competência criativa, a habilidade criadora, que
concede o amálgama necessário para condensar discursos, valores, formas e con-
teúdos voltados à persuasão. Aliás, dentre os elementos constitutivos de qualquer
retórica, a criatividade merece destaque, pois dela depende boa parte da estrutura
de qualquer mecanismo persuasivo.
No caso da Retórica, em especial, existe um enlace indissolúvel com o pro-
blema da argumentação. Essa união se estabelece desde as suas origens, entre os
gregos, permanecendo (ainda que veladamente) até o surgimento da vertente
belga da Teoria da Argumentação, também conhecida como a Nova Retórica. Por
esse motivo, uma breve análise do percurso que se origina na Grécia, por meio
da Retórica Antiga, estendendo-se até meados do século passado, com a Nova
Retórica de Chaïm Perelman, favorece a (re-)descoberta contemporânea dos arti-
fícios linguísticos nos processos de comunicação.
Desde a sua origem, a retórica se mostra aderente à intenção de cativar os
espíritos. Por envolver os incautos interlocutores, que se permitem sucumbir
diante de uma boa argumentação, a retórica concentra no ato – e nos modos –
de persuadir. Sua metodologia consiste em ressignificar as coisas, para que elas
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

componham um conjunto sistemático e harmônico de ideias, que impulsionam o


indivíduo a mudar de percurso, concedendo assentimento às teses que lhe são
apresentadas. Essa mudança de percurso coincide com a própria ideia de adesão
dos espíritos. Desde o seu apogeu – no século de Péricles – até os dias atuais, a
Arte Retórica se vê ameaçada pelas deturpações interpretativas que induzem a
46 percebê-la como uma astuciosa ferramenta de sedução pela forma, em detri-
mento absoluto do conteúdo, capaz de encantar sem precisar despertar o conhe-
cimento; e cativar, sem atribuir sentido. Essa perversão natural que se atribui à
Retórica, ainda prevalece diante das demais concepções que lhe são atinentes.
Platão, dentre os principais expoentes do pensamento filosófico, é um dos maiores
responsáveis pela má reputação desse delicado campo do conhecimento.
O surgimento, a propagação e a consolidação da atividade desenvolvida por
orientadores no campo da retórica fez surgir o que se denomina de movimento
sofístico3, cuja repercussão e relevância, dentro do contexto em que emerge, per-
mite sustentar que ele se mostra incomparável. Nesse sentido, “não há outro mo-
vimento que se possa comparar com a Sofística quanto à duração das suas
consequências” (LESKY, 1995, p. 317). Ora, se é possível falar em um movimento
sofístico, pode-se dizer que suas bases estão edificadas no pressuposto de que é
preciso formar cidadãos aptos para viverem na pólis, uma vez que o êxito do indi-
víduo, dentro da sociedade democrática ateniense, encontrava-se associado ao
domínio da retórica. Esse entendimento entre os gregos antigos restringiu a retó-
rica ao campo da oratória, convertendo-lhe em uma espécie de metodologia de
desenvolvimento de técnicas e estratégias voltadas à eloquência. Existe, portanto,
nas bases do pensamento retórico, um caráter pragmático que se desvela por
meio da Arte Retórica, que propicia, pela expressão oral da palavra, a persuasão
do interlocutor. Depreende-se desse entendimento embrionário, a concepção da
Retórica como uma arte da persuasão.
Esse entendimento – de retórica, enquanto simples ‘arte da persuasão’ – so-
freu uma transformação significativa com a formulação proposta por Aristóteles,
que instituiu um conjunto sistematizado de normas e regras que deveriam ser
adotadas pelos indivíduos que objetivavam o sucesso pelo uso correto da lingua-
gem. Essa linha de pensamento aristotélica permanecerá até o final do século XVI4,
sendo progressivamente fragilizada até o século XIX, quando será substituída por
uma espécie de estilística, deixando de ser uma arte de persuasão por meio da
3
É razoável afirmar, na trilha de Sócrates, que os sofistas não buscavam o conhecimento como tal,
mas sua utilidade, pois pretendiam fazer dos cidadãos atenienses pessoas capazes de atuar ativa e
decisivamente na vida pública. Neles a riqueza, khrémata, a utilidade, prágmata e o ente, ónta, não
se dissociavam. (CURADO, 2010, p. 71)
4
Em O Império Retórico, Perelman (1993, p. 26) destaca que o declínio da Retórica no século XVI
deve-se ao fato de haver nesse período a ascensão do pensamento burguês que se firma no pressu-
posto cartesiano do critério da evidência. Decorre daí o fato de encontrarmos em condição de
primazia as referências feitas à ‘analítica aristotélica’ em desapreço à ‘dialética’, pois os primeiros
tratam das coisas evidentes, enquanto esses últimos tratam das prováveis.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

linguagem e passando a ser vista como uma técnica de elaboração de belos dis-
cursos, limitando-se ao tratamento das figuras linguísticas e afastando-se propor-
cionalmente do universo filosófico à medida que se aproxima do gênero literário.
Consagrada à persuasão, na antiguidade, a Retórica representava uma forma
de expressão suasória, que se convertia em uma maneira especificamente política
de falar. Sua repercussão entre os atenienses, que se orgulhavam de conduzir os 47
seus assuntos políticos pelo método discursivo, transformou a retórica em uma
arte política por excelência, fundamentada no princípio da persuasão. Essa incur-
são, aliás, revela a existência de um liame necessário entre as questões acerca da
retórica antiga e os problemas da Retórica no mundo contemporâneo, motivo pelo
qual se faz imprescindível identificar os traços constitutivos da retórica antiga entre
os principais pensadores que se dedicaram ao tratamento das questões que lhe
estão associadas. É inegável a contribuição da Arte Retórica à(s) nova(s) Teoria(s)
da Argumentação, donde se mostram meramente depreciativos os comentários
que são esboçados ao seu respeito, em detrimento das suas inúmeras contribui-
ções. A Nova Retórica desenvolvida por Perelman, por exemplo, possui um traço
distintivo em relação às demais modalidades retóricas, porque

em oposição à antiga, diz respeito aos discursos dirigidos a todas as


espécies de auditórios, [...] a teoria da argumentação concebida
como uma nova retórica (ou uma nova dialética) cobre todo o campo
do discurso que visa convencer ou persuadir5, seja qual for o auditó-
rio a que se dirige e a matéria a que se refere. Poder-se-á completar,
se parecer útil, o estudo geral da argumentação com metodologias
especializadas segundo o tipo de auditório e o gênero da disciplina.
Poder-se-ia, assim, elaborar uma lógica jurídica ou uma lógica filosó-
fica, que mais não seriam do que aplicações particulares da nova re-
tórica ao direito e à filosofia. (PERELMAN, 1993, p. 24-25)

Enquanto uma metodologia, a Nova Retórica se mostra um método lógico,


confiável e racional, mas de uma racionalidade que não se funda no critério de
evidência; pelo contrário, recusa-o. Trata-se de uma racionalidade que se aproxima
do razoável, do verossímil, do provável, do qual fala Aristóteles ao descrever o
método e as provas dialéticas. A linguagem/argumentação utilizada pela Nova Re-
tórica é de natureza lógico-dialética. Lógica, porque estuda os meios de prova; e
dialética, porque não se funda em provas formais, rigorosas e coercivas, mas busca
algo próximo dessa solidez através das opiniões originárias do senso comum e en-
dossadas pelo crivo da razão compartilhada. (PERELMAN, 1999, p. 575) A Nova
Retórica, portanto, se propõe a ser uma modalidade de Lógica, em sentido alar-
gado, capaz de contemplar aspectos próprios da Retórica, da Lógica e da Herme-
nêutica, motivo pelo qual o próprio Perelman declara que mais adequado seria
5
OLIVEIRA, 2004, p. 67-80.
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

designá-la como uma Nova Dialética, tendo evitado esta nomenclatura em virtude
da aproximação entre o termo e a tradição pós-hegeliana. Há outras razões que
lhe fizeram preferir uma aproximação com a Retórica:

A primeira delas é o risco de confusão que [a] volta a Aristóteles po-


48 deria trazer. Pois se a palavra dialética serviu, durante séculos, para
designar a própria lógica, desde Hegel e por influência de doutrinas
nele inspiradas ela adquiriu um sentido muito distante de seu sentido
primitivo, geralmente aceito na terminologia filosófica contemporâ-
nea (PERELMAN, 1999, p. 5).

Muitas são as críticas que recaem sobre a elaboração teórica de Perelman.


Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, para edificar as bases de sua Novíssima
Retórica destaca aquilo que ele entende constituir algumas fragilidades do pen-
samento perelmaniano, conforme sustentam Alves e Ferres (2003, p. 35), que sin-
tetizam as críticas de Santos:

Os pontos falhos da nova retórica de Perelman estariam em ser ela:


(a) técnica, pois não consegue adjudicar entre a persuasão e o con-
vencimento; (b) manipuladora, uma vez que os oradores apenas in-
fluenciam e não se consideram influenciados pelo auditório, o que
ressalta o protagonismo do orador; (c) estática, pois prevê uma es-
tabilidade e duração das premissas, ou seja, uma permanência dos
pontos de partida das discussões; e (d) imutável, uma vez que apre-
senta um auditório dado, fixo, uma comunidade que não reflete os
processos sociais de inclusão e exclusão.

A Nova Retórica não tem a pretensão de adjudicar persuasão e convenci-


mento, porque são atividades distintas que podem (ou não) articular-se. A per-
suasão traz consigo o caráter pragmático, do qual a argumentação
pró-convencimento estaria desprovida. No que se refere ao caráter manipulador,
não acreditamos na passividade dos auditórios, conforme parece sugerir Santos;
outrossim, o foco da Nova Retórica, contrariamente às retóricas da antiguidade,
não está centrado na figura do orador, mas nos argumentos. Quanto à condição
estática e imutável, poderíamos condensar na designação de utopia axiológica,
uma vez que há pretensão em sugerir a existência de valores imutáveis e pontos
de partida de caráter universal.
A proposta de uma Novíssima Retórica, remanescente da Crítica da razão in-
dolente de Boaventura de Sousa Santos (2002), poderia ser suscitada como uma
resposta adequada para o problema da articulação entre persuasão e convenci-
mento, conhecimento e ação. Essa condição de possibilidade acerca dos pares
dialógicos resultaria do esforço que Santos empreende para refletir acerca dos
modelos de pensamento da sociedade ocidental contemporânea, estabelecendo
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

uma concepção pragmática do conhecimento e, por conseguinte, da ideia de ver-


dade. O problema é que a Novíssima Retórica possui um caráter demasiadamente
sociológico, desprezando a questão argumentativa e centrando sua abordagem
no campo dos auditórios, contemplando elementos argumentativos e não-argu-
mentativos, por entender que “sem ter em conta a dialética entre momentos ar-
gumentativos e não-argumentativos é impossível entender a construção e a 49
destruição sociais de auditórios e comunidades” (SANTOS, 2002, p. 106). A limi-
tação da proposta de Santos reside no fato de ser a Novíssima Retórica uma teoria
sociológica da Retórica, em vez de se constituir enquanto uma Teoria da Argu-
mentação.
Mas qual é o objeto de uma Teoria da Argumentação? O que são argumen-
tos? Em que consiste a arte de argumentar? Conforme Eemeren e Grootendorst
(2004, p.1), principais expoentes da teoria Pragma-dialética,

a argumentação é uma atividade verbal, social e racional destinada


ao convencimento de um crítico razoável, no que concerne à aceita-
ção de um ponto de vista, apresentando uma constelação de uma ou
mais proposições, para sustentar de modo justificado este ponto de
vista. (tradução livre)

Essa limitação da argumentação ao campo do verbal impede a sua aplicação


em um horizonte de possibilidades que se abre aos oradores integrados ao campo
do virtual, por exemplo. Argumentar implica o uso da linguagem com o fito de
converter o interlocutor ao assentimento de uma ou mais teses que lhe são apre-
sentadas. Por estar sempre dirigida a alguém, que designamos genericamente
pela expressão “interlocutor”, possui um caráter social, amplo e abrangente. Não
obstante, converte-se em atividade racional, porque a sustentação das suas pre-
missas se dá por meio de ideias sistematicamente dispostas. Para os representan-
tes da Pragma-dialética, a argumentação consiste na defesa de um ponto de vista
contra dúvidas ou questionamentos suscitados pelos interlocutores (ouvintes ou
leitores). Ainda que a Pragma-dialética incorpore outros meios, como os livros,
para além da oralidade, mantém a limitação de restringir a sua aplicação ao âmbito
do verbal. Nesse sentido, preferimos o entendimento segundo o qual “argumentar
consiste em prover de justificativas uma prova que você pretende incutir em ou-
trem”. Assim, todos os elementos verbais e não-verbais que nos sirvam de prova
para a sustentação de um posicionamento que se julga adequado à conversão do
interlocutor integra o campo da argumentação.
No contexto de uma Nuper-retórica, enquanto uma retórica compatível com
a configuração dos multimeios, as noções de argumentação e persuasão se mos-
tram difusas e mitigadas. Os espaços e os campos de aplicação das estratégias
suasórias não permitem identificar os pontos de partida da argumentação. Toda
a atenção está centrada no veículo, no instrumento, que se converte na própria
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

argumentação. Não mais se tem o controle do público ao qual se destina a per-


suasão. As plataformas (e mecanismos digitais) ao promoverem as modificações
e ajustes necessários para a inserção de conteúdos em seus domínios tendem a
trazer para si os seus interlocutores. A ideia de interface e de interatividade de-
marcam a fluidez contida nos princípios de condução das formas de vida. Criam-
50 se necessidades vitais para a adaptação ao mecanismo. Não se trata mais de
buscar uma adaptação do discurso ou do argumento aos desejos do interlocutor.
Trata-se da adequação do interlocutor (internauta, usuário, consumidor) aos dis-
positivos e suas possibilidades de conectividade. Procura-se a cristalização das es-
truturas e perfis sociais, com a dissolução das identidades subjetivas e a
adequação a uma identidade coletiva, com a consequente integração ao corpus
social homogêneo. Para tanto, utiliza-se de estratégias argumentativas e ferra-
mentas suasórias, que se mostrem capazes de moldar o indivíduo à forma que lhe
confira unidade.
A estratégia retórica dos articuladores do mass media, por exemplo, consiste
em personalizar símbolos para padronizar consumidores. Com esse tipo de habi-
lidade retórica, não se precisa dizer, tampouco verbalizar como se pretende con-
dicionar a uma forma de consumo. Pierre Bourdieu (1997), ao tratar da formatação
da sociedade dos mass media, concedeu rigoroso tratamento à questão da pre-
sença da televisão na construção de identidade da sociedade contemporânea.
Embora seja uma abordagem relativamente recente, o seu tratamento não pôde
contemplar a sociedade digital, os processos de inclusão/exclusão digital e os ca-
racteres associados a este novo modelo. Convivemos com uma realidade em que
a linguagem está diretamente associada à imagem. Não se trata, contudo, de coi-
sas intercambiáveis, mas complementares. Há uma imagem que diz, comunica,
expressa, transmite por sinais, cativa e converte. Aquele que tradicionalmente
seria um orador, no contexto da Nuper-retórica é o elemento que cria necessida-
des, veicula informações e exige a adoção de comportamentos sem expressar se-
quer uma (única) palavra. Um exemplo disso está na percepção de que se faz
preciso trocar um aparelho que se mostra obsoleto no universo dos produtos tec-
nológicos. Quando se percebe que as atualizações estão deixando de ser frequen-
tes, que a velocidade de processamento de dados está ficando cada vez mais lenta,
conclui-se que está na hora de substituir aquele aparelho por uma tecnologia atua-
lizada. Aquilo que poderia ser visto como vestígios, indicativos, convertem-se em
símbolos integrados a um complexo sistema de linguagem que condiciona e de-
termina. Por trás dessas construções existe alguém a selecionar escolhas tecnica-
mente adequadas para cada situação. Trata-se, por assim dizer, de uma seleção
criteriosa de provas que são oferecidas ao assentimento dos interlocutores.
Se, originalmente, a Retórica era entendida como uma metodologia de de-
senvolvimento de técnicas e estratégias voltadas à eloquência, a feição contem-
porânea da Retórica, que ousamos designar como Nuper-retórica, converte-se em
metodologia de entretenimento por meio de múltiplas linguagens. Essas múltiplas
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

linguagens, por sua vez, manifestam-se por multimeios e formam redes – e sub-
redes – de comunicação. Enquanto a Retórica se caracterizava pela atenção espe-
cial ao orador e a Nova Retórica nos argumentos, a Nuper-retórica procura se
consolidar com a ideia de Estrutura Dialógica do Conhecimento, segundo a qual a
participação dos entes envolvidos propicia a formação de um saber sólido e cons-
truído coletivamente. 51
As fragilidades da Nova Retórica, não superadas pela Novíssima Retórica de
Santos, dão azo à possibilidade de uma Nuper-retórica. A concepção de uma
Nuper-retórica incorpora elementos próprios da estruturação perelmaniana, mas
sugere uma inversão de algo proposto pela teoria hermenêutica de Schleierma-
cher, numa perspectiva que antepõe a Hermenêutica à Retórica, embora ampa-
rando esta naquela. Schleiermacher sugere que

para a compreensão do outro [é preciso que] a gente se transforme


nele o mais perfeitamente possível e se equipare a ele, apropriando-
se da situação histórica, das circunstâncias concretas da vida e inten-
ções, das formas de pensamento, dos modos de representação e
expressão, a fim de entendê-los pela reprodução deles (SCHLEIER-
MACHER apud CORETH, 1973, p.114).

Esse entendimento indica, como ação eminentemente hermenêutica, a ca-


pacidade de o intérprete penetrar no espírito da obra e ter em conta a personali-
dade do seu autor, criando com este uma empatia. Em sentido contrário, mas
amparando-se em construção análoga, acompanhamos o pensamento de Perel-
man (1999, p. 4), que compreende ser possível construir uma competência do
orador (argumentante) em aceder ao espírito do auditório (interlocutor), ter em
conta os valores que por este são admitidos, criando com este uma (suposta) iden-
tidade, para conseguir converter-lhe ao assentimento, pois “toda argumentação
visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um con-
tato intelectual” (PERELMAN, 1999, p. 16). Trata-se da forja, enquanto estratégia
de estruturação de argumentos. Uma argumentação eficaz é construída como uma
peça em bronze, que se elabora pela disposição do metal em consonância com a
habilidade do ferreiro, donde se entende a condição da “peça argumentativa”.
Dentro do contexto argumentativo que nos serve de referência, a linguagem
é tratada como um dispositivo que conecta o horizonte do mundo (interlocutores)
ao horizonte do ser (argumentante, orador etc.). Decorre dessa conexão a proxi-
midade com a Hermenêutica. O deslocamento, no entanto, se processa pela fina-
lidade, uma vez que o nosso propósito é evidenciar o componente pragmático
desse processo de conexão: a persuasão. Por esse motivo, não se trata de uma
abordagem hermenêutica, tampouco ontológica, mas de matiz nuper-retórico.
AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

Considerações finais
Entre os gregos antigos, a retórica favorecia a inserção política do indivíduo.
Cumpria, nesse sentido, a função de promover a integração social (dos hómoi) e
amplificava a capacidade de ouvir e ser ouvido. Auxiliava, por assim dizer, na cria-
52
ção de uma identidade. Com isso, propiciava o reconhecimento do indivíduo em
virtude do seu caráter único e distintivo. Pela retórica procurava-se exacerbar a
autenticidade de um orador. Em outras palavras, a retórica estava essencialmente
ligada ao falar persuasivo, motivo pelo qual se confunde, ainda nos dias de hoje,
retórica e oratória. No entanto, mesmo existindo uma conexão entre os termos,
uma vez que a oratória assume uma das feições mais tradicionais da retórica, não
se pode restringir o seu campo de atuação aos domínios da oralidade. A essência
da tradição retórica reserva consigo aquilo que se configura como a sua própria
natureza: a persuasão. Ser persuasivo é o objetivo último do orador. Por conta
disso, permanece atual o entendimento que encontra na retórica um sentido ins-
trumental, pragmático e dedicado à persuasão.
Aristóteles já assinalava a imprescindibilidade do estudo da retórica para
identificar os meios de persuasão. Tais meios, no entanto, sofrem mudanças con-
forme o contexto e as transformações sociais. No decorrer dos tempos, novas lin-
guagens, tecnologias e mecanismos de persuasão se desenvolveram com o
objetivo de adequar-se aos tipos de auditórios e interlocutores que foram sur-
gindo. Conforme o nível de esclarecimento e informação de um interlocutor, os
argumentos e estratagemas de persuasão precisam de maior precisão. Para aten-
der às exigências de um público mais rigoroso, se faz mister a utilização de um
maior arcabouço de elementos conceituais, mais abrangente e especializado. Uma
vez que a retórica ganha novas feições, conforme avançam os meios que se mos-
tram adequados para cativar os interlocutores, precisamos desvelar esses meios
e identificar quais elementos se mantêm imutáveis no decorrer da sua trajetória.
Um traço constitutivo da retórica, que se incorpora à Nuper-retórica, consiste
no pressuposto persuasivo que lhe orienta e condiciona a sua aplicação. Quem
argumenta, busca conquistar a atenção do interlocutor para modificar – ou moti-
var – a sua decisão. É preciso, portanto, afetar o público. Isso significa que a retó-
rica atinge o campo das inclinações pessoais, porque move o interlocutor a tomar
um posicionamento que corresponde aos interesses do orador. Assim, seu com-
promisso com a eficácia se reitera e corrobora o entendimento de que se trata de
uma arte, a arte de argumentar, de persuadir.
A Nuper-retórica preenche um nicho que se formou com o esvaziamento de
valores da sociedade. Esse esvaziamento se traduz pela multiplicidade de meios
e pela fragilidade dos princípios. Os fins da Nuper-retórica são os mesmos que ca-
racterizaram todas as feições assumidas pela retórica no decurso da história: a
persuasão e o assentimento às teses formuladas para conquistar a adesão de mais
interlocutores. Por esse motivo, pode-se dizer que os fins permaneceram intactos,
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

imutáveis e invariáveis; suasórios como o canto das ninfas e das sereias. O fulcro
da Nuper-retórica se mostra análogo ao pressuposto orientador das múltiplas ma-
nifestações da retórica: a persecução suasória.
De contornos nitidamente pragmáticos, os argumentos se revestem de uma
simplicidade indelével. Aquilo que originalmente integrava o campo da retórica,
pela expressão de uma linguagem acessível e pela expressão enfática da segurança 53
do orador, foi incorporado pela Nuper-retórica através de codinomes e caracte-
rísticas como intuitivo, produtivo e dotado de mobilidade. Não se trata desses
conceitos, mas dos seus respectivos significados, enquanto elementos constituti-
vos de um objeto que cativa, seduz e conduz pela sua própria forma. Aquilo que
vale para os objetos, também ocupa lugar de destaque no campo dos aplicativos
e softwares para dispositivos eletrônicos, incluindo os seus respetivos sistemas
operacionais. A marca, enquanto expressão gráfica de um fabricante, passa a in-
tegrar um arcabouço de símbolos linguísticos que, amalgamados, indicam status,
poder, posição social e competência profissional.
Esse é o motivo pelo qual apresentamos esse conjunto amorfo de aponta-
mentos, que sinalizam a possibilidade de criação de um sistema complexo de con-
ceitos, técnicas e procedimentos, que resgatam os elementos que servem para
consubstanciar uma Nuper-retórica, calcada nos pressupostos da ação voluntária,
no interesse da persuasão e ajustada a um modelo de pensamento que se pauta
na ideia de Fast Thinking (Cf. BOURDIEU, 1997, p. 38-42). Orientada pelo resgate
de traços essenciais da retórica, em seus diversos matizes, sua configuração trans-
cende o campo do verbal indicado por Eemeren e Grootendorst (2004) em sua
Pragma-dialética, mas permanece ligada ao ambiente persuasivo das peças argu-
mentativas, implicando uma forma de argumentação não-verbal, cujos modelos
de retórica – da antiguidade às pretensões da Novíssima retórica – não contem-
plaram. Aquilo que se designa como argumentação não-verbal, nos estreitos limi-
tes deste esboço, corresponde à organização sistemática de elementos e
componentes não-verbais de grande valor persuasivo. Trata-se de uma argumen-
tação, porque não deixa de ser uma forma de apresentar justificativas para uma
ideia que se pretender incutir em outrem, mas foge do escopo verbal, porque não
comporta a oralidade, sem, entretanto, desprezá-la.

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AS ATRIBUIÇÕES DA (NUPER-)RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E PERSUASÃO EM CONTEXTO(S) MULTIMIDIÁTICO(S)

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A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA
E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEAChMENT
DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Geder Parzianello
55
Universidade Federal do Pampa
gederparzianello@yahoo.com.br

Resumo
As dimensões sociais e contextuais da Retórica e da Argumentação ganharam especial mol-
dura no cenário recente da vida política brasileira com a discussão em curso do processo de
impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff. A midiatização do evento jurídico-político
do processo favoreceu a multidimensão dos efeitos de linguagem. No jogo retórico-argu-
mentativo projetou-se o embate interpretativo e de sentidos em torno da compreensão dos
fatos que poderiam conduzir à verdade. O imaginário social no cotidiano dos brasileiros os-
cilou, de um lado, entre a consciência da necessidade de mudanças, do combate à corrupção
e do fim da impunidade, e, de outro lado, a interpretação do processo como golpe contra a
democracia brasileira. No espaço tenso das controvérsias, identificou-se a atuação de uma
retórica dos imorais, um discurso ético coletivo que servia a ambos os lados para encobrir a
imoralidade do indivíduo.

PalavRas-chave
Impeachment. Retórica. Argumentação. Mídia. Golpe.

No começo da noite de 2 de dezembro de 2015, o então presidente da Câ-


mara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), anunciava que aceitara o pedido
de impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff, feito pelos juristas brasileiros,
Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Flávio Costa, protocolado por
líderes da oposição em outubro daquele mesmo ano. O documento baseava-se
nas chamadas pedaladas fiscais1, que, segundo o Ministério Público junto ao Tri-
bunal de Contas da União (TCU), foram praticadas ilegalmente pelo governo em
2015, considerando a nova lei de responsabilidade fiscal vigente. O documento
da denúncia dos juristas levava em conta ainda, como alvo de investigação, a as-
sinatura de seis decretos presidenciais autorizando recursos suplementares sem
aprovação do Congresso Nacional. Pela Constituição brasileira de 1988, o Presi-
dente da República só pode fazê-lo com aprovação do Congresso.
Antes mesmo de Cunha aceitar dar início ao processo de impeachment, ele
mesmo havia rejeitado pelo menos mais de uma dezena de pedidos encaminhados
por particulares, por cidadãos ou juristas, apontando supostas irregularidades na
1
Nome que se tornou popular para definir a prática do governo de pegar antecipadamente recursos
dos bancos estatais para pagar contas públicas e projetos sociais. A Constituição Brasileira proíbe o
governo de tomar dinheiro dos bancos públicos.
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF

condução das contas públicas da União. O então presidente da Câmara rejeitou


as acusações de que teria aceitado o pedido em questão como forma de retaliação
ao governo e disse publicamente, pela imprensa, que sua decisão era eminente-
mente técnica. As acusações de retaliação se baseavam na suposição de que
Cunha teria tentado negociar um acordo com a base governista, buscando garantir
56 votos a seu favor em processo contra ele junto ao Conselho de Ética da Câmara.
Sem conseguir o apoio que precisava, Cunha teria decidido acolher a denúncia
contra a Presidente Dilma Rousseff.
Nesse ínterim, Eduardo Cunha respondia então a diversos processos. Três
eram os inquéritos que corriam no Supremo Tribunal Federal para apurar possíveis
crimes cometidos por ele na época em que era presidente da Companhia de Ha-
bitação do Estado do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2000. O processo que corria na
Câmara dos Deputados, junto ao Conselho de Ética, pretendia investigar se ele
havia mentido ao afirmar que não possuía contas no exterior e estudava a possi-
bilidade de cassação ou não de seu mandato parlamentar diante de provas da
existência de recursos financeiros a sua disposição e à de familiares, em operações
financeiras na Suíça. Na época, Cunha respondia a essas acusações, tendo sido
afastado da presidência da Câmara por interferência do Supremo Tribunal Federal,
e fazia sua própria defesa em sessões da Comissão de Ética e Decoro Parlamentar.
Outro processo contra ele, no Ministério Público, investigava se havia recebido
propina por meio dessas contas fora do país.
Cunha também era alvo de outros três inquéritos na Operação Lava-Jato,
como ficou conhecida a investigação sobre crimes de corrupção praticados a partir
da Petrobras, a maior empresa estatal brasileira, responsável pela exploração de
petróleo em todo território nacional. Na primeira investigação, o Supremo aceitou,
por unanimidade, a denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e
transformou o deputado em réu numa ação penal. A suspeita era então de rece-
bimento de pelo menos US$ 5 milhões em propina a partir do contrato de aluguel
de navios-sonda pela Petrobras.
Do outro lado da arena argumentativa, a senadora pelo PT do Paraná Gleisi
Hoffmann, também denunciada pela Procuradoria Geral da República na Operação
Lava-Jato, juntamente com o marido, o ex-deputado pelo PT Paulo Bernardo, eram
acusados de receber propina de R$ 1 milhão de reais, desviados da Petrobras e
que teriam sido usados na campanha para eleição da senadora, em 2010. A sena-
dora petista e seu marido como também o deputado e presidente da Câmara pee-
medebista não foram, por certo, os únicos parlamentares que, mesmo estando
envolvidos em suspeitas graves de corrupção, mantiveram-se, até quando pude-
ram, na condição de juízes da moralidade alheia.
Em que pesem as argumentações desses atores políticos em sua própria de-
fesa, presumida sua inocência, há o fato de que se viam envolvidos nessas denún-
cias, que os tornaram réus em processos. Tal fato os tornaria moralmente
incapacitados para arbitrar qualquer juízo, mesmo no exercício das suas funções.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Suas imorais condições foram, no entanto, sucumbindo frente a apelos éticos, que
falaram mais alto no contexto de instauração do processo de impeachment, quando
então os parlamentares avaliaram, primeiramente na Câmara e depois no Senado,
os indícios de que o crime de responsabilidade teria sinais mínimos de presumibi-
lidade, ainda sem receber avaliação de mérito ou ajuizamento de provas.
A ética sobrepondo-se à moral. A retórica dos imorais impondo-se pela ética 57
da coletividade. O discurso da ética parece quase sempre privatizado nos atos co-
municacionais de quem nos fala em nome de suas coletividades, em nome de seus
partidos, de sua classe social ou profissional, de empresas ou instituições. Tomado
de forma isolada, esse tipo de discurso acaba supervalorizando a ética e confun-
dindo muitas vezes sua dimensão com a moral.
Com efeito, a ética e a moral são objetos distintos. Para Hegel (2002), filósofo
idealista alemão, por exemplo, a ética era coletiva. Nela, não haveria lugar para o
indivíduo. Os ditos “proprietários” da ética se apoiavam nas suas coletividades
para darem status de correção a suas decisões e condutas. No discurso da política
brasileira, a ética tem servido justamente para encobrir a retórica dos imorais por
trás da coletividade e criar no imaginário social a fantasia das decisões moralmente
perfeitas.
Quando se leva o ideal de uma sociedade eticamente perfeita ao extremo da
coletividade, a ética pode conduzir a sociedade ao esmagamento da moral, que é
a consciência do indivíduo diante dos dilemas naturais de sua existência. Mas é o
juízo moral que dá sentido às escolhas individuais.
Tomar decisões por princípios morais e não necessariamente éticos ou cole-
tivos, e defender a liberdade e a consciência individual deveriam prevalecer sobre
as consciências coletivas. Esse humanismo de consciência, todavia, foi duramente
criticado ao longo da história, como sendo um desvio ideológico, mesmo por quem
defendia curiosamente o pensamento crítico. Nessa contradição, acaba-se presu-
mindo que o indivíduo deveria abdicar de sua forma de pensar conforme sua cons-
ciência, por conta de uma ética convencionada em sua coletividade próxima para
não ser individualista, embora se deseje sua emancipação como sujeito crítico,
capaz de fazê-lo guiar-se por sua própria consciência. Trata-se de uma contradição,
uma lógica anacrônica, arbitrada na ideologia que autoriza a anulação e alienação
da subjetividade e da individualidade humanas.
O linguista francês Émile Benveniste (2008) dizia que há palavras-embreagem,
aquelas que se levam adiante, como slogans, por falta de elementos empíricos ou
lógicos. Usadas como palavras de guerra, essas palavras-embreagem não formam
consciências críticas nem contribuem na dialética desejável às sociedades con-
temporâneas. Servem tão somente para desacelerar a argumentação de quem
controversa e contradiz, supondo prevalecer uma ética sobre as outras e revelam
a retórica dos imorais. Foi assim com o emprego da palavra “golpe” no episódio
do impeachment.
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF

A retórica, desde Chaïm Perelman (1996), com seu estudo datado de 1957,
enquanto estudo das formas de comunicação em favor da busca por adesão a
ideias e argumentos (diferentemente da tradição clássica grega de quatro séculos
antes de Cristo) nos revela que há um discurso em torno da ética que parece muito
mais intencionado em relação a seus efeitos do que propriamente mantido para
58 que se defenda o que ele de fato deveria inspirar.
O momento político atual e o futuro próximo no Brasil exigem ainda mais
que se reflita sobre isso. Os esforços argumentativos em torno da questão do im-
peachment da presidenta Dilma Rousseff tiveram diferentes auditórios particulares
e universais, distribuídos entre as esferas congressistas, a sociedade e a mídia de
cobertura dos sucessivos eventos relacionados ao acontecimento do impeachment
e a todas as racionalidades e emotividades envolvidas.
Acerca do papel da emoção e do racional na sociedade midiatizada, Michel
Maffesoli (2008, p. 9) lembra que “não se trata mais de pensarmos apenas no in-
divíduo racional, mas, em termos de pessoas emocionais. A mídia é o vetor dessa
contaminação”, escreve o sociólogo francês. Conforme ele explica, a pós-moder-
nidade tem na superação do indivíduo e na emergência da pessoa (persona, ou
máscara) uma das saturações de nosso tempo.
O não-racional é da ordem do afeto, do emocional. A sociologia compreensiva
francesa dedicou nos últimos anos considerável esforço na direção de uma expli-
cação de mundos por uma episteme radicalmente nova. Em Latim, explicare equi-
vale a retirar as dobras. Tudo é plano e liso. Maffesoli, por sua vez, trabalha na
inversão desse processo, compreendendo na percepção sensível sobre o cotidiano
uma realidade a ser considerada, menos monoteísta, que leve em conta as apa-
rências e as interações simbólicas, bem como o politeísmo de valores.
Perelman (1996, p. 107) lembra que uma ética e uma estética poderiam ser
fundadas na superioridade do que melhor encarna a essência e na obrigação que
há em chegar a eles, na beleza de quem aí chega. É porque o homem é feito para
pensar que, para Pascal, bem pensar é o primeiro princípio da moral. Tal condição
moral se espera, portanto, de forma indissociável aos homens públicos. A sua con-
dição de imoralidade se encontra justamente na contradição entre essa encarna-
ção de que fala Perelman e as presunções públicas em torno de suas condutas
impróprias relativamente a crimes, como sonegação, corrupção, falsidade ideoló-
gica, mentiras e desvio de recursos públicos. Com efeito, como poderiam sujeitos
marcados por suspeitas dessa natureza emprestarem alguma credibilidade ao juízo
que dão a terceiros no julgamento sobre crimes de natureza similar, mais ou
menos graves que esses?
Arautos da razão, esses sujeitos invocam fatos e verdades com apego ao real
em presunções que jamais se considerariam válidas para eles mesmos. Suas es-
tratégias argumentativas aproximam opiniões formais a valores. Olímpio-Ferreira
(2011, p. 609) interessado em como o enunciador se constrói no discurso e nas
diferentes estratégias argumentativas frente a diversificados auditórios pontua
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

que “sobrepujar, portanto, as objeções e suscitar emoções, empatias, é o desafio


de todo argumentador que jamais está livre de dificuldades para fazer o seu au-
ditório perceber e conceber as suas opiniões como sendo as dele”.
Para Mosca (2008, p. 295), “a argumentação movimenta-se das evidências
racionais ao não-racional (crenças, paixões, preferências), podendo-se falar em
racionalidade argumentativa (...)”. No episódio em análise para a finalidade deste 59
artigo, tomados os discursos e as formações discursivas marcadamente de sujeitos
envolvidos em semelhantes condutas às que eles próprios julgam, torna-se signi-
ficativa a marca estratégica do envolvimento dos auditórios por meio dessa racio-
nalidade argumentativa.
A verdade sobre o que de um lado considerou-se um golpe sem armas contra
uma presidente legitimamente eleita teve espelhamento na controvérsia da ra-
cionalidade exposta por quem defendeu a legalidade do processo de impeachment
contra os esquemas de corrupção, que envolveram a equipe do governo e as con-
dutas questionáveis da presidente no trato de recursos públicos. A verdade, bem
sabemos, tem a ver com o exercício da razão. Essa constatação é dada por Grácio
(1990), que conclui que a verdade do ser consuma-se nas crenças segundo as quais
os homens agem e realizam sua condição de ser-em-o-mundo.
Daí depreende-se que a todo sujeito equivale uma luta por tornar-se autên-
tico na sua condição. A autenticidade do indivíduo de que fala Heidegger (2012)
passa pela condição do ser de “ser-com-os-outros”. Com eles se estabelecem acor-
dos e por meio desses acordos é que se permite a moralidade em torno do que
se aceitará como presumível ou verdadeiro. De outra sorte, como poderiam ho-
mens cuja condição moral é colocada em dúvida lograrem algum status de credi-
bilidade naquilo que julgam ou afirmam acerca da conduta de outrem?
Mosca (2008, p. 297) afirma que “argumentar consiste em levar em conta o
espírito crítico do outro, reconhecendo a sua liberdade”. Da mesma forma, dire-
mos que aceitar uma argumentação tomada pelo espírito crítico depende direta-
mente do valor que damos a quem argumenta. Tanto a liberdade de interpretação
quanto a liberdade de construção do senso crítico nos parecem, todavia, indisso-
ciáveis à razão e ao assentimento do auditório, em cujo processo argumentativo
existirá sempre o lugar para o questionamento.
A Retórica é, afinal, o esforço para argumentar sobre a possibilidade do ques-
tionamento (GRÁCIO, 1990). Perguntas são exercícios de capacidade racional. Na
condição argumentativa em que se deu o episódio do impeachment no Brasil, a
questão acerca da existência ou não do impeachment esteve em direto confronto
com as questões referentes à moralidade dos indivíduos que protagonizaram o
discurso tanto contra quanto a favor. A sociedade brasileira, que foi às ruas em di-
ferentes momentos entre 2015 e 2016 para exigir o fim da corrupção e da impu-
nidade, e para denunciar a contradição de quem julgava crimes tendo
supostamente cometido condutas semelhantes, fez revelar essa polaridade no
próprio questionamento. A sociedade começava a se perguntar; começava a trazer
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF

de forma autônoma, por meio das redes sociais e das ruas, a inquietação em torno
de acordos que se faziam sentir para blindar alguns em detrimento de outros. Na
metáfora criada para descrever esse comportamento social da população brasi-
leira, e também em alusão à extensão do território nacional, chegava-se a dizer
abertamente por todo o país que “o gigante acordou”.
60 A retórica dos discursos de maior apelo e a adesão popular empunharam for-
malmente a duplicidade da questão em torno do impeachment, trazendo ao de-
bate os argumentos em torno da moralidade questionável daqueles que ali
estavam, em tese, na condição de seu espaço de fala, para justamente restabele-
cer a verdade.
Estavam dadas as condições reais de argumentação. Na disputa em torno das
controvérsias relativas ao impeachment, surgiram as mais variadas posições. Para
efeito deste artigo, interessa identificar pontualmente que, de ambos os lados, os
que eram a favor e também os que eram contra, dadas as suas próprias condutas
que entravam em questionamento moral, tiveram dificuldades para firmarem
acordos com finalidade argumentativa e sustentarem assim suas posições a res-
peito do tema. Mesmo na condição de seu lugar de argumentação enquanto par-
lamentares, estes não conseguiram enfrentar a deslegitimação de seus pontos de
vista, dada a fragilidade que sua própria condição emprestava à credibilidade de
seus argumentos.
Acerca da argumentação, escreve Perelman (1996) que, ao tratar dos tipos
de objeto de acordo, sobre fatos e verdades, presunções e valores, há dois modos
normais para que um acontecimento perca o estatuto de fato: quando são levan-
tadas dúvidas no seio do auditório ao qual ele fora apresentado e quando se am-
plia esse auditório, acrescendo-lhe outros membros, cuja qualidade para julgar é
reconhecida e que não admitem que se trata de um fato. As duas condições foram
dadas no caso da discussão acerca do impeachment no Brasil. Perelman (1996, p.
75) afirma que “esse segundo processo entra em jogo a partir do momento em
que é possível mostrar eficazmente que o auditório que admitia o fato é apenas
um auditório particular, a cujas concepções opõem-se os membros de um audi-
tório ampliado”.
Em seu texto Para além do sujeito: Nietzsche, Heidegger e a hermenêutica,
Vattimo (1989) analisa o que Nietzsche escrevera sobre verdade e mentira em
1873, e que, no entender do filósofo alemão, toma status de sistema metafórico
canônico na consideração de todos. A experiência de interpretação teria, assim,
uma espécie de desfundamentação, um Abgrund, por meio do qual se perde o
sentido de continuidade de mundo e que, portanto, converte a própria interpre-
tação a uma verdade enquanto possibilidade de sentido.
Foi mesmo Baudrillard (1996) quem, por fim, mostrou o quanto a possibili-
dade de múltiplas visões de mundo é constituinte de um sentido de realidade.
Disse ele que o mundo contemporâneo está na idade da simulação. A interpreta-
ção do simulacro nos oferece como retórica de nosso tempo o modelo de intera-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

ções em que se baseia a sociedade pós-moderna. Baudrillard vai nos ensinar a ver
o outro por nós mesmos, em meio a uma cultura de excessos de real.
A obscenidade fria do visível, responsiva na mídia por programas como reality
shows, tem também sua materialização na retórica e na política. Governos traba-
lham na busca pela aparência de uma transparência de suas políticas e ações,
tanto quanto toda a sociedade aprenderá cada vez mais a reclamá-la. Essa visibi- 61
lidade, todavia, é encenada. No discurso da defesa de seus próprios interesses, os
homens públicos encontrarão formações retóricas estratégicas para dizer de um
estar-no-mundo que difere ligeiramente da forma como lhes são imputadas acu-
sações e críticas.
Dirão que suas contas em paraísos fiscais são trusts ou operações off-shore,
e não contas próprias no exterior; também dirão que a antecipação de recursos
por parte dos bancos públicos ao governo não se configuram empréstimos nem
operações financeiras ilegais; dirão que os recursos desviados foram para progra-
mas sociais, mesmo que tenham sido usados nesse sentido em menor proporção
do que para outras finalidades; dirão, ainda, na lógica do interesse pela simulação,
que os fatos descritos por um ou outro lado serão sempre uma forma equivocada
de reconstruir a realidade e, portanto, de forçar deliberadamente a inversão dos
fundamentos da verdade.
Essa reconstrução será sempre um jogo. Na esteira do pensamento socioló-
gico francês contemporâneo, diremos que se trata de um jogo de aparências.
Nesse jogo, vale não exatamente o que é, mas o que aparenta. A essência está no
parecer. A realidade importa menos, haja vista que é pela convicção em torno dos
argumentos e do que parece ser verossímil, que se dará o assentimento do audi-
tório. Não temos, evidentemente, como alcançar a chave para a explicação do
mundo contemporâneo. Importa pelo menos compreendê-lo. E nossa compreen-
são se dá invariavelmente por indícios. E os indícios que temos nos oferecem uma
visão de que a retórica contemporânea de fato privilegia o campo do aparente, o
domínio das estratégias de sedução num jogo em que a racionalidade objetiva e
instrumental conta cada vez menos.
Só visto o mundo dessa forma parece fazer sentido que o sujo fale do mal la-
vado, como se diz em expressão popular, em português corrente no Brasil. Ocorre
que a controvérsia sentida pela imoralidade dos que acusam fere a coerência com
que ainda se deixam levar pelo paradigma da modernidade. Da mesma forma, a
imoralidade dos que governam não será mais tolerada. As primeiras quatro se-
manas do governo interino de Michel Temer, em maio de 2016, se viram forte-
mente marcadas por novas denúncias e dois de seus ministros foram então
afastados, envolvidos em denúncias de corrupção praticada em anos anteriores.
O New York Times, em 06 de junho, trouxe como imagem de título o Brasil como
medalhista de ouro em corrupção, estampada a figura de Temer como presidente
interino diante das acusações envolvendo seus ministros. A alusão à imagem de
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF

medalhista se devia à proximidade dos Jogos Olímpicos Mundiais, que acontece-


riam no Rio de Janeiro, um mês mais tarde.
Não havia mais manifestações nas ruas. Para alguns, defensores do governo
Dilma, era o sinal de que os protestos anteriores tinham como objetivo apenas
derrubar a presidenta legitimamente eleita. Para outros, que apoiaram os protes-
62 tos contra a permanência de Dilma no poder, a ausência do povo nas ruas é sinal
antes de uma confiança de que agora havia caminho limpo para que a justiça fosse
feita e, portanto, era só uma questão de tempo para que outros tantos corruptos,
não importa a que partido ou governo pertencessem, também restassem presos.
O maior argumento será sempre a imagem. A sociedade quer seus corruptos
presos, quer vê-los fora da esfera da impunidade. O auditório universal terá aqui
o desejo comum a ambos os lados da questão do impeachment, de que a corrup-
ção é inaceitável. Em seu Sermão da Sexagésima, o Padre Antônio Vieira já cha-
mava a atenção de que pregamos apenas aos ouvidos, quando deveríamos pregar
aos olhos. Sem isso, dizia ele, os sermões tinham poucos abalos.
Na época da portabilidade da imagem, é compreensível que as imagens te-
nham força retórica ainda maior do que as palavras. A questão é que não existe
representação iconográfica do golpe, nem representação icnográfica da corrupção
em certos casos. Não são debates que se possam elucidar com cédulas ou barras
de ouro, carros de luxo ou com propriedades de alto padrão. Embora tenham sido
feitas tentativas desse enquadramento, citando-se de um lado a possível existência
de um apartamento tríplex em São Paulo e um de um sítio em Atibaia em nome
do ex-presidente Lula e, de outro lado, viagens ao exterior com o consumo de vi-
nhos caríssimos e hotéis luxuosos por Cunha e seus familiares.
Por fim, haveremos de dizer que o que está em absoluta tensão aqui é o ethos
discursivo, em sua realidade inseparável coletiva, individual e histórica. O universo
das crenças e das representações – a doxa – chega às relações de poder em cuja
legitimidade não haverá apenas o sujeito retórico. O enunciado, os sentidos, os
efeitos de sentido e tudo mais que configure o cenário da disputa em torno de
um argumento farão com que o ethos discursivo não se resuma, portanto, apenas
ao sujeito que enuncia, mas também ao que ele deixa de enunciar, às motivações
pelas quais ele age assim e etc.
O esforço aqui, no campo retórico do exame da questão em curso, será por
mostrar-se merecedor da confiança de seu auditório. Dilma é uma mulher ho-
nesta, será o mantra dos que apoiam a sua volta ao poder após os 180 dias em
que estará afastada por conta das regras do processo de impeachment. Ivo Dittrich
(2009, p. 70) dirá a respeito da questão da confiança de modo geral na retórica,
que é como se alguém dissesse “você pode confiar na tese porque pode confiar
em mim” e “você pode confiar em mim porque tenho méritos”. Da parte de
Cunha, havia no imaginário popular o mérito por ter sido peça fundamental para
o afastamento da presidenta Dilma, sem o que o processo do impeachment não
teria avançado no país.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Se de um ponto de vista ambos tinham razões para que fossem acreditados


em sua intenção de conduta, por outro, ambos tinham também as condições reais
para estarem na situação de uma iminente perda de poder. O ethos torna-se te-
matizado, e o discurso passa a ser a própria personagem que o enuncia, ainda que
de maneira geral, socialmente, não seja bem aceito falar de si mesmo e ainda
menos quando para apontar a sua própria valorização. Tanto melhor se essa de- 63
fesa vier por meio de terceiros, como ocorreu tanto em relação à presidenta Dilma
Rousseff quanto em relação a seus oponentes políticos.
Segundo Barthes (2000, p.8) a retórica é uma ideologia da forma. Uma ge-
nuína forma de ação incorporada em dizer e fazer para seduzir, gerar convenci-
mento e exercer poder. O poder, no entanto, não é algo apenas discursivo e
situado no plano do simbólico, mas exercido em múltiplas formas. Mesmo diante
da contraposição de modos de ver os mundos e o ser-no-mundo, de ambos os
lados do debate sobre o impeachment, esteve sempre marcada uma mesma forma
estratégica, deliberadamente intencionada, mas que de algum modo não foi capaz
de apagar a inconsistência da força dos argumentos diante da imoralidade enun-
ciada daqueles os quais se valeram de uma retórica denunciativa e ou reclamante.
Projetados pelo ganho disseminador das redes sociais e do alcance da cobertura
de TV aberta em todo país, puderam dar uma dimensão muito grande à retórica.
A Retórica e a Argumentação ganharam, assim, especial moldura no cenário
recente da vida política brasileira. Essa moldura compreende tanto as dimensões
sociais quanto contextuais dos discursos prós e contra o afastamento da presidenta.
A midiatização do evento jurídico-político do processo favoreceu a multidi-
mensão dos efeitos de linguagem. As redes sociais, a televisão aberta de modo
especial, e as mídias alternativas, forneceram um amplo espectro do que se po-
deria descrever como sendo a complexidade dos fatos, seu presumível contorno
real e ou suas verossímeis aderências junto a seus distintos auditórios; dada a
força de suas imagens, a eloquência de suas provas ou a simulação de tantas con-
troversas aparências.
No jogo retórico-argumentativo projetou-se o embate interpretativo e de
sentidos em torno da compreensão dos fatos que poderiam conduzir à verdade.
O imaginário social no cotidiano dos brasileiros oscilou entre a consciência da ne-
cessidade de mudanças, do combate à corrupção e do fim da impunidade de um
lado, e a interpretação do processo como golpe contra a democracia brasileira de
outro. No espaço tenso das controvérsias, identificou-se a atuação de uma retórica
dos imorais, um discurso ético coletivo que servia a ambos os lados para encobrir
a imoralidade do indivíduo.
A questão da moralidade discursiva encontra na Nova Retórica e em estudos
interdisciplinares, desde o estruturalismo genético com Piaget e as contribuições
neste século ainda de Jürgen Habermas reatar o elo perdido com a filosofia moral
de Kant. Ao pensar de forma interdisciplinar o discurso e sua ética, o modelo
rompe com o positivismo sociológico. O destaque a estruturas lógicas (ou quase
A RETÓRICA DOS IMORAIS: ENSAIO SOBRE MÍDIA E POLÍTICA NA ARGUMENTAÇÃO SOBRE O IMPEACHMENT DA PRESI-
DENTA DILMA ROUSSEFF

lógicas, conforme Perelman), mas, sobretudo, psíquicas e sociais, será natural re-
conhecermos uma função dinâmica na moralidade, pelo que se ordenam ou se
desordenam os mundos em suas múltiplas realidades.
A moralidade, portanto, ultrapassa o diâmetro de uma questão filosófica. Ela
responde pela condição dos sujeitos no mundo da vida, através da forma de seus
64 discursos sentidos como forma de ação sobre outrem. Essa concepção claramente
estruturalista da linguagem materializada no discurso político em torno do juízo
ético e da moral nos permite pensar o que estamos fazendo de nós-no-mundo,
quanto a nossas representações e produções de sentido.

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CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO
MIDIATIZADA: O EThOS TESTEMUNhAL
DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O ABUSO DE DROGAS

Igor Sacramento
65
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
igor.sacramento@icict.fiocruz.br

Wilson Couto Borges


Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
wilson.borges@icict.fiocruz.br

Resumo
Este texto analisa a entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta, no Fantástico de 13 de
setembro de 2009, com o objetivo de demonstrar como, numa sociedade midiatizada como
a nossa, o ethos testemunhal se reordena. As formas de produção de confiança e de sin-
ceridade no enunciado e no enunciador também se transformam. Os regimes contempo-
râneos de visibilidade midiática configuram um novo papel para a imagem. A prova ética
não se produz apenas no âmbito da oralidade e da escrita, mas também no audiovisual.
Nesse contexto, emergem formas e protocolos audiovisuais que permitem a construção
de uma cena fiadora: a autorreferencialidade, a correferencialidade e a dramatização.

PalavRas-chave
Ethos. Midiatização. Testemunho. Confiança. Sinceridade.

Introdução
Enquanto ainda é presente a constituição de celebridades pela perfeição (cor-
poral, moral, estética, artística, sentimental), há segmentos da mídia que se dedi-
cam a noticiar as falibilidades, os infortúnios, os lamentos e as doenças
experimentadas por elas. De vício em drogas a distúrbios alimentares, a mídia,
contemporaneamente, com frequência, apresenta a “realidade suja”, imperfeita,
da vida das celebridades (HARPER, 2006). De diferentes formas, a constituição
delas como vítimas sofredoras pode ser tão ou mais lucrativa do que aquelas cons-
truções como heróis ou heroínas inabaláveis – olimpianos.
O crescimento do consumo de sites, programas, revistas e jornais sobre ce-
lebridades comprovam a formação de um interesse público por tropos de intimi-
dade, de reflexividade e de autenticidade nas formas e linguagens da exposição
midiática dos sofrimentos íntimos. Ou seja, é cada vez maior a construção discur-
siva de celebridades e o interesse por elas como “elas realmente são”.
A cultura midiática contemporânea está repleta de produtos que têm o relato
pessoal como fonte para a produção simbólica. O imperativo por testemunhar, ou
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

pelo menos de se envolver em autorrevelações, é uma peça central de programas


de televisão, de jornais, de sites e de revistas. Certamente, a tensão entre a pre-
tensão de autenticidade e a lógica híbrida de revelação, situada em algum lugar
entre a confissão íntima e o testemunho público, é cada vez mais popular. Está
particularmente mais presente na cultura midiática contemporânea o testemunho,
66 por meio de entrevistas, porque a presença do autobiográfico se ancora na palavra
dita sobre a realidade como um “retrato fiel”, de si mesmo e do que foi vivido, na
medida em que é atestado o que se diz pelo nome, pela voz, pela imagem, pelo
corpo daquele que viveu o que diz (ARFUCH, 2010, p. 152). A entrevista conta,
por exemplo, com formas de legitimaçao ̃ discursiva baseadas no testemunho, mas
também não é incomum que haja, em casos de revelação de segredos ou de atos
cometidos que nos transtornam moral e psiquicamente, um tipo secularizado de
confissão, tornando a fala, na exposiçao
̃ midiática de si mesmo, parte fundamental
para a cura dos males.
Etimologicamente, o termo testemunho remete à voz que toma parte de um
processo, em situação de impasse, e que pode contribuir para desfazer uma
dúvida e introduzir a verdade pela experiência, pelo olhar e pela memória. Além
disso, o termo testemunho se associa na tradição com a figura do mártir, o sobre-
vivente de uma provação ou de um sofrimento provocado por uma experiência
trágica em que o indivíduo se encontra esmagado pelo acaso, pelo erro, pela so-
ciedade, pela inevitabilidade dos eventos (SELIGMANN-SILVA, 2005). Nesse caso,
o testemunho, sobretudo — mas não exclusivamente — em rituais religiosos
cristãos pode assumir a função de exemplificação e de prova na capacidade de
mudança e de superação motivada por uma crença, pela fé, pelo amor, pela von-
tade de viver. Assim, o testemunho também pode assumir uma dimensão peda-
gógico-moralista: ensina sobre o certo e o errado, o bem e o mal.
Entre as observações artistotélicas sobre retórica, destacamos a divisão em
três eixos da constituição de prova no processo enunciativo: o ethos, o pathos e
o logos. A prova ética corresponde à configuração da imagem moral do enunciador
por meio do discurso. Nesse contexto, a persuasão se dá pelo caráter produzido
pelo enunciador no momento da enunciação de tal maneira que deixa a impressão
de ele ser digno de fé. Produz-se, assim, uma confiança como resultado da enun-
ciação e não necessariamente como uma opinião prévia sobre o caráter do orador.
Ou seja, na perspectiva aristotélica, o ethos deve ser entendido como uma condi-
ção técnica intrínseca à persuasão e não como determinado pelo reconhecimento
de qualidades morais extrínsecas a tal processo. Gilles Declercq (1992, p. 47) ex-
plica que “o ethos deve ser compreendido como um procedimento discursivo de
produção de confiança no que se enuncia pela imagem construída de quem enun-
cia na e pela situação enunciativa”. Em outras palavras, não é necessariamente a
própria honestidade ou sinceridade do enunciador que lhe garantirá o sucesso
persuasivo, mas sim a impressão que o seu discurso causar em determinado pú-
blico. O ethos define a enunciação como uma performance. Não se trata da cons-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

trução de um autorretrato benevolente ou elogioso, mas exatamente do que a


análise de discursos contemporânea denomina como sujeito da enunciação ou
enunciador (PINTO, 2009). Desse modo, cabe ao analista identificar nos enuncia-
dos, mais do que marcas formais que remetem ao sujeito do discurso, uma asso-
ciação da imagem discursiva do enunciador com vistas a persuadir o público sobre
a veracidade do enunciado. Desse modo, a prova ética envolve a mobilização de 67
modos de dizer (palavras, tipos de frase, argumentos etc.) e de modos de mos-
trar-se (gestos, mímica, direção do olhar, postura, roupas, adornos etc.) para con-
tribuir na formação de determinada imagem do enunciador destinada ao público
(PINTO, 2009, p. 43).
Dominique Mainguenau (2008), contrariando em parte a perspectiva aristo-
télica, entende que a construção do ethos de um enunciador remete a maneira
de ser de um corpo investido de valores socialmente especificados pelos sentidos
sociais envolvidos numa situação comunicativa. Desse modo, a função do ethos é
fazer remissão à imagem do fiador: por meio da enunciação, confere a si próprio
uma identidade compatível com o universo de referências constituído pela cena
enunciativa. A noçao ̃ de ethos, assim, permite refletir sobre o processo mais geral
da adesão dos sujeitos à determinada posição discursiva. Ampliando a ideia aris-
totélica de que o ethos é construído na instância do discurso, Maingueneau (2008)
afirma que existe um ethos pré-discursivo (que se refere à imagem que o enun-
ciatário tem do enunciador por conta da imersão num conjunto de representações
sociais do sujeito da enunciação e de definições morais da sinceridade e da ho-
nestidade, produzidas em outros contextos sócio-comunicativos). O ethos discur-
sivo engloba o ethos dito (através de referências explícitas do enunciador sobre si
com vistas a garantir confiança no seu enunciado) e o ethos mostrado (por meio
do implícito, pelo não dito, mas representado por pistas – metáforas ou alusões a
outros acontecimentos e cenas enunciativas, por exemplo – que contribuem para
a construção de uma imagem destinada ao público). Assim, o ethos como imagem
de si é um fenômeno que se constrói dentro da instância enunciativa, no momento
em que o enunciador toma a palavra e se mostra através do seu discurso. Mas
esse universo de sentido dado pelo discurso se impõe não só pela cenografia; ele
está presente nas marcas enunciativas de modalizaçao ̃ da experiência – em gestos,
atitudes, falas, vestimentas –, em tudo aquilo que permite estabelecer maior con-
tato e interação do enunciador com o enunciatário, como uma estratégia de con-
quista de intimidade e construção de vínculo.
A prova patética envolve provocar determinadas emoções no público, busca
despertar as paixões, crenças e desejos e, necessariamente, condiciona o enun-
ciador e o seu tipo de discurso, já que, se o enunciador quer conquistar o auditório
e ter validado o seu discurso, deve estar atento ao que faz o público pulsar e de-
sejar, o que o mobiliza. O pathos seria o que na análise de discursos contemporâ-
nea é identificado com o sujeito falado, destinatário ou enunciatário (PINTO, 2009,
p. 43). Já o logos, suas provas e meios retóricos, corresponde à dimensão da ar-
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

gumentação pelo uso da linguagem, dos conteúdos transmitidos, das figuras e dos
recursos empregados.
Neste capítulo, analisaremos o ethos testemunhal construído na entrevista
de Fábio Assunção à Patrícia Poeta sobre o abuso de drogas, no Fantástico de 13
de setembro de 2009, com o objetivo de demonstrar as rearticulações da confiança
68 e da sinceridade nas narrativas de si, numa sociedade midiatizada, marcada por
processos, dispositivos e protocolos midiáticos que reconfiguram a produção de
subjetividades e identidades, bem como as práticas de sociabilidade, em diversos
aspectos da vida social. Além desta introdução, o texto conta com mais três partes.
Discorremos sobre as mudanças do ethos testemunhal numa sociedade midiatizada
para, depois, analisarmos a entrevista do galã da TV Globo sobre seu processo de
recuperação em rede nacional. Como deixamos claro, nossa análise privilegiará,
neste momento, o ethos em detrimento do pathos e do logos no sistema retórico.

1. O ethos testemunhal numa sociedade midiatizada


De imediato, é preciso enunciar a tese sobre a qual nosso argumento se de-
senvolve, qual seja, a de que a experiência vivida no momento histórico atual im-
plica, nos termos propostos por Sodré (2013), numa transformação das formas
tradicionais de sociabilização, que interfere na maneira como a percepção e a cog-
nição são igualmente afetadas, produzindo efeitos sobre as referências com que
os indivíduos passam a designar como verdade e realidade (SODRÉ, 2013, p. 26).
Essa refiguração do mundo produz alterações substanciais na forma como a orga-
nização da vida vai se estabelecendo. Nesse sentido, em larga medida impulsio-
nada pelas tecnologias de som e imagem, produz-se uma profunda alteração na
maneira como percebemos, pensamos e contabilizamos a realidade que nos cerca.
Esse é o cenário em que emerge esse tipo diverso de qualificação da vida, e com
ela os procedimentos discursivos tradicionalmente utilizados, o que passa a con-
figurar o fenômeno que atende pela designação midiatização, ou seja, a “tendên-
cia à ‘virtualização’ ou telerrealização das relações humanas, presentes na
articulação do múltiplo funcionamento institucional e de determinadas pautas in-
dividuais de conduta com as tecnologias da comunicação” (SODRÉ, 2013, p. 21).
Um dos principais efeitos da midiatização, pelo menos daquele que aqui ex-
ploramos, é a consolidação de um tipo particular de interação – a tecnointeração
– especialmente pela influência que passa a exercer sobre outras instituições que
realizam atividades mediadoras, como a família, os amigos, a igreja, o trabalho,
isto é, nessa nova cena contemporânea, em alguma medida, todas as interações
sociais passam a dialogar, ora mais intimamente ora mais frouxamente, dentro
dessa sociedade midiatizada. Esse nos parece o sentido de compreender a coe-
xistência de formas muito diversas de representação, mas que ao se hibridizar dão
o tom para a representação desse tempo, um tempo que, apesar de mediado por
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

novos modelos de tecnointerações, se apresenta como tempo vivo, tempo real.


Esse é o movimento que não apenas produz uma distinção entre a autorreflexi-
dade, própria da modernidade clássica, e a reflexidade institucional, característica
da modernidade tardia. Ele marca de forma definitiva a emergência de um ethos
que é tributário desse novo ambiente cognitivo.
A esse novo ambiente, marcado por uma mediação social tecnologicamente 69
exacerbada, Sodré qualifica como bios midiático. Há dois aspectos que aqui pre-
cisamos realçar. O primeiro diz respeito a essa classificação/denominação imersa
na identificação do momento histórico em que vivemos, isso porque dialoga com
uma referência explicita à Aristoteles, que distingue três gêneros de existência vol-
tados para a pólis: o bíos theoretikós, o politikós e o apolaustikós, atualizando-a
num cenário onde os regimes discursivos, performáticos, de construção de ver-
dade se alteram a partir das tecnointerações1. Para além de uma eventual supe-
ração dos bios precedentes, o que parece estar em discussão nessa espécie de
taxonomia é a percepção de que tais transformações produziram, além de formas
de organização da vida, mudanças no ethos que orientam as ações dos indivíduos
que de uma dada sociedade façam parte. Esse novo ethos, uma derivação a partir
da retórica aristotélica, reflete a “imagem moral que o orador constitui [e consti-
tuía] discursivamente para o público” (SODRÉ, 2013, p. 45) num ambiente forte-
mente marcado por uma nova forma de encenação da doxa, cuja linguagem opera
de forma prescritiva e orienta o processo de transformação do ethos em habitus,
através de “técnicas de verossimilhança ‘naturalista’” (SODRÉ, 2013, p. 52-3).
A inscrição do ethos no habitus – como um conjunto de disposições duráveis
e adquiridas pelo indivíduo durante o processo de socialização – é um movimento
amplamente presente nas reflexões de Pierre Bourdieu (2011). Entretanto, é com
Ekkehard Eggs (2008) que a dimensão do ethos ganha relevo, na medida em que
hábitos e costumes são dispositivos acionados para se exprimir de maneira apro-
priada, recuperando uma das predições aristotélicas, que é convencer pelo dis-
curso. Esse movimento nos autoriza a assumir que o ethos é a finalidade do
discurso, especialmente porque ele vai permitir caracterizar o sujeito enunciador
através do modo como esse sujeito enuncia dentro de um determinado campo
em que esteja agindo. Ou seja, ao participar do processo de eficácia da palavra,
num dado campo discursivo, o sujeito-enunciador-locutor vai, a partir do recurso
a certos caracteres, alcançando a legitimação do que diz pela fala (AMOSSY, 2008,
p. 17). Em larga medida, a questão que se coloca é a de discurso eficaz, como te-
1
A hipótese teórica de Sodré (2013) se sustenta na classificação aristotélica das três formas de vida,
presente em Ética a Nicômaco (Aristóteles, 2001). Tomando a mi diatização como um novo modo
de presença do sujeito no mundo, observa-se a existência de um bios específico. O bios midiático
(ou virtual) acrescenta ao bios theoretikos (vida contemplativa), ao bios politikos (vida política) e ao
bios apolaustikos (vida prazerosa) uma reordenação social, cujos conteúdos, formas e significados
possuem fins mercadológicos e trabalham pela manutenção do sistema capitalista global. Tal reor-
denação é criada pelas tecnologias que, simulando o tempo real e a interatividade, produzem um
espaço virtual.
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

matiza Maingueneau (2008), e a confiança que se estabelece entre enunciador e


enunciatário, questão que aparece no centro das reflexões sobre ethos prévio
(AMOSSY, 2008) e ethos pré-discursivo (MAINGUENEAU, 2008).
Se levarmos em consideração que um ethos discursivo está intimamente re-
lacionado com uma posição política e que a matéria enunciada contribui para criar
70 no enunciatário uma relação de confiança fundada na autoridade que o enuncia-
dor deve se conferir caso deseje persuadir e até mesmo convencer (AMOSSY, 2008,
p. 23), então, podemos tomar o processo de comunicação como constitutivo de
uma cena que cauciona o estabelecimento de um vínculo, de uma confiança que
autoriza o jogo de interações entre os atores que dela participam a ter início. É
sobre esse constructo que a comunicação se efetiva, isto é, num jogo de intera-
ções, com relações interpessoais, ritualizadas socialmente, como propõe Goffman
(2001).
Nesse sentido, nos parece exemplar o caso da entrevista do ator Fábio As-
sunção, em rede nacional, para o Fantástico. Nela, antes de se portar como fonte
de informação sobre a drogadição, ele assume o papel que, mais do que uma tes-
temunha, encarna um sujeito enunciador que “foge do terreno da incerteza e se
compromete incondicionalmente com as teses que enuncia, manifestando a cer-
teza e a confiança do que prega” (AMOSSY, 2008, p. 138). Mas o caso se torna em-
blemático não por evidenciar um ethos discursivo. Antes, estamos diante de um
ethos testemunhal, tendo em vista sua capacidade de legitimar o que diz por meio
da enunciação que é apresentada. Não se trata de uma testemunha ocular, um
observador de fatos, mas uma testemunha experiencial, que viveu aquilo que re-
lata. Esse testemunho é diferente daqueles produzidos no contexto da profusão
de relatos surgidos, sobretudo após 1970, por conta de um século que foi atra-
vessado por duas grandes guerras, genocídios, atentados, catástrofes, processos
de descolonização, guerras civis e várias ditaduras pelo mundo. Esse contexto pro-
porcionou a valorização e a validação de se de fazer história em primeira pessoa,
pela narrativa testemunhal, tornando a experiência vivida central no processo de
garantia de confiança, autenticidade e sinceridade do relato (SARLO, 2007). Esses
relatos tinham uma estratégia de legitimação do sujeito enunciador pelos modos
de submissão do individual ao coletivo, à comunidade ou ao grupo. Nesse con-
texto, a primeira pessoa do testemunho expressa uma coletividade, substituindo
outros, não de modo vicário, como representante, mas porque “não morreu no
lugar de quem morreu” (SARLO, 2007, p. 35). A memória das tragédias conta com
uma dimensão coletiva. Está num modo como um grupo pode fundar a sua iden-
tidade em relação a um passado de extrema violência e dor, tornando-se uma
“memória do sofrimento compartilhado” (CANDAU, 2012, p. 151).
A midiatização do ethos testemunhal enfatiza uma nova lógica do testemu-
nhal, centrada na articulação do indivíduo com sua imagem. Ou seja, tal processo
não faz do caráter do enunciador uma imagem (pela concretude da argumentaçao ̃
e da presença diante dos enunciatários, na retórica clássica), mas produz o próprio
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

enunciador como uma imagem (pela virtualizaçao ̃ da presença e da argumentação,


na retórica midiatizada). Há cada vez mais uma necessidade de ser imagem, de
produzir-se como imagem, para poder falar de si e para ter a fala confiável: os
enunciadores midiatizados só serão, sendo imagens. É como se eles só existissem
– fossem críveis – midiaticamente. A imagem e seus regimes de produção de visi-
bilidade (na imprensa, na televisão, no cinema e na internet) ganham uma nova 71
dimensão na tessitura social quando não são apenas meios de tornar o outro e a
si mesmo imagens, mas sobretudo quando se configuram a ambiência na qual os
indivíduos produzem identidades, subjetividades e interseções. Como abordare-
mos mais à frente, há uma nova organização da nossa relação com verdade e com
a realidade, profundamente marcadas pela crença nas imagens (especialmente
quando elas encenam a vida íntima, não só como conteúdo, mas também como
forma - edição, jogo de cena, elementos cenográficos, qualidade da imagem, se
amadora ou não). Há um novo regime de veridição, tal qual de uma produção de
efeito de real como um efeito de vida real pelas imagens. Afinal, a experiência,
sobretudo em sua dimensão testemunhal, assumiu tal valor de autenticidade que
garante maior “efeito de vida real”, pela fala de si, em primeira pessoa, num relato
próprio sobre o que viveu (ARFUCH, 2010, p. 67). Dito de outro modo, a perfor-
mance do sofrimento pessoal, no contexto da sociedade midiatizada, vem sendo
empregada para fundamentar certas afirmações acerca da própria vida, amparada
por convenções culturais que valoram autenticidade do sofrimento, na medida
em que se convertem em imagens, sons e outros signos midiáticos. Assim, se al-
guém sofre ou sofreu, não pode estar mentindo, ainda mais quando se dispõe a
relatar o próprio sofrimento numa experiência midiatizada. Há, portanto, de-
manda e valorização sociais para transformar as experiências íntimas em imagens
e espetáculo (SACRAMENTO, 2015).
Pelo que expusemos até o momento, parece não restar dúvidas de que os
meios de comunicação alteram os próprios elementos do ato de persuadir, sobe-
jamente ao deslocar do auditório para a audiência o espaço com finalidade para
o exercício da persuasão. A midiatização, certamente, corresponde ao desenvol-
vimento de uma nova forma de apreensão sensível da verdade, em que a verdade
dá lugar à credibilidade do enunciado (SACRAMENTO, 2009). Desse modo, um
outro real tem sido fabricado por um conjunto de simulacros que, por penetrarem
e praticamente se indissociarem da vida social, ganham tanto poder que tornam
a imagem mais crível do que o original verdadeiro, cada vez mais desindexado. O
afastamento da relação entre o enunciado e seu referente coincide com a valori-
zação e o recrudescimento da ênfase da autorreferencialidade e da correferen-
cialidade no trabalho enunciativo. Outra das consequências do processo de
midiatização da retórica, para além da criação de uma cena fiadora, como ainda
abordaremos, é a quebra de finalidade para a utilização da retórica. Se, antes,
diante de uma plateia o discurso retórico aristotélico era tipificado entre o deli-
berativo, o judicial e o epidíctico, com as modernas tecnologias e suportes de co-
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

municação as três dimensões parecem misturar-se, quebrando o vínculo direto


entre orador e aqueles a quem este se dirige para persuadir, potencializando o al-
cance da enunciação e possibilitando a reconfiguração desse discurso com o in-
cremento de imagens, bem como a possibilidade de edição e montagem desses
mesmos discursos. Desse modo, se desterritorializam os processos persuasivos
72 na direção de uma retórica midiatizada, com alcance planetário. No novo bios, o
midiático, “os meios criam as audiências, isto é, permitem que um orador se dirija
em ausência a um conjunto disperso de ouvintes” (FIDALDO e FERREIRA, 2009, p.
114).
Fidalgo e Ferreira ainda advogam que houve um segundo deslocamento na
direção da consolidação de uma retórica midiatizada, mantendo, no entanto, seu
caráter de persuasão. Trata-se da presença (na modernidade clássica) e da ausên-
cia (na modernidade tardia) da hipotipose. A defesa dos autores é a de que a força
da hipotipose estava assentada no poder de, a partir das palavras, despertar a ca-
pacidade imaginativa do ouvinte. Com o advento das tecnologias, fomenta-se e
impulsina-se a produção de imagens através “da apresentação gráfica ou video-
gráfica (...) o que tenderia a representar a morte da hipotipose” (FIDALDO e FER-
REIRA, 2009, p. 117). Entendida como forma de representação – hipotipose vem
do grego hypotýposis, representar – nossa hipótese é a de que, concordando com
Williams (2002), não se pode pensar num engendramento social mais profundo
da capilaridade produzida pela experiência midiática sem as produções audiovi-
suais. Mais ainda: é preciso pensar a sociedade contemporânea, a sociedade mi-
diatizada, a enunciação midiatizada nos limites de uma sociedade dramatizada,
isto é, observar, investigar as relações nela estabelecidas a partir de uma intensa
e complexa relação entre o real e o ficcional. Numa sentença: em nossa sociedade,
a representação dramatizada é habitus.
Vivemos numa sociedade midiatizada. Aceitar essa premissa é compartilhar
da noção de que ela, embora emergente e própria do seu tempo, incorpora algo
de residual, mas ainda vivo em sua configuração, em seu conjunto de convenções.
Nela, modos de dramatização, de ficcionalização são constitutivos de hábitos e
costumes, mas igualmente de práticas sociais e culturais que, em larga medida,
orientam a realidade. Avaliamos que isso também nos autoriza a pensar que, se
não morta, a hipotipose é reconfigurada sob a lógica de imagens observadas e
evocadas por desejo ou repulsa. Nesse sentido, a hipotipose contemporânea pas-
saria a compor aquilo que Williams (2002) qualifica como dramaticidade da cena
pública. Vejamos o episódio que caracteriza a entrevista de Fábio Assunção. Ator,
que se alterna entre uma personagem e outra, da novela ao cinema, do teatro
aos anúncios publicitários, transita entre as diversas atividades cênicas servindo-
se sempre de suas habilidades de atuar representando um papel.
No contexto de uma sociedade em que o drama é constitutivo, quais os limi-
tes para se estabelecer distinção entre o ser humano, a celebridade no entrevis-
tado Fábio Assunção? O que tal cena parece nos mostrar é que há uma
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

superposição de faces na direção de autorizar, ou melhor, autenticar certa forma


de ethos testemunhal, cuja persuasão também é elemento constitutivo de uma
sociedade midiatizada. Se tal perspectiva for pertinente, apontando para aquilo
que Sodré qualificou como espelho midiático – isto é, a presença de técnicas de
verossimilhança “naturalista”, geradora de um novo tipo de controle moral
(SODRÉ, 2013) –, o passo seguinte, como destacam Fidalgo e Ferreira, é medir a 73
eficiência da comunicação “pela alteração das atitudes e das ações dos destinatá-
rios das mensagens” (FIDALDO e FERREIRA, 2009, p. 119). Nessa nova ambiência,
o conteúdo parece perder importância para a forma lógica desse sistema, cujos
regimes discursivos, encenações, performances, atuações são próprias. Esse novo
ethos, essa nova consciência atuante marca o caráter e, atualizando a retórica
aristotélica, “a imagem moral que o orador constituía [e constitui] discursivamente
para o público” (SODRÉ, 2013, p. 45). Na sintaxe midiática, mais do que a verdade,
a sinceridade - “o falar de peito aberto” - é o principal valor cultural desse regime
discursivo.
É esse ethos retórico, cuja face neste trabalho ganha a feição de ethos teste-
munhal, que eclode na cena contemporânea. Embora em um novo auditório (des-
territorializado, espacialmente difuso, heterogêneo), o processo se construi com
as mesmas bases, produzindo efeitos mais ou menos semelhantes, ou seja, o ora-
dor continua a persuadir a plateia através de um discurso cuja natureza lhe confere
a condição de digno de fé. Entretanto, como adverte Maingueneau (2008), esse
novo ethos implica um processo de adesão dos sujeitos a certo discurso, uma
“fiança”, tendo em vista ser “um comportamento socialmente avaliado, que não
pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela
mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica” (MAINGUENEAU, 2008, p.
17). Nesse jogo, para que as relações entre enunciador e enunciatário sejam es-
tabelecidas, o central é que as condições de produção de um discurso confiram
àquele o caráter da credibilidade. Antes de ser verdadeiro, o enunciador precisa
ser digno de confiança, precisa parecer confiável aos seus interlocutores. Mas esse
movimento não acontece por um passo de mágica. Ele é fruto daquilo que Main-
geneau qualificou como zona fronteiriça entre o ethos pré-discursivo e o discur-
sivo. Ou seja, entre aquilo que se constitui como uma memória, uma memória
pública partilhada – “os estereótipos ligados aos mundos éticos” (MAINGENEAU,
2008,p.18) – e o que é dito e o que é mostrado.
O que nos parece novo dessa dinâmica é que a ativação desse mundo ético
partilhado não se dê majoritariamente pelo logos, mas pelo pathos. No caso es-
pecífico da entrevista de Fábio Assunção, a incorporação do telespectador no
ethos testemunhal não se dá pela exposição de argumentos lógicos e racionais
quanto aos problemas produzidos pelo uso abusivo de drogas, ou seja, pelos riscos
que a drogadição pode gerar. Antes, se dá pelo recurso às emoções, aos afetos
que circunscrevem um episódio em que a superação, o reencontro com amigos,
com a família e com o trabalho dão o tom do discurso. Mas isso não basta. É pre-
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
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ciso que tal discurso crie um ethos que produza uma “eficiência social, uma vez
que permitem definir cenas de enunciação nas quais os atores sociais dão sentido
a suas atividades” (MAINGUENEAU, 2008, p. 26).
Em nossa avaliação, em larga medida, essa eficiência social tem no discurso
midiático um vetor absolutamente poderoso, isso porque, ao concordarmos com
74 Maingueneau, identifica-se que o poder “de persuasão de um discurso deve-se,
em parte, ao fato de ele constranger o destinatário a se identificar com o movi-
mento do corpo, seja ele esquemático ou investido de valores historicamente es-
pecificados” (2008, p. 29). Mais do que o dito, busca observar em que condições
é dito. O contrato entre enunciador e enunciatário se estabele a partir de um “es-
coramento recíproco entre a cena de enunciação e o conteúdo nela desdobrado”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 29). Esse movimento nos conduz àquilo que Fausto Neto
(2008) qualificou como enunciação midiatizada. O que tal expressão parece en-
sejar é o movimento pelo qual a sociedade vai gradativamente se transformando
na direção do que o autor identifica como uma sociedade em vias de midiatização.
Uma das características da enunciação midiatizada é contar com estratégias de
autorreferência, visando a um conjunto de operações voltadas para “a realidade
da construção que é convertida na própria realidade do acontecimento” (FAUSTO
NETO, 2008, p. 142). A entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta começou
mostrando a relação íntima entre os dois, por meio de imagens deles conversando
e rindo, num clima de informalidade e descontração, indo em direção ao local da
entrevista, à beira da piscina do quintal da casa do ator. Desse modo, a entrevista
construía a relação íntima encenada entre eles como correferência enunciativa.
Assim, além dessas imagens, outras de diversas personagens do ator em novelas
da TV Globo e da relevação do envolvimento dele com drogas no Jornal Nacional
contribuem para a construção de uma trajetória decante (da fama ao vício). Ao
mesmo tempo em que promove uma ancoragem da lembrança sobre Fábio As-
sunção, propõe uma expectativa em relação à própria entrevista: como espaço
para o ator falar sobre os seus problemas, sua remição e sua superação.
Mesmo admitindo que a midiatização seja um processo que afete toda a so-
ciedade, ao privilegiar o trabalho de produção de sentido das práticas jornalísticas
como esteio para a produção de referências e de sua própria autorreferência,
Fausto Neto (2008) acentua uma dupla dimensão da linguagem constitutiva da
enunciação midiática: uma como prática discursiva do jornalismo (que chamare-
mos de hipótese instrumentalista) e outra como constituinte das operações enun-
ciativas que engendram manifestações discursivas (que nomearemos hipótese
construcionista). Esta última nos interessa mais frontalmente, pois, se a midiati-
zação toma forma através das operações de linguagens e se tais operações inter-
ferem tanto nas condições de produção quanto nas de circulação e
reconhecimento, envolvendo o topoi de dada sociedade, então a entrevista não é
apenas uma enunciação midiática, que atua como mediadora do público com dada
realidade social, é um acontecimento. Nesses termos, a entrevista não é uma
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

enunciação que produz acontecimento (embora em sua arquitetura outros ele-


mentos de autorreferência estejam presentes, como um fragmento do Jornal Na-
cional que mostra a prisão da personagem que vendera drogas ao ator), antes,
um acontecimento que serve de base para estruturar uma enunciação, um ethos
que permite ao telespectador ter a sensação de que participa e conhece com in-
timidade a saga do ator pelo fato de essa trajetória povoar diversas expressões 75
midiáticas.

2. A cena fiadora: intimidade, confiança e sinceridade


A entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta no programa Fantástico de
13 de setembro de 2009 ocorreu no quintal da casa do ator em São Paulo. À beira
da piscina, o ator e a jornalista, frente a frente, iniciaram uma conversa sobre o
retorno dele à televisão, depois de quase um ano afastado, no papel principal da
minissérie Dalva e Herivelto. O último papel do ator foi Heitor em Negócio da
China, que estreou em outubro de 2008. Ainda no início da novela, ele pediu para
se afastar por conta de problemas de saúde. Segundo a jornalista, em voz over,
depois de 10 meses de afastamento da TV, ele se considera pronto para falar “de
peito aberto” sobre o motivo:

PATRÍCIA: O que que aconteceu, Fábio?


FÁBIO: Olha, eu me afastei porque… [longa pausa]. Eu acho bom falar
sobre isso. Eu nunca falei sobre isso, não porque eu tenha nada para
esconder. Mas é porque isso é uma coisa tão íntima… [breve pausa].
Eu me tornei dependente químico. Foi uma coisa que… [mais uma
pausa]. É muito difícil você administrar a dependência química com
qualquer coisa que você faça na vida.
PATRÍCIA: Para a gente entender melhor, há quanto tempo você vinha
enfrentando o problema do vício.
FÁBIO: Olha, já tinha alguns anos, mas nos últimos três ou quatros
anos foi quando a coisa começou a ficar difícil, mais complicada.
PATRÍCIA: Você tinha dificuldade para trabalhar?
FÁBIO: Eu acho que o problema maior era respeitar meus compro-
missos, meus horários. Eu não sabia mais se era terça, se era sábado.
Eu tinha medo de marcar um jantar… Eu tinha medo de... Sei lá, se
eu tinha uma gravação de manhã, eu ficava: “De manhã, será que vai
acontecer?”. Esse processo de droga é muito duro. É muito duro você
dizer que não vai fazer mais uma coisa e você fazer. Eu dizia para mim
mesmo: “Chega! Agora eu não faço mais, acabou, vou ficar bem”. E
dois dias depois você está fazendo de novo.
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

Fábio Assunção conta em seguida que se internou pela primeira vez, logo
depois do término da novela Paraíso Tropical, em 2007, numa clínica no Arizona,
nos Estados Unidos. Passou lá dois períodos, como contou:

FÁBIO: Eu fiquei lá 40 dias. Daí, voltei, as coisas não deram certo. Aí


76 voltei para clínica, para lá de novo, para a mesma clínica.
PATRÍCIA: Melhorou?
FÁBIO: Melhorou, melhorou... Mas eu voltei, fiquei um tempo bem
e daí as coisas não começaram a ir bem de novo.

O enquadramento da entrevista privilegia imagens em primeiro plano do ator


e planos conjuntos, mais do alto, do entrevistado com a entrevistadora, mostrando
a área da piscina da casa dele (a própria piscina, árvores e plantas, outras mesas
e cadeiras ao redor, uma área para alimentação e fazer churrasco). Essa ambien-
tação doméstica contribuía também para a conformação da autenticidade do re-
lato e na sinceridade do ator. Além disso, identificamos que havia recorrentemente
durante as pausas do ator um movimento da câmera de aproximação do rosto
dele. Nesses closes, notamos tanto a reticência do ator em dar mais detalhes sobre
sua própria experiência com drogas quanto a busca pelas melhores palavras para
relatar. O que fica evidente, certamente, é o incômodo dele em assumir o vício e
deixar de manter a imagem de perfeição, de galã, que tinha diante do público,
mas também pela própria necessidade de ter de vir a público, numa entrevista,
para contar sobre essa experiência tendo em vista que havia sido midiaticamente
revelado em revistas, sites, jornais e programas de televisão.
Na continuação da entrevista, há uma remissão, na edição, à notícia do Jornal
Nacional de 25 de janeiro de 2009, sobre a prisão de um homem que oferecia co-
caína para o ator num quarto de hotel. O uso dessa imagem de arquivo - para
além de ser uma estratégia de autorreferenciação da emissora - busca afirmar
menos a autenticidade do relato do ator do que nos relembrar que se trata de
uma experiência midiatizada. O acompanhamento do envolvimento do ator com
drogas ocupava àquela época a cena midiática: em jornais, revistas, programas de
TV, sites de notícias e fofocas sobre celebridades. Nesse sentido, havia uma con-
formação da exposição midiática da drogadição dele. Não se tratava, no entanto,
apenas da cobertura sobre seu vício. Colocou-se a necessidade de ele narrar a sua
própria experiência: como se tivesse de dar satisfação ao público.
No caso de Fábio Assunção, fica evidente que tal revelação midiática permitiu
que ele não precisasse fingir o que não estava conseguindo ser – o galã das novelas
com uma vida perfeita – e pudesse buscar tratamento: “Eu não precisava esconder
mais nada”, disse ele. Há, também, uma necessidade de ser autêntico e fiel para
com seus fãs. Ao ator não interessava mais esconder por que estava passando.
Era fundamental revelar. Esse autoproclamado incômodo da apresentadora pode
ser, primeiramente, associado à expressão de um desejo de sinceridade, ao posi-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

cionar o conhecimento de si mesma em função de vínculos estáveis, por meio dos


quais ela deve não apenas expressar seus pensamentos e convicções, mas neces-
sariamente aparentar fazê-lo (TRILLING, 2010).
O fato de ele no início da entrevista ter titubeado na revelação e no detalha-
mento de sua experiência com o abuso de drogas, é bastante revelador do quanto
a intimidade, a autenticidade e a autorrealização são imperativos morais em nossa 77
sociedade. O indivíduo, ao se comportar em função do olhar e da visibilidade, se
torna outro, estrangeiro a si mesmo (COURTINE e HAROCHE, 1988). Para agir tal
como a sociedade exige, ele exerce um cálculo constante sobre seus atos, contro-
lando-se e reprimindo os sentimentos, formando assim uma aparência enganosa.
Num contexto marcado pela autenticidade como ideal de conduta, a máscara,
antes o próprio modo da subjetividade se constituir, torna-se engano, dissimula-
ção, “repressão da fisionomia autêntica” (COURTINE e HAROCHE, 1988, p. 244).
Fábio Assunção precisava, na sua relação com os fãs, demonstrar sinceridade. Ele
tinha de mostrar o seu “verdadeiro eu”, seu “eu interior”, “eu interior” onde su-
postamente existe a originalidade latente de cada indivíduo: a fonte de suas von-
tades, desejos, angústias, planos, emoções e preocupações mais profundos e
verdadeiros. Consequentemente, para alcançar uma existência verdadeira do self,
o sujeito deve respeitar a sua voz interior – em outras palavras, ser autêntico.
A sinceridade se configurou como uma virtude na Igreja Romana na virada
para o século XVII e foi definida como um ímpeto por pronunciar somente a ver-
dade e nada mais que a verdade. A partir daí, como norma social, regulou as re-
lações interpessoais cotidianas pela necessidade de dizer a verdade, com tato,
mesmo àqueles que não querem ouvi-la. Ela se tornou um princípio de relação
social bastante valorizado, sendo vista com um traço de personalidade e caráter
desejável nos indivíduos. Ter a aparência e a atitude aceitas pelos outros como
normais significa que o sentido de self não está correndo perigo, isto é, que o su-
jeito não é chamado a refletir sobre a sua relação com o seu próprio corpo, sua
vida e sua ação no mundo. Ser sincero corresponde, então, a parecer ser sincero.
Muito mais recente na história da modernidade ocidental, a autenticidade emer-
giu no âmbito do Romantismo no século XIX. Envolve a crença num tipo de relação
pura consigo mesmo e com os outros, no qual o próprio indivíduo não precisa
mais recalcar seus sentimentos, desejos e juízos para agir livremente em relação
às regras de decoro social, sob a pretensão de estar sendo o que realmente é. A
autenticidade, portanto, é valorizada como experiência libertadora do indivíduo
das amarras sociais, confirmando a radicalização do individualismo e a privatização
da vida social como características fundamentais da cultura contemporânea.
Embora cada vez mais associadas no conjunto das práticas sociais, as codifi-
cações simbólicas da sinceridade e da autenticidade são distintas. A sinceridade
corresponde à expressão da verdade pessoal de acordo com as regras de decoro,
a autenticidade exige um compromisso consigo mesmo de modo a pretensamente
liberar a interioridade individual da sociedade. Como mostrarei ao longo deste
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

trabalho, a revelação da doença por Ana Maria Braga se estabelece dentro dos
códigos da sinceridade. Ela se sente na obrigação de contar em detalhes para seus
fãs a verdade sobre o seu processo de adoecimento, que até então não tinha se
tornado de conhecimento público. Antes mesmo da imprensa, ela buscou manter
com seus telespectadores uma relação baseada na sinceridade e na confiança, em
78 que a verdade deve ser dita e não escondida. Compartilhar experiências de sofri-
mento envolve, numa sociedade que sobrevalora as relações íntimas e o calor hu-
mano, a identificação, a compaixão e o acolhimento.
A revelação de Fábio Assunção não é só por uma dívida para com o público
ou por um desejo de estabelecer uma relação sincera, mas se configura, ao mesmo
tempo, como um alerta e um exemplo de superação. A partir de sua experiência,
ele procurava encorajar os telespectadores a agirem em benefício de sua própria
saúde. Nessa configuração da própria doença como um alerta, ele contou: “Eu es-
pero que o que estou construindo nesse momento seja bom para quem esteja”.
Sendo assim, a própria experiência do ator é narrada para demonstrar uma exem-
plo de êxito e positividade na resolução de problemas com drogas, mas também
com outras adversidades da vida. O que ele buscava demonstrar ao público era a
sua capacidade de autocontrole que permitira a superação da doença e a reto-
mada da carreira, sobretudo na medida em que evitava comportamentos de risco
à sua própria saúde. Desse modo, ator respondia à demanda social de transfor-
mação das celebridades em exemplos de “heróis de si mesmos”, na medida em
que o processo de salvação é fundamentalmente configurado na cultura contem-
porânea como uma atividade individual, que, mesmo quando o indivíduo conta
com ajuda especializada, cabe a si mesmo a escolha pela vida saudável e feliz, uma
vez que a vida é cada vez mais configurada como se estivesse dentro do espaço
de responsabilidade individual (SACRAMENTO e FRUMENTO, 2015). Essa conexão
entre riscos e práticas diárias imediatamente coloca o autocontrole no centro de
atenção social e individual. A ansiedade diante da configuração de inúmeros fa-
tores de risco transforma a relação individual com as formas de desejo e os pró-
prios comportamentos. Afinal, é entendido na sociedade contemporânea que é
na capacidade individual de controle e monitoramento da própria relação com di-
versas práticas cotidianas, bem como na adoção de hábitos considerados saudá-
veis que se encontra a garantia de evitação de doenças e sofrimentos (VAZ e
BRUNO, 2003).
Nesse sentido, é importante observar o quanto em narrativas pessoais de so-
frimento por celebridades como essa se promovem por meio de um ethos tera-
pêutico, isto é, um modo de agir, pensar e sentir apropriado para a passagem do
que Eva Illouz (2012) chamou de modo automático do ser (“doente”) para o modo
autorrealizado do ser (“saudável”). No primeiro modo, se não doentes, todos
podem se sentir cada vez mais num estado de quase-doença, vulneráveis a um
mundo visto como ameaçador à segurança individual, física e psicologicamente.
Essa situação é, então, configurada como o ponto de partida da narrativa sobre a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

trajetória individual: a partir do uso abusivo de drogas, no caso de Fábio Assunção,


se impõe a necessidade de demonstrar um movimento de mudança, que deve ser
gestado individualmente. Ou seja, enquanto a vulnerabilidade se espraia no tecido
social contemporâneo e é visto como comum aos indivíduos como situações di-
versas (de adoecimento, estresse, desilusão, angústia, pânico, trauma), há um mo-
vimento de recuperação ou conquista da segurança, da saúde e da felicidade. Não 79
se trata de um processo automático de identificação como sofredor numa socie-
dade que valoriza o lugar de vítima, mas de um aprimoramento centrado em si
mesmo.
Essa entrevista é particularmente reveladora de como a intimidade e a sin-
ceridade se entrelaçam nos regimes de subjetivação contemporâneos, sobretudo
por conta do imperativo de visibilidade: fazer ver o máximo possível de nossas
vidas por meio de variados dispositivos e procedimentos midiáticos. A civilização
moderna se caracterizava pela impessoalidade, pelas relações sociais estratificadas
e reguladas a partir de leis, normais morais e da divisão social do trabalho que
permitiam o convívio de membros heterogêneos e, no mais das vezes, desconhe-
cidos numa sociedade. A consolidação da organização social contemporânea, pelo
contrário, produziu a crença de que “a aproximação entre pessoas é um bem
moral” e que “os males da sociedade podem ser entendidos como males da im-
pessoalidade, da alienação e da frieza” (SENNETT, 1999, p. 317). Sendo assim, con-
figurou-se uma ideologia da intimidade: os relacionamentos sociais são mais reais,
autênticos e críveis quanto mais íntimos, pessoais e com “calor humano” forem
(SENNETT, 1999, p. 317).
O desenvolvimento da linguagem dos meios de comunicação de massa no
século XX, particularmente do rádio e da televisão, se deu a partir da organização
de uma “intimidade à distância” (HORTON e WOHL, 1956): um tipo de intimidade
encenada e realizada pela configuração de falas pessoais e informais, como numa
conversa cotidiana. Na televisão, os gestos, o estilo casual e o fluxo de conversa
fiada são mantidos para dar a impressão de que um interlocutor invisível está
sendo envolvido e de que sua contribuição é esperada e valorizada. Nesse tipo de
configuração da intimidade, não há compartilhamento espaço-temporal nem a
reciprocidade característica das interações face a face. Há, por outro lado, relações
interpessoais vicárias sem a constituição de uma teia de compromissos recíprocos,
fazendo dos outros distantes companheiros regulares, confiáveis, que proporcio-
nam diversão, conselhos, informações, tópicos de conversação e modelos de con-
duta. Na caracterização de Thompson (2011), a relação entre fãs e ídolos se dá
numa intimidade não recíproca, que é estruturada linearmente dos primeiros em
direção aos outros – companheiros distantes ou à distância.
No caso da entrevista de Fábio Assunção, a manutenção desse clima de in-
formalidade é garantida pela ambientação doméstica, pela presença da jornalista
na casa do ator e pela cumplicidade entre eles. Antes de a entrevista começar, na
edição, os dois apareceram conversando de maneira descontraída, encaminhado-
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

se para as cadeiras dispostas frente a frente, à beira da piscina. A narrativa audio-


visual da televisão não pode ser desconsiderada do processo de formação do
ethos testemunhal do ato na entrevista. Isso se deu, especialmente, em três di-
mensões próprias de uma enunciação midiatizada: a autorreferencialidade, a cor-
referencialidade e a dramatização.
80 A construção daquela cena como realidade do acontecimento enunciado de-
fine como correferência do trabalho discursivo. Inicialmente, a relação de intimi-
dade entre os dois pela cumplicidade que eles demonstrar diante da câmera.
Disposto pela edição antes da própria entrevista, tais imagens se configuram como
referência para o ato enunciativo: trata-se de uma entrevista baseada na intimi-
dade e na cumplicidade entre os envolvidos. Outras imagens são associadas pela
edição ao processo enunciativo: a participação de Fábio Assunção em outras no-
velas e do Jornal Nacional de quando ele foi nacionalmente implicado com o uso
de drogas, particularmente de cocaína. Há nessas imagens dispostas ao longo da
entrevista a produção de uma memória sobre uma vida glamourosa diante da re-
levação da degradação pela drogadicção. Patrícia Poeta, particularmente, coloca-
se no lugar do público e assume traços bastante característicos da opinião corrente
(a doxa) sobre casos em que celebridades e pessoas ricas se envolvem com drogas.
No primeiro trecho da entrevista que destacamos, isso ficou evidente na busca
por detalhamento: “Para a gente entender melhor, há quanto tempo você vinha
enfrentando o problema do vício”. Noutro momento, a apresentadora perguntou:

PATRÍCIA: Eu acho que a pergunta que todo mundo se fez é: “Por que
o Fábio Assunção, esse homem bonito, bem sucedido, famoso, que-
rido por tantas pessoas, acabou sendo atraído por drogas?”. Você
tem resposta essa resposta?
FÁBIO: [uma breve pausa]. Tenho. Eu acho que o espírito da gente...
É... [mais uma pausa breve]. Ele não está interessado se você tem
tudo, se você não tem tudo, se você faz sucesso, se você não faz su-
cesso. Eu fui, sei lá, brincar com uma coisa que não tinha dimensão
do quanto era perigosa.

Nesse momento, durante as pausas, o ator demonstra bastante desconforto:


se ajeita na cadeira, muda a posição das pernas, mexe mais a cabeça. A câmera
aproxima um pouco do rosto do ator. Como já vimos, ao mesmo tempo em que
isso evidencia o desconforto, também demonstra o ajuste do ator à expectativa
daquele relato: expor genericamente sua experiência com as drogas para reesta-
belecer a sua imagem diante do público como herói, como “homem bonito, bem
sucedido, famoso e querido por tantas pessoas”. Já abordamos o fato de ele se
colocar como exemplo de superação para as pessoas com necessidades, como
uma das demandas contemporâneas na construção de célebres como heróis de
si mesmos. O ethos testemunhal no contexto dessa entrevista se valeu imageti-
camente do ethos pré-discursivo de Fábio Assunção, que é formado e mobilizado
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

pelas cenas de arquivo exibidas. Uma delas aparece logo depois de a apresenta-
dora ter acionado a opinião corrente sobre o ator pelo recurso da exclusividade
sintética: “a gente” e “todo mundo” como inclusão da jornalista no conjunto de
telespectadores e como exclusão do entrevistado (o “tu”) na situação enunciativa.
Dessa forma, a jornalista assume o papel de representante da opinião do público
sobre o ator, bem como de sua preocupação com seu estado de saúde, sobretudo 81
no que envolvia o seu retorno ao trabalho. Essa dinâmica entre inclusividade
(“nós”, a entrevistadora e nós, como telespectadores) e exclusividade (o entrevis-
tado como “tu”, tanto para a apresentadora quanto para nós, numa relação de
forte intimidade e proximidade) possibilitou reforçar o imaginário de êxito sobre
o ator e a exigência de os célebres terem vidas exemplares. Exacerba, portanto, a
surpresa em relação ao adoecimento do ator (que “tem tudo”) e cobre que ele se
recupere logo (“volte a contracenar”), como aparece em outros momentos da en-
trevista. Assim, nessa operação, as imagens ancoram um trabalho memorável pro-
posto ao telespectador em relação à vida e ao caráter de Fábio Assunção. Ele teve
bastante sucesso e, mesmo assim, sucumbiu à drogadição.
Além disso, a edição desse pequeno trecho da entrevista conforma a relação
entre a doxa, a memória e a moral. O trecho de outra entrevista do ator, em 27
de dezembro de 2003, para o mesmo programa Fantástico, ele afirmou: “Eu não
posso pedir mais nada, eu tenho saúde, uma família linda, eu tenho trabalho.
Assim, eu só tenho a agradecer”. A inserção dessa pergunta se deu justamente,
quando, na de 2009, a apresentadora concluiu a sua pergunta. A pergunta, como
vimos, buscava mobilizar a opinião corrente sobre o ator, mas também exercer
um tipo de trabalho memorável duplamente referente e autorreferente: primei-
ramente por demonstrar um depoimento do galã provavelmente na época em
que ele estava mais prejudicado pela drogadição e por inserir o próprio programa
- para além da TV Globo - como objeto e elemento participante da realidade apre-
sentada, da própria vida do ator e da nossa como telespectadores. Afinal, são ima-
gens que orientam nossa memória sobre o ator pela exibição e propõe para nós
um tipo bem específico de conformação de imagem moral sobre ele: de alguém
com muito sucesso, muito bonito, dinheiro e talento, que passou por uma grave
experiência com as drogas, mas que conseguiu superar os problemas e retornar
ao status de exemplo de pessoa. Agora, conta com um ethos testemunhal: como
aquele que teve e superou uma experiência de sofrimento e pode ser alçado à
posição de legitimação do relato pela própria experiência. Em relação ao relato
do ator, somos convidados a acreditar que há maior sinceridade na entrevista de
2009. A julgar pelo que disse, que vivia com a doença por anos e que ela tinha se
intensificado “nos últimos 3, 4 anos”, é possível que ele estava escondendo a ver-
dade na entrevista de 2003. Ele tinha, de fato, algo a pedir: pela superação do pro-
blema. Embora àquela época o uso de drogas não tenha sido percebido como um
problema para o ator, a construção da narrativa da entrevista de 2009 pela edição
reforça uma oposição: entre o mascaramento do realmente vivido como segredo
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

e o testemunho da experiência com a drogadição. Essa oposição atribuiu ao relato


em questão um valor de autenticidade. Por outro lado, também se configurou
uma estratégia moralizante: o Fábio Assunção das imagens de arquivo eram pro-
tótipos de uma perfeição inverídica, simulada. Nessa entrevista, a encenação se
formou para demonstrar que ele estava recuperado.
82 As imagens, nas mídias impressas, têm uma função de ancoragem, de fixar
“a cadeia flutuante dos significados, de modo a combater o terror dos signos in-
certos” (BARTHES, 1990, p. 32). Num contexto midiático, a imagem deixou de ser
produzida a partir da palavra (como hipotipose), mas por meio de tecnologias:
passou a ser vista e não mais imaginada a partir da ação do enunciador, como na
retórica antiga e em determinadas práticas orais de conversação. Assim, aumen-
tou-se o controle sobre o significado na relação entre texto e imagem (ou entre
som e imagem). Isso não quer dizer que a imaginação como ato simbólico tenha
se perdido totalmente, mas que os dispositivos midiáticos desenvolvem formas
de exibição como se fossem tão mais simbólicas – simuladoras encarnações da
própria presença do referente – do que a própria imaginação (SACRAMENTO,
2009). No caso da entrevista de Fábio Assunção, fica bastante evidente um traba-
lho de memória no gerenciamento do passado do ator por meio de imagens que
permitam demonstrar o quanto ele foi bem sucedido. Além disso, a exibição se
associa de tal maneira à imaginação que é impossível determinar fronteiras pre-
cisas entre a imagem imaginada e a imagem vista nas mídias. É essa
indeterminação que demonstra a articulação hibridizante entre formas tradicio-
nais de cultura com formas tecnologizadas. A imagem pública de Fábio Assunção,
em larga medida, é composta por um conjunto de imagens midiáticas que permite
mais do que a ancoragem da imaginação pela exibição: a produção do imaginado
pelo exibido.
Dessa forma, nossa crença no enunciado está nas imagens acionadas, na mo-
bilização da opinião corrente sobre o ator e nos dois como personagens da entre-
vista funcionam para garantir a autenticidade do enunciado pelo jogo de cena: a
gestualidade, a atuação, a vestimenta, a cenografia. Nesse sentido, pela imagem,
o parecer sincero e autêntico permite acreditar que o enunciado é mesmo o que
parece. Mais do que isso, como estamos procurando demonstrar aqui, as imagens
técnicas, particularmente as televisivas numa sociedade midiatizada, reorganizam
o contrato fiduciário do enunciador. Segundo Greimas e Courtès (2008, p. 208):

o contrato fiduciário põe em jogo um fazer persuasivo de parte do


destinador e, em contrapartida, a adesão do destinatário: dessa ma-
neira, se o objeto do fazer persuasivo é a veridicção (o dizer verda-
deiro) do enunciador, o contra-objeto, cuja obtenção é esperada,
consiste em um crer-verdadeiro que o enunciatário atribui ao esta-
tuto do discurso enunciado.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

No nível da enunciação, o fiador recebe um corpo, torna-se a entidade cons-


truída pela interpretaçao
̃ , enunciada pelo enunciatário, que, por sua vez, incorpora
um conjunto de esquemas enunciativos às mediações socioculturais que confor-
mam sua interpretação. Desse modo, o fiador é uma instância imaginária da si-
tuação enunciativa. Como observa Maingeneau (2008), enquanto o ethos envolve
a produção da imagem do enunciador pelo discurso, o fiador é uma imagem (com 83
corpo, voz, vestimenta, gesto) do seu enunciador por conta da atividade de leitura.
Acontece que nas mídias audiovisuais a realidade enunciativa é construída por
imagens em movimentom que permitem maior fixação das significações no jogo
de cena constituído. Assim, no lugar de se produzir o fiador, tais mídias permitem
promover a sensação de encontro do ethos do enunciador com o fiador pela en-
cenação das imagens. Há, então, uma cena fiadora. Como estamos demonstrando,
por meio das imagens e das opções de edição, cenografia, figurino, encenação e
jogo cênico entre entrevistadora e entrevistado, confiamos na realidade da mise-
en-scène. O movimento dos personagens no cenário, o posicionamento dos ob-
jetos, a iluminação, a decoração, os adereços, os figurinos e outros elementos,
propõem determinados sentidos em relação à cena enunciativa. Nossa confiança
no que vemos e ouvimos na entrevista de Fábio Assunção é condicionada pelos
elementos de cena e pela atuação dos agentes envolvidos: pela dramatização,
portanto.
Na definição de Fausto Neto (2008) sobre o processo de enunciação midiati-
zada, há como característica a atorização, quando o próprio jornalista é convertido
numa espécie de ator do acontecimento, no sentido daquele que vive e explicita
a experiência de determinado acontecimento pelo acúmulo do papel de narrador.
Nesse sentido, a referencialidade enunciativa do jornalismo, que tradicionalmente
se direcionava para a exterioridade sob a retórica de produção de um relato ob-
jetivo, se altera sob o impacto de uma nova relação tecnossimbólica com o acon-
tecimento, que transforma a própria experiência do jornalista sobre o
acontecimento como realidade a ser enunciada. Dessa forma, particularmente
por trabalharmos com televisão e investirmos na leitura de Williams (2002), en-
tendemos que o processo se dá como um jogo de cena, numa dramatização dos
eventos noticiados, que envolve a atorização dos repórteres em produtos jorna-
lísticos, mas também na relação entre entrevistados e entrevistadores, entre apre-
sentadores e convidados, no relato sobre experiências pessoais em primeiro plano
na tela, na rememoração de acontecimentos. O drama, numa sociedade drama-
tizada (que tem o próprio drama como experiência cotidiana por meio das diversas
produções audiovisuais a que assistimos), consistiu no repertório compartilhado
de códigos e condutas com os quais expressamos nossas emoções, formamos nos-
sas identidades e exercitamos a memória sobre nossas vidas. Sendo assim, o es-
paço de dramatização na televisão não está apenas restrito às produções
ficcionais, mas também contribuem na formação de enunciados mais íntimos,
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

emocionais e encenados, mesmo quando essa encenação tem como texto a pró-
pria vida.
A sensação de intimidade se deu, primeiramente, no ethos cúmplice da jor-
nalista. Como observa Fechine (2009), no jornalismo televisivo, a atuação de re-
pórteres e apresentadores tem sido cada vez mais orientada dentro dos códigos
84 do ethos da cumplicidade do que do distanciamento, que caracterizou a atividade
profissional fortemente, pelo menos até final dos anos 1990. Nesse ponto, como
já comentamos, há muitos momentos de trocas de olhares, sorrisos, proximidades.
Outro exemplo dessa ambientação íntima está noutro momento. Quando a jor-
nalista pergunta ao ator, quem mais esteve ao seu lado. Ele responde que, além
dos seus pais, sua então namorada, Karina. O plano abre bastante e vemos a na-
morada junto a um amigo do casal. Patrícia Poeta que diz: “A Karina está aqui co-
nosco”. Esse movimento de câmera faz com que mais uma vez percebamos
mudanças na enunciação midiatizada: a realidade da construção do enunciado se
assume como referente no lugar da construção da realidade. Obviamente, toda
realidade enunciativa é construída por meio de um conjunto de signos. No en-
tanto, quando o referente para a construção da credibilidade deixa de ser uso de
fontes e a linguagem dessubjetivada e passa a primar pela subjetivação, pela ex-
periência íntima encenada para as telas e pela referência os bastidores da cons-
trução do acontecimento, há uma mudança no processo de enunciação
jornalística: não busca mais exercer a função de mediador entre campos e agentes
da sociedade, senão toma a própria ambiência constituída pela enunciação como
referente fundamental da própria atividade enunciativa.
Imerso numa sociedade midiatizada, Fábio Assunção afirmou que se sentiu
aliviado com a exposição pública de sua drogadição. Segundo ele, foi o momento
em que “não precisou mais esconder”, pôde finalmente assumir seus problemas
e buscar tratamento. Sobre a relevação de seu problema nos jornais, ele concluiu
para a apresentadora: “Eu me senti aliviado”. O que é interessante pontuar nessa
afirmação é o quanto ela demonstra o rearranjo da subjetividade a partir dos re-
gimes midiáticos de visibilidade. Embora o processo de tratamento do ator não
tenha sido exposto, ele mesmo reconheceu a necessidade de se tratar por conta
da exposição. A exposição de sua condição impulsionou-o ao tratamento, para
poder assim não apenas controlar o vício, mas, sobretudo, para reposicionar a sua
imagem diante do público: como a de um sobrevivente.

Considerações finais
A existência de uma entrevista como essa – na qual uma celebridade revela
ao público sua dependência química e conta que iniciou o tratamento por ter tido
a doença exposta – evidencia as transformações contemporâneas da sociedade
vetorizadas por processos, dispositivos e práticas midiáticas que reorganizam a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

produção de subjetividades e identidades, as formas de sociabilidade e as relações


com a verdade e o real. Afinal, o processo de midiatização implica “um grau ele-
vado de indiferenciação entre o homem e sua imagem”, fazendo com que os indi-
víduos sejam solicitados a “viver, muito pouco auto-reflexivamente, no interior de
tecnomediações, cujo horizonte comunicacional é interatividade absoluta”
(SODRÉ, 2006, p. 22). Desse modo, a própria entrevista demonstra a construção 85
da confiança no relato pelas promessas de intimidade e sinceridade que ele pro-
porciona. Em nossa sociedade, não é mais possível pensar numa cisão rígida entre
o espetáculo e o segredo. Os contemporâneos regimes midiáticos de visibilidade
tornam a imagem - e a produção de si mesmo como imagem - atividade cotidiana
que nos faz crer no espetáculo. Nessa ambiência midiatizada, construímos, des-
construímos e reconstruímos nossas vidas, identidades, subjetividades, bem como
desenvolvemos relações e interações sociais (HERSCHMANN e PEREIRA, 2003).
Há, portanto, uma transformação profunda naquilo que definia a subjetividade
moderna: a oposiçao ̃ entre, por um lado, aparência, superfície, exterioridade, más-
cara e, por outro, essência, profundidade, interioridade, verdade; os dispositivos
de visibilidade produziam uma subjetividade interiorizada que, a partir do olhar
do outro, do “olho público” (FOUCAULT, 1993), instaurava o autocontrole e a au-
tovigilância. Contemporaneamente, por sua vez, está se constituindo em uma sub-
jetividade exteriorizada, na qual “as esferas de cuidado e controle de si se fazem
na exposição pública, no alcance do olhar, escrutínio ou conhecimento do outro”
(BRUNO e PEDRO, 2004, p. 13).
Há, na sociedade contemporânea, um processo de eticalização midiatizada
da existência. Assim, além de responsáveis pelas próprias vidas, pelas escolhas
que fazem em relação a cuidados com o corpo e a saúde, e também pelos desejos,
condutas e ações, os indivíduos são cada vez mais instados à autovigilância e ao
autoaprimoramento, a tornarem visíveis seus êxitos e fracassos no processo de
gestão e direcionamento de seus corpos, escolhas e desejos. Cada vez mais, os
estilos de vida, os acontecimentos, as condutas e as representações individuais
são vistos como da ordem de regulação e controle do próprio eu. São colocadas
questões éticas – quem sou eu?, o que eu deveria ser?, como eu deveria agir? –
como centrais na constituição da subjetividade contemporânea. Nessa configura-
ção desse ideal de sujeito competente no exercício do autogoverno, são esperadas
ação não apenas baseadas na autoconsciência e na introspecção, mas, sobretudo,
por meio da ativação de medos, fantasias e aspirações num contexto social forte-
mente marcado pela cultura da mídia: suas concepções e imagens de sucesso e
fracasso, de felicidade e tristeza, de saúde e doença. Nesse sentido, tais concep-
ções e imagens midiáticas não produzem meramente relações de dominação ou
manipulação do sujeito; ao contrário, elas constituem uma “grade de visibilidade
da existência” por meio da qual os indivíduos podem identificar e representar seus
dilemas e sofrimentos, bem como interpretar e gerir suas condutas (ROSE, 1999,
p. 270). Fábio Assunção percebeu que a exposição da sua adicção como parte de
CONFIANÇA E SINCERIDADE NUMA ENUNCIAÇÃO MIDIATIZADA: O ETHOS TESTEMUNHAL DE FÁBIO ASSUNÇÃO E O
ABUSO DE DROGAS

sua conscientização para busca tratamento. Sua imagem havia sido abalada, e ele
precisava de algum modo repará-la. Não precisa mais preservar uma imagem de
perfeição, depois da revelação, e podia se tratar.
Sendo assim, intrínseca à transformação do tecido moral da revelação dos
sofrimentos íntimos por meio de testemunhos, está uma mudança no valor colo-
86 cado na ancoragem da produção de subjetividades contemporâneas: a sinceri-
dade, a pessoalidade, a intimidade e a expressão aberta de sentimentos. O
processo testemunhal de celebridades foi concebido para ser uma demonstração
de competência e sucesso, ou, em caso de fracasso, de sobrevivência exemplar,
de reconstrução de uma carreira ou de um retorno. Mas as aparências que estão
em questão não são as de redenção do “eu privado” da celebridade. São as de re-
produção ou de remodelação de uma imagem de prestígio, ou uma persona ge-
neralizadamente reconhecida e desejada com a qual Fábio Assunção tem que lidar
nos processos de autoidentificação e de performance social.
Neste texto, procuramos demonstrar como a entrevista de Fábio Assunção
exemplifica o processo de midiatização do ethos testemunhal, reordenando a con-
fiança no enunciado, não só no caráter do enunciador, mas na constituição da
cena enunciativa e de estratégias cênicas de construção da intimidade com o pú-
blico, da cumplicidade entre a entrevistadora e entrevistado, da veracidade do re-
lato e da sinceridade do enunciador por meio da imagem. Além disso, observamos
o quanto o ethos testemunhal se vincula ao terapêutico, na medida em que o so-
frimento pessoal sempre possa ser reconfigurado dentro de uma trama de reden-
ção progressiva, cuja responsabilidade é do próprio indivíduo, como enunciador
e como sujeito.

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víDeo consultaDo
Entrevista de Fábio Assunção à Patrícia Poeta, exibida no programa Fantástico da TV Globo
no dia 13/08/2009. Disponível em: https://youtu.be/HenJsd8Pr7E . Acessado em 12 de
julho de 2016.
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO
POLÍTICA DO DISCURSO

Ivo José Dittrich


UNIOESTE – Foz do Iguaçu
dtrch@unioeste.br 89

Resumo
A retórica do discurso argumentativo configura-se na dinâmica entre três dimensões inte-
gradas: racionalizadora, estética e política. Na primeira, a argumentação se desenvolve
como fundamentação de uma tese; na segunda, como produção estética e, na última, como
relação intersubjetiva entre quem propõe uma tese e aquele(s) a quem é dirigida. Dada a
sua relevância e complexidade, esta dimensão – a política – será abordada neste capítulo.
Orador e Auditório serão caracterizados, respectivamente, como instâncias argumentativas
Proponente e Propositária: representam lugares sociais e posições históricas onde se cons-
tituem crenças, valores ou conhecimentos que fundamentam uma tese, a partir do que é
disputada a adesão ou a rejeição. Assim, o discurso argumentativo é, por princípio, tenso:
implica posicionamento divergente e, portanto, desencadeia relações de poder, o que incide
no acionamento de diferentes estratégias retóricas pelas instâncias envolvidas. Uma retó-
rica discursiva assim estabelecida pode contribuir para a análise da interface política da ar-
gumentação.

PalavRas-chave
Discurso. Argumentação. Estratégia retórica. Proponente. Propositário.

Introdução
Dizer que o discurso, especialmente o argumentativo, compreende uma di-
mensão política implica aprofundar a compreensão de um aspecto relevante: a
dinâmica da argumentação pressupõe um relacionamento tenso entre os envol-
vidos neste modo discursivo, mesmo na circunstância de um interlocutor (leitor)
fisicamente ausente. Mais teórico do que propriamente analítico, este capítulo
pretende mostrar ou, pelo menos discutir, que o modo argumentativo de organi-
zação do discurso (CHARAUDEAU, 2008b) compreende uma dimensão política:
implica relações de poder entre interlocutores. Ao mesmo tempo, dado às cir-
cunstâncias da argumentação, assume natureza estratégica: é planejado e articu-
lado para alcançar o principal objetivo do Orador, ou seja, a aceitação de sua tese
por parte daquele(s) de quem busca a adesão – o Auditório. Considerando que a
situação argumentativa é extremamente versátil e dinâmica, e, por isso, complexa,
passa a ser relevante compreender a relação entre os interlocutores, alçando-a
ao nível de instâncias argumentativas em interação.
Observe-se que certa assimetria é acentuada no discurso argumentativo: de-
senvolve-se em diversas rotinas que exigem atenção quanto à natureza da intera-
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

tividade e dos interesses em jogo, dada a autoridade de que pretende usufruir


uma das partes – aquela que se responsabiliza pela proposição de uma tese. Por
isso, considerando que diferentes gêneros e, portanto, diferentes cenas argumen-
tativas exigem procedimentos discursivos flexíveis e adequados, o capítulo obje-
tiva apontar, também, diferentes estratégias retóricas que, pelo menos do ponto
90 de vista do Orador, são acionadas para que o processo argumentativo seja bem
encaminhado no sentido de alcançar a adesão pretendida. Assim, além de apontar
quais seriam (algumas) dessas estratégias, discute como se configuram e mediante
quais mecanismos discursivos se efetivam perante possíveis barreiras impostas
pelo Auditório.

1. Orador e Auditório: instâncias Proponente e Propositária,


respectivamente
O conjunto das ciências da linguagem enquadradas como enunciativas –
aquelas que, em linhas gerais, consideram o discurso como prática social da lin-
guagem, em que os agentes e a cena do acontecimento desempenham papel de-
terminante – considera relevante a interação entre os sujeitos em qualquer prática
discursiva. Assim, também na perspectiva retórica, tal interação implica considerar
Orador e Auditório como materialização de instâncias argumentativas: ambos são
engendrados em ambientes sociais, históricos e culturais que dão origem às suas
crenças, valores e atitudes que se tornam objeto de proposições (ou de objeções)
e, principalmente, dos respectivos fundamentos.
Assim, considera-se o discurso argumentativo como prática social gerada, de-
senvolvida e sustentada em determinado ambiente histórico e sociocultural, cons-
tituída na articulação entre dois ou mais posicionamentos ou pontos de vista –
instâncias –, o que está implicado na compreensão da retórica como negociação
da diferença entre os homens a respeito de uma questão (MEYER, 2007). Pode-se
dizer, assim, que o Orador, considerando seu reconhecimento social e, portanto, o
poder a ele vinculado, inscreve seu discurso num possível intervalo que afasta ou
aproxima seu ponto de vista (tese) daquele do Auditório, pautando-se por um pos-
sível universo sociocultural a partir do qual, pelo menos virtualmente, se posiciona.
Parece, assim, que uma teoria retórica do discurso argumentativo deve pri-
vilegiar esse aspecto da relação entre quem propõe e defende uma tese e
aquele(s) a quem é dirigida, para dar conta da própria natureza da argumentação
que, por princípio, implica proposição e sustentação de uma tese, cuja gênese não
se desenvolve em algum “vazio” sociocultural. Isso implica compreender que a
origem do discurso não cabe a um Orador todo poderoso, que estrutura seu dis-
curso e organiza seu projeto de busca de adesão, como se nada interferisse em
seu planejamento e execução: submete-se às restrições do gênero, às coerções
que lhe impõe a prática da linguagem e às relações que orientam sua interação
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

com o interlocutor. Além disso, considerando sua inserção social, cultural, histó-
rica, seu modo de pensar e dizer, aparece influenciado por essas diferentes deter-
minações: o lugar de que fala e como fala produz sentidos e a tese que propõe
revela uma diversidade de representações com base no seu universo de crenças
e valores. Desse modo, não diz apenas o que quer; fica submetido a, também, a
dizer o que diferentes coerções lhe permitem. Não se apaga, mas sua iniciativa e 91
sua intencionalidade aparecem balizadas, de um lado pela linguagem, de outro
pela doxa. Assim, é importante considerar o Orador como instância Proponente,
porque se inscreve no discurso como aquele que propõe uma tese e, na mesma
ordem de raciocínio, o Auditório, como instância Propositária1, porque é instau-
rado como aquele(s) a quem é endereçada:

(Instâncias) não são as pessoas de carne e osso, mas entidades hu-


manas, cada qual sendo o lugar de uma intencionalidade, e catego-
rizadas em função de papéis que lhe são destinados. Trata-se, desse
modo, de categorias abstratas, desencarnadas e destemporalizadas,
definidas, como se diz, pela posição que elas ocupam no dispositivo
e às quais os indivíduos são remetidos (CHARAUDEAU, 2008a, p. 55).

Observe-se que a própria origem ou etimologia do verbo instar – colocar na


condição de ser instado a – aponta para o Proponente e o Propositário como ins-
tanciados na situação argumentativa a, de um lado, justificar o que propõe e, de
outro, a aceitar ou a se contrapor ao que está sendo proposto. Também se pode
relacionar a noção de instância com a de representação, considerando os este-
reótipos sociais constituídos pelo agir e pelo ser do homem em sociedade: “Para
o que nos interessa, abordaremos a questão partindo da noção de representação
social como fenômeno cognitivo-discursivo geral, que engendra sistemas de saber,
nos quais se distinguem os saberes de conhecimento e os de crença” (CHARAU-
DEAU, 2008a, p. 194). Além disso, ainda que com certo distanciamento semântico,
a noção de instância também parece incorporar o seu sentido original proveniente
da lógica, que também aponta para prática argumentativa: “Tendo sido levantada
uma objeção e tendo sido dada uma réplica a esta objeção, chama-se instância
ao novo argumento que segue esta réplica (tréplica)” (LALANDE, 1999, p. 572) 2.
Considerando que a noção de instância esteja relativamente estabelecida,
cabe, ainda, refletir sobre possíveis implicações do nome que se lhes atribui. Plan-
tin (2005), por exemplo, quando fala dos “papéis actanciais” na situação de argu-
1
Ainda que não apareça dicionarizada, parece uma terminologia adequada: em certa medida está
sendo tangenciada a teoria polifônica de Ducrot (1987): Orador e Auditório estariam para Locutor e
Alocutário, assim como Proponente e Propositário estão para Enunciador e Enunciatário. Acres-
cente-se, portanto, que não se trata apenas de uma nova nomenclatura: considerar Orador e Auditório
como instâncias Proponente e Propositária, respectivamente, implica considerá-los como posições
discursivas instauradas no processo argumentativo.
2
Trata-se de um verbete do Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia.
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

mentação, conceitua-os como Proponente e Oponente. O primeiro deles não pa-


rece levantar maiores objeções. Todavia, o papel de Oponente parece mais carac-
terístico de uma das situações argumentativas – o discurso dialogal - aquela em
que existe uma clara e prévia divergência entre os interlocutores. Em estudo arti-
culado em base teórica discursivo-argumentativa, Mosca (2007, p. 299) diz que
92 se pode “pensar a argumentação como uma forma de interação caracterizada pelo
encontro de pontos de vista diferentes”. Não parece, todavia, que em todas as cir-
cunstâncias discursivas deve ser necessariamente assim: também se argumenta
para fundamentar um ponto de vista até então desconhecido do outro. É o caso,
por exemplo, do professor que aponta e justifica as causas que levaram ao desen-
cadeamento de certo fato histórico. Implica assumir que, mesmo o chamado dis-
curso expositivo é, também, argumentado, ainda que o Propositário não se
encontre, em princípio, em clara posição de divergência.
Considerando, ainda, os diversos sentidos do verbo propor – oferecer a
exame, submeter à apreciação, apresentar; fazer conhecer, expor, apresentar –,
não parece que a proposição, apresentação e a sustentação de uma tese impli-
quem, necessariamente, a manifestação (mesmo que virtual) de uma oposição.
Ainda mais porque a noção de proposição como “expressão verbal de um juízo;
asserção, asseveração; assunto que vai ser discutido ou asserção que vai ser de-
fendida”3 não acentua o sentido de oposição, ainda que a possa implicar. Rede-
fine-se, portanto, o escopo da argumentação, para incorporar, também, aquelas
funções da retórica que Reboul (2000) caracteriza como heurística e pedagógica.
Assim, pelo menos em relação ao modo de discurso aqui em apreço, carac-
terizar como Propositária a instância à qual se dirige o Proponente permite com-
preendê-la num sentido mais abrangente, de modo a dar ênfase ao conjunto
“daquele(s) a quem se propõe uma tese”, o que não exclui a possibilidade de opo-
sição. Presume a própria caracterização de Auditório tal como formulada por Pe-
relman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 22): “o conjunto daqueles que o orador quer
influenciar com sua argumentação”. Ao mesmo tempo, ajuda a minimizar o efeito
de passividade associado a “ouvinte” que pode parecer acentuado pelo sentido
nem sempre técnico em que é utilizado o termo Auditório. Em suma, compreende-
se que o Orador é instanciado como Proponente na medida em que assume a pro-
posição e a respectiva fundamentação de uma tese com o objetivo de influenciar
um “outro”; o Auditório, por sua vez, é instanciado como Propositário na medida
em que assume seu papel de avaliar esse ponto de vista, concordando ou discor-
dando, parcial ou totalmente, com ele. Doravante, portanto, utilizam-se esses ter-
mos no sentido de “entidades” complexas que fazem acontecer o discurso
argumentativo.

3
Conforme Dicionário Aurélio (2010, p. 1721).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

2. Discurso argumentativo: dimensão política


Pelo que foi dito até aqui, não parece difícil entender que a relação entre as
instâncias desempenha papel determinante no discurso argumentativo. Isso já era
reconhecido nas teorias da antiguidade clássica. Restringia-se, porém, ao que era
característico do discurso naquelas condições históricas e sociais e, por isso, talvez,
93
não tenha merecido tanto destaque. Sua relevância é acentuada quando passa a
ser objeto de autores mais recentes que se dedicam a estudar os princípios fun-
cionais da linguagem. É o caso, por exemplo, de Bühler (1979), Jackobson (1988) e
Halliday (1973)4: ao abordarem diferentes funções da linguagem, sempre acentuam
a relação entre os interlocutores, apontando para a sua pertinência teórica no uni-
verso discursivo. Mas é possível ir além: embora a implique, a relação entre os en-
volvidos na argumentação é mais ampla e de natureza própria, ainda mais quando
se trata de diferentes gêneros em que se veicula o discurso argumentativo. Por
princípio, ela não parte de uma situação ideal em que ambos buscam o consenso
(HABERMAS, 1989) ou em que colaboram ou cooperam (GRICE, 1982); a relação
prevê, desde logo, a apresentação e, portanto, a respectiva fundamentação de um
ponto de vista (tese). E isso a deixa imediatamente particularizada: interagir numa
circunstância em que a proposição de uma tese é, de algum modo, assimétrica, im-
plica condicionantes ou determinações que interferem significativamente no de-
senvolvimento da argumentação: é a manifestação de poder do e no discurso.
Pode-se pensar, portanto, que a natureza do discurso argumentativo não se
resume à apresentação de argumentos e a sua aceitação, ou não. Como Propo-
nente de uma tese (e, portanto, desencadeador de uma relação argumentativa),
o projeto argumentativo pressupõe certo “gerenciamento” da sua dinâmica, uma
vez que é dirigido a um Propositário, cujos valores, crenças e atitudes interferem
na aceitação ou rejeição parcial ou total da tese. E, para isso, o Proponente deve
estar atento ao papel ativo daquele(s) a quem se dirige: esse gerenciamento pres-
supõe, portanto, colocar-se, também, na posição de alvo. O Orador “é alguém que
deve ser capaz de responder às perguntas que suscitam debate e que são aquilo
sobre o que negociamos” (MEYER, 2007, p. 34). Será preciso salientar, portanto,
que essa relação se estabelece no eixo de um poder, nunca ilimitado, derivando
daí uma relação de forças entre quem pretende fundamentar, defender ou con-
solidar uma tese e quem se apresenta (ou é instanciado) como potencial (ou real)
interessado ou endereçado. Trata-se de uma relação de forças: implica tomadas
de posição a partir do que um ou outro acreditam, defendem ou valorizam.
Essa natureza relacional do poder implica que na prática discursivo-argumen-
tativa se executem movimentos de aproximação, legitimação, identificação e an-
tecipação entre as instâncias, ou seja, o exercício do poder pressupõe avaliar as
coerções impostas ao Proponente pela situação argumentativa, especialmente no
4
Os três autores aparecem nesta sequência, porque as obras originais de Bühler e de Jackobson são
de 1934 e 1956, respectivamente.
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

que diz respeito ao papel virtualmente ativo do Propositário: a intenção e o inte-


resse estratégicos do primeiro residem em interferir sobre as crenças, valores e
comportamentos do segundo. Assim, por envolver essas relações de poder, esse
aspecto do discurso argumentativo será compreendido como dimensão Política:
significa compreendê-la como exercício dessas relações e, portanto, em nível de
94 retórica discursiva, aproxima-se do poder social: relação entre pessoas, capacidade
ou possibilidade de agir, de produzir efeitos, de interferir sobre o comportamento
do outro.
É preciso considerar, portanto, que a instância propositária é mobilizada na
dinâmica argumentativa: manifesta seu poder de reação ou de resistência, ampa-
rando-se, muitas vezes, no ponto de vista comprometido de quem lhe dirige a pa-
lavra. Exige que sejam apresentadas razões para que se disponha a aceitar o que
está sendo proposto (tese). Contando com essa possibilidade, a instância propo-
nente as apresenta ou, pelo menos, as insinua. Saliente-se, ainda, que essas dife-
rentes manifestações, objetivas ou virtuais, também se realizam balizadas por
conhecimentos ou habilidades dominadas por ambas as instâncias. Segundo Bob-
bio (2004), o poder se manifesta como relação triádica: a pessoa que o detém, a
pessoa que a ele se sujeita e a esfera do poder relativa a determinado campo como
a medicina, a política, a academia. É onde a dimensão política se articula com a
dimensão racionalizadora5.
Essas relações de poder, por seu papel determinante na argumentação, im-
plicam que o enfrentamento, a empatia e a própria noção de carisma assumam
importância decisiva na adesão a uma tese ou na sua rejeição. Assim, embora a
implique, a natureza política do discurso argumentativo não se limita àqueles ar-
gumentos que visam a credenciar o orador para angariar a confiança do auditório
– ethos. Também pressupõe o “gerenciamento” da relação entre ambos. Não pa-
rece, assim, que a dinâmica do processo argumentativo possa ser considerada de
mão única: a cenografia genérica (MAINGUENEAU, 2001) daqueles discursos em
que está envolvida a proposição de uma tese não se reduz a compreender sim-
plesmente o papel de uma das instâncias como “sujeito da argumentação” e o da
outra como “sujeita à argumentação”. A relação é mais complexa: mesmo que a
reação do Propositário não seja imediata – por isso se trata de argumentação re-
tórica e não de argumentação dialética –, suas possibilidades de refutação e contra
argumentação condicionam o potencial de influência da instância proponente.
Trata-se de um risco apenas estimado, que não permite antecipar resultados: o
efeito das relações de força é apenas previsível. É nessa ordem de raciocínio que
todo o discurso argumentativo compreende essa dimensão política: porque inte-
rativa e, até mesmo, ética, a arena da palavra se configura no palco em que se
jogam as relações de força entre as instâncias argumentativas. Não é apenas o
5
Entendida, segundo Dittrich (2008), como a dimensão do discurso argumentativo que corresponde
à sustentação de uma tese em seus diversos aspectos: técnicos, motivacionais e representacionais.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

ethos do Proponente que está em atividade, credenciando-o para seus objetivos,


como previa a retórica clássica; também é a “outro-apresentação”6 da instância
endereçada.
Nessa ordem de raciocínio, a dimensão política aproxima-se de questões de
natureza ética: na medida em que diz respeito à relação entre instâncias, envolve
transparência, sinceridade, clareza e, mesmo, respeito mútuo no desenvolvimento 95
da argumentação:

O poder da linguagem é tal, as possibilidades de manipulação são tão


vastas, a atração pelo conhecimento ‘objetivo’ é tão poderosa que a
ética é uma necessidade vital para que a argumentação não somente
possa existir, como também possa encontrar seu caminho autônomo
no interior de todas estas possibilidades (BRETON, 1999, p. 35).

Vale acrescentar que se trata de uma relação política, principalmente se, além
do seu sentido de ciência ou práxis das coisas do governo, for entendida como
forma de poder do homem sobre o homem. No caso do discurso argumentativo,
pode-se falar de competência retórica como potencialidade de dominar o discurso
para exercer influência sobre as verdades, as crenças ou os valores do outro. “A
influência decisiva sobre a ‘mente’ das pessoas dá-se por meio de um controle
antes simbólico que econômico” (VAN DIJK, 2008, p. 46). E o poder do discurso é
da ordem do simbólico, envolvendo estratégias de controle sobre as circunstâncias
e as instâncias envolvidas na argumentação.
Por essas e outras razões, o discurso argumentativo também compreende os
esforços do Proponente para tornar sua tese interessante, apontando possíveis
vantagens que o interlocutor eventualmente possa auferir ao aceitá-la. E isso im-
plica não querer sua imposição a qualquer custo; a interação exige compreender
que, mesmo na sua ausência (física e imediata), as expectativas podem não coin-
cidir. Assim, por alguma razão nem sempre explicitada, o Propositário resguarda-
se o direito, legítimo, de não atribuir importância ao que lhe está sendo
apresentado. É um poder oculto, silencioso, nem sempre fácil de observar, mas
que interfere na adesão em maior ou menor grau ou, mesmo, na rejeição com-
pleta. Pode-se dizer, assim, que ambas as instâncias também pretendem (e preci-
sam) legitimar-se enquanto interagem: sabem da autoridade e do conhecimento
de um e de outro sobre a tese em apreço.
Quando Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) propõem o Auditório como
construção do Orador e se referem à importância de este se adaptar àquele, acen-
tuam esse caráter instável, mas nem por isso caótico, em que se desenrola a rela-
ção entre ambos. O fundamento que subjaz é aquele do poder: o Orador,
principalmente a partir do seu conhecimento de causa, sente-se na legitimidade
de propor a tese, fixando-se no princípio de que uma vez sustentada e compreen-
6
Consulte-se, a respeito, van Dijk (2008).
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

dida, deveria (ou poderia) ser aceita por um possível auditório universal – aquele
composto pelos seres dotados de racionalidade. Segundo os autores, trata-se de
um ideal de Auditório que orienta a argumentação bem sucedida. Todavia, este
poderia fazer valer o seu poder de não aceitar uma tese pelo simples fato de tra-
tar-se de um direito que lhe assiste. Significa acentuar que ele, uma vez colocado
96 na condição de submeter-se à proposição de uma tese passa a usufruir o direito
de aceitá-la, rejeitá-la ou, mesmo, permanecer indiferente. Por isso, também a le-
gitimidade do Propositário é fator importante no processo de argumentação. Acio-
nam-se, portanto, diferentes estratégias retóricas no espaço que separa, aproxima
ou diferencia, objetiva ou virtualmente, ambas as instâncias.

3. Estratégias retóricas
Partir do princípio de que o discurso argumentativo abrange uma dimensão
política implica considerá-lo como “jogo” de possibilidades e movimentos: dife-
rentes estratégias discursivas são desenvolvidas, mediante as quais o Proponente
pretende ordenar e controlar o seu projeto argumentativo, cuidando de aproxi-
mar-se do Propositário e, na medida do possível, buscar a mútua identificação
possível, considerando as circunstâncias em que ambos se pronunciam e o uni-
verso de crença de que partem. Para isso, e para o bom êxito dos seus propósitos,
tentará legitimar-se como Proponente, com base nas credenciais que reúne antes
e durante o discurso. Resta-lhe, todavia, antecipar-se às prováveis objeções ou re-
futações em relação ao que propõe: aciona, por isso, estratégias mediante as quais
procura se não derrubá-las, pelo menos minimizá-las, conferindo maior reconhe-
cimento ao tema sustentado em sua proposta.
Parece pertinente, portanto, estudar essas estratégias, vinculadas à dinâmica
das projeções entre as instâncias: por mais que se aponte para a transparência e
a solidariedade no discurso argumentativo, é preciso considerar que a aceitação
ou não de uma proposta passa pelo acionamento de estratégias discursivas que
favoreçam um relacionamento positivo entre ambas. Van Dijk (2008, p. 57), ao
analisar as relações de poder no discurso acentua que:

Compreender gêneros comunicativos exige uma análise da represen-


tação participativa, das estratégias de interação, da troca de turno, da
seleção de tópicos e códigos, dos registros estilísticos, das operações
retóricas e também uma análise dos papéis, das relações, das regras,
das normas e de outras restrições sociais que governam a interação
dos participantes na qualidade de membros de um grupo social.

É preciso considerar, portanto, que a relação argumentativa não acontece


tão espontânea ou mecanicamente como poderia parecer: com ou sem auxílio de
recursos (tecnológicos), é articulada de forma a favorecer a apresentação ou a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

aceitação de uma proposta (tese). Para isso, o Proponente projeta, retoma ou


constrói imagens7 adequadas aos objetivos do seu discurso: mostrar, executar ou
fingir autoridade e legitimidade, por exemplo. Assim, pronunciar-se com humil-
dade, respeitando o possível pensamento do outro pode constituir-se como es-
tratégia relevante. Dificilmente a interação chegaria a bom termo se aquele não
considerar a tese em apreço como ética e, muito menos, se este mostrar-se arro- 97
gante ou dono absoluto de uma verdade. “Todo ato de linguagem está ligado à
ação mediante relações de força que os sujeitos mantêm entre si [autoridade e
sujeito-alvo (dominado)], relações de força que constroem simultaneamente o
vínculo social” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 17). Pode-se dizer, assim, que a dimensão
política no discurso argumentativo é configurada em torno de estratégias: movi-
mentos planejados em função das circunstâncias argumentativas e dos objetivos
em jogo. Com base nas estimativas assimiladas previamente ou construídas ao
longo da interação, o jogo de poder é calculado e desenvolvido em conformidade
com as possibilidades e as competências de cada um. A definição de estratégia
apresentada por Lalande (1999, p. 1259) parece bastante adequada:

Na linguagem dos jogos, uma estratégia designa um conjunto coe-


rente de decisões que um agente que assume responsabilidades se
propõe a tomar, em face das diversas eventualidades que será levado
a encarar, tanto por causa das circunstâncias exteriores, como em
virtude de hipóteses que incidem sobre o comportamento de outros
agentes interessados em tais decisões.

Vale frisar novamente que não se pode atribuir ao Propositário o papel de


passividade que parece transparecer em certas teorias: desempenha papel ativo
– sujeito de, não apenas sujeito a – na medida em que, mesmo não interferindo
imediata e tacitamente no discurso, exige que também o Proponente se coloque
na condição de “sujeito às” estratégias ou barreiras de indiferença, rejeição, des-
legitimação ou refutação de seu potencial interlocutor. “De fato, é somente no
caso da estratégia que se estabelece uma relação verdadeiramente intersubjetiva”
(PARRET, 1997, p. 38). Admitindo, portanto, que a dimensão política do discurso
argumentativo se configura em torno de articulações estratégicas mais ou menos
explícitas, é possível estruturar a análise dessa dimensão em categorias que pri-
vilegiem esses aspectos, enfatizando estratégias retóricas que são efetiva ou vir-
tualmente acionadas. As análises deverão dizer em que medida se mostram
pertinentes ou suficientes para fornecer um panorama mínimo sobre a dimensão
política do discurso, até que ponto são operacionais e, até mesmo, em que medida
e em que circunstâncias poderiam restringir o perfil da análise. Por isso, sua am-
pliação, refinamento, ou pertinência, as análises vão apontar. Na sequência, são
apresentadas quatro estratégias retóricas, categorizando-as conforme o papel que
7
É nesse sentido que o estudo das estratégias se coaduna com a própria noção de ethos.
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

desempenham. Sempre vale lembrar que gêneros discursivos como a entrevista


ou o debate, em que a presença dos interlocutores é simultânea, podem exigir
uma análise que se apoie em outras estratégias, para além das aqui apontadas.
Será necessário, portanto, considerar as determinações genéricas e, por isso, a
delimitação empreendida: o discurso argumentativo.
98

3.1. Estratégias de aproximação


Dado que o discurso argumentativo implica uma dinâmica que se desenvolve
num fio interativo bastante crítico e instável, os limites e as ações que ampliam ou
diminuem a distância entre os interlocutores a respeito de uma questão (MEYER,
2007) exigem tratamento cuidadoso. Assim, para alcançar seu objetivo, ao Propo-
nente será importante aproximar-se do Propositário, menos pela demagogia e mais
pela habilidade, fazendo-o compreender o valor de uma tese pelos seus méritos
técnicos, pragmáticos e éticos. Mesmo que não privilegie explicitamente seu posi-
cionamento em termos de valores, crenças e atitudes, tentará estratégias retóricas
que lhe façam merecedor de atenção e superem a possível distância entre ambos:
trata-se de movimentos discursivos mediante os quais o Proponente, considerando
as possibilidades de afastamento ou indiferença, busca aproximar-se do Proposi-
tário, mostrando consideração, respeito ou, mesmo, humildade.
Pode-se dizer que corresponde, aproximadamente, ao exórdio ou, então, à
chamada captatio benevolentiae do sistema retórico clássico (Aristóteles, Cícero).
Com base na noção de instância, deve-se acrescentar, todavia, que no discurso ar-
gumentativo o Proponente se inscreve, com maior ou menor explicitude, na
ordem de um ponto de vista comprometido: fala como político, religioso, profes-
sor, promotor público, e, assim, o primeiro impulso do Propositário é aceitá-lo
com “certa reserva”, considerando que estaria motivado por interesses vinculados
à instância de que fala. Parece, portanto, que a primeira estratégia do Proponente
é adequar o discurso de forma a, se não contornar, pelo menos minimizar, esse
primeiro impacto. Assim, na introdução, podem aparecer expressões que pontuam
a primeira pessoa: a) o assunto de que vou tratar não pretende, de forma alguma,
impor-se como verdade única e definitiva; b) o ponto de vista que vou defender
resulta de longas reflexões; c) o fato de defender minhas convicções com veemên-
cia não significa que seja intransigente; d) dividirei minha fala em tópicos de modo
que fiquem claros os meus posicionamentos.8
Mostrando-se preocupado com o papel ativo daquele(s) a quem se dirige, o
Proponente compreende que se trata de fator importante para o sucesso da argu-
mentação. Reconhecer que o Propositário, uma vez disposto a (ou colocado na con-
dição de) ouvir a proposição de uma tese, passa a usufruir, com legitimidade, do
8
Trata-se de exemplos adaptados. Podem ocorrer, principalmente, em discursos políticos ou diplo-
máticos.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

direito de aceitá-la, integral ou parcialmente e, mais do que isso, de refutá-la ou de


questionar seus fundamentos. Em termos bastante simples, pode-se dizer que lhe
é assegurado permanecer, inclusive, indiferente a uma possível avaliação ou ajuiza-
mento do que lhe está sendo proposto. Compreendendo como retórico todo e qual-
quer uso estratégico da palavra, observa-se quão importante pode se constituir uma
aproximação motivadamente positiva entre as instâncias argumentativas. 99

3.2. Estratégias de identificação


Parece positivo que as instâncias argumentativas procurem identificar-se em
relação ao que pensam, especialmente sobre a tese (proposta) em causa. Visto
que a relação argumentativa é, por natureza, da ordem do provável, as estimativas
do Proponente podem estar mais próximas ou distantes do que o Propositário
prioriza ou pensa. Assim, aquele busca, em seu discurso, apoiar-se em estratégias
que favoreçam uma identificação entre o que pensa, e propõe com os anseios e
valores deste. Não se trata de construir, apenas, determinada identidade; há um
esforço no sentido de fazê-la aproximar-se, se não coincidir, com aquela que, pre-
sumivelmente, está sendo construída entre ambos.
Pode ser dito que se trata de estrategias retóricas mediante as quais o Pro-
ponente busca certa cumplicidade com seu Propositário e, consequentemente,
uma identificação mútua em termos de crenças, valores e objetivos. É o que acon-
tecia, por exemplo, em discursos do Presidente Lula quando relatava passagens
da sua infância ou quando incorporava em seu discurso expressões de ordem co-
loquial: a) a gente estudava no meio de um famacê de candieiro; b) vocês não
sabem a alegria que foi receber o diploma de torneiro mecânico; c) a gente pisava
no barro mesmo. Ao relatar passagens da vida pessoal, é possível inferir que pre-
tendia não apenas ilustrar sua carreira ascendente, mas também deixar transpa-
recer o ethos de quem não se pretende superior ou especialmente privilegiado;
antes, o de um político cuja história se identifica com a de muitos daqueles que
lhe ouvem. Ainda que não formalmente expressas, as expressões transitam pela
instância de um “nós”, buscando cumplicidade entre um eu e um vocês, já que
compartilhariam experiências comuns.
Charaudeau e Maingueneau (2004) apontam três estratégias na interação
entre os sujeitos do discurso. A uma delas caracterizam como estratégia de cap-
tação, cujo objetivo seria fazer com que o parceiro da ação comunicativa entre no
quadro de pensamento do falante, ou seja, para que o interlocutor compartilhe
de seu universo de emoções, valores e intenções. Todavia, neste caso, a questão
ética da argumentação parece apresentar-se em seu limite, uma vez que o orador
está muito próximo a “cooptar” seu interlocutor, reduzindo-lhe o potencial de au-
tonomia para concordar, livremente, com as opiniões que lhe são apresentadas.
Seria preferível, por isso, falar em estratégias de identificação, mediante as quais
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

as instâncias procuram construir um universo de crenças e valores que constituam


a identificação possível entre quem propõe e aquele(s) a quem propõe.

3.3. Estratégias de legitimação


100
Trata-se de estratégias retóricas em que o Proponente legitima seu dizer com
base no que é reconhecido e no que, pelo menos supostamente, conhece ou sabe
fazer. O efeito buscado é o de legitimar-se como alguém com direito a propor o
que propõe, nas circunstâncias em que o faz. Assim, a própria noção de legitimi-
dade passa a assumir papel fundamental, podendo-se compreendê-la como o re-
sultado de um reconhecimento, pelos outros, daquilo que dá poder a alguém de
“fazer ou de dizer em nome de um estatuto (ser reconhecido em função de um
cargo institucional), em nome de um saber (ser reconhecido como sábio), em
nome de um saber fazer (ser reconhecido como especialista)” (CHARAUDEAU,
2008a, p. 67). Ainda que voltado ao discurso político, não parece difícil estender
o papel dessa legitimidade a outros gêneros discursivos, ainda que, implicita-
mente, a origem e o reconhecimento do Proponente parecem manifestar-se nas
mais diversas circunstâncias de interação.
Não parece suficiente que o Proponente lance mão de procedimentos dis-
cursivos para legitimar-se como detentor credenciado da tese que propõe; será
necessário considerar, também, a legitimidade da própria tese. Quando os retores,
principalmente os latinos9, enfatizavam as qualidades do orador – o vir bônus di-
cendi peritus – não realçavam apenas que o homem do discurso persuasivo deve-
ria ser bom (praticar o bem), mas também que sua tese fosse boa, direcionada à
prática do bem. Legitimar-se como Proponente pressupõe, portanto, mostrar, tam-
bém, que a tese é útil, que ela é correta e que não fere princípios éticos valorizados
pela sociedade (ou pela cultura) para a qual está sendo proposta. A estratégia pela
qual se é legitimado é “o reconhecimento de um sujeito por outros sujeitos, rea-
lizado em nome de um valor que é aceito por todos. Ele é o que dá direito a exer-
cer um poder específico com a sanção ou a gratificação que o acompanha”
(CHARAUDEAU, 2008a, p. 65).
Uma vez que o Proponente usufrui, por um lado, de uma autoridade vincu-
lada a uma instituição de origem e, de outro, de uma autoridade pessoal fundada
num saber especializado que domina (por experiência, testemunho ou atividade
acadêmica), poder-se-ia falar em estratégias de legitimação e de credenciamento,
respectivamente. Não se confundiriam, portanto, legitimidade e credibilidade: a
primeira determina um “direito do sujeito de dizer ou de fazer”, a segunda, uma
“capacidade do sujeito de dizer ou de fazer” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 67). No pri-
meiro caso, juridicamente pelo menos, podemos falar em competência – de na-
tureza institucional – e, no segundo, de capacidade – um saber fazer, falar ou
9
Cícero e Quintiliano, entre outros.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

argumentar. Todavia, aqui se considera que a última inscreve-se na primeira e, por


isso, fala-se apenas em legitimação.
Considere-se, ainda, que nem sempre o Proponente goza de legitimidade
apenas por pertencer à determinada instituição formal. Mesmo nesse caso, ne-
cessariamente o jogo argumentativo implica que construa uma representação de
legitimidade, não no sentido exclusivamente político do termo10, mas como por- 101
tador de suficiente reconhecimento para dirigir-se ao Propositário, propondo e
defendendo determinada posição. “Em Análise do Discurso, a noção de legitima-
ção pode ser utilizada para significar que o sujeito falante entra em um processo
de discurso, que deve conduzir a que reconheça que tem direito à palavra e legi-
timidade para dizer o que diz” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 295). O
analista (ou o leitor) deverá, assim, buscar no discurso essas estratégias que pos-
sibilitaram ao Proponente legitimar-se como alguém com direito a dizer, consti-
tuindo uma imagem positiva para que suas palavras mereçam a devida confiança.
Não se trata, agora, de legitimar-se pelo eu; trata-se, antes, de ser legitimado por
um “ele”, por um componente em que prevalece o impessoal, a terceira pessoa,
pronunciando-se como se pretendesse apagar marcas de possíveis vínculos de na-
tureza pessoal: Como representante da OAB; a sociedade reconhece aqueles que
defendem a presente tese; nas atuais circunstâncias destaca-se a relevância do
que aqui á apresentado, poderiam ser possíveis exemplos.

3.4. Estratégias de antecipação


Não parece difícil admitir que a argumentação sempre pressupõe um con-
tra-discurso e, assim, aquele Proponente que se preocupa com o sucesso do seu
empreendimento argumentativo antecipa possíveis contra-argumentos que,
mesmo não explicitamente proferidos pela instância propositária, poderiam (vir-
tualmente) ser apontados. Trata-se de uma estratégia inscrita na dimensão política
porque pode desencadear um clima de debate, de confronto, sem, no entanto,
permitir o enfrentamento puro e simples que poderia descambar para o universo
da agressão, interrompendo ou, pelo menos, comprometendo a relação argumen-
tativa. Parece estratégico, portanto, ao Proponente antecipar-se a possíveis refu-
tações, o que confere, desde já, maior consistência à tese em apreço. Considerando
as possibilidades de discordância em relação ao que propõe, trata-se das estraté-
gias com que visa a contornar dificuldades provenientes de possíveis objeções.
Como se trata da relação entre os instanciados, pode-se dizer que, mais do
que antecipar a refutação do conteúdo da tese, implica no “como” o Proponente
vai encaminhar esse processo, ou seja, as expressões mediante as quais vai intro-
10
A legitimidade como sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela sig-
nificativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade
de recorrer ao uso da força. [...] Todo poder busca alcançar o consenso, de maneira que seja reco-
nhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão (BOBBIO, 2004, p. 675).
RELAÇÕES DE PODER NA ARGUMENTAÇÃO: A DIMENSÃO POLÍTICA DO DISCURSO

duzir o passo até certo ponto delicado de contrapor-se ao que, pelo menos por
hipótese, poderia ser objetado. Parece, assim, o momento em que mais determi-
nadamente se dirige a um “você(s)” com expressões do tipo: a) Vocês poderiam
estar pensando na possibilidade de; b) ainda que se trate de um modo de pensar
interessante, não poderia concordar; c) certamente seria possível imaginar um en-
102 caminhamento diferente. No lugar de um enfrentamento imediato, o discurso ce-
deria lugar à diplomacia mediante a inserção de ressalvas ou de possíveis
concessões, favorecendo a manutenção e a continuidade da interlocução, mesmo
que no espaço da discordância.

Considerações finais
Ainda que não se trate de estudo concludente, considerando a complexidade
das diferentes situações interativas e, particularmente, naquelas de configuração
argumentativa, pode-se dizer que os conceitos e categorias apresentados se mos-
tram, pelo menos, como indicativos para a análise de discursos argumentativos:
as instâncias representam não apenas papéis actanciais, mas crenças e valores
que permeiam o lugar de que falam e, portanto, podem revelar pressupostos que
ordenam o modo de raciocinar e os pontos de vista que privilegiam. Falar da re-
lação entre instância argumentativa Proponente e instância argumentativa Pro-
positária como instauração de uma cena em que se configura o poder simbólico
da palavra estrategicamente utilizada requer compreender que, embora as repre-
sentações sejam construídas na interatividade social e cultural, cabe aos instan-
ciados o planejamento e a execução (mais, ou menos, consciente) das estratégias
que lhes pareçam favorecer o alcance do que pretendem.
Denominar essas estratégias como de aproximação, identificação, legitima-
ção e antecipação é tão somente uma alternativa, entre outras possíveis, para ca-
tegorizar, pelo menos como ponto de partida, um conjunto de “manobras
discursivas” que dizem respeito ao “como” da relação entre os instanciados no
discurso argumentativo. Assim, a dimensão política pretende enfatizar a impor-
tância do aspecto relacional – intersubjetivo – entre sujeitos que interagem numa
situação argumentativa, considerando que um discurso bem organizado e uma
tese bem fundamentada podem não ser suficientes para conquistar a adesão.
Ainda que se trate de uma abordagem em fase de consolidação, parece pertinente
continuar investindo na compreensão desse aspecto através do desenvolvimento
de análises que tomem como base os princípios e categorias apresentadas, con-
tribuindo, assim, para apontar caminhos para seu aprimoramento ou para, quem
sabe, indicar suas limitações.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

RefeRências
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CABELO LISO E SOLTO AO VENTO:
O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARêNCIA.
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

Kelly Cristina de Oliveira


105
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
kellycristina@usp.br

Moisés Olímpio-Ferreira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFMG - Bambuí)
moisesolim@usp.br

Resumo
Este estudo pretende analisar a atual circulação do discurso racista em práticas sociais, sob a
forma de metáfora da boa aparência. O corpus é composto por notícias de jornais (BBC-Brasil,
Globo.com e Extra.Globo) relativas a um caso que ganhou notoriedade após divulgação, em
redes sociais, na forma de protesto, de um comunicado de escola de São Paulo, dirigido aos
pais de seus alunos. O fato noticiado gerou diversos comentários críticos e, em consequência
deles, um pedido oficial de desculpas da escola. O tema torna-se relevante porque comprova
que o racismo continua presente, naturalizado, fazendo parte das práticas comuns do coti-
diano brasileiro, ainda que, por anos, ele tenha se escondido atrás da boa aparência. Preten-
demos analisar, portanto, uma prática social que moveu várias outras, numa rede, produzindo,
assim, reações e ações, tanto nos produtores quanto nos leitores das mídias jornalísticas e
sociais. Para nossa análise, utilizaremos o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso,
desenvolvido por Fairclough (2001, 2003), que, baseado em estudos do Realismo Crítico, es-
tuda a linguagem numa relação dialética com a vida social. Lançaremos mão também do con-
ceito de racismo em van Dijk (2010), que o considera um sistema social de dominação bem
complexo, envolvendo fundamentações éticas e questões de desigualdade, além de ser com-
posto por um subsistema social e cognitivo. Além desses autores, faremos uso do ferramental
de Argumentação da Nova Retórica, formulado por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca
(2000).

PalavRas-chave
Racismo. Escola. Redes Sociais. Análise Crítica do Discurso.

Introdução
Está evidente a importância dos sites de redes sociais na sociedade contem-
porânea. Entre eles, está o Facebook, que já registrou mais de um bilhão de aces-
sos em um único dia, segundo o jornal BBC (PELA 1ª. VEZ..., 25.08.2015).
Constituído por pessoas das mais anônimas às celebridades, por grupos com na-
turezas e interesses diversos, por instituições e empresas de setores e atividades
variados, ele permite, pela conexão virtual, a interação de seus usuários numa
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

nova forma de organização social. Em rede, todos se constroem, tornando pública


a representação de seu eu1 (GOFFMAN, 1985).
O Facebook se tornou ferramenta de marketing para várias empresas, orga-
nizações, profissionais liberais, políticos, artistas e marcas, por meio das Fanpages.
Ele oferece, ainda, opções para calendários com datas de aniversários, agenda de
106 eventos, convites coletivos, opções de entretenimento, como jogos online, quizzes,
testes diversos etc.
No caso específico dos indivíduos, essa imagem de si é discursivamente2 elabo-
rada por meio de postagens íntimas, que revelam estados afetivos; de reações e to-
madas de posição diante de fatos e acontecimentos, criticando-os ou curtindo-os3;
de fotos (individuais ou em álbum), vídeos, filmes, músicas, jogos, esportes, au-
tores, livros e pensamentos preferidos; de lugares frequentados; de viagens rea-
lizadas, de participação ou divulgação de eventos, de grupos com quem mantêm
interesse comum etc., constantemente em fluxo de atualização no feed. Com essa
exposição, eles buscam tanto a aceitação de sua pessoa projetada (ainda que ela
possa não refletir o ethos efetivo, ou seja, se sabe se há defasagem entre o real e
o projetivo – MEYER, 2007), quanto a revalidação ou intensificação dos laços sim-
páticos em relação às virtudes, aos modos de ver e de sentir o mundo, às crenças
e valores e afetos, compartilhados com amigos, parentes, conhecidos, ou mesmo
com os simples seguidores interessados nessa fabricação virtual da pessoa. Trata-
se, de fato, da cara relação entre orador e auditório de que fala Aristóteles, na Re-
tórica, e, modernamente, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, na Nova
Retórica.
É ainda por meio do Facebook que se mobilizam várias intervenções sociais
coletivas, tais como rolezinhos4, manifestações políticas5, campanhas de arreca-
1
Goffman (1985, p. 29) define representação do eu “como toda atividade de um indivíduo que se
passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de ob-
servadores e que tem sobre estes alguma influência”. No caso das redes sociais, a presença se faz
virtualmente.
2
Para Fairclough (2003, p. 26), o discurso reproduz e transforma a realidade social, porque é parte da
ação. Ele também é um modo de representação social, porque é parte das práticas sociais. É modo
particular de ser, porque aparece junto a comportamento corporal, sendo denominado particular-
mente de estilo. Por fim, pode ainda legitimar as ideologias e as relações de poder.
3
Somente a partir de 2016, a pedido dos usuários, é que o Facebook disponibilizou cinco novos emoji
(pictogramas ou ideogramas que transmitem a ideia de uma palavra ou de uma frase completa),
que permitem outras reações, a fim de evitar que notícias tristes ou ruins recebam “curtir”, que está
associado a “gostar”. Em inglês, os símbolos são chamados de Love, Haha, Wow, Sad e Angry. Em
Português, são traduzidas por Amei, Haha, Uau, Triste e Grrr.
4
Rolezinho foi o nome dado à convocação de jovens de classes populares, por meio de redes sociais,
para se encontrar em várias locais públicos ou privados, no fim de 2013. Iniciou-se em São Paulo,
mobilizando cerca de 3 mil pessoas, no Shopping Itaquera, na zona leste. A ação ganhou repercussão
na mass media e gerou debates sobre ocupação de lugares públicos e privados, necessidade de
áreas de lazer e cultura para jovens, ordem social, preconceito social, entre outros.
5
Um exemplo de manifestação pública, a partir de convocação por rede social, foi o “Protesto contra
a corrupção”. Após ampla divulgação pela mass media sobre o mau uso do dinheiro público em
obras de evento privado, a Copa do Mundo, sediada no Brasil, em 2014, da obrigatoriedade de ficha
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

dação de fundos e de tratamento médico6, passeatas7, entre outras, que conectam


e envolvem pessoas de diversas partes do país ou fora dele, inicialmente criando
uma realidade virtual, mas, posteriormente, uma realidade presencial, física.
Além disso, essa mesma rede social se tornou um suporte de notícias da mass
media (rádio, televisão, cinema, revistas, jornais de grande circulação), que circu-
lam por meio de centenas (e até milhares) de compartilhamentos, entre seus usuá- 107
rios, como forma de identificação ou de protesto. Em suma, como ela mesma
anuncia: no Facebook você pode se conectar e compartilhar o que quiser com
quem é importante em sua vida8.
Tudo o que pode ser feito pelas redes sociais faz parte de fenômenos comu-
nicacionais – mediados pelo computador ou por celulares com acesso à internet
– que, segundo Recuero (2009, p. 16), estão transformando “profundamente as
formas de organização, identidade, conversação e mobilização social”. Essa nova
forma de interação está relacionada ao que Lévy (1999, p. 94) denomina de “ci-
bercultura”. Trata-se de um “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de
práticas, de atitudes, de modos de pensamento e valores que se desenvolvem jun-
tamente com o crescimento do ciberespaço” (ibid.).
O fato que motivou a produção deste artigo foi um comunicado da escola As-
sociação Cedro do Líbano de Proteção à Infância9, endereçado aos pais de seus
alunos, que, após ter sido publicado no Facebook, produziu diversas reações de

limpa a candidatos a cargos efetivos, e outras investigações contra políticos envolvidos com corrupção,
várias pessoas se mobilizaram no Facebook para manifestação popular em junho de 2013 (MANI-
FESTANTES..., 1/07/2013).
6
Campanhas de arrecadação de fundos existem para ajudar pessoas que foram vítimas de tragédias
naturais, com grande impacto na sociedade, tais como tsunamis, furações, terremotos etc. As cam-
panhas eram feitas apenas pela mass media. Entretanto, com a expansão da Internet e com o
advento da rede social Facebook, pessoas anônimas podem pedir auxílio para defender uma causa
ou problema pessoal. No Facebook, é possível adicionar um aplicativo (APP) de arrecadação de
fundos, tais como GoGetFunding.com e FundRazr, que auxiliam os doadores no modo como devem
proceder online. Há também pedidos ligados à área da saúde, como o de doação de medula óssea
feito por Juliana Chermont, de Bauru - SP. Segundo Moraes (2016), do jornal online JCNET, a família
criou uma página no Facebook para encontrar um doador para a jovem e sensibilizou mais de 25 mil
pessoas.
7
Entendemos passeatas como manifestações populares para defender posições políticas, sociais,
ideológicas ou religiosas. No Brasil, destacam-se: “marchas pelo direito das mulheres sobre os seus
corpos (Marcha das Vadias), das trabalhadoras do campo (Marcha das Margaridas), da população
negra (Marcha Zumbi), de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (Paradas do Orgulho
LGBT), de grupos religiosos (Marcha para Jesus), pela liberalização do uso de drogas (Marcha da Ma-
conha)” (JESUS, 2012, p. 163).
8
Em razão do foco deste artigo, não abordaremos questões emblemáticas sobre o mau uso das redes
sociais, tais como doenças patológicas geradas pelo excesso de uso, convocações para brigas entre
torcidas de futebol, roubo de dados pessoais, pedofilia, manifestações de ódio contra minorias ou
religiões, rumores, desinformações e tanto outros assuntos que afetam a sociedade negativamente.
9
A Associação, fundada em 1947, está situada em bairro nobre de São Paulo, na região Sul. Consta,
em seu próprio site, que atende, aproximadamente, a 2.700 crianças e jovens de 0 a 18 anos. Trata-
se de uma Associação que depende de doações, bazares e que mantém parceria com a Prefeitura de
São Paulo e com o Governo do Estado de São Paulo.
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

indignação e passou a ser comentado nas principais mídias jornalísticas impressas,


digitais e televisivas.
O bilhete trata de uma apresentação de Natal que seria realizada no dia 3 de
dezembro de 2015. Postado em 30 de novembro de 2015, por um dos usuários
do Facebook, em forma de manifestação revoltosa, contou, segundo o jornal
108 Globo online, com mais de mil compartilhamentos e mais de seis mil “curtidas”,
em um único dia. Havia também comentários indignados com o comunicado e ou-
tros em defesa da escola. Esse número de compartilhamentos e o teor dos co-
mentários de leitores/seguidores atraíram a atenção da mass media, ganhando
repercussão maior nos dias 1 e 2 de dezembro.
Sobre a expansão da problemática gerada, foi feita uma busca no site Google,
entre aspas, das palavras “Cedro do Líbano” e “cabelo liso”10. Foram encontrados
494 resultados em jornais online, blogs11, revistas digitais e em outras fontes que
trataram ou apenas citaram o assunto. O fato que circulou entre os conhecidos
da pequena escola de São Paulo ganhou notoriedade virtual, inicialmente entre
os que acessaram a rede social Facebook e, mais tarde, alcançou repercussão pelos
diversos jornais do Brasil, tais como o de Belo Horizonte: www.sites.uai.com.br, o
do Sul do Brasil: http://diariogaucho.clicrbs.com.br, o do Rio de Janeiro:
www.bancariosrio.org.br, o do Paraná: www.parana-online.com.br, o de
Pernambuco: www.diariodepernambuco.com.br, o do Nordeste do Brasil:
http://minutosertao.cadaminuto.com.br, sem citar aqui as diversas outras notícias
em jornais impressos e televisivos.
Esse número de casos mostra – quando determinado fato ganha repercussão
na rede social – que se pode sensibilizar a sociedade em escala de tempo e de es-
paço muito mais rapidamente. Isso porque qualquer assunto pode ser produzido a
qualquer hora e a partir de qualquer local, por qualquer um, desde que haja conexão
com a internet, que o conteúdo permaneça online no ciberespaço e que encontre
público-leitor interessado. De fato, os altos índices de “curtidas”, de “compartilha-
mentos”, de “comentários” e de migração para outras formas de difusão midiática
revelam o grau de interesse pela matéria, ou seja, quanta comunhão efetiva dos es-
píritos (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2000) e quanta emoção ela foi capaz de
produzir em torno do universo compartilhado de crenças e valores.
Outro elemento que privilegia a fácil e rápida exposição das matérias é o fato
de, nas redes sociais, as publicações sofrerem menos intervenções ou censuras
10
A busca foi feita em 22 de junho de 2016.
11
Segundo Komesu (2005, p. 121), o blog, conhecido como weblog de caráter midiático digital, foi
criado num período de transformação e modernização da tecnologia, estando associado a uma
rede global de (inter)ação. Inspirado em diários escritos, publica textos on-line e tem por objetivo
tratar desde assuntos do cotidiano, banais, pessoais, até políticos, sociais. Sua dinamicidade permite
que sejam inseridas fotos, links que remetem a sites de notícias ou qualquer outro blog. Pode ser
acessado por anônimos que podem concordar ou discordar com os textos dos autores. Também
pode ser citado e divulgado em outras esferas digitais, tais como sites de relacionamentos sociais,
tendo seu alcance maior do que o pretendido.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

do que aquelas da mass media, permitindo, assim, um debate mais aberto, mais
plural. Delas, qualquer anônimo pode participar, tem a possibilidade de reconhe-
cer-se no que está sendo discutido e de passar a fazer parte de uma identidade
coletiva, de um grupo constituído virtualmente no ciberespaço, composto por pes-
soas em interação de diversas origens, idades, religiões, classes sociais etc., na
maioria das vezes sem qualquer contato físico, compartilhando formas de sentir, 109
ver e de fazer ver o mundo.
Inverte-se, nesse ponto, a relação de poder unilateral advinda da mass media,
financiada por grandes empresários, políticos e corporações poderosas, em rela-
ção ao povo, à massa. Integrado à rede social, é o anônimo não jornalista, não fi-
lósofo, não político, que passa a ter a possibilidade de agir, de ser produtor crítico,
de (re)criar a realidade, atraindo um grande número de seguidores de suas ideias.
Quando isso acontece, a rede social passa a se tornar fonte de pautas para jorna-
listas12, programas televisivos, rádio e internet, alcançando um público maior nú-
mero. Dessa forma, o velho jornalismo deixa de ser a única fonte de produção de
“verdades”13, passando, mesmo, a ser questionado.
Nessa perspectiva, o sujeito não é entendido como assujeitado (interpelado)
ideologicamente de forma definitiva. Se, por um lado, é evidente que ele não é
totalmente livre, visto que é constrangido pelas estruturas sociais14 a que está sub-
metido e, por isso mesmo, conforme nota Fairclough (2001, p. 121), ainda se en-
contra posicionado ideologicamente15, por outro lado, ele é sujeito acional ou
agente, porque pratica ações, individuais ou coletivas, por meio de suas próprias
práticas sociais que se materializam em forma de eventos, ainda que em rede. O
12
Trata-se do que Rublescki (2011) denomina jornalismo líquido. Baseada nos estudos do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman sobre sociedade líquido-moderna, a autora discute uma nova forma de
jornalismo que não é construída apenas por pautas numa mediação apenas verticalizada. O jorna-
lismo líquido, esclarece, “é antes um cenário instável, em aberto, permeado por um contínuo de
mudanças que aparentemente desencadeiam um processo de alargamento das fronteiras do campo,
cujo ponto de equilíbrio é uma questão que permanece em aberto na sociedade e na academia”
(ibid., p. 17) e “isso porque as práticas sociais propiciadas pelas redes digitais ultrapassam o conjunto
de regras referentes aos modelos tradicionais do jornalismo (ibid., p. 37).
13
Rublescki (2011, p. 67), baseada nos estudos de Charaudeau (2009), esclarece que há uma legitimi-
dade social pré-construída, dada a priori e não-negociável que “estabelece que o Jornalismo é
apto, é legítimo para captar informações e transmiti-las de forma verdadeira, tornando público o
que de relevante há na sociedade para o leitor”.
14
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 19), baseados nos estudos do Realismo Crítico, entendem a vida
social como um sistema aberto, não previsível, dividido em dimensões: a) estruturas sociais, isto é,
entidades mais abstratas, mais rígidas, tais como a estrutura econômica, a classe social, a classe
racial, a língua etc., que definem um potencial, um conjunto de possibilidades de práticas sociais; b)
práticas sociais, ou seja, ações sociais que os sujeitos agentes são capazes de realizar nas estruturas
sociais, sempre ligadas a um tempo e espaço determinados. Nessas ações, aplicam-se recursos ma-
teriais e simbólicos, bem como elementos que fazem parte da vida, tais como atividade material,
relações sociais e processos, fenômenos mentais e discurso, todos esses elementos são articulados
entre si; e c) eventos que são materializações das práticas sociais, podendo ser discursivas, como
textos, ou não discursivas, como construções, viadutos etc.
15
O discurso, quando incorpora significações (semiose) que contribuem para a estruturação e manutenção
de poder, adquire um sentido negativo e, por isso, é considerado ideológico (FAIRCLOUGH, 2001, p.121).
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

que ocorre é um equilíbrio constante entre o poder de ação/transformação de


suas práticas (consequentemente, de suas estruturas, constituídas de códigos,
convenções e normas) e sua limitação advinda dessas mesmas práticas e estrutu-
ras que ele busca alterar, “as quais manifestam apenas uma fixidez temporária,
parcial e contraditória” (ibid., p. 94).
110 Acerca da repercussão do fato, a escola postou duas notas de esclarecimento
no próprio site (http://www.cedrodolibano.org.br), datadas de 1º. e 2 de dezem-
bro, desculpando-se. Entretanto, o modo como se posicionou gerou mais discus-
sões, visto que, segundo alguns leitores que deixaram seus comentários nos sites
em que essas notas foram publicadas, a escola não tratou o fato com a gravidade
devida, mas como “procedimento equivocado” e “individual”, acrescentando que
o ocorrido “não pode representar a imagem de todo um trabalho voluntário de
68 anos a favor da igualdade e contra qualquer tipo de preconceito”.
Aqui, a escola entende racismo como preconceito de cor. Lima e Vala (2004)
consideram importante diferenciar os termos e adotam a perspectiva de Allport
(1952) e Jones (1972) para explicá-los. De modo geral,

o racismo repousa sobre uma crença na distinção natural entre os


grupos, ou melhor, envolve uma crença naturalizadora das diferenças
entre os grupos, pois se liga à ideia de que os grupos são diferentes
porque possuem elementos essenciais que os fazem diferentes, ao
passo que o preconceito não implica na essencialização ou naturali-
zação das diferenças. Outra diferença entre racismo e preconceito é
de que o racismo, diferentemente do preconceito, não existe apenas
a um nível individual, mas também a nível institucional e cultural
(...)[sic] - (LIMA e VALA, 2004, p. 402).

Van Dijk (2010, p. 135) admite, por sua vez, que a definição de racismo não
pode ser pensada de forma tão simplista e vai além da ideia de ideologia racista.
Ele (ibid., p. 134) esclarece que o racismo não é inato ao ser humano e tão pouco
se desenvolve espontaneamente, visto que é adquirido e aprendido na sociedade,
em suas práticas diárias. Ele advém de um sistema social bem complexo de domi-
nação que envolve fundamentações éticas e questões de desigualdade, além de
ser composto por um subsistema social e cognitivo. Esse subsistema envolve prá-
ticas sociais de discriminação nos níveis micro (local) e macro (grupos, organizações,
instituições dominantes) que mantêm relações de abusos discursivos de poder pra-
ticadas pelas elites simbólicas16, isto é, mantêm relações de dominação. O autor
(ibid., p. 234) entende que a manipulação é um fenômeno social, porque a “inte-
ração e abuso de poder ocorrem entre grupos e atores sociais” (ibid., p. 236), em
16
Van Dijk (2010, p. 134) define elites simbólicas como “aquelas elites que literalmente têm tudo ‘a
dizer’ na sociedade, assim como suas instituições e organizações”. Seus membros podem ser pro-
fessores, jornalistas, acadêmicos, políticos, escritores etc.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

razão da posição social que ocupam; é também um fenômeno cognitivo, porque


exerce influência nas mentes das pessoas, por meio da escrita, fala ou imagens.
Há uma “inculcação”, segundo Fairclough (2003, p. 8; 30), realizada a longo
prazo, nunca de forma automática, de valores, crenças e comportamentos dese-
jados pela elite, por meio dos textos17, que podem produzir efeitos causais (bio-
lógicos, físicos, mentais), sociais, políticos e materiais nas pessoas, alterando seus 111
saberes, crenças, atitudes, valores, identidades, ações, e assim por diante, quando
inseridos no cotidiano das pessoas.
Na linguagem e no pensamento, encontram-se também as metáforas. Longe
de serem analisadas como adorno linguístico, elas são estudadas por pesquisado-
res retóricos como recurso para convencer, persuadir e modificar os valores exis-
tentes numa sociedade. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000), o conceito dado
à metáfora que melhor reflete a sua importância na argumentação é o que a
apreende a partir da teoria argumentativa da analogia. Eles nomeiam a primeira
estrutura, sobre a qual recai a conclusão, tema, o termo comparado (“a” está para
“b”), e a segunda, que sustenta o raciocínio, foro, o termo comparador (“c” está
para “d”). Partindo dessa perspectiva, a metáfora será tratada como uma analogia
condensada por meio da fusão de um dos elementos do tema com um dos do
foro, estabelecendo, assim, um alto grau de identidade entre os elementos, e re-
duzindo ou eliminando, ainda que por efeito, a diferença existente nos conjuntos
disjuntos (MEYER, 1998, p. 144 ss).
Para o Tratado da Argumentação, é justamente essa união dos termos das
áreas diferentes — tornando simétricos o foro e o tema, com graus de contami-
nação e com operações de aproximação diversos —, da qual não se tem mais lem-
brança, senão para fins de análise e, mesmo assim, por meio de elementos
variados, que é responsável por efeitos argumentativos. É assim condensada que
a metáfora é expressão que tem o poder de descrever um homem ou um grupo:

Dizendo que um homem é um urso, um leão, um lobo, um porco ou


um cordeiro, descreve-se metaforicamente o seu caráter, o seu com-
portamento, ou o seu lugar entre os outros homens, graças à ideia
que se forma do caráter, do comportamento, ou do lugar de tal ou
tal espécie no mundo animal, tentando suscitar a seu respeito as
mesmas reações que as que se verificam comumente a respeito des-
sas mesmas espécies (PERELMAN, 1970, p. 274)18

17
De acordo com Fairclough (2003, p. 22-25), uma análise discursiva deve considerar não só as
relações internas da língua, mas também as relações extralinguísticas, tais como as estruturas
sociais, as práticas sociais e os eventos sociais. Os textos fazem parte dos eventos sociais e, por
isso, são capazes de modificá-los, e, ao mesmo tempo, serem moldados pelos mesmos eventos.
Eles são estruturados e estruturantes socialmente. É ainda por meio de textos que os sujeitos agem
e interagem na sociedade.
18
Nossa tradução para: “En disant d’un homme que c’est un ours, un lion, un loup, un porc ou un ag-
neau, on décrit métaphoriquement son caractère, son comportement, ou sa place parmi les autres
hommes, grâce à l’idée que l’on se forme du caractère, du comportement ou de la place de telle ou
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

Baseado nos estudos de Lakoff e Jonhson (2002), Fairclough (2001) relata


que as metáforas desempenham um papel fundamental na construção da reali-
dade social. Além disso, é um fenômeno cognitivo resultante tanto de nossa ex-
periência física quanto mental do mundo. O autor afirma que elas

112 penetram em todos os tipos de linguagem e em todos os tipos de dis-


curso, mesmo nos casos menos promissores, como o discurso científico
e técnico. Além disso, as metáforas não são apenas adornos estilísticos
superficiais do discurso. Quando nós significamos coisas por meio de
uma metáfora e não de outra, estamos construindo nossa realidade de
uma maneira e não de outra. As metáforas estruturam o modo como
pensamos e o modo como agimos, e nossos sistemas de conhecimento
e crença, de uma forma penetrante e fundamental (ibid., p. 241).

Para este autor, elas estão tão enraizadas e naturalizadas nas culturas que
sua identificação, muitas vezes, pode ser impossível, assim como escapar delas
no seu discurso, pensamento ou ação e, por isso, elas podem servir para legitimar
ideologias hegemônicas de poder19.
Nessa perspectiva, a metáfora da boa aparência resulta de nosso sistema
cultural que considera belo tudo o que é branco e feio tudo o que é negro, pen-
samento advindo da elite branca ocidental. Para pôr em prática essa metáfora, é
preciso criar no imaginário coletivo a representação de uma estética padrão, eli-
tizada, do que seja belo. Isso se constrói socialmente e discursivamente, como van
Dijk (2008, p. 20) esclarece:

Nossos discursos e outras ações sociais são, portanto, baseados em


modelos mentais (planos etc.) que são transformados por ideologias
e atitudes socialmente compartilhadas. Temos assim um círculo vi-
cioso e vemos como o discurso está crucialmente envolvido na re-
produção do racismo, em geral, e na formação de ideologias racistas
subjacentes, em particular.

Após a internalização mental desses valores, há a ação social que ocorre


quando se persuade o outro a fazer procedimentos estéticos para se “tornar”

telle espèce dans le monde animal, en essayant de susciter à son égard les mêmes réactions que
celles que l’on éprouve communément à l’égard de ces mêmes espèces”.
19
Fairclough (2001) utiliza a noção hegemônica de Gramsci (1971, p. 12). Para este, o poder hegemônico
é o “espontâneo” consentimento dado pela grande massa da população para a direção geral imposta à
vida social, pelo grupo essencialmente dominante (e.g., por meio de seus intelectuais que atuam como
agentes ou adjuntos) é “historicamente” causado pelo prestígio (e consequente confiança) de que o
grupo dominante se serve, por causa da sua posição e função no mundo da produção. Nossa tradução
para: “The ‘spontaneous’ consent given by the great masses of the population to the general direction
imposed on social life by the dominant fundamental group [i.e, through their intellectuals who act as
their agents or deputies]; this consent is ‘historically’ caused by the prestige (and consequent confidence)
which the dominant group enjoys because of its position and function in the world of production”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

branco e, assim, produzir uma mudança física nesse indivíduo. Esse ideal estético
do branco ganha uma dimensão ideológica, quando re(produzido) pela mass
media, principalmente em revistas e programas relacionados à beleza, e pelas di-
versas instituições, nem sempre de modo impositivo, mas fazendo com os não-
brancos aceitem esse modelo como o ideal. Dentre as instituições que perpetuam
essas crenças e padrões culturalmente definidos, destacamos a escola. 113
Tradicionalmente entendida como o lugar onde se manifestam as relações as-
simétricas de poder (professor/aluno), a escola padroniza as normas de conduta,
(re)produz práticas que asseguram o funcionamento ideológico do Estado20. Para
Gomes (2002), a escola é impositora de padrões de currículo, de conhecimento, de
comportamento e, de certa forma, também de estética, já que ela impõe um padrão,
uma uniformização física e moral, havendo uma “exigência na aparência, e os argu-
mentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito” (p. 45).
Entretanto, baseados nos estudos da Análise Crítica do Discurso, entendemos
que as ideologias21, que também advém do Estado, não têm poder de ação per-
manente. As estruturas sociais mais rígidas podem ser modificadas por meio das
práticas sociais exercidas pelos sujeitos agentes, a longo prazo. Por essa razão, en-
tende-se também a escola como um lugar de resistência às ideologias impostas
pelo Estado, ou seja, o lugar de onde saem reflexões críticas visando a alterar a
lógica do sistema, não apenas perpetuando-a22.
Quanto ao corpus, foram selecionados: o bilhete enviado aos pais, postado
no Facebook e difundido na mass media; três notícias sobre esse bilhete, divulga-
das nos jornais BBC Brasil, Globo.com e Extra.Globo, na forma digital; duas notas
de esclarecimento da Associação Cedro do Líbano, dos dias 1º. e 2 de dezembro
de 2015, divulgadas no próprio site da escola; e, finalmente, dois comentários de
internautas, um do Facebook da escola e outro da notícia do Globo.com, que re-
presentam exemplos de opiniões naturalizadoras do racismo.

20
A escola, nessa perspectiva, advém dos estudos de Althusser que a considera parte de um dos Aparelhos
Ideológicos do Estado (AIE). Para o autor (1987, p. 22), ela ensina o “‘know-how’ mas sob a forma de
assegurar a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua ‘prática’”, ou seja, a escola torna-se
instrumento de reprodução dos valores sociais capitalistas, por meio da inculcação constante da
ideologia dominante e do ensino que garanta o bom funcionamento do sistema produtivo.
21
A definição de ideologia adotada é a de Fairclough (2003, p.9), que a entende como forma de repre-
sentação de aspectos do mundo que pode contribuir para o estabelecimento, manutenção e mudança
de relações sociais de poder, domínio e exploração.
22
A esse respeito, citamos o caso de alunas de uma escola do ensino médio de São Paulo que, in-
fluenciadas por discursos feministas, amplamente divulgados nas mídias sociais movimentaram-se
contra as normas de vestimenta do renomado colégio Etapa. Como regra, a escola pedia para que
alunas usassem shorts e saias abaixo do joelho. Houve uma manifestação na rede social Facebook
denominada “Vai ter shortinho sim”, convocando alunas a refletir e a lutar contras as normas esco-
lares tidas como machistas, pois eram impostas apenas às meninas. Após a manifestação na rede
social, o caso recebeu atenção da mass media ( ver COLLUCI e GRAGNANI, 2015). Um mês após o
ocorrido, com a coleta de 4.000 assinaturas de pessoas aderindo ao ato, a escola repensou suas re-
gras, aceitando vestimentas mais curtas.
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

Por uma busca de uma estética identitária


Desde o século XIX, a ideia de branqueamento de raças é perpetuada por di-
versos meios23, sendo a estética apenas um deles. Domingues (2004, p. 287-290)
assevera que o modelo branco de beleza era o modelo padrão desejado. Para tanto,
muitos afrodescendentes recorriam a procedimentos estéticos para amenizar seus
114
traços negroides, tais como afinamento de nariz, uso de cremes para clarear a cútis,
procedimentos cirúrgicos para afinar os lábios e alisamento de cabelo.
A estética do branco como modelo do belo e a do afro como do feio eram di-
vulgadas em jornais, revistas e anúncios, tanto da imprensa branca quanto da afro.
O resultado foi a proliferação, durante todo o século XIX e início do XX, de salões
de beleza especializados em alisar cabelos crespos, bem como a venda de produ-
tos como pentes e cremes específicos para combater o cabelo “ruim”. Esse con-
ceito de beleza segundo, Gomes (2012, p. 3),

é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse


sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como “bom”
expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a ten-
tativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste.
Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas
formas ousadas e criativas de usar o cabelo.

Nesse contexto, o alisamento de cabelo significa algo maior do que a bela es-
tética: significa a aceitação ou rejeição social. É por meio do olhar do outro, da re-
lação de alteridade, que os afrodescendentes aceitam ou não sua identidade, que
é um construto psíquico24 e discursivo social: o sujeito se constrói em contexto re-
pleto de valores, crenças e práticas sociais. Apesar de o contexto compor as rela-
ções externas ao discurso, aquele está sempre numa relação dialética com este,
que é socialmente construído e colabora na (re)construção social da realidade. O
discurso é, portanto, parte irredutível da vida social. Esse conceito é desenvolvido
por Fairclough (2001, p. 91) que, baseado nos estudos de Foucault, entende que

o discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da


estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restrin-
gem: suas próprias normas e convenções, como também relações,
identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma

23
Domingues (2002, p. 1) baseado em Andreas Hofbauer , relata que o branqueamento é uma categoria
analítica que pode ser estudada tanto como interiorização de modelos culturais brancos pelos negros,
acarretando na própria perda de sua identidade africana, quanto como o processo de clareamento
da população por meio da miscigenação. Adotaremos a primeira opção para este trabalho.
24
Segundo Hall (2008, p. 114), há um ponto de intersecção entre o psíquico, social e o linguístico. En-
tretanto, há uma dificuldade em estabelecer uma articulação conceitual entre o social e psíquico,
por isso este é sempre adiado, mas nunca abandonado. Nesta pesquisa, centraremos nos campos
social e linguístico e, brevemente, na questão cognitiva discutida por van Dijk (2008 e 2010).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação


do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. [gri-
fos nossos]

Quando incorpora significações (semiose) que contribuem para a estrutura-


ção e manutenção de poder, o discurso adquire um sentido negativo e, por isso, 115
é considerado ideológico. Entretanto, Fairclough (2001, p. 121) acredita que as
ideologias podem ser superadas pelo sujeito:

As ideologias surgem nas sociedades caracterizadas por relações de


dominação com base na classe, gênero social, no grupo cultural, e
assim por diante, e à medida que os seres humanos são capazes de
transcender tais sociedades, são capazes de transcender a ideologia.

As ideologias são bem mais eficazes quando se tornam naturalizadas e con-


seguem atingir o status de senso comum. É nesse ponto que se naturalizam as re-
lações desiguais de poder, como na metáfora da boa aparência. O sujeito não
identifica as formas de dominação, porque elas não são explícitas, e colabora para
reproduzir crenças e valores que advêm das elites.
No entanto, a dominação não funciona como um cimento social, com status
permanente, ela pode ser reelaborada por sujeitos agentes, por meio de diversas
práticas sociais, resultando na alteração das relações de dominação. Quando o su-
jeito consegue identificar essas formas de poder, pode, coletivamente, agir. Baseado
em Gramsci (1971, p.12), Fairclough (2001, p. 122) relata que o poder de uma classe
é parcial, com durabilidade limitada. Isso ocorre porque as hegemonias (re)produ-
zidas podem ser refutadas e modificadas, quando há lutas hegemônicas contra as
desigualdades produzidas nesses setores, de diferentes níveis e domínios.
Isso pode ser visto nas décadas de 1970 e 1980, com o movimento Black
Power que criava o cabelo da moda. Nascido na década de 1960, nos Estados Uni-
dos, ele tinha o objetivo de fortalecer a identidade e a cultura africanas e, assim,
militar contra o racismo. Nesse período, movimentos contra o preconceito e o ra-
cismo ganharam força, especialmente no Brasil. Dentre os vários movimentos ins-
taurados aqui, no século XX e XXI, destacamos: o Movimento Negro Unificado, em
1978; o Movimento de Mulheres Negras, na década de 1980; a criação da Secre-
taria de Promoção e Defesa das Populações Afro-Brasileiras (SEDEPRON), em
1991; os Movimentos Negros no Brasil, em 1995; a Marcha Zumbi +10, em 1995;
e a criação, em 2003 pelo Governo Federal, da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR).
De acordo com Nascimento e Nascimento (2000, p. 232), “a militância dos
afro-brasileiros, ao longo da história do Brasil, sempre foi uma luta pela sobrevi-
vência e pelos direitos humanos na sua forma mais simples e universal – a da vida
em sua totalidade”. Esses movimentos buscam, de modo geral, por meio de polí-
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

ticas e ações afirmativas étnico-raciais, o respeito à igualdade, à cultura e à iden-


tidade afro.
Uma das formas de reafirmação da identidade é exatamente a aceitação de
seu cabelo. Fala-se em “empoderamento” contra a estética opressora, que queima
a raiz, machuca o couro cabeludo e desnuda a alma. É o cabelo que se torna ins-
116 trumento de resistência e cultura do branco.

Análise do corpus: Cabelo liso e solto sem tiara


Em meio a essa luta, há um grande combate a ser vencido, pois, muitas vezes,
as vozes de opressão são ecoadas em grandes instituições, como nas escolas25,
que, muitas vezes não tratam os casos relatados por quem sofreu os abusos com
seriedade. Aqui, especificamente, trataremos da escola Associação Cedro do Lí-
bano de Proteção à Infância que, no dia 30 de novembro de 2015, enviou o se-
guinte comunicado aos pais:

Para que a nossa apresentação fique ainda mais bonita, conto com
a sua colaboração enviando o seu(a) filho(a) no dia da nossa apre-
sentação de natal 03/12 com o seguinte penteado: MENINAS: CA-
BELO liso SOLTO. OBS: sem a tiara. [grifos nossos]
http://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2015/12/03/noticias-
saude,186628/cabelo-liso-e-solto-mae-afirma-que-nao-e-a-primeira-
vez-que-escol.shtml

25
Seja na forma institucional, seja, como relata Cordeiro (2011), no racismo presente nos colegas de
classe.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Na mensagem, havia ainda a foto da personagem Maria Joaquina, interpre-


tada por Larissa Manoela, da telenovela Carrossel (baseada numa telenovela me-
xicana, exibida no canal aberto SBT - Sistema Brasileiro de Televisão, em 2012). A
imagem agravou ainda mais a situação, visto que a personagem, segundo o pró-
prio jornal Extra.Globo (2015) recordou, tinha atitudes racistas contra o colega de
117
sala de aula, negro e pobre, Cirilo, interpretado por Jean Paulo Campos.
Ao unirem a fotografia com o adjetivo bonito, com o advérbio intensificador
mais e com o pedido de cabelo liso, reforçou-se, no imaginário coletivo, o ato de
racismo, visto que o cabelo liso pertence à imagem do cabelo ocidental, de maioria
branca, como a marca do belo. Há uma internalização do racismo quanto ao pa-
drão branco de beleza implícito nesse pedido, na metáfora implícita da boa apa-
rência, carregada de valores ideológicos da supremacia branca.
Após o comunicado ter sido postado, no mesmo dia, na rede social Facebook,
ele foi compartilhado mais de mil vezes e curtido mais de seis mil vezes, com mui-
tos comentários de repúdio e outros que questionaram a existência do racismo.
O debate teve maior relevância, principalmente, porque tal pedido foi oriundo de
uma escola. Para Gomes (2002, p. 44), há espaços específicos onde se reforçam
estereótipos contra o cabelo e o corpo do negro e um desses espaços é justamente
a escola. A autora (ibid., p. 40-41) ainda esclarece que

a trajetória escolar aparece (...) como um importante momento no


processo de construção da identidade negra e, lamentavelmente, re-
forçando estereótipos e representações negativas sobre esse seg-
mento étnico/racial e o seu padrão estético. O corpo surge, então,
nesse contexto, como suporte da identidade negra, e o cabelo crespo
como um forte ícone identitário.

Segundo Fairclough (2003, p 23), os agentes sociais tecem os textos, isto é,


estabelecem relações entre os elementos dos textos e produzem o sentido. Ao
optarem por certas palavras e não outras, ao combinarem certos sentidos e não
outros, os agentes demostram seus poderes causais. Nesse caso, a combinação
das palavras cabelos lisos e mais bonito forma uma relação semântica que enfatiza
uma cultura (do branco) em detrimento da outra (do não-branco), reproduzindo
o racismo internalizado.
Isso pode ser observado quando alguns usuários entenderam o ocorrido
como algo normal, como pode ser visto no comentário do usuário Júlio, que entrou
no Facebook da escola para se manifestar, em 2 de dezembro de 2015, e no do in-
ternauta Marcelo, que fez o comentário no site da Globo, no mesmo dia. Seus co-
mentários estão transcritos respectivamente a seguir:
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

118

“Meu deus e muito mimimi, minha nossa senhora, não dá pra fazer nada
que já gera revoltinha, pqp que época horrível pra se viver, o politicamente cor-
reto esta destruindo as interações humanas, nos deixando cada vez mais distantes
e nem percebemos, triste muito triste. [sic]. [grifos nossos]

“Não achei nada de racismo!!! O problema é que tem mães que mandam
os filhos todos largados pro colégio com o cabelo todo despentiado cheio de pio-
lhos e não estão nem ai com a vida ...(...)” [sic] [grifos nossos]

Júlio considerou o comunicado como “nada” e as reclamações de outros


usuários como “mimimi” e “revoltinha”. Ele ainda acrescenta que as vozes con-
trárias ao que ele acredita ecoam a partir dos princípios do que seja politicamente
correto26, maneira de depreciação aos que buscam igualdade étnica social. A luta
26
Dentre os possíveis sentidos do politicamente correto (PC) estudados por WEINMANN e CULAU
(2014, p. 635) o autor destaca a de Renato Janine Ribeiro que serve melhor ao que foi empregado
pelo internauta: a antipatia em relação ao PC, inclusive entre acadêmicos, decorre sobretudo do
fato de o PC consistir em um efeito da organização de minorias contra atitudes discriminatórias
profundamente arraigadas em nossa cultura.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

contra a perpetuação do racismo é denominada “revoltinha”, termo usado no di-


minutivo para indicar a inexpressividade da polêmica gerada. O usuário não reco-
nhece o pedido de cabelo liso como racismo, o que indica a força da metáfora que
o esconde, reproduzindo os discursos de branqueamento estético.
Se, por um lado, o comunicado, ainda que implicitamente, descreve o indiví-
duo que torna a festividade de Natal “mais bonita”, como se pode deduzir do ra- 119
ciocínio retórico em que a conclusão permanece apenas sugerida, ocultando-se,
portanto, da fácil contestação que pode surgir a qualquer momento:

Uma apresentação mais bonita requer cabelo liso por parte das meninas.
[Só as meninas brancas têm cabelo liso,
Logo, somente elas poderão torná-la assim]

por outro lado, a identidade metafórica de seu conteúdo produz o efeito de pre-
sença do objeto e a sua admissão como prática social naturalizada corresponde à
aceitação do juízo de importância das características que ela põe em evidência.
O mesmo ocorre no comentário de Marcelo, que associa o cabelo não-liso,
crespo, à falta de higiene, e “nada de racismo”. Sua postagem teve oito “curtidas”
a favor e dezessete contra. De fato, Marcelo assume a postura de quem confirma
“a presunção de credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento
seja acolher como verdadeiro o que nos dizem, e que é admitida enquanto e na
medida em que não tivermos motivo para desconfiar” (PERELMAN e OLBRECHTS-
TYTECA, 2008, p. 79), ou seja, ele parte do que é normal, do habitual, do que pre-
sume ser fato ou verdade ao auditório universal, e, ao assim admitir, assume a
função de porta-voz desse seu grupo de referência, interpretando o comunicado
sob a presunção da naturalidade: “Não achei nada de racismo!!! O problema é...”,
ainda que associe o par liso/crespo a limpo/sujo. Nesse sentido, coloca-se em prá-
tica o funcionamento da estética do sujo (preto de cabelo crespo, já que a resposta
diz respeito a uma discussão gerada por causa do racismo) em contraposto à do
limpo (branco de cabelo liso). Note que a estética está associada a uma identidade
étnica, logo, ao criticar a estética, critica-se a etnia de um povo.
Para a Análise Crítica do Discurso, embora existam diversas maneiras para
exercer a dominação, como, por exemplo, os modos coercivo ou persuasivo, ela
não é feita pela imposição, de maneira que há um consentimento “espontâneo”
por parte das demais classes. Os discursos dominantes são tão presentes que
levam à naturalização ou à automatização no modo como entendemos e vemos
o mundo. Passamos, então, a reproduzir o sistema de crenças e valores, o sistema
de relações e identidade dos grupos sociais, conforme afirmam Chouliaraki e Fair-
clough (1999, p. 24).
Entretanto, Fairclough (2003, p. 160) também cita a capacidade de pessoas,
que nasceram em certas sociedades e classes sociais menos favorecidas, de mudar
seu estado por meio da própria capacidade de reflexão e ação:
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

Poucas pessoas nas sociedades contemporâneas permanecem dentro dos


limites dos seus posicionamentos, mas suas habilidades para transformá-
los dependem de reflexões e da capacidade de tornarem-se Agentes Cor-
porativos capazes de ações coletivas e formações de mudança social.

120 Por causa dessa possibilidade de mudança hegemônica é que a Análise Crítica
do Discurso, de Fairclough, entende os sujeitos como agentes sociais, porque são
parcialmente afetados pelas estruturas, mas isso não os impede de, quando ati-
vadas suas potencialidades, serem capazes de ter autorreflexão para agir social-
mente e transformar as relações de poder. Dessa forma, o agente social é capaz
de agir sobre o mundo e sobre os outros, dentro de uma liberdade relativa.
Foi exatamente exercendo essa capacidade de reflexão que o caso não foi
tratado por todos de maneira naturalizadora, como os que destacamos. A asses-
soria de imprensa da atriz Larissa Manoela, por exemplo, fez questão de se mani-
festar sobre o ocorrido, pois a imagem da atriz foi vinculada a uma mensagem que
gerou polêmica. Em nota à imprensa, relatou-se que a imagem foi usada sem au-
torização, que a atriz “não tinha conhecimento do uso da foto e sempre se mos-
trou contrária a qualquer tipo de preconceito, e sempre orienta as crianças sobre
a importância da diversidade” (CRECHE..., 02.12.2015) Além disso, mais de mil
usuários do Facebook e as principais mídias também criticaram a escola, trazendo
à tona questões importantes sobre a imposição de padrão estético.

Resposta da escola ao ocorrido


Após grande repercussão midiática, a Associação Cedro do Líbano de Prote-
ção à Infância emitiu duas notas de esclarecimento em seu site. Entretanto, muitos
leitores que acompanhavam o desfecho dos fatos não consideraram que a escola
tratou a questão com a gravidade devida. Trechos dos comunicados foram discu-
tidos e vistos apenas como amenizadores. Abaixo o trecho da primeira nota:

1.ª NOTA DE ESCLARECIMENTO


(...)
O procedimento equivocado e individual de um funcionário sem
autorização da Direção (o qual as medidas administrativas já estão
sendo tomadas), não pode representar a imagem de todo um traba-
lho voluntário de 68 anos a favor da igualdade e contra qualquer tipo
de preconceito. [sic] [grifos nossos]
São Paulo, 01 de dezembro de 2015.

Nessa nota, o ato de racismo foi chamado procedimento equivocado e indi-


vidual, ou seja, há visivelmente uma tentativa de minimizar a gravidade do fato e
de tentar isolá-lo sem que a escola pudesse ser responsabilizada pelo que seu fun-
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

cionário produziu, pois foi feito sem autorização da Direção. Van Dijk (2008, p. 18-
19) relata que há estratégias globais discursivas que enfatizam o racismo do Eles,
do grupo de fora, e não o do Nós, do grupo de dentro. O uso de eufemismo, en-
quanto técnica de atenuação (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2008, p. 530),
faz parte dessa estratégia argumentativa à busca de produzir a impressão favorável
de ponderação, de sinceridade. 121
A escola, nesse momento, está salvando a sua face (GOFFMAN, 1985), já que
o caso alcançou repercussão negativa na mass media e ela vive de doações. Por
essa razão, ela reforça, em sua nota, que a escola que atua há 68 anos com traba-
lhos contra qualquer forma de preconceito. Além disso, argumenta que a comu-
nidade, pais e alunos, a avaliaram muito bem e que isso consta nos indicadores
de Qualidade de Educação, como pode ser lido na mesma nota:

Citamos ainda que recentemente foi implantado pela Prefeitura Mu-


nicipal de São Paulo os indicadores de Qualidade de Educação, onde
esta instituição foi muito bem avaliada pela comunidade e pais de
alunos. [grifos nossos]

O que pode ser discutido aqui é o entendimento da gravidade dos fatos pela
escola, visto que, como já mencionado, tem papel fundamental na constituição
das identidades sociais. Isso ocorre no segundo comunicado da Associação:

2.ª NOTA DE ESCLARECIMENTO DA ESCOLA:


a associação cedro do líbano de Proteção à infância e seus educa-
dores repudiam qualquer forma de preconceito e discriminação.
Reconhecemos e já esclarecemos sobre o equívoco da mensagem e
tomamos todas as medidas administrativas cabíveis para que erros
lamentáveis como esse não se repitam e possam ferir os preceitos
postos na lei 10639/2003 e lei 11645/2008. [grifos nossos]
São Paulo, 02 de dezembro de 2015.

Nesse segundo momento, a escola diferencia preconceito de discriminação,


afirmando que, assim como o seu corpo docente, repudia-os. Além disso, preo-
cupou-se em citar as leis 10639/2003 e 11645/2008, enquanto argumento de au-
toridade que reforça o seu modo de fazer, já que a escola as conhece e reconhece
a ilegalidade de desacatá-las. Nesse contexto, quanto mais importante e reconhe-
cida pelo auditório for a autoridade, mais indiscutíveis serão suas palavras.
A instituição deixou claro que usará o ocorrido para ampliar sua visão a res-
peito da diversidade e do reconhecimento à identidade, como continua dizendo:

O ocorrido nos faz ampliar sobre a nossa visão acerca da construção


coletiva de uma educação pautada no respeito à diversidade, reco-
nhecendo as identidades de todos e todas, com práticas pedagógicas,
CABELO LISO E SOLTO AO VENTO: O RACISMO NA METÁFORA DA BOA APARÊNCIA
UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-SOCIAL DA LINGUAGEM

materiais e ambientes planejados para combater o racismo, o pre-


conceito e qualquer forma de discriminação. [grifos nossos]

Verifica-se que a escola se inclui para construir uma “visão coletiva” de edu-
cação, nossa visão, e não culpa o(a) professor(a) individualmente, como fizera no
122 comunicado anterior. Por fim, diz que irá se engajar para combater o racismo, o
preconceito e outras formas de discriminação.
É importante ressaltar que o que deve ser combatido não é apenas o racismo
declarado, facilmente identificado, mas também aquele que está disfarçado na
metáfora da boa aparência, como estudado por Damasceno (2000) e, neste caso,
na forma do cabelo liso. O que foi revelado à sociedade, via rede social Facebook,
e mais tarde, pela mass media, é apenas parte de algumas práticas escolares que
ainda tentam impor a estética do branco ocidental aos não-brancos. Cabe aos que
constituem a escola (professores, alunos, diretores e outros), o papel de refletir
sobre as suas próprias práticas, por vezes internalizadas, como adverte van Dijk
(2008, p. 16): “Se o ‘racismo’ não se tornar um assunto público, a dominação étnica
continuará inalterada”.

Considerações finais
O sentido de boa aparência ou, neste estudo, mais bonita, ainda encontra-se
estritamente relacionado à estética de branqueamento, amplamente disseminado
no século XIX e perpetuado por meio de práticas que o naturalizaram. A ideia de
“brancura limpa” como padrão de beleza contra o “sujo não-branco” representou,
segundo Domingues (2004, p. 292), “um entrave para a formação positiva da au-
toestima do negro, pois este passou a alimentar um certo autodesprezo”.
Entretanto, pode-se dizer que há vozes de resistência que permitem a refle-
xão crítica acerca dessas condutas. Surgem, nesse processo, os sujeitos agentes
capazes de transformar o limite de seus posicionamentos, como afirmou Fair-
clough (2003, p. 160), e “empoderar-se”27 de suas raízes, identidades, culturas,
por meio de ações assertivas que rejeitem toda e qualquer imposição de padrões
estéticos do branco. A rede social torna-se, nesse processo, um lugar onde se rea-
liza a participação cívica de anônimos, o lugar onde as opiniões, as decisões e as
ações coletivas sobre determinado assunto são mobilizadas pelo e para o cidadão.
É preciso, contudo, que essa reflexão possa atingir a sociedade de forma mais
abrangente, começando pelo lugar onde são formadas as consciências dos peque-
nos cidadãos: a escola. Nesse sentido, a educação passa a ter um papel social
27
“Processo pelo qual um indivíduo, um grupo social ou uma instituição adquire autonomia para realizar,
por si, as ações e mudanças necessárias ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal e social numa
determinada área ou tema. Implica, essencialmente, a obtenção de informações adequadas, um pro-
cesso de reflexão e tomada de consciência quanto a sua condição atual, uma clara formulação das
mudanças desejadas e da condição a ser construída” (SCHIAVO e MOREIRA, 2005, p. 59).
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

transformador que visa menos ao aumento da adesão àquilo que está aceito e
mais a uma reavaliação das crenças e valores; deve ser ela lugar de espírito inves-
tigativo crítico, de força de resistência contra toda manifestação que menospreza
e exclui a diferença. Isso implica opor-se às concepções, às perspectivas estabili-
zadas, naturalizadas, ou seja, pôr-se em conflito com a doxa, ainda que responsá-
vel pela construção da identidade social, quando estiver tendente ao estático. 123

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ESCÓSSIA, Fernanda. Escola de SP causa polêmica ao pedir que meninas usem cabelo ‘liso
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PELA 1ª. VEZ, Facebook tem mais de 1 bilhão de usuários em um único dia. BBc Brasil. 25 ago.
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_lab. Acesso em: 16 jun. 2016.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL
SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

Mônica Lucas
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes 127
Departamento de Música
monicalucas@usp.br

Resumo
O mundo luterano produziu um enorme arcabouço teórico e prático para a composição,
interpretação e análise musical. Entre os séculos XVII e XVIII, autores da disciplina que ficou
conhecida como musica poetica propuseram preceptivas cuja sistemática e terminologia
foram emprestadas da Retórica e da Poética clássicas. Os escritos compreendidos na insti-
tuição da musica poetica têm em comum a noção de que a música seja um discurso ali-
nhado com as disciplinas do trivium, e de que sua finalidade seja ensinar, deleitar e mover
o ouvinte, aplicando engenhosamente lugares-comuns, dispondo artisticamente as ideias e
adequando-se às circunstâncias de público, ocasião e lugar. O presente texto concentra-se
na sistemática da composição musical – inventio, dispositivo, elocutio – mostrando como
preceptivas musicais seiscentistas e setecentistas emularam oratórias clássicas, no sentido
de produzir poéticas musicais alinhadas às retóricas latinas de Cícero e Quintiliano.

PalavRas-chave
Musica poetica. Música dos séculos XVII e XVIII. Inventio. Dispositio. Elocutio.

Introdução
O mundo luterano produziu um enorme arcabouço teórico e prático para a
composição, interpretação e análise musical. Entre os séculos XVII e XVIII, autores
da disciplina que ficou conhecida como musica poetica propuseram preceptivas
cuja sistemática e terminologia foram emprestadas da Retórica e da Poética clás-
sicas – em especial a Poética aristotélica, que previa princípios únicos para todas
as artes, o Orator e o De Oratore (1942) de Cícero e a Institutio Oratoria de Quin-
tiliano, leituras obrigatórias em todas as escolas luteranas a partir da reforma do
ensino consolidada em 1528 por Martinho Lutero e Philipp Melanchton.
As ordenanças escolares reformadas recomendavam o estudo diário e siste-
mático da música para os alunos de todas as classes escolares. De acordo com
essas prescrições, a música só era secundária, em importância, ao estudo da elo-
quência latina e da teologia. Nessas escolas, a música era estudada tanto no âm-
bito da musica practica, que “tem como finalidade a ação [a interpretação e a
composição musical]” 1 (LISTENIUS, 1541, I), quanto da musica poetica, a compo-
1
“THEORICA est, quae in ingenji contemplatione ac rei cognitione versatur, cujus finis est scire. (…).
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

sição musical, ciência que “não se contenta nem com o puro conhecimento nem
com o mero exercício”2 (Id. Ibid., I). A musica theorica, estudo universitário da mú-
sica alinhado às disciplinas numéricas do quadrivium, que visava “o conhecimento
das coisas [rei cognitione] e a contemplação”3 (Id. Ibid. 1541, I), não fazia parte
do currículo dessas escolas que, assim, alinhavam a música às demais artes do tri-
128 vium, em especial à gramática e à retórica.
Os escritos compreendidos na musica poetica têm em comum a noção de
que a música seja um discurso alinhado às disciplinas do trivium, e de que sua fi-
nalidade seja ensinar, deleitar e mover o ouvinte, adequando-se às circunstâncias
de público, ocasião e lugar. O cálculo dessas circunstâncias permite ao compositor
planejar os efeitos musicais, movendo os afetos do ouvinte. Por trás desse pensa-
mento, figura a compreensão platônica de que a palavra tem primazia sobre a me-
lodia, sobre a harmonia e sobre o ritmo. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, esses
tratados chegaram a contemplar todas as etapas do processo de composição e in-
terpretação musical, descrevendo-as segundo as fases descritas em preceptivas
retóricas clássicas: inventio, dispositio, elocutio, memoria, actio.
As poéticas musicais luteranas estão compreendidas, em grandes linhas,
entre as publicações de Joachim Burmeister (2004 [1606]) e Johann Nikolaus For-
kel (1788). Burmeister é o primeiro a adotar sistematicamente a terminologia re-
tórica para descrever procedimentos musicais, fato de que demonstra estar
plenamente ciente, quando enfatiza a novitas vocabulorum de suas publicações
(BURMEISTER, 2004 [1606], p. 6). Tratados posteriores a Forkel não deixam de
lado a orientação poético-retórica, mas neles, encontra-se influência cada vez mais
marcante da Estética, disciplina que gradualmente passa a substituir a Retórica
como parâmetro de juízo sobre as artes.
O presente texto concentra-se na sistemática da composição do discurso es-
crito – inventio, dispositio, elocutio – mostrando como preceptivas musicais seis-
centistas e setecentistas emularam oratórias clássicas, no sentido de produzir
poéticas musicais alinhadas às retóricas latinas de Cícero e Quintiliano.
No mundo contrarreformado, o jesuíta Athanasius Kircher discorre sobre as
partes da criação musical retórica (De partibus rhetoricae musurgica) em seu Mu-
surgia Universalis (1650) e já afirma que “assim como a retórica consiste de três
partes: invenção, disposição e elocução, o mesmo [ocorre com] nossa retórica mu-

PRACTICA, quae non solum in in ingeji penetralibus delitescit, sed in opus ipsum podit [?], nullo
tamen post actum relicto opera, cujus finis est agere”.
2
“POETICA, quae necque rei cognitione necque solo exercitio contenta, sed aliquid post laborem re-
linquit operis, ueluti cum a quopiam Musica, aut musicum carmen conscribitur, cujus finis est opus
consummatum & effectum. Consistit enim in faciendo siue fabricando, hoc est, in labore tali, qui
post se, etiam articie mortuo, opus perfectum & absolutum relinquat”.
3
“THEORICA est, quae in ingenji contemplatione ac rei cognitione versatur, cujus finis est scire. (…).
PRACTICA, quae non solum in in ingeji penetralibus delitescit, sed in opus ipsum podit [?], nullo
tamen post actum relicto opera, cujus finis est agere”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

sical” 4 (KIRCHER, 2006 [1650], II, 8, 4, p. 143). Kircher, contudo, fornece poucos de-
talhes a respeito de como se daria essa transposição. É no mundo reformado que
a musica poetica se organiza detalhadamente no plano retórico, como veremos.

1. Inventio 129

A inventio, que se refere à reunião de argumentos para a composição do dis-


curso, é trazida à composição musical por humanistas-músicos estudiosos de Quin-
tiliano. Segundo Dammann (1995 [1968]), a menção mais antiga à inventio musical
encontra-se no Dodechachordon (1547), de Heinrich Glarean. Ele afirma que the-
matis inventio é a produção ou o uso de um cantus pré-existente como funda-
mento de uma composição polifônica (1547, II, 38. p. 174). Gioseffo Zarlino (1558)
também utiliza o termo inventione, indicando com ele o domínio da técnica con-
trapontística.
Kircher também transporta o sentido retórico do termo para a arte dos sons
e diz que “inventio na música retórica não é outra coisa senão a adaptação ade-
quada dos ritmos e melodias musicais convenientes à palavra”5 (KIRCHER, 2006
[1650], II, 8, 4, p. 143).
O termo inventio é usado às vezes no lugar de tema, referindo-se à desco-
berta de um pensamento adequado à composição. Nesse sentido, o termo passa
a ser usado em títulos de obras musicais, como o Premier Livre de Inventions Mu-
sicales, de Clement Janequin (1555), e se cristaliza como gênero no século XVIII,
com peças como as Invenzioni a violino solo e b.c., de Francesco Bonporti (1713),
ou as Inventionen (1723), de Johann Sebastian Bach6.
O recurso mais importante da inventio retórica consiste no uso de lugares-co-
muns para a obtenção dos argumentos a serem utilizados no discurso. Eles são de-
talhadamente descritos por Cícero, Quintiliano e pelo anônimo da Retórica a
Herênio. A transposição desses lugares-comuns da Retórica para a composição mu-
sical começa a ocorrer no século XVII. Como a retórica musical aparece inicialmente
vinculada à música vocal, esses lugares-comuns musicais se fundamentam total-
mente na analogia entre música e texto. No pensamento luterano, certos procedi-
4
“Ut Rhetorica tribos constat partibus, inventione, dispositione & elocutione, ita & mostra Musurgica
Rhetorica.”
5
inventio musurgiae rhetoricae nihil aliud est, quam apta musarithmorum congruorum adaptatio.
6
O título completo dessas peças que receberam a alcunha “invenções a duas e a três vozes” é: “Ins-
trução integral pela qual é mostrada ao amante do teclado, mais especialmente ao aprendiz, como
tocar claramente a duas vozes e, com mais progresso, proceder bem e corretamente com três partes
obligatti, e, com isso, obter boas invenções, assim como desenvolvê-las, atingindo um toque cantábile
e um gosto inicial pela composição.” [Auffrichtige Anleitung, Wormit denen Liebhabern des Clavires,
besonders aber denen Lehrbegierigen, eine deüt-liche Art gezeiget wird, nicht alleine mit 2 Stimen
reine spielen zu lernen, sondern auch bey weiteren progreßen auch mit dreyen obligaten Partien rich-
tig und wohl zu verfahren, anbey auch zugleich gute inventio-nes nicht alleine zu bekommen,
sondern auch selbige wohl durchzuführen, am allermeisten aber eine cantable Art im Spielen zu er-
langen, und darneben einen starcken Vorschmack von der Composition zu über-kommen].
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

mentos musicais visam não apenas a representar mas também a explicar a palavra,
evidenciando seu sentido oculto, geralmente fundamentado nos dogmas da dou-
trina. Isso ocorre, sobretudo, quando essas palavras advêm de textos tidos como
autoridade, como a Bíblia.
Em escritos musicais seiscentistas, palavras essenciais do texto, portadoras
130 de sentido, aparecem reunidas em catálogos voltados para a representação mu-
sical. A primeira obra a fornecer uma lista de palavras representáveis na inventio
musical é o Musicae poeticae sive de compositione cantus (1613), de Johannes
Nucius. Sua lista é repetida durante todo o século XVII por autores como Wolfgang
Schonsleder (1631), Johann Andreas Herbst (1643) e Daniel Speer (1697).7
Herbst, em seu Musica Poetica (1643), organiza a lista de Nucius em quatro
categorias de palavras musicalmente representáveis: 1. palavras que exprimem
afecção [verba affectuum]: palavras que devem ser expressas pela modificação
ou troca de notas: alegrar-se, chorar, temer etc.; 2. palavras que indicam movi-
mento e lugar [verba motus & locorum]: figuras imagéticas musicais, em parte
também figuras afetivas: correr, saltar, exaltar, destruir; céu, abismo, montes etc.;
3. advérbios de tempo e número [adverbia temporis, numeri]: rapidamente, logo,
lentamente, amanhã etc.; palavras que indicam números indefinidos: novamente,
frequentemente, raramente etc.; palavras com representação ótica: luz, dia, noite,
escuridão etc. 4. idades e hábitos do homem [aetates hominum]: infância, velhice,
orgulho, humildade, inveja etc.8 (HERBST, 1643, XI, 2, p. 111-112).
Nas poéticas musicais do século XVIII, essa ideia é desenvolvida e sistemati-
zada. Transpõe-se para a música o sistema dos lugares-comuns, fontes de onde
se tiram argumentos para qualquer assunto, das retóricas antigas. O tratamento
mais extenso sobre os lugares-comuns na inventio [Finde-Kunst] musical está con-
tido no Der Generalbass in der Composition, [“o baixo-contínuo na composição”],
de Johann David Heinichen (1994 [1728]), que tem cerca de 50 páginas dedicadas
ao assunto. Ele diz: “em minha opinião, nada é melhor para dirigir nossos pensa-
mentos para boas ideias e animar a fantasia natural do que o uso dos locos topicos
7
Para mais informações sobre este assunto, cf. UNGER, 1992 [1941], p. 41 ss.,
8
“1. Verba affectuum bewegungs Wörter/als: Laetari, gaudere, frewen und frölich seyn. Lacrymari,
flere weinen. Timere fürchten. Ejulare heulen. Lugêre trawren. Supplicare flehen und bitten. Irasci
zürnen. Ridêre lachen. Misereri erbarmen. Welche alle mit dem Sono oder Klang/durch veränderung
und abwechsslung der Noten zu exprimirem und zuszudrucken seyn 2. Verba Motus &locorum. Be-
wegungs Wörter von einem raumichen Ort/als: Stare stehen. Currere lauffen. Saltare tanzen. Quiescere
ruhen. Salire springen. Extollere erheben. Dejicere ernidrigen. Adscendere auffsteigen. Descendere
absteigen. Coelum Himmel. Abyssus Abgrund. Montes Berg. Profundum Tieffen. Altum Höhe/ und
dergleichen. 3. Adverbia temporis, numeri, von der Zeit und Zahl/als: Celeriter behend. Velociter
geschwind. Citò bald. Tardè langsam. Manè früh. Serò spät. Bis, ter, quater, 2. 3. 4Mal. Item, quae
numerum indefinitum significant, welche kein endliche und gewisse Zahl bedeuten/als: Rursus wi-
derumb. Iterum abermal. Saepè, raro, offt/selten. (...) 4. Aetates hominu, der Menschen Alter/als:
Infantia Kindheit. Pueritia Jugend. Senectus eorumque; mores, das Alter und derselben Sitten/als:
Superbus Hoffertig. Humilisdemütig. Contemptus veracht. Vilis gering. Odiosus beschwerlich und ve-
rhasst etc.”
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

[sic] da oratória”9 (HEINICHEN, 1994 [1728], p. 3). Em seguida, ele determina três
categorias principais de lugares ligados à circunstância – antecedentia, concomi-
tantia, consequentia.
Mattheson também se dedica a esse assunto no capítulo dedicado à invenção
melódica em seu Der vollkommene Capellmeister (“O mestre-de-capela perfeito”).
Para ele, a inventio consiste em um “engenhar ou pensar em cantos agradáveis 131
ao ouvido”10 (MATTHESON, 1991 [1739], II, 4, 2, p. 121). Ele inclui uma lista com
17 lugares-comuns: notação, descrição, gênero e espécie, todo e partes, causas
eficiente, material, formal, final, efeito, características, circunstanciais, compara-
ção, oposição, exemplo e testemunho. Ele os explica e exemplifica (id. ibid., II, 4,
1-84). A base de seu texto são os lugares expostos em Die allerneuerste Art reinen
und galanten Poesie zu gelangen (“a mais nova maneira de lograr a poesia pura e
galante”, 1707), de Christian Friedrich Hunold, que Mattheson cita quase literal-
mente.
Preceptivas retóricas antigas e seiscentistas, como o Cannocchiale Aristote-
lico, de Emanuele Tesauro (2000 [1652]), mencionam, além dos lugares-comuns,
fontes naturais para a inventio, como o furor e o entusiasmo. Contudo, para Te-
sauro, assim como para a maioria de seus antecessores clássicos, as fontes irra-
cionais são tidas como recursos não-artísticos, uma vez que não são ensináveis.
Mauritius Vogt (1719) também admite seu uso na composição musical: “não des-
prezes um generoso copo de vinho, para que te tornes mais apto para a invenção
e a composição”11 (1719, III, 6, p. 157).
Mattheson (1991 [1739]), como Vogt, também indica a “invenção inopinada,
repentina, como se advinda do entusiasmo” [inventio ex abrupto, inopinato, quase
ex ethusiasmo] como caminho alternativo para a inventio. Ela ocorre quando “ima-
ginamos fortemente um afeto e nos aprofundamos nele, como se estivéssemos
de fato contemplativos, apaixonados, irados, irônicos, preocupados, alegres etc.:
esse é o caminho mais seguro para invenções inesperadas”12 (MATTHESON, 1991
[1739], II, 4, 85, p. 132).
Para autores da segunda metade do século XVIII, a inspiração passa a cons-
tituir a principal fonte da invenção. Isso pode explicar porque Johann Nikolaus For-
kel, autor da última preceptiva que descreve claramente a sistemática da retórica
9
“Unsre Gedanken aber auf gute Ideen zu leiten und die natürliche Phantasie auzumuntern solches
kann meines Erachtens nicht besser geschehen als durch die Oratorischen Locos Topicos“.
10
“Die Erfindung (...) ist eine Ersinnung oder Erdenckung solcher Sang Weise, die den Ohren ungenehm
fällt.“
11
“Et ut sim aptior ad inveniendum & componendum, (nihil com gravi Cerere) generosi vitelli vinum
non abjiciam”.
12
“Doch ist eine besondere Erfindugs-Art, welche man eine unvermuthliche, unverwartet und gleichsam
ausserordentlich-eingegebene nenet, (inventio ex abrupto, inopinato, quase ex enthusiasmo musico),
und dazu hilft (...) wenn man sich eine Leidenschafft fest eindrückt, und sich gleichsam drin vertiefft,
als wäre man in der That andächtig, verliebt, zornig, hönisch, betrübt, erfreuet, u.s.w. dieses ist
gewiss der sicherste Weg zu ganz unvermutheten Erfindungen”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

musical, em 1788, não menciona os lugares-comuns, um importante tópico da in-


ventio retórica.

2. Dispositio
132
A disposição retórica não corresponde à ideia romântica de forma musical.
Esta última constitui um molde fixo imposto à obra, ao passo que a dispositio é
uma estrutura flexível que se conforma de maneira particular a cada matéria.
Nesse sentido, parece anacrônico considerar a estrutura de obras musicais sete-
centistas segundo o prisma comumente aceito pelos manuais teóricos românticos
e modernos da forma musical, em especial a “forma-sonata”. Essa concepção tem
sido discutida por autores como Bonds (1991),Webster (1992) e, no Brasil, Barros
(2006).
Teóricos musicais dos séculos XVII e XVIII entendem a dispositio como uma
ordem natural do discurso sonoro. Mattheson afirma que

a natureza nos ensina a usar certos motivos ou argumentos e mantê-los


numa ordem adequada (...). E a partir desse impulso natural do en-
tendimento, que nos impele a completar as coisas com boa ordem e
graça, suas regras foram finalmente descobertas e enunciadas por
mentes engenhosas13 (MATTHESON, 1991 [1739], II, 14, 1, p. 235).

Burmeister, em seu Musica Poetica (2004 [1606]), é um dos primeiros autores


a comparar a construção do discurso musical com o discurso do orador. Ele o divide
em três partes:

Exordium é o primeiro período ou afecção [affectio] do canto (...);


nele, o ânimo e o ouvido do ouvinte tornam-se atentos às melodias.
(...). O corpo do canto [corpus carminis] é tudo o que está compreen-
dido entre o exordium e o fim; nele, o texto penetra no ânimo dos
ouvintes por diversos argumentos da prova retórica, para tornar a
sentença mais clara e digna de consideração. O fim (...) é chamado
suplemento; ele penetra muito claramente no ânimo do ouvinte14
(BURMEISTER, 2004 [1606], XV, p. 72-73).

13
“Die Natur selbst [lehret uns] (…) gewisse Argumente oder Gründe [zu] gebrauchen, und in denselben
eine gehörige Ordnung zu halten (…). Und eben aus diesem natürlichen Triebe des Verstandes, der
uns locket, alles mit einer guten Ordnung und Zierlichkeit vorzubringen, sind endlich von sinnreichen
Köpffen die Regeln entdecket und angegeben worden”.
14
“Exordium; prima carminis periodus, sive affectio...qua auditoris aures et animus ad cantum attenta
reduntur, illiusque benevolentia captatur (...). Corpus Cantilenarum est intra Exordium & Finem
affectionum sive periodorum comprehensa congerie,s quibu textus velut varjs Confirmationis Rhe-
toricae argumentis, animis insinuantur, ad sententiam clarius arripiendm & considerandam. (...).Finis
(...), quod supplementum vocatur, eo, ut dilucidior in animos attendentium penetret a modulando
instans desinentia”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

Nas discussões do século XVII, a dispositio é tratada como assunto secundá-


rio. Teóricos como Burmeister dedicam poucas palavras ao assunto, e Kircher é
ainda mais sucinto, afirmando apenas que a “disposição é verdadeiramente bela
quando expressa por justaposições adequadas das notas”15 (KIRCHER, 2006
[1650], II, 8, 4, p. 143).
133
No século XVIII, a situação se modifica. O Vollkommene Capellmeister, de
Mattheson (1991 [1739]), apresenta a descrição mais pormenorizada sobre a dis-
positio musical publicada na primeira metade do século XVIII. Ela é extensa, prin-
cipalmente se comparada com as descrições seiscentistas, ainda que não seja tão
detalhada como as descrições do fim do século XVIII. Contudo, serve de base para
diversos escritos posteriores. Mattheson inicia o capítulo dedicado à disposição e
à elocução comparando o discurso verbal a um projeto arquitetônico, analogia
que já se encontra em preceptivas clássicas:

no que concerne à disposição, é uma organização agradável de todas


as partes e circunstâncias na melodia ou em toda a obra melódica,
quase como a maneira que dispomos e desenhamos, fazendo um ras-
cunho ou um plano para mostrar onde devem se localizar uma sala,
um quarto, uma câmara etc. Nossa disposição musical só se diferen-
cia da disposição retórica pelo assunto, matéria ou objeto: ela deve
observar as mesmas seis partes prescritas ao orador, a saber: a in-
trodução, a narração, a proposição, o reforço, a refutação e o fim –
exordium, narratio, propositio, confirmatio, confutatio e peroratio16
(MATTHESON, 1991 [1739], II, 14,4, p. 235).

A seguir, Mattheson (1991 [1739]) descreve cuidadosamente cada uma das


partes do discurso musical, exemplificando-as com uma ária da capo, o principal
dentre os gêneros vocais do século XVIII, gênero em que brilharam grandes can-
tores nas casas de ópera italiana que haviam caído no gosto de todas as cortes
europeias. A divisão de Mattheson corresponde àquela prescrita por Quintiliano
(1985 [95 a.C.]), em seis partes. Vale lembrar que este autor constituía a mais im-
portante referência para o estudo da retórica nas escolas luteranas, as Lateins-
chulen, seja por via direta ou reformulado por Melanchton e Bugenhagen.
15
“Dispositio vero est pulchra quaendam eorundem per aptas notarum applicationes expressio”.
16
“Was zum ersten die Disposition betrifft, so ist eine nette Anordnung aller Theile und Umstände in
der Melodie, oder in einem gantzen melodischen Wercke, fast auf die Art, wie man ein Gebäude
einrichtet und abzeichnet, einen Entwurff oder Riss machete, um anzuzeigen, wo ein Saal, eine
Stube, eine Kammer u.s.w. angeleget werden sollen. Unsre musicalische Disposition ist von der
rhetorischen Einrichtung einer blossen Rede nur allein in dem Vorwurf, Gegenstande oder Objecto
unterschieden: dannenhero hat sie eben diejenigen sechs Stücke zu beobachten, die einem Redner
vorgeschieben werden, nemlich den Eingang, Bericht, Antrag, die Bekräfftigung, Wiederlegung und
den Schluss. Exordium, Narratio, Propositio, Confirmatio, Confutatio & Peroratio”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

Para Mattheson (1991 [1739]), o exordium deve conter “a introdução e início


da melodia”, em que se mostra o “sentido e a intenção da peça”17 (II, 14, 7, p. 236)
Corresponde, assim, exatamente à descrição de Burmeister (2004 [1606]). Ambas
se conformam às prescrições de Cícero, que descreve o exordium como “uma ex-
pressão que prepara o espírito do ouvinte para o resto do discurso”18 (2006, I, XV,
134 20, p. 40) e Quintiliano, para quem esta parte do discurso deve captar o ânimo do
ouvinte para o assunto que se segue (1985, VI, 1, 2, p. 7).
A parte do discurso que para Burmeister (2004 [1606]) corresponde ao corpus
carminis é subdividido em quatro por Mattheson (1991 [1739]). Dessa forma, ao
corpus de Burmeister, correspondem, no “Mestre de Capela Perfeito” de Matthe-
son, a narratio, a propositio, a confutatio e a confirmatio.
Para Mattheson, a narratio deve apresentar um relato que descreva o assunto
principal. Ele acrescenta uma informação interessante: ela se inicia com a entrada
da voz cantante ou da voz concertante principal, indicando que ele não se restringe
apenas à prática vocal, quando discorre sobre o discurso musical. Mattheson
afirma, a seguir, que a propositio deve explicar a narratio, quando isso se faz ne-
cessário e quando a extensão da peça o permite. Ele explica que a propositio se
inicia quando “o baixo toma a palavra e explica resumidamente a melodia”19 (1991
[1739], II, 14, 16, p. 237). Para Quintiliano, a propositio “é útil em casos obscuros
e complexos, nem sempre para tornar o caso mais transparente, mas para mover
os afetos”20 (1985, IV, 4,4 p. 132). A seção seguinte, confutatio, segundo Matthe-
son, constitui a parte mais bela da oração: nela, as proposições iniciais são diluídas
e surgem procedimentos extraordinários na melodia e na harmonia. Estes devem
ser contrapostos à confirmatio, a repetição (ornamentada pelo intérprete) da nar-
ração inicial.
Para Burmeister (2004 [1606]), o final do discurso merece atenção redobrada.
Para ele, no epílogo, o canto deve “penetrar no ânimo do ouvinte” (XV, p. 73).
Mattheson também prescreve um estilo “especialmente enfático” para a perora-
tio, o fim do discurso (1991 [1739], II, 14, 19, p. 238). Ambos estão em concor-
dância com Cícero, que prescreve que essa parte do discurso inflame o ouvinte,
causando nele forte impressão, e com Quintiliano, que afirma que o epílogo deve
mover de tal modo as paixões do ouvinte, que este deixe de questionar os fatos21
(1985 [95 a.C.], VI, 2, 6, p. 418).
17
“Das Exordium ist der Eingang und Anfang einer Melodie, worin zugleich der Zweck und die ganze
Absicht derselben angezeiget werden muss, damit die Zuh6orer dazu vorbereitert, und zur Auf-
mercksamkeit ermuntert werden”.
18
“Exordium est oratio animum auditoreis idonee comparans ad reliquam dictionem”.
19
“Solche Vortrag hat seine Stelle gleich nach dem ersten Absatz in der Melodie, wenn nehmlich der
Bass gleichsam das Wort führet, und die Sache selbst so kurz als einfach vorleget”.
20
“Item in causis obscuris aut multiplicitus, nec semper propter hoc solum ut sic causa lucidior, sed
aliquando etiam ut magis moveat”.
21
“Ita argumenta ac testes quit egerint, pronuntiatio ostendit; commotus autem ab orator iudex, qui
sententiat, sedéns adhunc atque audiens confitetur.”
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

3. Elocutio
Para Cícero, na elocução retórica, vestem-se os conceitos [res] encontrados na
inventio e ordenados na dispositio com palavras [verba] (CÍCERO, 1942, I, 31, 142,
p. 98). Com isso, ele se refere principalmente às expressões utilizadas no discurso.
A elocução musical constitui, com a inventio e a dispositio, a totalidade da 135
composição musical. Nela, os argumentos da inventio são ordenados, e as partes,
ligadas, de modo a fazerem sentido.
Vimos que as preceptivas musicais seiscentistas se concentram na represen-
tação musical de palavras portadoras do sentido do texto. Essas transposições não
se limitam à inventio, mas também são amplamente aplicáveis à elocutio musical.
As figuras encontradas na inventio são refinadas na elocutio. Tratados seiscentistas
fornecem tratamento substancial às listas de figuras musicais, que são caracteri-
zadas com termos técnicos transpostos da retórica. Este é um aspecto historica-
mente importante do Musica Poetica de Burmeister (2004 [1606]), que inaugura
essa tradição descrevendo 27 figuras musicais. Com isso, ele transforma as rela-
ções entre música e linguagem (já existentes na música quinhentista) em ferra-
mentas de composição. Após Burmeister, as poéticas musicais luteranas passaram
oferecer apanhados de figuras musicais, geralmente emprestadas da Retórica. Isso
ocorre em Nucius, Thuringus, Kircher, Walther, Bernhard, Printz, Ahle, Janovka,
Vogt, Mattheson, Spiess, Scheibe, Forkel etc.22
Nesses tratados, o emprego de figuras retóricas para nomear artifícios técni-
cos musicais dá a esses procedimentos qualidades extramusicais, verbalmente de-
finidas: climax, hyperbole, hypotiposis... A ideia de que as figuras contenham
ensinamento já está proposta na Retórica aristotélica. Nela, lemos que “[a metá-
fora] causa prazer ao que procura ensinamento” (ARISTÓTELES, 1991, 1412b12,
p. 156). Similarmente, lemos no Cannocchiale Aristotelico, o tratado de agudeza
de Emanuele Tesauro (2000 [1652]), que “as figuras retóricas não são outra coisa
que uma beleza peregrina que varia a oração do estilo cotidiano e vulgar para que
ela traga ensinamento conjunto com a novidade, e o ouvinte simultaneamente
aprenda gozando e goze aprendendo” (TESAURO, 2000 [1652], I, 4, p. 124).23
No pensamento musical luterano, esse ensinamento inclui também as pro-
porções musicais e sua relação com a Ordem divina. Essas proporções se referem
a aspectos puramente instrumentais da linguagem musical. Na instituição da mu-
sica poetica, esses procedimentos numéricos também passam a ser carregados
de valor semântico.
É interessante notar que, para Burmeister, figura musica não é apenas um
procedimento técnico incluído em um período musical; ela representa um princí-
22
BARTEL (1998) traz um apanhado de descrições de figuras realizadas por esses autores.
23
“Conchiudo, le Figure Rettoriche altro non esser, che Un vezzo pellegrino, variante la Oratione dallo
stile cotidiano & volgare: accioch’ ell’ habbia insegnamento congiunto com la novità: & l’uditore in
um tempo impari godendo, & goda imparando”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

pio estrutural constitutivo dele. Por isso, a unidade período-figura é também de-
nominada afecção [affectio, sive periodus] (BURMEISTER, 2004 [1606], XV).

ornamento ou figura musical é uma progressão musical da harmonia


ou da melodia, circunscrita por um período, que inicia em uma cláu-
136 sula e termina numa cláusula, que se afasta das regras básicas da
composição e corajosamente toma uma forma mais ornada (...) O or-
namento melódico é aquilo que acrescenta sal [agudeza] ornado à
voz24 (BURMEISTER, 2004 [1606], XII, p. 55).

Kircher também ressalta a importância das figuras na constituição da elocutio,


descrevendo essa parte do discurso da seguinte maneira: “a elocução, finalmente,
é a exibição da melodia perfeita em todas as suas partes, ornada por tropos e fi-
guras”25 (2006 [1650], II, 8, 4, p. 143). Ele também alude a seu poder afetivo: “fi-
gura retórica consiste em variação de uma palavra por adição, duplicação,
multiplicação, repetição, de modo que ela se torne eloquente, interrogante, re-
tumbante, proponente de coisas elevadas, admiráveis ou vis e indignas”26 (Id. Ibid.,
II, 8, 8, p. 244) Em seguida, descreve diversas figuras musicais.
Tratados musicais seiscentistas, preocupados principalmente em descrever
as figuras musicais, não incluem discussões sobre as virtudes da elocução, sempre
presentes nas preceptivas retóricas clássicas, de Aristóteles a Quintiliano. Esse
exame só passa a fazer parte das reflexões musicais no século XVIII. As virtudes
da elocução descritas por Cícero – decoro, clareza, pureza e correção da linguagem
– são as mesmas descritas por Mattheson (1991 [1739]), que parece ter sido o
primeiro a transpor esses conceitos para a música, na parte do tratado em que
discorre sobre as virtudes da melodia.
Dentre estas virtudes, a principal é a adequação entre matéria, ocasião e es-
tilo musical, conhecida nas preceptivas clássicas como decorum ou aptum. Nessas
preceptivas, como também para Mattheson, o decoro constitui a principal quali-
dade da elocução. Esta questão é tão importante para Mattheson, que chega a
compor o primeiro princípio geral da música, a premissa que abre seu referencial
tratado:

todas as coisas devem cantar convenientemente. Sob a palavrinha


conveniente [gehörig], da qual advém a maior força deste princípio

24
“Ornamentum, sive figura musica est tractus [região] musicus; tam in harmonia, quam in melodia,
certa periodo [volta completa], quae a clausula initium sumit, & in clausulam desinit circumscriptus,
que a simplici compositionis ratione discedit, & cum virtute ornatiorem habitum assumit & induit
(...).Melodiam ornamentum est, quod salem voci ornatum addit”.
25
“Elocutio denique est ipsa Meloshesiae omnibus numeris absolutae, tropis figurisque exornatae
per cantum exhibitio”.
26
“constitit autem figura rhetorica in varia eiusdem verbi additione, geminatione, multiplicatione
sive repetitione, per modum alloquentis, interrogantis, increpantis proponentis res magnas, altas,
admirabiles, viles, indignas”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

geral, entendemos, como é fácil de se avaliar, todas as circunstâncias


agradáveis e verdadeiras propriedades do cantar e tocar, tanto com
respeito ao movimento dos afetos, quanto [com respeito] aos estilos
de escrita, palavras, melodia, harmonia etc.27 (MATTHESON, 1991
[1739], I, 1, p. 1).
137
No capítulo que trata dos gêneros e estilos musicais, Mattheson se refere ao
decoro em sentido específico, diretamente vinculado à elocução. Vimos que ele
remete a Cícero, ao utilizar as denominações alto, médio e baixo, quando trata
dos estilos musicais. Se, para Cícero, o estilo sublime “é patético, devendo suscitar
paixões intensas e para isso, utiliza os meios que lhe conferem brilho e majestade”
(CÍCERO, 1991, I, 74, p. 66), para Mattheson (1991 [1739], I, 10, 20, p. 71), o estilo
alto “soará natural, caso sua escrita seja suntuosa”. Para o orador romano, o estilo
médio é aquele que apraz e deleita, enquanto o Mestre de Capela deve requerê-
lo fluente. Finalmente, Cícero sugere pureza e uso da matéria comum, diária, pe-
quena, no estilo baixo, ao passo que Mattheson pede para este estilo uma escrita
“sem muitas elaborações”28 (1991 [1739], I, 10, 20, p. 71).
Essas prescrições regulam o decoro entre matéria [res] e modo de elocução
[verba], e as ideias de Cícero e Mattheson a esse respeito são muito semelhantes:
a matéria alta requer um estilo ornado (brilhante, majestoso, suntuoso), enquanto
a matéria baixa pede um estilo liso (sem elaboração, puro). Para Mattheson, os
estilos devem condizer não só com os pensamentos, ou seja, com a matéria, mas
também com a intenção (a circunstância sacra, teatral ou camerística) da música.
Com relação às categorias da pureza e correção de linguagem, Mattheson
(1991 [1739]) dedica a segunda parte de seu tratado à arte de construir melodias
corretas, ao bom uso dos pés métricos e das fórmulas de compasso. Para Forkel,
que escreve em 1788, portanto cerca de 50 anos após Mattheson, essas questões
não pertencem mais à Retórica, mas à Gramática musical.
A última dentre as virtudes da elocução prescritas no “Mestre-de-Capela Per-
feito” é a clareza. Mattheson trata, nesse tópico, do uso adequado dos sinais de
pontuação musicais - vírgulas, dois pontos, pontos finais – de maneira a formar
incisos, frases, parágrafos etc. que conferem precisão tanto ao discurso verbal
quanto ao musical. Ele aproxima a música do texto vocal, determinando que as
27
“alles muss gehörig singen. Unter dem Wörtlein gehörig, als worauf die meiste Stärcke dieses all-
gemeinen Grund-Satzes ankömmt, begreiffen wir hierselbst, wie leicht zu ermessen, alle angenehme
Umstände und wahre Eigenschafften des Singens und Spielens, sowol in Ansehung der Gemüths-
Bewegungen, als Schreib-Arten, Worte, Melodie, Harmonie, u.s.w”.
28
“Wenn nun eine hohe Schreib-Art in der Ton-Kunst natürlich seyn soll, so muss sie prächtig klingen.
Eine mittlere kann nicht natürlich seyn, falls sie nicht fliesset. Und eine niedrige voller Ausarbeitungen
wäre unnatürlich. Das hohe, mittlere und niedrige steckt also zusammen in dem natürlichen Wesen,
und in den Sachen selbst; ist also nicht einfach”. [Para que uma escrita [Schreibart] alta seja natural,
na música, ela deve soar suntuosa. Uma média não poderá ser natural, caso não flua. E uma baixa
cheia de elaborações seria anti-natural. O alto, médio e baixo encontram-se no modo de ser [Wesen]
natural, e nas próprias coisas]”.
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

frases musicais sigam os pontos de repouso e o sentido do texto. Nesse aspecto,


ele se reporta a uma tradição antiga, que chega até o canto monódico, passando
por Zarlino (1558), que já observa que “a cadência tem na música valor igual ao
período na oratória” e que “o período e a cadência devem coincidir”29 (1558, III,
53, p. 221). Porém, Mattheson é o primeiro a estender essa premissa também à
138 musica instrumental, utilizando uma terminologia detalhada, emprestada da lin-
guagem verbal.
Mattheson ilustra a ideia de pontuação musical com um minueto:

figura 1 - Johann Mattheson. Minueto.


fonte: Der Vollkommene Capellmeister (MATTHESON, 1991 [1739]. II, 13, 82)

Na figura, os sinais acima da partitura se referem aos pés métricos, os abaixo,


à pontuação da melodia. Nela, os pontos indicam respiração, e, nos finais de frase,
os três pontos indicam o ponto final.
Essa nomenclatura será recuperada e amplamente utilizada por autores da
segunda metade do século XVIII, em especial o Versuch einer Anleitung zur Com-
position [“ensaio sobre uma instrução para a composição”] (1782-1793), de Hein-
rich Christoph Koch. A partir da metade do século XVIII, as preceptivas musicais
dedicam porções cada vez mais extensas à periodologia musical. Ela passa a cor-
responder à parte mais importante e, por isso, mais extensamente descrita da re-
tórica musical.

Considerações finais
No que diz respeito às partes do discurso, pudemos constatar no decorrer
deste texto que poéticas musicais seiscentistas e setecentistas dão grande ênfase
à inventio musical, dedicando extensas porções de suas obras a essa parte do pro-
cesso de composição Na inventio retórica, palavras portadoras de sentido do texto
29
“Onde la Cadenza è di tanto yalore nella Mufica quanto il Punto nella Oratione ; &fi può yeramente
chiamare Punto della Cantilena . É ben yero chefi pone anco douefi ripofa cioè doue fi troua la ter-
minatone di yna parte dell’harmonia nel modo chefifermiamo etiandio nel conte/lo della Oratone,
quando ftroua non folamente la didi/itone mezana ma ancora la finale”.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

determinam em que direção o engenho do compositor deverá agir, amparando-se


nos lugares-comuns e num grande número de figuras musicais. Nesse sentido, a
inventio é um saber artesanal e estudado, uma ferramenta direcionada para a
composição; ela não se relaciona à autoexpressão de um sujeito criador. A criação
musical a partir da inspiração, embora também seja descrita por autores como
Mattheson, é vista como um recurso auxiliar e não passível de ensinamento. 139
No que diz respeito à disposição musical, admite-se a existência de uma
ordem estabelecida pela natureza em todas as coisas, captada (e não criada) pelo
engenho humano. Com isso, afirmam as poéticas musicais que a ordem garante a
compreensão do discurso por parte do ouvinte – seja ela representada pela planta
de um edifício (Mattheson), pela sentença do orador (Burmeister, Forkel) ou pelo
planejamento da composição musical. A dispositio retórica não consiste em uma
forma, um molde imposto à representação, mas em uma organização determinada
pela concordância de seus elementos internos e por sua finalidade.
Autores da musica poetica dividem seus discursos musicais em partes com
diferentes funções. Há um consenso geral de que a introdução e o fim do discurso
têm função mais patética, visando, respectivamente, ganhar a benevolência e co-
mover o ouvinte. A parte central, diferentemente, concentra-se mais nas descri-
ções, nas provas e nos argumentos.
A elocutio é assunto central nas poéticas musicais seiscentistas. Para Bur-
meister, a figura musical é uma representação da ideia principal contida na frase
verbal, quando esta é posta em sons, criando uma variação eloquente da palavra.
Preceptivas da musica poetica preocupam-se com a representação musical das
palavras principais do texto que, no caso de autores reformados, evidencia seu
poder dogmático e gera ensinamento, prazer e comoção. Alguns procedimentos
estritamente musicais, vinculados à ideia de numerus, também ganham status de
figura, quando a eles é acoplado um sentido verbal e teológico.
A discussão retórica sobre as virtudes da elocução só passa a fazer parte das
preceptivas musicais no século XVIII, em especial no “Mestre-de-Capela Perfeito”,
de Johann Mattheson. Vimos a importância que este autor dá à noção de decoro,
e que essa ideia constitui a premissa básica para o sucesso de uma composição
musical. Mattheson afirma que deve haver adequação no estilo: matérias altas re-
querem um tratamento suntuoso, ou seja, muito figurado, e matérias baixas, in-
versamente, requerem estilo fluente e sem elaborações. Mattheson também
discorre sobre a clareza e correção da linguagem e se concentra na ideia de pon-
tuação musical. No entanto, não vincula essas regras à ideia de gramática, como
farão autores posteriores, como Forkel.
Durante os séculos XVI e XVII, a aproximação da música com as disciplinas
do trivium decorre da premissa de que a música é um discurso dos afetos. É inte-
ressante lembrar que, no final do século XVIII, Johann Forkel apresenta elementos
da gramática e da lógica musical, consolidando definitivamente a ideia de música
como linguagem, no viés do trivium. Nas discussões da musica poetica, é possível
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO MUSICAL SEGUNDO PRECEPTIVAS DOS SÉCULOS XVII E XVIII

perceber que a identidade entre música e retórica estruturou o conhecimento


musical dos séculos XVII e XVIII, legitimando a teoria e a prática por meio da fun-
damentação em uma origem única, primitiva: a Natureza.

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O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO
EM CAMPO JURÍDICO

Rubens Damasceno-Morais
Universidade Federal de Goiás/UFG
r.damasceno.morais@uol.com.br 143

Resumo
Observar a dinâmica da interação argumentativa em tribunal brasileiro de Segunda Instân-
cia, em julgamentos acerca do dano moral, é o principal objeto deste estudo. Para tal, em-
preenderemos um mergulho mais atento na função exercida pelo clássico terceiro/tiers,
no movimento do discurso-em-interação, para mostrar possibilidades de espraiamento da
função desse clássico papel de atuação. Tudo isso será examinado à luz de estudo de caso
(corpus TRIBUNAL), a partir do qual mostraremos um pouco da dificuldade que têm os ma-
gistrados no momento de definição do montante a ser pago como compensação por um
dano moral sofrido (suum cuique tribuere). Nesse sentido, buscaremos apoio na noção de
situação argumentativa, que abriga o conceito de estase, e que poderá nos ajudar a com-
preender a dinâmica de um julgamento em Segunda Instância.

PalavRas-chave
Interação argumentativa. Estase. Dano moral. Terceiro. Tribunal.

Introdução
Na presente pesquisa, prestamos atenção na forma como os papéis de atua-
ção (rôles actantiels) representados pelo proponente (proposant), oponente (op-
posant) e terceiro (tiers) se desdobram em interações argumentativas que têm,
como pano de fundo, um tribunal brasileiro de 2ª Instância1. Neste exercício de
análise, os dados de que dispomos, oriundos do corpus TRIBUNAL2, ajudam-nos a
enxergar de que forma acontece a interação argumentativa entre magistrados em
algumas deliberações jurídicas sobre dano moral. Mais precisamente, nos dete-
1
Este estudo faz uma releitura de análise apresentada na tese Le prix de la douleur: gestion des dé-
saccords entre magistrats, dans un tribunal brésilien de Seconde Instance (“O preço da dor – gestão
do desacordo entre magistrados em um tribunal brasileiro de Segunda Instância”), defendida em
2013, na Université Lumière Lyon 2, França.
2
O corpus TRIBUNAL é composto por audiências gravadas em um tribunal brasileiro de 2ª Instância,
em sessões de deliberação entre magistrados. Os julgamentos selecionados referem-se sempre a
questões de danos morais, uma vez que a tese da qual foi retirada a reflexão aqui apresentada
buscou estudar a gestão do desacordo entre magistrados em processos de dano moral. Apesar de
termos tido autorização do referido tribunal para utilização anônima dos dados, preferimos não in-
formar a cidade brasileira na qual o tribunal está instalado. Essa é apenas mais uma medida para ga-
rantir o sigilo quanto às identidades dos participantes (juízes e desembargadores) ou mesmo dos
nomes das partes envolvidas nos casos julgados. As deliberações selecionadas foram julgadas entre
os anos 2000-2010.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

remos no que enxergamos como espraiamento, ou redimensionamento, do papel


atuacional do terceiro, ao longo de um dos julgamentos observados.
Como tentaremos mostrar, o momento da definição do montante a ser pago
como dano moral propiciará a emersão do avaliador, um desdobramento do ter-
ceiro atuacional, e que apresenta, como sua missão, naquele contexto, instigar os
144 outros membros da deliberação a fazerem novas proposições de valores a serem
pagos como compensação por dano moral sofrido por uma das partes em pro-
cesso em área Cível. Geralmente o avaliador atuará em momentos de forte con-
flito (estase), ao longo dos julgamentos analisados.
Para mostrar tal peculiaridade do avaliador, buscaremos, em primeiro lugar,
explicar a noção de “situação argumentativa” e sua importância para bem descre-
vermos a seara em que nos embrenhamos: Situação argumentativa em seara ju-
rídica. Em seguida, esclarecemos que tipo de modelo dialogal nos interessou para
a construção da análise aqui apresentada: O modelo interacional. E, em continui-
dade a nossas elucubrações, discutiremos brevemente o contexto da ação jurídica
em julgamentos de dano moral: O direito em ação. Neste, veremos de que forma
a própria expressão “dano moral” remete a equívocos, devido à herança cultural
carregada pelo vocábulo “moral”. Nesse momento ainda explicaremos de que
forma acontece o ritual de julgamento de processo em 2º. grau de jurisdição ou
o momento em que três magistrados em deliberação irão avaliar a sentença ou-
trora prolatada por um de seus pares. Necessário será, também, explicarmos a
noção de negociação, no corpus que analisamos, para evitar interpretações des-
focadas: As situações de negociação. Por fim, na seção O redimensionamento dos
papéis de atuação, apresentaremos uma breve análise, por meio da qual aliaremos
a parte teórica a um caso concreto de argumentação em contexto de interação.
Desse modo, procuraremos mostrar de que forma o papel atuacional do terceiro
(tiers) se redimensiona na função de avaliador, permitindo-nos melhor compreen-
der o modo como os magistrados lidam com a difícil missão de atribuírem um
“preço” (pretium doloris) a um dano moral, em sessões, muitas vezes polêmicas,
de definição de montantes a serem pagos como compensação por ato considerado
ilícito sofrido por alguém.

1. Situação argumentativa em seara jurídica


A breve análise aqui apresentada parte da noção de “situação argumenta-
tiva”, concepção da retórica antiga rediscutida por autores como Plantin (1990,
1995, 1996, 2005) e Grácio (2009, 2010), e que ocorre quando um discurso (pro-
ponente) e um contradiscurso (oponente) se afrontam diante de um terceiro
(tiers), cuja função é, em contexto jurídico, por exemplo, assegurada por disposi-
tivo institucional: a deliberação entre magistrados, nos tribunais de Segunda Ins-
tância. Desse modo, uma situação argumentativa, em realidade, retraça a
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

concepção clássica de argumentação como controvérsia – seja ela real ou mera-


mente provável, pressupondo sempre dois polos discursivos antagônicos, que,
transpostos para a realidade do corpus que aqui analisamos, podem ser represen-
tados pelas partes de um processo, demarcadas pelo autor e pelo réu, sem os
quais um processo jamais poderia ser posto em prática. No entanto, uma situação
argumentativa poderá ir além: pode englobar também os magistrados (além das 145
partes do processo) que, numa situação de deliberação, poderão se posicionar de
maneiras nem sempre consensuais, o que gerará um profícuo debate de ideias
durante uma votação, numa dinâmica de troca de papéis de atuação (rôles actan-
tiels)3.
Desse modo, o que deve ficar claro é que, independentemente de quem per-
sonifique tais papéis (partes interessadas em um processo judicial, magistrados
durante uma deliberação, pessoas com pontos de vista antagônicos numa con-
versa informal etc.), a oposição de um discurso e de um contradiscurso é pressu-
posto para a definição de situação dita “argumentativa”, uma vez que tais
situações se caracterizam e se alimentam de dissonâncias ao longo da interação.
Em outros termos, de acordo com esse modelo dialogal, uma situação argumen-
tativa típica define-se devido a uma confrontação de pontos de vista relativos a
uma mesma questão, adquirindo ali valor argumentativo todos os elementos se-
mióticos que de alguma forma se relacionem com uma questão-problema (PLAN-
TIN, 2005, p. 53). E isso não significa simplesmente uma discordância do tipo
“gostei/não gostei”, mas a construção de um posicionamento antagônico ao longo
de uma discussão.
Moeschler (1985, p, 47) apresenta um posicionamento similar ao de Plantin,
quando diz: “um discurso argumentativo (...) tem sempre por trás um contradis-
curso efetivo ou virtual” (grifos nossos). Nesse contexto, tal forma de compreender
uma situação argumentativa preconizaria a existência ou a possibilidade de um
desacordo acerca de uma questão como condição de emergência da argumenta-
ção. Perelman & Olbrechts-Tyteca (2008), ao identificarem o campo da argumen-
tação com o reino do provável, não pensam diferente. Para os autores, o ato de
argumentar é acionado desde que não haja certeza acerca de um tema em debate.
Desse modo, a partir da contradição entre as partes de um processo, nasce uma
questão, que formaliza o conflito entre A e B.
Como nosso foco de análise aqui é especificamente a arena jurídica, veremos
de que forma uma questão-problema integrará o debate de magistrados atuantes
em Segundo Grau de Jurisdição ou 2ª Instância, os quais, num conflito de opiniões
e reunidos em deliberação, precisarão analisar um processo (o caso concreto) e
julgarem se uma ação é de fato litigiosa. Ali, o intercâmbio de papéis de atuação

3
Aderirei à versão proposta por Rui Grácio para a expressão rôle actantiel, que foi por ele traduzida
como papel de actuação.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

entre os próprios magistrados (proponente, oponente e terceiro) terá importante


destaque no fio da interação, como tentaremos mostrar.
Importante apontar que a noção de “questão argumentativa” tem suas origens
na concepção de estase, presente no domínio judiciário, teorizada pela argumen-
tação retórica. Numa das acepções desse termo, a ideia de estase tem ligação com
146 o mundo da medicina, pois, em seu sentido original, significa o bloqueio da boa
circulação dos fluidos no corpo humano e que, ao ser transposto para o mundo da
argumentação e da interação verbal, remete à ideia de conflito, de desacordo, de
divergência entre partes ao longo de uma discussão. Para Plantin:

Há estase (stasis) quando os humores são bloqueados, e a arte mé-


dica tenta fazer com que o sangue se desobstrua e circule livremente.
Da mesma forma, há questão argumentativa quando a circulação
consensual de um discurso está bloqueada devido a uma contradi-
ção, a uma dúvida; desta feita, a arte da argumentação procura res-
tabelecer o fluxo normal, consensual do diálogo (...) (2005, p. 76).

Tal metáfora orgânica (estase), tomada de empréstimo por Plantin, é central


em nossas reflexões acerca da gestão do desacordo em território jurídico, pois
procuramos mostrar como o conflito se resolve ao longo das interações entre ma-
gistrados (desembargadores), em interações orientadas por questões (argumen-
tativas) reais, em processos reais, sempre ligados a questões de dano moral.
Optamos por traduzir para o português brasileiro a palavra stase, como retomada
por Plantin, por estase, com o objetivo de simplificar a apresentação do conceito4.
Grácio (2010, p. 83; 2013, p. 122), após retraçar um histórico idiossincrásico para
o termo, em fim de contas reafirma que tal conceito se coaduna à ideia geral de
conflito. Segundo o autor: “A stasis representa um choque de discursos e o pro-
blema ou as questões que levanta estarão na base da especificação das exigências
segundo as quais se poderão desenvolver os argumentos apropriados”. Adotare-
mos, ainda, a grafia “estase”, e não stasis, como o faz Grácio.
Aqui buscaremos refletir acerca de possibilidades de análise de dados em
contexto jurídico, em situações conflituosas, quando um mesmo sujeito fará des-
filar os papéis de atuação (proponente, oponente, terceiro) ao longo de uma de-
liberação, no seio da qual todo conflito de opiniões deve ser analisado de acordo
com parâmetros de objetos, de linguagem, de interação, em um modelo essen-
cialmente dialogal. Eis a razão pela qual optamos por recorrer a esse modelo para
nos apoiar nas análises dos dados coletados para esta pesquisa e que tem nos diá-
logos gravados – frutos de deliberações em 2.ª Instância – seu porto seguro.
4
Tanto o Michaelis quanto o Houaiss já apresentam em seus dicionários o vocábulo estase, no sentido
de estagnação do sangue ou dos humores em qualquer parte do corpo; paralisação, entorpecimento;
parada de qualquer fluido circulante. Desse modo, como a palavra já está dicionarizada em português
do Brasil, no sentido original empregado por Plantin (stase), manteremos a tradução estase.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

2. O modelo interacional
Em um modelo dialogal de argumentação, a linguagem não é mera linguagem
de objetos, mas linguagem constituída por interlocutores/interagentes, marcada
por pontos de vista. Em tal contexto, a palavra “dialética” carrega múltiplos senti-
dos. Neste trabalho, vamos entendê-la, sobretudo, como “diálogo racional”, con- 147
duzido de acordo com regras institucionais precisas. A concepção aqui
desenvolvida busca evitar reduzir o objeto da argumentação a mera disputa ou a
um discurso institucional extremamente rígido. Em nosso trabalho, vamos sempre
observar o valor dos argumentos nas interações, nesses dois tipos de situação. A
dialética que aqui vislumbramos situa, de uma forma ou de outra, a argumentação
no interstício entre o monólogo e o diálogo.
Para Plantin (2002, p. 231), a argumentação “não se localiza ‘na língua’; tam-
pouco se mostra como mera postura enunciativa monológica”. Segundo o autor,
a argumentação está irredutivelmente no enunciativo e no interacional, em um
vai-e-vem perpétuo entre o face-a-face e a reflexão, cujo motor seria a contradi-
ção. Tais reflexões lembram-nos que a elaboração de discursos não pode se resu-
mir a uma “matemática tópica” (Ibid., p. 62). De acordo com a concepção de
argumentação com que trabalhamos, é no seio de uma interação verbal que o te-
cido discursivo se torna a obra comum de participantes, perpétua e sistematica-
mente modificada por intervenções de parceiros em conversações, seja em
situações de conflito ou de colaboração. O mais instigante em se debruçar sobre
argumentações em contexto de interação é percebermos que, geralmente, o fio
da interação está diretamente relacionado à pressão do momento real e às vicis-
situdes de cada situação vivida e sobre as quais os locutores não têm nenhum
controle devido à espontaneidade das situações, mesmo em situações institucio-
nais, como o debate em âmbito jurídico.
Aqui, examinaremos os excertos que descrevem interações reativas (proposi-
ções seguidas de contraproposições), nas quais os interactantes buscam persuadir
uns aos outros (em alguns dos casos analisados), no momento da definição de mon-
tantes a serem pagos como dano moral. Esse contexto jurídico é particularmente
delicado, pois existem consideráveis controvérsias na doutrina brasileira acerca do
significado das palavras “dano” e “moral” (MORAES, 2003, p. 38, 45, 99), como ve-
remos. Não à toa, muitos magistrados reclamam do desconforto no momento de
definição do montante a ser pago em situações de dano moral comprovado, ale-
gando que em alguns casos é impossível saber com certeza o valor adequado e
justo a ser pago como compensação por um dano moral sofrido (REIS, 2010).
Desse modo, as análises nos ajudarão a perceber o que se ganha quando se
analisam trocas verbais em seara tão polêmica como a jurídica, sob olhar dos es-
tudos pragmáticos que tomam a dinâmica da interação verbal como prioridade.
Desse modo, tentaremos destacar, sobretudo, aspectos das forças ilocutórias das
falas pronunciadas pelos interactantes/magistrados, ao longo dos debates, pois
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

acreditamos que tentar enxergar de perto os meandros das interações nos mo-
mentos em que o desacordo/estase se manifesta, isto é, no fio da interação, nos
permitirá constatar, por exemplo, “certos fenônemos de retroação imediata” (KER-
BRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 17), que poderão ampliar nossa forma de compreen-
der argumentação em contexto de interação. Esse olhar mais minucioso nos
148 mostrará que argumentar não é apenas um jogo de argumentos e contra-argu-
mentos. Tal ação, em interlocução face-a-face, propicia muitos aspectos que vão
além da mera troca de razões/justificativas.
As análises propostas tentarão extrair algum sentido dos argumentos empre-
gados, sem perder de vista as reações que acompanham tais momentos, pois,
como buscamos deixar claro, é o ato da interação argumentativa que nos inte-
ressa, e não meramente a quantidade de argumentos utilizados, suas premissas,
conclusões etc. Desse modo, as reações, os efeitos perlocutórios de uma fala, o
resultado final da negociação, a forma como uma intervenção pode interferir no
valor do montante em debate, tudo isso precisará sempre ser visto em conjunto,
o que, acreditamos, metodologicamente pode nos levar a resultados mais insti-
gantes e menos mecanizados, como acontece em elaboração de meras listas de
argumentos utilizados em determinadas situações em que se lança mão de argu-
mentos para a defesa de posicionamentos diversos, em situações cotidianas.
Para Kerbrat-Orecchioni (1995, p. 8), as trocas realizadas entre participantes
de interações trilogais (com três participantes), pouco importando o tipo de con-
texto, reserva sempre boas surpresas ou, no mínimo, apresenta estruturas inte-
racionais pouco ordinárias. E não é por acaso que escolhemos os dados que
apresentaremos, isto é, dados de situação de interação oral, interativa, muitas
vezes polêmicas, em que, por exemplo, o teor emocional se faz notar por meca-
nismos paraverbais, como tom de voz, hesitações, palavras pronunciadas pela me-
tade, gaguejamentos etc. Esse tipo de dado, cabe destacar, é bastante comum em
trabalhos etnográficos, os quais, “sem se envergonhar de sua ignorância” (LATOUR,
2004, p. 205), lançam-se a descrever situações desconhecidas “na forma como elas
realmente acontecem” (Ibid.). Desse modo, tomando por base os dados etnográ-
ficos coletados em tribunal brasileiro, a pesquisa que apresentamos é o resultado
da descrição de procedimentos de magistrados atuantes na Segunda Instância
(Relator + Revisor + 1º ou 2º vogais), no momento de deliberações conflituosas,
em que se evidenciam divergências de opinião, num estudo que prioriza “o fazer
e dizer em contexto” (DUPRET, 2006, p. 17).
O exercício de tentar enxergar o momento de dissonância, de dúvidas ou de
conflitos de opinião (uma forma de estase irreversível) em deliberações entre de-
sembargadores, quando cada um dos três interagentes pode assumir tríptico papel
no fio da interação (isto é, os papéis de atuação: proponente, oponente e terceiro),
torna o tipo de análise aqui proposto mais complexo, porque ainda ousaremos
sugerir um desdobramento da terceira função atuacional, além daquelas indicadas
por Plantin. Como bem resume Grácio (2010, p. 77): “A vantagem da concepção
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

interacional no estudo dos textos argumentativos é a de poder considerar o valor


de um argumento ‘no interior da interacção circunstanciada em que ele ocorre”’.
Na pequena amostra que apresentamos, chamou-nos a atenção o efeito que
as regras procedimentais do ritual jurídico geram na interação. Por isso nos deti-
vemos na forma como a ação trilogal se desenvolve ao longo da deliberação, em
contexto jurídico. Também não deixamos de observar a maneira pela qual os ma- 149
gistrados lidam com as formalidades e restrições do contexto aqui em foco e o re-
flexo disso na interação argumentativa que se desenvolve ao longo das
deliberações.
Em realidade, poderíamos ter optado por analisar sentenças já publicadas
na internet, o que seria infinitamente mais fácil e cômodo. No entanto, e seguindo
a linha de reflexão de Plantin e de Grácio, que prestigiam a análise argumentativa
em contexto de interação verbal, consideramos que “uma argumentação, mesmo
a mais complexa, tem suas raízes nas trocas verbais, na interação” (PLANTIN, 1990,
p. 227). E tal assertiva está totalmente ligada à nossa proposta, considerando-se
a natureza dos dados com que lidamos. Em outros termos, ir a fundo no tipo de
interação entre os magistrados, ao longo das deliberações, nos ajudará, certa-
mente, a fazer uma reflexão mais consistente acerca da gestão do desacordo na-
quele contexto. Nesse sentido, achamos pertinentes as reflexões de Danblon
(2005, p. 125), para quem “mais recentemente (...) tem-se desenvolvido uma von-
tade sistemática de descrever os usos da argumentação a partir da coleta de
dados, o que permite situar a análise num âmbito interacional que dá conta de
todas as dimensões linguísticas”.

3. O direito em ação
O universo jurídico é estrito e formal, e os eventos que ali acontecem (julga-
mentos, deliberações, interrogatórios etc.) obedecem sempre a procedimentos
rígidos. A observação atenta das gravações que fazem parte do corpus coletado
em tribunal do Brasil nos permitiu constatar que os julgamentos em Segunda Ins-
tância se dividem em dois momentos principais: ETAPA 1: o momento em que os
magistrados qualificam um fato; ETAPA 2: momento em que os desembargadores
definem o montante que deverá ser versado, como reparação a ato ilícito causado
a alguém, isto é, um dano moral. Na primeira etapa do julgamento, os magistrados
tomarão decisão com base nos critérios propostos pela lei; sempre com funda-
mento nas provas e documentos apresentados já no julgamento em Primeira Ins-
tância para, enfim, analisarem se de fato acatam os pedidos do autor ou do réu.
Em processos de alegado dano moral, as partes geralmente dizem-se vítimas de
“sofrimento, dor, angústia etc.”, mas nem sempre apresentam o vínculo causal
entre a “dor” invocada e os fatos em si. E isso será avaliado pelos magistrados
nesse primeiro momento: a ilicitude do fato alegado.
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

Nesse primeiro momento de cada julgamento ainda pode acontecer de os


interlocutores (os desembargadores), em deliberação, discordarem da sentença
do magistrado de Primeira Instância. Se os julgadores não entenderem que houve
vínculo causal entre o fato alegado e a queixa da parte no processo, o caso se en-
cerra nesse primeiro momento, pois não se considerou a existência de dano moral;
150 logo, não caberá falar em cifras, valores, dinheiro (o que seria discutido numa
eventual segunda etapa). Não obstante, se os magistrados reconhecem um ato
ilícito nas reclamações de uma das partes no processo – e essa decisão muitas
vezes vai de encontro à decisão proferida em 1ª Instância, o que caracterizaria
uma estase entre instâncias jurídicas –, então a deliberação entra na segunda fase,
isto é, no momento da definição do montante relativo ao dano moral sofrido e
que, aos olhos dos magistrados, compensará o ilícito comprovado nos autos.
Nesse contexto de tribunal sobre o qual nos debruçamos, o espaço de inter-
locução é rigidamente determinado. Ali três magistrados (Relator/REL Revisor/REV
e Vogal/VOG) participam do debate. Se o julgamento não traz um revisor (o que
pode acontecer), então os outros dois magistrados participantes da deliberação
serão representados pelas siglas M1 (magistrado 1) e M2 (magistrado 2). Tal co-
dificação indica que M1 e M2 são os dois outros magistrados-vogais (em termos
jurídicos) a participarem da deliberação além do relator/REL. O julgamento de um
caso tem, geralmente, três participantes e, muitas vezes, ganha contorno intera-
cional pouco ordinário, pois, veremos, trata-se do momento em que a produção
oral entre os magistrados torna-se mais espontânea “como um modo de produção
que busca imprimir ao discurso mais liberdade, mais animação, vivacidade e rapi-
dez” (CORNU, 2005, p. 246), devido, justamente, à negociação que se estabelece,
sobretudo nos momentos mais conflituosos de definição do dano.
Aliás, como já sugerido, falar em dano moral no Brasil significa navegar em
águas turbulentas, devido às diversas controvérsias doutrinárias ligadas ao tema.
Tal assunto ainda representa um prato cheio para debates entre juristas, que travam
discussões acaloradíssimas acerca de questões terminológico-jurídicas. A esse res-
peito, os juristas destacam que, se consideradas isoladamente, as palavras “dano”
e “moral” seguem caminhos bastante distintos, o que pode induzir, sobretudo um
leigo, a interpretações errôneas. Isso porque, no dia-a-dia, esses termos são usados
recorrentemente, mas não no sentido jurídico, o que pode causar confusão.
A palavra “dano”, por exemplo, vem do latim damnum e significa, numa acep-
ção ampla, “todo o mal ou ofensa que tenha uma pessoa causado a outrem, da
qual possa resultar uma deterioração ou destruição à coisa dele ou um prejuízo a
seu patrimônio” (LEITE, 2002, p. 34). Já o vocábulo “moral” tem um percurso se-
mântico bem mais complexo, sobretudo porque “nada [é] mais tortuoso na his-
tória do pensamento do que o conceito de moral” (CARNEIRO, 1998, p. 118). Desse
modo, a palavra “moral” é, assim, um termo polissêmico, e que pode levar a in-
terpretações equivocadas quando usado na expressão “dano moral”, sobretudo
porque se trata de expressão técnica, pertencente ao mundo jurídico (CAHALI,
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

2005, p. 3) e que caiu nas graças populares, sendo repetida a torto e a direito, mas
por pessoas que não sabem exatamente o que isso significa. Na verdade, o que
os juristas tentam esclarecer é que as decisões relativas a danos morais não são
julgamentos morais, mas julgamentos estritamente jurídicos (COELHO, 2009, p.
16; REIS, 2010, p. 149).
Para Latour (2004, p. 251), os juristas lidam com “conceitos imprecisos” e, 151
parece-nos, a própria definição de “dano moral” é um bom exemplo dessa impre-
cisão, considerando-se a polêmica que tal noção suscita entre os juristas brasileiros
contemporâneos, como destacado por autores como Reis (2010), Coelho (2009)
e Cahali (2005)”.

4. As situações de negociação
Podemos considerar a segunda parte de cada julgamento como um tipo de
negociação entre os magistrados, reunidos para decidir o valor mais adequado para
cada caso. A escola de Amsterdam, por exemplo, considera a negociação como um
tipo de discurso argumentativo (van EEMEREN & GROOTENDORST, R., 2005; MO-
HAMMED, 2007). A fim de definir o que entendemos por “negociação”, é impor-
tante retomarmos alguns estudos que fazem da negociação o seu objeto de
pesquisa. Apesar de não termos a pretensão de conduzir uma análise puramente
etnometodológica, falaremos de negociação utilizando as noções definidas no bojo
de estudos em Análise da Conversação (como o conceito de “turno de fala”, “so-
breposição”, “fio da interação” etc.), para descrevermos os tipos de estase que
emergem das negociações/argumentações entre os magistrados no momento da
definição dos montantes demandados pelas partes nos processos em julgamento.
Como observamos, é no intervalo entre a proposição do montante sugerido
pelo relator e a ratificação desse valor pelos magistrados que se constrói o se-
gundo momento mais importante de cada julgamento, isto é, definir o montante
a ser pago, via negociação. Em realidade, independentemente do grau de pole-
micidade do caso, o processo de negociação entre os magistrados é sempre imi-
nente, pois os juízes precisarão achar uma cifra a ser paga como dano moral, o
que pode levar a debates, muitas vezes, estásicos. Não obstante, e de acordo com
Traverso (2003, p. 12), “a noção de negociação, se ela é praticamente indispensável
na análise dos discursos e das interações, está longe da unanimidade quanto a
sua definição, seu potencial ou quanto ao tipo de abordagem que melhor lhe con-
vém”5.
5
Retomamos essa ideia de negociação aqui empregada em artigo que será brevemente publicado
nos Proceedings do Congresso “Argumentation, Objectivity and Bias”, ocorrido em junho/2016, na
Universidade de Windsor, na ocasião da 11ª edição do OSSA (Ontario Society for the Study of Argu-
mentation). O site é: http://scholar.uwindsor.ca/ossaarchive/OSSA11/
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

Desse modo, na falta de uma definição consensual acerca do que seja uma
negociação em contexto de interação (KERBRAT-ORECCHIONI, 2011, p. 98), consi-
deraremos que, nos breves excertos aqui analisados, haverá uma situação de ne-
gociação toda vez que o primeiro/segundo vogais recusarem a proposição de
montante sugerida pelo relator, o que obrigará, ao menos, a ocorrência de um
152 terceiro turno de fala (uma contraproposição) entre o relator e seu interlocutor.
Em realidade, tal recusa de ratificar o montante proposto por um dos magistrados
participantes da deliberação em 2a Instância já representa uma forma de estase
entre os magistrados, uma vez que a questão (argumentativa) foi indubitavel-
mente suscitada: Quanto vale o dano moral em debate?
De acordo com Plantin (1996, p. 153), uma negociação, em contexto de inte-
ração argumentativa, “pode levar uma conclusão P a transformações radicais e, a
priori, imprevisíveis”. Efetivamente, em razão da natureza dos dados de que dis-
pomos, nesse segundo momento de cada julgado consideraremos o montante su-
gerido por cada magistrado um tipo de conclusão, pois, como veremos, para
sugerir um valor monetário (com valor de conclusão), o magistrado deve justificar
e argumentar para sustentar o valor financeiro proposto. E essa característica é o
que torna argumentativa uma questão, como explicamos na primeira parte deste
trabalho.

5. O redimensionamento dos papéis de atuação


O caso seguinte trata da recusa de uma empresa de transporte (ré) em for-
necer passes estudantis a uma estudante (autora do processo). A companhia
alega, em sustento de sua decisão, que a aluna habitava nos limites da escola e,
por isso, não precisava dos bilhetes estudantis. Tal julgamento suscitou uma dis-
cussão acalorada acerca da justificação do valor da indenização e dos critérios uti-
lizados pelos magistrados para definirem o montante apto a compensar o dano
moral sofrido pela estudante. No fio da interação, os magistrados concordaram
que a recusa da empresa em vender os passes caracterizava ato ilícito (= dano
moral), por isso a questão argumentiva que se estabeleceu dizia respeito à defi-
nição do valor a ser pago pela ré (empresa de ônibus) à autora do processo (estu-
dante): Vale quanto aquele dano moral?
Como já dissemos, a definição do valor de um dano moral pode gerar bas-
tantes polêmicas, pois os critérios de que dispõem os magistrados muitas vezes
não lhes vêm ao socorro, por serem um tanto quanto fluidos e subjetivos, o que
torna a missão dos desembargadores bastante árdua, no momento de justificarem
os valores propostos. Nesse caso em julgamento, como veremos, cada interlocutor
utilizará um critério diferente para justificar o montante que será proposto (exem-
plo: critério do enriquecimento sem causa, critério pedagógico etc.). Evidente-
mente, cada uma dessas justificativas apresenta visadas argumentativas diferentes
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

(o primeiro critério visa à baixa do montante arbitrado pelo magistrado de 1ª. Ins-
tância; o segundo sugere o aumento etc.). Desse modo, uma situação estásica se
instaurará, e os magistrados terão por missão argumentar para sustentarem seus
pontos de vista. Importante destacar também que os papéis de atuação se evi-
denciarão, permitindo-nos inclusive observar que um espraiamento desses clás-
sicos papéis ocorrerá, deixando uma brecha para que entre em cena o avaliador, 153
uma função que apresenta missão distinta dos papéis de atuação representados
pelo proponente, oponente e pelo terceiro.
Como veremos mais em detalhes no fio da interação a seguir, há uma estase
irreversível entre o montante inicialmente proposto pelo relator (R$ 3.000) e o
montante que fora arbitrado pelo magistrado de 1ª. Instância/JPI (R$ 6.000).
Vemos que, apesar de o relator reconhecer que a empresa de transporte cometeu
um ato ilícito ao recusar a venda de passes estudantis a uma aluna, ele não con-
corda com o valor outrora proposto pelo magistrado de 1ª. Instância, sugerindo,
assim, a baixa de 50% no valor da indenização arbitrado por aquele (6.000 →
3.000). O primeiro vogal estará, inicialmente, de acordo com o relator sobre tal
baixa no valor (R$3.000) e, sem resistência, ratificará o montante. Por outro lado,
o segundo vogal, último a votar, proporá valor diferente daquele sugerido por seus
colegas de sessão deliberativa. Em resumo, M2 acaba com a possibilidade de de-
cisão por unanimidade em relação ao montante sugerido por seus colegas. Em
realidade, ele manifesta resistência contra o montante proposto por REL (e ratifi-
cado por M1) e, num desacordo explicitamente declarado, propõe um valor mais
alto. De forma incisiva, e como veremos, M2 chega mesmo a convencer os dois
magistrados a mudarem de opinião e de aumentarem o montante inicialmente
proposto por REL (e ratificado por M1). Isso evidencia a importância de estabele-
cermos o fio da interação em momentos de deliberação, para compreendermos,
em situações como a que ora analisamos, de que forma o exercício da argumen-
tação (e de persuasão eventualmente) se estabelece entre os interlocutores, nesse
momento do debate que qualificamos de “negociação”.
Nesse primeiro excerto, reproduzimos o momento em que o relator exprime
seu desacordo acerca do montante arbitrado em 1a Instância (R$ 6.000,00) e pro-
põe uma baixa de 50% no valor arbitrado (R$ 3.000,00); a isso se segue o acordo
de M1 ao valor proposto por REL, seguido do desacordo de M2, o qual, nesse mo-
mento, não sugere ainda um novo valor, mas apenas questiona o valor proposto
por REL (e acatado por M1), num momento de indubitável estase. Vejamos:
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

tRiBunal : caso do passe estudantil6

30 Rel também por este motivo além do que eu já acabei de ler me


31 pareceu adequado reduzir para TRÊS MIL REAIS uma quantia
32 razoável considerável levando em conta as condições
154 33 socioeconômicas da recorrida é como voto senhor presidente
34 m xxxxx ((identificação))/
35 m1 (acompanhar) o eminente relator (°doutor°)\
36 m2 eu to preocupado é só com esse valor porque realmente ali foi
37 uma situação muito SÉria eheh até porque nós temos aqui que
38 pensar no efeito pedagógico aqui dessa condenação

Esse primeiro excerto mostra que, nas deliberações em 2a Instância que fazem
parte do corpus de que dispomos, mesmo quando uma maioria já tenha sido es-
tabelecida (o caso de REL e M1 concordarem acerca de um mesmo valor), é sem-
pre possível modificar-se um entendimento e fazer prevalecer um outro ponto de
vista. Como vemos, a determinação pelos magistrados do montante suficiente
para compensar um dano sofrido não é um cálculo mecânico, automático. Em rea-
lidade, os critérios utilizados pelos representantes da lei para justificarem suas es-
colhas são muitas vezes pouco exatos, como podemos constatar no caso em
análise. Como já aludimos anteriormente, a legislação brasileira reconhece a pos-
sibilidade do pagamento de indenizações em casos de dano moral, mas nem sem-
pre ensina aos magistrados como encontrarem tal valor. Cada juiz, desse modo,
tem ampla liberdade para opinar um montante, em função das justificativas apre-
sentadas. A essa prerrogativa os juristas chamam de arbitrium boni viri o que, tro-
cando em miúdos, representa o lado subjetivo que compõe a decisão de um
magistrado (REIS, 2010, p. 7).
Não obstante, precisamos ter cautela para não nos perdermos em um tipo
de reflexão estritamente jurídica, pois esse é um território mais técnico. Nosso
objetivo é simplesmente observar como os magistrados fazem a gestão do desa-
cordo nos momentos de conflito (estase); e é isso o que veremos na próxima se-
quência do caso em análise, na qual examinaremos sobretudo o jogo de papéis
de atuação (rôles actanciels) que ali acontece, entre os interlocutores. Assim, no
momento de responder à questão argumentativa: Qual deve ser o valor da inde-
nização?, mostraremos de que forma o avaliador entrará em ação.

6
Códigos de transcrição: / entonação ascendente, \ entonação descendente, (.) pausa curta, (..) pausa
média, (...) pausa longa, (0.6) pausa descrita em segundos, [ ] sobreposição de falas, xxx trecho inau-
dível, ((risos)) descrição da situação, ( ) incerteza na transcrição, & ausência de intervalo entre dois
turnos de fala, = continuação de um mesmo turno de fala, XXxx ênfase, : alongamento de uma pro-
núncia, - interrupção, ° ° voz baixa, ˂(( )) comentário de tradutor˃, # # voz acelerada. Essas convenções
baseiam-se nas normas de transcrição adotadas pelo laboratório ICAR – Interactions, Corpus, Ap-
prentissages, Représentations, ligado à Université Lumière Lyon 2/França, no ano de 2013.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

5.1. O avaliador entra em cena


Nesse julgamento que estamos apresentando, é justamente a presença da
função atuacional de avaliador que permitirá, na descrição que aqui propomos,
um redimensionamento dos papéis de atuação clássicos, uma vez que tal função
representa um desdobramento do terceiro atuacional (tiers). Assim, além de situar
155
o debate entre as partes antagônicas (função classicamente exercida pelo ter-
ceiro), o avaliador, como uma subdivisão desse terceiro atuacional, entra em cena
somente nos momentos mais polêmicos de uma deliberação e, ainda, somente
para colocar à mesa de negociação uma questão específica: Vossa Excelência pro-
põe quanto para o dano moral sofrido?
Desse modo, considerando-se que o “avaliador” não é um ser físico, mas uma
função, uma espécie de espraiamento do papel atuacional do terceiro, como tenta-
mos explicar acima, qualquer magistrado, durante o debate, pode atuar nessa função,
do mesmo modo que qualquer um atua ora como proponente, ora como oponente
no fio de uma interação argumentativa. Proponho, agora, que tentemos perceber, a
partir de um segundo excerto do caso em questão, essa função (avaliador):

tRiBunal: caso do passe estudantil

55 m2 (.) então é por isso é que eu °num° apesar de que


56 (#até) o eminente# juiz ((identificação)) já votou que (não)
57 pudéssemos não pra três mas pelo menos pa- porque me parece que
58 que realmente foi tem esse efeito pedagógico elas têm que sentir
59 realmente essa (.) [essa condenação\
60 Rel [xxxxxx o meu voto não é eh-eh irredutível
61 ne/ ou intransigente podemos se houver consenso aumentar por
62 exemplo para quatro mil reais
63 m2 ou até mais eu ((riso)) xxxxxx
64 m1 falou foi seis mil/ ((hesitante))=
65 m2 =seis mil=
66 Rel =fixados no juiz de origem
67 m1 ((hesitação))
68 m2 vamo por quatro mil e quinhentos <((hesitação)) não sei se
69 xxxxxx vossa excelê[ncia concordaria>&
70 Rel [°de acordo de acordo°
71 m2 &até pela gravidade e acho que nós não podemos perder de vista
72 também esse caráter aí pedagógico que tem que ter essa (.) essa
73 penalização

No excerto acima, vemos que M2, após a recusa no pagamento do montante


sugerido por REL (l. 36/ver primeiro excerto), reforça seu desacordo e, após longa
justificativa, reitera seu posicionamento (“então é por isso é que eu °num° apesar
de que (#até) o eminente# juiz ((identificação)) já votou que (não) pudéssemos
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

não pra três mas pelo menos”/l. 55-57), sempre acentuando seu principal argu-
mento de oposição: “pa- porque me parece que que realmente foi tem esse efeito
pedagógico elas têm que sentir realmente essa (.) [essa condenação\” (l.57-59).
Em suma, o magistrado, que naquele instante ocupa a posição atuacional de opo-
nente, não demonstra grande entusiasmo pelo montante sugerido pelo relator e,
156 de forma estratégica, em vez de refutar completamente o montante sugerido e
propor um outro (algo que ele poderia tranquilamente ter feito), ele reage, sim-
plesmente, dizendo: “então é por isso é que eu °num° apesar de que (#até) o emi-
nente# juiz ((identificação)) já votou que (não) pudéssemos não pra três mas pelo
menos pa-” (l.56-57). Assim, o magistrado deixa a redefinição do valor da indeni-
zação a cargo do relator, o qual replica a objeção de M2, dizendo: “xxxxxx o meu
voto não é eh-eh irredutível ne/ ou intransigente podemos se houver consenso au-
mentar por exemplo para quatro mil reais” (l. 60-62).
Nesse momento, o relator exerce os papéis de atuação representados pelo
proponente e pelo avaliador. Esse prolongamento do papel atuacional de terceiro,
como vemos, age em momentos de estase deflagrada7 como uma espécie de “co-
merciante” que avalia um produto e cuja função é tentar encontrar o melhor valor
de um produto. Esse momento do fio da interação teria, em fim de contas, carac-
terísticas de negociação de valores. Não obstante, tal comparação é meramente
ilustrativa, uma vez que, certamente, os magistrados não tirarão nenhum proveito
do valor que estão “negociando” na deliberação, ao contrário do que fará um co-
merciante ao negociar o preço de seu produto. Em realidade, a deontologia pro-
fissional não permite que um magistrado tenha qualquer tipo de envolvimento
pessoal com o caso em julgamento. Os desembargadores julgam sempre pessoas
alheias a seu convívio, a fim de que se garanta a imparcialidade do julgamento.
Para que a análise proposta não vá deixando dúvidas, é importante acentuar
que tal redimensionamento do papel do terceiro/tiers é aliás bastante recorrente
no corpus de que dispomos. Em realidade, perscrutando os dados do corpus TRI-
BUNAL, nos demos conta de que somente falar em terceiro soaria um pouco ge-
nérico demais e não descreveria as sutilezas da função exercida pelo avaliador. E,
por essa razão, vislumbramos falar em desdobramento/redimensionamento do
papel atuacional do terceiro, na tentativa de melhor caracterizar os momentos de
estase acima transcritos e o tipo de questão ali proposta e que, sob nossa ótica,
tão bem descreve o que se passa no contexto de interação argumentativa que
aqui estamos tentando descrever: o momento de quantificação do valor de dano
moral ou o suum cuique tribuere.
Desse modo, vemos que o relator aproveita o espaço interlocutivo engenho-
samente criado por M2 e propõe um novo montante (“podemos se houver con-
senso aumentar por exemplo para quatro mil reais”/l. 61-62), o que demonstra
7
Falamos em “estase deflagrada” porque existem momentos no corpus de que dispomos que o desa-
cordo não é explícito, isto é, que a estase é sutil e não deflagrada.
RETÓRICA E COMUNICAÇÃO MULTIDIMENSIONAL

que ele fora persuadido pelos argumentos utilizados por M2. Além disso, o relator
condiciona a aprovação de M1 (que já havia pronunciado seu acordo em relação
ao valor de R$ 3.000,00 proposto por REL) à sua própria aprovação. Em outros
termos, o relator chama à conversa M1, solicitando que ele se pronuncie acerca
do novo valor (R$ 4 mil), o que proporciona uma dinâmica peculiar à interação.
Antes da reação de M1 (“falou foi seis mil/” / l. 64), bastante positiva, ele se mos- 157
tra, em realidade, aberto e disposto a mudar de opinião e a aumentar o montante
que acaba de ser sugerido pelo relator; de forma hábil, M2, novamente manifes-
tando uma resistência ao montante de 4 mil sugerido pelo relator, diz: “ou até
mais eu ((riso)) xxxxxx”/l. 63). Não obstante, a resposta de M2 indica que, em fim
de contas, esse magistrado acaba de recusar a nova “oferta” do relator, o que mos-
tra sem ambiguidade sua posição atuacional de oponente e a manifestação do
papel atuacional do avaliador, que direciona o debate no sentido de que se façam
novas propostas de montantes.
Percebemos, assim, que, após algumas tergiversações (l. 64 a 67), M2 se co-
loca na posição de proponente e, após ter recusado duas propostas de montante
feitas pelo relator, ele sugere finalmente um valor: “vamo por quatro mil e qui-
nhentos <((hesitação)) não sei se xxxxxx vossa excelê[ncia concordaria”/ (l. 68-9).
Vemos, então, que tal proposição é imediatamente aceita pelo relator (“°de acordo
de acordo°”/l. 70). Assim, após ter conseguido a adesão do relator, o segundo
vogal, em um longo turno de fala, empreende, mais uma vez, a defesa de seu po-
sicionamento, mesmo após o voto abertamente favorável de seus colegas de de-
liberação, quando diz: “até pela gravidade e acho que nós não podemos perder
de vista também esse caráter aí pedagógico que tem que ter essa (.) essa penali-
zação”/ (l. 71-73), repetindo, desse modo, o argumento que, aparentemente, per-
mitiu que ele ganhasse a adesão de seus pares, isto é, a defesa do critério
pedagógico. Por fim, a cifra de R$ 4.500,00 proposta pelo magistrado conselheiro
será anunciada como o montante oficial, arbitrado pelos magistrados em 2a Ins-
tância, após uma deliberação apertada, em que o avaliador exerceu um papel não
negligenciável.

Considerações finais
No universo jurídico, o julgamento de uma ação praticada por alguém sempre
apresenta a possibilidade de se colocar em xeque uma série de valores, no mo-
mento da análise, pelos magistrados, da qualificação de uma ação como lícita ou
ilícita. A expressão de tais valores pode ser explícita e anunciada abertamente
pelo magistrado, nos casos de estase clara, expressada por uma questão argu-
mentativa. Ou, ao contrário, esses valores podem vir implícitos, na fala e atitudes
de um magistrado, no momento de proferir o seu voto. Quando se trata de julgar
o montante de dano moral, tem-se não somente os valores éticos, mas também
O REDIMENSIONAMENTO DOS PAPÉIS DE ATUAÇÃO EM CAMPO JURÍDICO

a necessidade de se chegar a valores monetários, para que se decida quanto será


necessário para compensar uma ofensa.
Nesse sentido, mostrar de que forma o papel de atuação representado pelo
terceiro (tiers) se desdobra na função de avaliador nos permite enxergar melhor
o modo como os magistrados lidam com a difícil missão de atribuírem um “preço”
158 (pretium doloris) a um dano moral. A pretensão aqui não foi anunciar um quarto
papel atuacional, mas, tão-somente, desvelar a versatilidade do papel atuacional
do terceiro, num corpus delimitado em tempo e local específicos (corpus TRIBU-
NAL). Ali, de fato, o avaliador não busca somente examinar pontos de vista diver-
gentes (função precípua do terceiro), mas direcionar o debate na iminência de
que os magistrados encontrem um valor monetário, em meio a valores também
morais, para um ato ilícito, sobretudo em momentos de conflito aberto, em situa-
ções de debate que lembram uma negociação.
Somente a análise de uma interação argumentativa em-se-fazendo, isto é,
em construção, nos permite tal tipo de análise. Desse modo, o mergulho nas reen-
trâncias de uma interação argumentativa possibilitou-nos constatar que “a língua
das decisões e das sentenças jurídicas é uma língua natural e, por isso mesmo,
imperfeita; sujeita a ambiguidades” (MARTINEAU, 2010, p. 403). Por isso, a inter-
pretação que um magistrado faz de um caso concreto fica muitas vezes à mercê
de novas discussões (muitas vezes polêmicas), sobretudo em território acerca do
dano moral, em que a própria definição de pretium doloris está longe de fazer a
unanimidade entre juristas. Ali, vemos que o raciocínio judiciário será sempre
composto de “um valor entre valores” (PERELMAN, 1999, p. 13) e que, não por
acaso, os juristas não hesitam em considerar a ciência jurídica como uma ciência
prática, isto é, uma ciência da práxis.

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É tendo em vista a multidimensionalidade da comunicação retórica
e das práticas argumentativas, que o presente volume acolhe um con-
junto de textos com temáticas diferenciadas, mas com o ponto
comum de partilharem uma visão retórico-argumentativa da racio-
nalidade. Dito de outra maneira, os autores dos textos que compõem
o presente livro estão bem cientes dos poderes da linguagem na cons-
trução social da realidade, do modo como os discursos carregam
orientações não alheias a pressupostos ideológicos e a visões do
mundo, da retoricidade em que estão envoltos os próprios conceitos,
enfim, de dimensões sutis que modelam os discursos e as formações
discursivas, as quais, apesar da sutileza, têm todavia um impacto de-
cisivo nos modos reais de pensar, sentir e viver em conjunto.

www.ruigracio.com

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