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Copyright © tations du Seuil, 1992€ 1996 Editor Estagao Liberdade, 200, paraesta waducio Eorrona Estagho Linea Fuxagio Ebona os UNESP Preparagdo Presidente do Conselho Curador ‘Marcelo Rondinelt cnet Toc Mi Loe Pca ee owe Casio Marques Neto aed Biltor Exzcutho Composigo “és Hermans Bonin Gusiee Poseo Bars Conse Editorial Acadénico Diretor Eitri. een Angel Bojtsen Alfredo PercsaJinior Diretor Comerelal Antonio Calas Camera de Soura alberto Femando Verza ‘lizabeth Berwerth Stee Kester Canara Lourdes A.M. dos Santos Pinto ‘Maria Helosa Martins Dias Paulo Jos Brando Sail Ruben Aldrovandi ‘Tania Regina de Luca CCIP-Brasil. Catalogagdo ma foote Sindicato Nacional dos aitoes de Livros, 8 cata Bed, ‘Chay, Frangoise, 1925- ’ legos 6 pasnalo/ Fenglse Chany: adap de Licino Vea Machado ed. So Plo Esato Liters UNESP, 206 2p ‘Two eign Lallgre du paioine Inca bloga ISBN 85.7448.03044 1. Argue itr, 2 Monuments ~ Contervgtoe rextrurago, 3. Paving cltal~Prowso. 4. Coaseragio seca L ‘Teale 06.1928 cop 363.69 {CDU 351853 ‘A runuicacdo DIST o8R4 CONTOU Com 0 APOIO DOS MINISTERS ns RGLAGDES EXTEHORES Da CULTURA Da Faanca itor tao Liberade Lida undagtoEtra de UNESP (FEU) R.Dooa Bl 116 ~ O1155-030 ~ Sto Paulo-SP Praga da St, 108 — 0100-900 ~ $40 Paulo-SP Tels (01 36612881 ~ Fax: (11) 38284230 Tek (1 3242 7071 ~ Fae (1) 32427172 mal eta @extacaolberdade.com.be mal fu@edtorauaesp be Intpltnestacanliberdade com br Iipteewedteaanespcom br SUMARIO Introducio MONUMENTO E MONUMENTO HISTORICO Capitulo 1 (05 HUMANISMOS E © MONUMENTO ANTIGO Arte grega cléssica e humanidades antigas Restos antigos e humanitas medieval A fase “antigdizante” do Quattrocento Capitulo IT A EPOCA DOS ANTIQUARIOS — MONUMENTOS REAIS E MONUMENTOS FIGURADOS Antigiiidades nacionais Gético Advento da imagem Tluminismo Conservacio real e conservacio iconogrifica Capitulo TI ‘A REVOLUGAO FRANCESA ‘Tombamento do patriménio Vandalismo e conservagio: interpretages ¢ efeitos secundirios Valores Capitulo IV A CONSAGRAGAO DO MONUMENTO HISTORICO. (1820-1960) O conceito de monumento histérico em si mesmo. Valor cognitivo e valor artstica Preparagio romiintica: o pitoresco, 0 abandono e 0 culto da arte Revolugao Industrial: a fronteira do irremedidvel valor de reveréncia 1 31 32 35 44 61 67 7 76 84 90 95, 98 105 6 125, 128 128 132 135 139 Gostaria de saudar aqui aqueles cuja obra em favor do patriménio me serviu de estimulo para escrever este livro, especialmente Jacques Houlet, Raymond Lemaire Michel Parent Agradego também a Alexandre Melissinos, Michel Rebut- Sarda e Jean-Marie Vincent, que fizeram a gentileza de reler 0 manuscrito. Introducéo MONUMENTO E MONUMENTO HISTORICO Patrim6nio®. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada as estruturas familiares, econémicas e juridicas de uma sociedade estivel, enraizada no espago e no tempo. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natura, histrico, etc.) que fizeram dela um con- ceito "némade” cla segue hoje uma trajet6ria diferente eretumbante. Patriménio hist6rico, A expresso designa um bem destina- do 20 usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensdes planetérias, constitufdo pela acumulacéo continua de uma diver- sidade de objetos que se congregam por seu pasado comum: obras ¢ obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos produtos de todos os saberes ¢ savvir-faire dos seres humanos. Em nossa sociedade errante, constantemente transformada pela mobilidade e ubiqiiidade de seu presente, “patriménio hist6rico” tornou-se uma das palavras-chave da tribo mididtica, Bla remete a uma instituicio e a uma mentalidade ‘A transferéncia semintica sofrida pela palavra revela a opaci- dade da coisa. O patriménio hist6rico e as condutasa ele associadas encontram-se presos em estratos de significados cujas ambigiida- “Bem de heranga que € transmitido, segundo as les, dos pais e das mies aos filhos", Dictionnaire dela langue francaise de €. Literé 1. Diune seience a Vautve. Des concepts nomades, sob a diregSo de I. Stengers, Pari, Le Seuil, 1987, AaLscoma bo mee des e contradigées articulam e desarticulam dois mundos e duas visdes de mundo O culto que se rende hoje ao patriménio histérico deve merecer de nés mais do que simples aprovacao. Ele requer um questionamento, porque se constitui num elemento revelador, ne- gligenciado mas brilhante, de uma condicéo da sociedade e das questées que ela encerra. E desse ponto de vista que abordo o tema aqui. Entre os bens incomensuraveis ¢ heterogéneos do patrimé- nio hist6rico, escolho como categoria exemplar aquele que se re- laciona mais diretamente com a vida de todos, o patriménio histérico representado pelas edificagées. Em outros tempos fala- rfamos de monumentos histéricos, mas as duas expressées no sio mais sindnimas. A partir da década de 1960, os monumentos hist6ricos j4 ndo representam sendo parte de uma heranga que nao para de crescer com a incluso de novos tipos de bens e com © alargamento do quadro cronolégico e das reas geogréficas no interior das quais esses bens se inscrevem. Quando criou-se, na Franca, a primeira Comissio dos Monu- mentos Histéricos, em 1837, as trés grandes categorias de monu- mentos histéricos eram constitufdas pelos remanescentes da Antigiiidade, os edificios religiosos da Idade Média e alguns caste- los. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, 0 nimero dos bens inventariados decuplicara, mas sua natureza era praticamente a mesma, Eles provinham, em esséncia, da arqueologia e da histéria da arquitetura erudita. Posteriormente, todas as formas da arte de construir, eruditas e populares, urbanas e rurais, todas as categorias de edificios, pdblicos e privados, suntuérios e utilitérios foram anexa- das, sob novas denominacdes: arquitetura menor, termo proveniente da Itélia para designar as construcbes privadas nio monumentais, em geral edificadas sem a cooperagio de arquitetos; arquitetura vernacular, termo inglés para distinguir os edificios marcadamente locais; arquitetura industrial das usinas, das estacdes, dos altos- fornos, de inicio reconhecida pelos ingleses?. Enfim, 0 dominio 2. A Franca criou uma segéo do patrimSnio industrial da Comissio Superior dos Monumentos Histéricos em 1986. 2 TD eee patrimonial ndo se limita mais aos edificios individuais; ele agora Pompreende os aglomerados de edificacSes ea malha urbana: aglo- nerados de casas e bairros, aldeias, cidades inteiras e mesmo con- juntos de cidades?, como mostra “a lista” do Patriménio Mundial estabelecida pela Unesco. ‘Até a década de 1960, 0 quadro cronolégico em que se ins- creviam os monumentos hist6ricos era, como hoje, praticamente ilimitado “a montante”, coincidindo, nesse aspecto, com o da pes- Gquisa arqueolégica. “A jusante” ele ndo ultrapassava os limites do século XIX. Hoje, os belgas lamentam o desaparecimento da Maison du Peuple (1896), obra-prima de Horta, demolida em 1968; ¢ os franceses, Les Halles, de Baltard, destruido em 1970, apesar dos vigorosos protestos que se levantaram em toda a Franca e no mundo inteiro. Por mais prestigiosas que fossem, essas vozes eram de uma pequena minoria diante da indiferenca geral. Para a administracio e para a maioria do piblico, os pavilhdes suspensos que Napoledo 111 ¢ Haussmann haviam construido tinham apenas uma funcio trivial, que nao thes dava acesso & categoria de monumentos. Além disso, cles pertenciam a uma época famosa por seu mau gosto. Hoje, te da Paris de Haussmann esté tombada e, em principio, intocévl daqui por diante. © mesmo se dé com a arquitetura “modern style” — representada, na Franga, na virada do século, por Guimard, Lavirotte e pela escola de Nancy —, que foi muito efémera e, por isso, depreciada. O proprio século Xx forgou as portas do dominio patrimonial. Provavelmente seriam tombados e protegidos, hoje, o Hotel Imperial de Téquio, obra-prima de F. L. Wright (1915), que resistiu aos sismos naturais, mas foi demolido em 1968; os ateliés Esders de Perret (1919), demolidos em 1960; as lojas de departamentos Schocken (1924) de Mendelsohn, em Stuttgart, demolidas em 1955; 0 dispensério de Louis Kahn, na Filadélfia (1954), demolido em 1973. Na Franga, uma recém-constituida comissio do “patriménio do século XX” estabeleceu critérios € uma tipologia para ndo deixar escapar nenhum testemunho historicamente significativo. Os pré- prios arquitetos interessam-se pela indicagao de suas obras para 3, Por example, as cidades da regio de Wachau, na Aust 13 ‘A ntzcon D0 rant tombamento. Le Corbusier fez. que suas obras fossem protegidas; atualmente, onze delas esto tombadas e catorze inscritas num in- ventério suplementar. A mansio Savoye motivou vérias campa- nas pela restauracdo, sendo esta mais dispendiosa que a de muitos monumentos medievais Enfim, a nocéo de monumento hist6rico e as préticas de con- servagio que The sao associadas extravasaram os limites da Euro- pa, onde tiveram origem e onde por muito tempo haviam ficado circunscritas. E verdade que a década de 1870 assistira, no con- texto da abertura Meiji, discreta entrada do monumento histé- rico no Japao': para esse pais, que vivera suas tradigdes no presente, que nao conhecia outra histéria sendo a dindstica, que nao conce- bia arte antiga ou moderna sendo a viva, que no conservava seus monumentos sendo mantendo-os sempre novos mediante recons- trugio ritual, a assimilagio do tempo ocidental passava pelo reco- shecimento de uma histéria universal, pela adocio do museu e pela preservagéo dos monumentos como testemunhos do passadbo. Na mesma época, os Estados Unidos foram os primeiros a pro- teger seu patriménio natural, mas pouco se interessavam em con- servar aquele constituido pelas edificacées, cuja protecio € recente © comecou por levar em conta as residéncias individuais das gran- des personalidades nacionais. Por seu lado, a China’, que ignorava esses valores, comecou a abrir e a explorar sistematicamente o filo de seus monumentos histéricos a partir da década de 1970. Da primeira Conferéncia Internacional para a Conservagio dos Monumentos Histéricos, que aconteceu em Atenas em 19315, 6 participaram europeus. A segunda, em Veneza, no ano de 1964, contou com a participagao de trés pafses ndo europeus: a Tunisia, © México e o Peru. Quinze anos mais tarde, oitenta patses dos cinco continentes haviam assinado a Convengio do Patriménio Mundial. 4. Y.Ab6, “Les débuts de a conservation au Japon moderne: idéologie et historicité”, in World Art, Themes of Unity in Diversity, Acts of the XXVth Congress of the History of Art (1986), editado por I. Lavin, vol. II, The Pennsylvania State University Press, 1989, p. 855 ess Ryckmans, “The Chinese Attitude Towards the Past”, ibid 6. Conferéncia sobre a conservagio artista e histériea dos monumentos, organiza- dda pela Sociedade das Nagées (SDN), ef. cap. IV, nota 117. “4 ‘A tripla extensio — tipolégica, cronol6gica e geogrifica — dos bens patrimoniais é acompanhada pelo crescimento exponen- iblico. ol Sentero ptrmonial eo concetamento ds prticas de con- servacio nio deixam, porém, de apresentar algumas dissonancias. Esse crescimento recorde comeca a provocar inquietacio. Resulta- rile na destruicio de seu objeto”? Os efeitos negativos do turismo ‘nfo so percebidos apenas em Florenca e em Veneza. A cidade anti- ga de Kyoto se degrada a cada dia. Foi necessério fechar, no Egito, 6s taimulos do Vale dos Reis. Na Europa, como em outros lugares, a inflagdo patrimonial € igualmente combatida e denunciada por ‘outros motivos: custo de manutengao, ee ane) ine atuais aco de outros grandes projetos de organizacéo do espaco Resse Newson se também a necessidade de novar eas daléicas da destruicio que, a0 longo dos séculos, fizeram novos monumen- tos se sucederem aos antigos. De fato, sem remontar 8 Antigiida- de ou Idade Média, e considerando apenas a Franca, basta lembrar as centenas de igrejas géticas destruidas nos séculos XVII e XVII para fins de “embelezamento”, e substituidas por edificios barrocos cou clissicos, Pierre Patte, o arquiteto de Luts XV, preconizava, em seu plano para restaurar e embelezar Paris, que se “abandonasse todas as construgées géticas. Nem mesmo os monumentos da Anti- gilidade, por mais prestigio que tenham tido na era clissica, deixa- ram de ser demolides, como o famoso palécio de'Tutele’, em Bordéus, 7. Chaye durian culture, cmos, Brvxls, 1976, Resolutions de Cantrbery Sure tourion alee komos, documento reprogrstic, publica por Iam Gh, Universidade de Kes, 1980, i 8 Monuments la live de Lous XV, Pais, 1765. No que dz respeto le de Is Cite ober "Com exer da Note-Dune, oor contiatiasendo pe thin dada, ¢ doef dosEnfnttowes nh bavera nada a preserva teste alo 26 Demulio em 1677 por ord de Ls XIV, Sua imagem fl conservad pin > feito). Andou du Cece (Live durch, 1559) e por Cade Ferrul (Gesenb, Bbloteca Nactonal da Fran manusrtos, F. 24713), Exe ‘iltimo faz uma descrigio entusiasmada do edificio no didrio de sua Voyage a Borden 1669 (publica por FBonnefn, ars Laurens, 1909, com Mamotes dma oe de Case Peru) fa rrr po Le Pate, pas trade de Visao (1684) 15 ‘uma vez que atrapalhavam os projetos de modernizacao das cida- des e dos territérios. Ne Franca, a tradicfo de destruicio construtiva e de moder- nizagio, de que dio provas esses exemplos, serve atualmente de justificativa a grande niimero de autoridades para sua oposicio aos pareceres dos arquitetos dos edificios frangeses, das Comis- ses dos Monuumentos Hist6ricos ¢ dos setores sob protecio do Estado. Foi em nome do progresso técnico e social e da melhoria das condiges de vida de seu entorno que se substituiu o teatro de Nimes, elemento-chave de um conjunto neoclissico dnico na re- sido, por um centro cultural polivalente. Nos pafses do Magreb e no Oriente Préximo ainda se usam os mesmos argumentos para justificar a destruicio ou a adulteragdo dos bairros muculmanos na Tunisia", assim como na Siria ou no Ira, a vontade politica de modernizacio foi auxiliada pela ideologia do movimento dos CIAM!! e de suas vedetes De sua parte, os arquitetos invocam 0 direito dos artistas a criacao, Eles desejam, como seus predecessores, marcar 0 espaco urbano: nao querem ser relegados para fora dos muros, ou conde nados, nas cidades hist6ricas, a0 pastiche. Lembram que, ao longo dos tempos, os estilos também coexistiram, justapostos e articu- Tedos, numa mesma cidade ou num mesmo edificio. A histéria da arquitetura, da época romana ao gético flamejante ou ao barroco, pode ser lida numa parte dos grandes edificios religiosos euro. peus: catedrais de Chartres, de Nevers, de Aix-en-Provence, de Valéncia, de Toledo. A seducdo de uma cidade como Paris deriva da diversidade estilistica de suas arquiteturas e de seus espacos. Arquiteturas © espacos nao devem ser fixados por uma idéia de conservacio intransigente, mas sim manter sua dindmica: este € 0 caso da piramide do Louvre. Os proprietérios, por sua vez, reivindicam o direito de dispor livremente de seus bens para deles tirar 0 prazer ou o proveito que bem entendam, O argumento se choca, na Franga, com uma 10.D, Abdelkafi, La Medina de Tints, Pars, Presses du CNRS, 1990, 11, CongeessosInternacionais de Arquitetura Mederma, fundados em 1928, em Sarraz, Sula. 16 »_ legislagao que privilegia o interesse piblico. Ele continua, poxém, a prevalecer nos Estados Unidos, onde a limitagéo do uso do pa- triménio histérico privado € considerada um atentado contra a liberdade dos cidadaos. ‘As vores discordantes desses opositores so tio poderosas quanto sua determinagio. Cada dia traz uma nova mostra disso. Contudo, as ameacas permanentes que pesam sobre o patriménio no impedem um amplo consenso em favor de sua conservagio € de sua protecio, que sfo oficialmente defendidas em nome dos valores cientificos, estéticos, memoriais, sociais e urbanos, repre- sentados por esse patriménio nas sociedades industriais avanga- das, Um antropélogo americano pode afirmar que, pela mediago do turismo de arte, o patriménio representado pelas edificacdes constituiré o elo federativo da sociedade mundial”? Consenso/contestacao: as razdes e os valores invocados em favor das duas respectivas posigdes requerem uma anilise e uma avaliagio criticas. Inflagio: foi atribufda a uma estratégia politica; comporta evidentemente uma dimensio econémica ¢ marca, com. certeza, uma reaco contra a mediocridade da urbanizacao con- temporinea. Essas interpretagées das condutas patrimoniais niio bastam, porém, para explicar seu extraordindrio desenvolvimento. Elas nao the esgotam o sentido, ; O que me interessa é precisamente o enigma desse sentid zona semantica do patriménio construido durante sua constitui- io, de dificil acesso, fria e 20 mesmo tempo abrasadora, Para me orientar, recuarei no tempo em busca das origens, mas nao de uma histéria; utilizarei figuras e pontos de referéncia concretos, mas sem a preocupacio de fazer um inventirio. De antemio, € necessario precisar, ao menos provisoriamente, o contetido e a diferenca dos dois termos subentendidos no conjunto das priticas patrimoniais: monumento e monumento histérico. Em primeiro lugar, o que se deve entender por monumento? sentido original do termo € 0 do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz 12, P Mac Canell, The Tourist: A New Theory of the Leisure Class, Londres-Nova Torque, McMillan, 1976. " a lembranga alguma coisa. A natureza afetiva do seu propésito é essencial: ndo se trata de apresentar, de dar uma informagio neu- tra, mas de tocar, pela emocéo, uma meméria viva, Nesse sentido primeiro, chamar-se-4 monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de individuos para rememorar ou fazer que ou- tras geracdes de pessoas rememorem acontecimentos, sacrificios ritos ou crencas. A especificidade do monumento deve-se preci samente ao seu modo de atuacio sobre a meméria, Nao apenas clea trabalha e a mobiliza pela mediacio da afetividade, de forma que lembre 0 passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. ‘Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encanta- do, ndo é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica u religiosa, nacional, tribal ou familiar. Para aqueles que edificam, assim como para os destinatérios das lembrangas que veiculam, 0 ‘monumento é uma defesa contra o traurmatismo da existéncia, um dispositivo de seguranca. O monumento assegura, acalma, tran- atiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietagio gerada pela incerteza dos comecos. Desafio & entropia, & acio dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta combater a angiistia da morte e do aniquilamento. Sua relagio com o tempo vivido e com a meméria, ou, dito de outra forma, sua funcdo antropolégica, constitui a esséncia do monumento. O resto & contingente e, portanto, diverso e varidvel. Jé 0 constatamos no que diz respeito aos seus destinatirios, e 0 mesmo acontece em relagio aos seus géneros e formas: timulo, templo, coluna, arco de triunfo, estela, obelisco, totem. (© monumento muito se assemelha a um universal cultural. Sob ‘miltiplas formas, ele parece presente em todos os continentes e em. praticamente todas as sociedades, dotadas ou nio de escrita. O mo- numento, dependendo do caso, recusa as inscrigBes ot as acolhe, ora ‘com parciménia, ora de forma bem liberal, chegando as vezes a se deixar cobrir por elas, tendendo a acumular outras fungées. papel do monumento, porém, entendido em seu sentido original, foi perdendo progressivamente sua importéncia nas socie- 18 dades ocidentais, tendendo a se empanar, enquanto o proprio termo gdquiria outros significados. Os léxicos atestam-no. Em 1689, Furetiére ja parece dar ao termo um valor arqueol6gico, em detri- mento de seu valor memorial: “Testemunha que nos resta de alguma grande poténcia ou grandeza dos séculos passados. As pirdmides do Egito, o Coliseu, so belos monumentos da grandeza dos reis do Egito, da Repéblica romana’, Alguns anos mais tarde, o Dictionnaire de Académie situa de forma clara 0 monumento e sua fungéo ‘nemorial no presente, mas seus exemplos traem um deslocamento, desta vez em direcao a valores estéticos ¢ de prestigio: “Monu- mento ilustre, soberbo, magnifico, duravel, glorioso” Essa evolucio se confirma um século mais tarde, com Quatre mere de Quincy. Este observa que, “aplicada as obras de arquite- tura”, essa palavra “designa um edificio construido para eternizar a lembranca de coisas memordveis, ou concebido, erguide ou disposto de modo que se torne um fator de embelezamento e de magnificéncia nas cidades”. E ele continua indicando que, “no dl- timo caso, a idéia de monumento, mais ligada ao efeito produzido pelo edificio que ao seu fim.ou destinagio, ajusta-se e aplica-se a todos os tipos de edificacées"™. E verdade que os revolucionérios de 1789 nao pararam de so- nhar com monumentos e de construir no papel os edificios pelos quais queriam afirmar a nova identidade da Franca’, Embora efeti- vamente destinados a servir 8 meméria das geracdes futuras, esses projetos funcionam também em um outro nivel. A evolugio que se depreende dos dicionérios do século XVI era irreversfvel. "Mo- numento” denota, a partir daf, o poder, a grandeza, a beleza: cabe- Ihe, explicitamente, afirmar os grandes designios ptblicos, promover estilos, falar a sensibilidade estética, Hoje, o sentido de “monumento” evoluiu um pouco mais. Ao prazer suscitado pela beleza do edificio sucedeu-se o encanta- mento ou 0 espanto provocados pela proeza técnica e por uma versio moderna do colossal, no qual Hegel vit o infcio da arte nos 13. Primeira edigio, 1694. 14, Dictionnaire de Varchivecure,t. 2, Paris, ano IX. 15. M. Ozouf, La Féte révolutionnaire, 1789-1799, Pais, Gallimard, 1970. 19 povos da alta Antigitidade oriental. A partir dai, o monumento se impée 8 atencio sem pano de fundo, atua no instante, substituin- do seu antigo status de signo pelo de sinal, Exemplos: o edificio do Lloyd's em Londres, a torre da Bretanha em Nantes, 0 Arco da Défense em Paris. A progressiva extingao da funcio memorial do monumento certamente tem muitas causas. Mencionarei apenas duas, ambas vigentes em longo prazo. A primeira refere-se 4 importncia cres- cente atribuida ao conceito de arte'® nas sociedades ocidentais, a partir do Renascimento. A principio, os montumentos, destinados a avivar nos homens a meméria de Deus ou de sua condicéo de criaturas, exigiam daqueles que os construfam o trabalho mais perfeito e mais bem realizado, eventualmente a profusio das lu- zes € 0 ornamento da riqueza, Nao se pensava em beleza. Dando beleza sua identidade ¢ seu estatuto, fazendo dela o fim supremo da arte, © Quattrocento a associava a toda celebracio religiosa e a todo memorial. Embora o proprio Alberti, o primeiro te6rico da | beleza arquitet6nica, tenha conservado, piedosamente, a nocéo original de monumento, ele abriu caminho para a substituicéo pro- gressiva do ideal de meméria pelo ideal de beleza. ‘A segunda causa reside no desenvolvimento, aperfeigoa- mento e difusio das memsrias artificiais. Platio fez da escrita seu paradigma venenoso!’. A hegemonia memorial do monu- mento no foi, porém, ameacada antes de a imprensa ter trazi do & escrita uma forca sem precedentes no que diz respeito A meméria, O perspicaz Charles Perrault se encanta por ver desaparecer, pela multiplicacio dos livros, as limitagdes que pesavam sobre 4 meméria: “hoje (...), néo aprendemos quase mais nada de cor, porque habitualmente temos os livros que lemos e aos quais po. demos recorrer quando necessério, e cujas passagens podem ser citadas de forma mais segura transcrevendo-as do que confiando 16.8.0. Kristeller, Renaissance Thought andthe Ars, Collected says, Nova lorgue, Harper and Row, 1965, em especial "The Modern System of the Arts", publicado in Journal ofthe History of Ideas, vol. XII, 1951 17. Oque ele chams, no mito do Fedro, de pharmakon, Cf.J. Derrida, de Platon’ in La Dissémination, Paris, Le Seull, 1972. aaphermacie 20 na meméria, como se faiaoutrora"™. Entregue 20 seu enti: tno de letrado, ele nfo se di conta de que 0 imenso tesouro do Saber, colocado & disposigao dos doutos, traz consigo a prética do esquecimento, nem que as novas préteses da meméria ae sio nfastas para a memériaorgnica A partir do fal do século Xvi, “historia” designa uma disciplina cujo saber, acumulado ¢ Conservado de forma cada vez melhor, Ihe erpresta as aparéncias dameméria viva, a0 mesmo tempo em que a suplanta e lhe tira as, forcas. Contudo, “a hist6ria s6 se constitui quando ¢ olhada, e, para olhé-la, é preciso colocar-se fora dela”: a formula demons- tra adiferenca ¢ 0 papel inverso do monumento, encarregado, por sua presenca como objeto metaférico, de ressuscitar um passado privilegiado, mergulhando nele aqueles que o olham. ‘Um século e meio depois da apologia de Perrault, Victor Hugo promunciava a oragao fiinebre do monuumento, condenado & mor- te pela invengao da imprensa®. Sua intuigo visionéria foi confir- mada pela criagdo e pelo aperfeigoamento de novas formas de conservacio do passado: memsria das técnicas de gravaco da ima- gem e do som, que aprisionam e restituem passado sob uma forma mais concreta, porque se dirigem diretamente aos sentidos 8 sensibilidade, “memérias” dos sistemas eletrénicos mais abs- tratos e incorpéreos. ‘Vejamos o caso da fotografia. Roland Barthes compreendeu que esse “objeto antropologicamente novo” néo vinha fazer concor- réncia, nem contestar, nem rejeitar a pintura. “Nao se trata de Arte, nem de Comunicagio: a ordem fundadora da fotografia é a Refeeréncia.” Ela aparece assim como uma prétese de um género inédito: traz “um novo tipo de provas”, “essa certeza que nenhum escrito pode dar”. Esse poder de conferir autenticidade relaciona- se certamente as reacdes quimicas que fazem da fotografia “uma emanagao do referente” e, ao mesmo tempo, Ihe conferem tam- 18, Pavalldle des anciens et des moderns, I dtlog,t 1, p. 63 es, Pars, 1688: 2 passagem ineira merecia se citada 19.R, Barthes, La chanbre claire, Pris, Cahiers du cinéms, GallzardLe Seu, 1980. 20. Notre-Dame de Paris, capitulo “Ceci tuera cela (Isto mataréaquilo)", aerescen- tado na otavaedigf, de 1832 21 bém o poder de ressuscitar. Porque pela mediagio de uma emulsio | de prata “a foto do ser desaparecido chega até mim como os raios de uma estrela’” Barthes conseguiu perceber e analisar a duplicidade da foto- srafia, as duas faces desse novo phdrmakon que tem o singular poder de jogar com os dois planos da meméria: abonar uma hist6- ria € ressuscitar um passado morto. Daf vém os tiscos de confusio e de usurpagio. Barthes os denuncia nomeando as duas formas como a fotografia atua sobre nés. O studium designa um atrativo sensa- to, um interesse externo, mas de qualquer modo afeto. O éxtase, que faz voltar 8 consciéncia "a prépria letra do tempo", 6 um momento revulsivo, alucinatétio, a propésito do qual se evoca, muitas vezes, a palavra loucura. Ora, essa loucura da fotografia que faz coincidir 0 ser e 0 afeto é da mesma natureza que o encan- tamento pelo monumento. Vamos contrabalancar, entdo, a afir- magio de La Chambre claire, segundo a qual a sociedade moderna Tenunciou 20 monumento, afirmando que a fotografia € uma de suas formas adaptada ao individualismo de nossa época: 0 monu- mento da sociedade privada, que permite a cada um conseguir, em particular, a volta dos mortos, privados ou ptblicos, que fun. dam sua identidade. © encantamento imemorial realiza-se dora- vante de forma mais livre, & custa de um trabalho modesto sobre essas imagens que conservam uma parte de ontologia. A fotografia contribui, além disso, para a semantizagio do ‘monumento-sinal. Com efeito, € cada vez mais pela mediagio de sua imagem, por sta circulagao e difusio, na imprensa, na televisio eno cinema, que esses sinais se dirigem as sociedades contempo- raneas. Eles s6 se constituem signo quando metamorfoseados em imagens, em réplicas sem peso, nas quais se acumula seu valor simb6lico assim dissociado de seu valor utiitério, Toda construcio, qualquer que seja 0 seu destino, pode ser promovida monumen- to pelas novas técnicas de “comunicagio”. Enquanto tal, sua fun~ 0 €legitimar e conferir autenticidade ao ser de uma réplica visual, primeira, frégil ¢ transitiva, A qual doravante se delega seu valor Pouco importa que a realidade construfda nao coincida com suas 21, Tedas as citagées foram extraidas de op. cit, p. 120, 125, 134, 126, 183, 2 cepresentagbes miditicas ou com suas imagens sonhadas. A pei Ide do Louvre existia antes que se iniciasse sua construcao. Ela i tinua a fazer rebrilhar, hoje, luzes e transparéncias com que a senava a fotografia de seus desenhos e maquetes, ainda que, na de, ela lembre antes a entrada de um centro comercial e que sus opscidade tire 2 visio, a partir do patio quadrado, das qlherias e de Paris. As fotografias do Arco da Défense ainda the conservam um atrativo simbélico, nao obstante a rugosidade do cdificio real e o desconforto dos escrit6rios nele instalados. Nao se poder fazer uma deserigio melhor do exvasiamento do que Se chama hoje monumento e de seu modo de existir que a do arquiteto da "Grande Biblioteca”. Perguntado sobre a inserco desse edificio em Bercy, ele responde: "E preciso que, daqui a dez ou vinte anos, se facam os mais belos cartdes postais deste reali 2 Nessas condigées, os monumentos, no sentido primeiro do ter- ‘mo, ainda teriam um papel nas sociedades ditas avancadas? Afora os numerosos edificios de culto que conservam seu uso, 08 monti- mentos aos mortos e os cemitérios militares das diltimas guerras, significa eles mais que uma mera sobrevivéncia? Ainda se edificam novos deles? Os monumentos, dos quais se tornou necessério dizer que sao “comemorativos”, seguem, levados pelo habito, uma carreira formal ¢insignificante. Os tinicos exemplares atténticos que nossa época logrot edificar nio dizem seu nome e se dissimulam sob formas insélitas minimalistas e néo metaféricas. Eles lembram um, passado cujo peso e, no mais das vezes, cujo horror protbem de confid-los somente 4 meméria histérica. Entre as duas guerras ‘mundiais, 0 campo de batalha de Verdun constituiu um prece- dente: imensa parcela da natureza, retalhado ¢ torturado pelos combates, bastou demarcar um percurso, como uma via-cricis, para fazer dele o memorial de uma das grandes catastrofes hua lugar’ 22. Le Quovidien de Paris, 11 de setembro de 1989. le continua: "O turista que se encontrar no jardim de Bercy poderd tra fotos realmente inesquecives dessa biblioteca (..).O sucesso do projetoseréa possbildade de se fazerem magnifi- cos cartes posta desse gar” 2B ‘A AaGOnK bo pane nas da histéria moderna. Depois da Segunda Guerra Mundial, 0 centro de Vars6via, fielmente reconstruido, lembra ao mesmo tem. po a identidade secular da nao polonesa e a vontade de aniquila Go que animava seus inimigos. Do mesmo modo, as sociedades atuais quiseram conservar viva, para as geragées futuras, a lem. branga do judeoctdio da Segunda Guerra Mundial. Melhores que simbolos abstratos ou imagens realistas, melhor que fotografia, Porque parte integrante do drama co-memorado, sio os prdprios campos de concentracéo, com seus barracées e suas cAmaras de 8845, que se tornaram monumentos. Bastou arrumar um pouco € aplicar algumas etiquetas: de sua antiga morada, abandonada para sempre, os mortos ¢ seus carrascos haverdo de advertir eterna ‘mente aqueles que vao a Dachau ou a Auschwitz’, Nao seré neces. séria a intervengio de nenhum artista — uma simples operacéo metonimica. Aqui, o peso do real, de uma realidade intimamente associada a dos acontecimentos comemorados, é mais poderoso que o de qualquer stmbolo. O campo, transformado em monu- mento, € da mesma natureza da reliquia® Esses memoriais gigantes, reliquias erelicérios ao mesmo tem- o, continuam, no entanto, sendo excepcionais, assim como os fa- tos que eles trazem 4 meméria dos homens. Marcas que basta escolher e saber nomear, elas testemunham, além disso, a progressiva dissociagao que se opera entre a meméria viva € o saber edificar. 23. Esse campo foi tombado pelo Comité do Patriménio Mundial da Unesco em 1979. Empregueio terme judedcide, que se trata de palavea tomada de emprés, limo a A. Mayer, La “solution finale” dans Uhistore, traduaide por HG. J Carlier, Paris, La Découverte, 1990. 24. As forsas memorias da reliquia as vezes ainda sio postas a servigo de causas ‘menos trgicas, Overdadeiro monumento erigido em honta de Charles de Gaulle flo ¢ a gigantesca cruz de Lorena “comemorativa” que domins 0 planalto de ‘Champagne, mas sua casa, La Boisserie. As multidées que para l acorrem nao se enganam quanto a isso. Para transformar essa residencia em monumento, bestow ————— em 1854 por John Ruskin sobre ‘A abertura do Palécio de Crist e suas relagées com o futuro da arte” A virada do século XIX é marcada, sobretudo na Itélia © ny Austria, por um questionamento complexo, de uma lucidez rane mente igualada daf por diante, dos valores e das préticas do mq. numento. Contudo, quando em 1964 a assembléia do Icomoxt redige a Carta internacional sobre a conservacao e a restauragay dos monumentos ¢ dos sitios, 0 quadro te6rico e pratico no interior do qual se inscreve o monumento hist6rico continua sendo que se criou no século xIx. O conceito de monumento histérico em si mesmo Valor cognitivo e valor artistico Jéreconhecido de longa data, o valor cdgnitivo do monumen- to hist6rico permanece solidamente ligado a ele durante todo o periodo de que tratamos. Simbolo brilhante da permanéncia do Taco que unia a historiografia e os estudos de antigtiidades, foi Francois Guizot — autor de Essais sur Uhistoire de France e um dos historiadores notaveis da época — quem criou na Franca 0 cargo de inspetor dos monumentos hist6ricos. Cumpre observar, porém, que no século XIX a economia dos saberes centrou a fungio cognitiva do monumento hist6rico no dominio, recém-determinado e ainda em fase de organizagéo, da histéria da arte. Com efeito, a despeito de resisténcias locais, 0 século da hist6- ria tomou uma certa disténcia em relacdo aos antiquérios®. A his- t6ria politica e a das instituigdes voltam toda sua atencdo para 0 documento escrito, sob todas as suas formas, e dio as costas ao mun- do abundante dos objetos que desafiavam os eruditos dos séculos 5. Da sigleinglesa para Conselho Internacional des Monumentos ¢ das Sitios, cia: ddo em 1964 por recomendagio da Unesco. 6. Nem por isso estes desapareceram. Numerosas associagbes de antiquirios exis ‘em ainda hoje, fis 8 sua vocacio de erudicio, 128 A consaceacho Do MONUMENT HITOHCD re XVIII. A ligago com o universo do fazer diminui. No século fir, 0s historiadores que queriam e sabiam olhar os monuments v os eram exce¢es e continuaram sendo por muito tempo. Em feu Rapport au 10% [Relatério ao rei], Guizot destaca bem a nova Jmportancia que se atribui arte € ao seu estudo cientifico,salien- ao valor dos monumentos para os especialistas, entre os quais fle nao se inclui. Seus conhecimentos pessoais sobre 0 assunto pao constituiem um progresso, em comparacdo com os de Grégoire. Em sua vis%0, 0 gotico continua sendo sin6nimo de arte nacional. Esse estilo € precedido por outros “bastardols] ¢ degradadols]”, que cle qualifica, de um modo geral, como “intermediério[s} cinco anos antes, 0 jovem Victor Hugo jé falava de arte roméni- ¢a’. Em compensagao, jé na primeira linha do Rapport, “o solo da Franca”® é simbolizado por seus monumentos. Para Guizot, assim como para a maioria dos historiadores de seu tempo, os edi- ficios antigos jé nao contribuem para fundar um saber, aquele que éconstruido por sua disciplina, mas para ilustrar e com isso servir gum determinado sentimento, o sentimento nacional. De fato, o lugar dos antiquérios € tomado pelos recém- chegados ao mundo do saber, que sao os historiadores da arte. Para cles, as criagdes da arquitetura antiga doravante serio objeto de uma pesquisa sistemitica relativa a sua cronologia, técnica, morfologia, génese e fontes, sua decoracao constitufda de afrescos, esculturas e vitrais, assim como sua iconografia. 7 V.Flago, “Guerre aux démolsseus artigo escrito em 1825, publieado quarto anos mais tarde na Revue de Paris. Reeditado com uma segunda parte original 7 1832 na Reve des deve mandes, cle figura no vohume Literature: philosophic res das suas obras completas. No artigo de 1825, Hugo fala em duas pass gens sobre igrjas rmanicas(Suint-Germain-des-Prés,em Parse Sainte-Crois, em La Charit€-sur-Loite), op. cit, p. 153-4, Ele deve esse vocbulo ao atiquieio normando Jean-Achlle Deville (1789-1875), com quem mantinha contato aque pode ser consideradoo criador do term rominico, Cf. em especil Elise Gt Vabaye de Suint-Georges de Bosckerville (1827) 8, 0 Rapport de Guizot parece terse inspirado dietamente no “Discours pri rite qos deoduio ob Monuments del Pay, e ene de Laborde, lembrando “esses monumentos que cobrem o solo da pétria, que se tunem a nosta lembancas, que recordam seus eiunfos ow sua prosperidade(..). ‘A Franga, menos antiga que muites pases da Europa, é mais rica que qualquer cutee em monumentos de todas as Gpocas (..). 129 Baseado no estudo dos monumentos histéricos, um novo cop. po de saber est4, pois, em vias de se constituir. Além disso, ele g alimentado e muitas vezes orientado pela reflexio sobre a arte que se desenvolve na esteira da Critica do juizo. J4 salientej distingdo operada no Renascimento entre valor informativo e va. lor hedénico das antigtidades que, num caso, dirige-se & razig historiadora e, no outro, & sensibilidade estética. E preciso voltar a essa questo, pois a conceituacao do dominio da arte, a partir do Renascimento, no se refletiu apenas sobre as modalidades da criae Gio artfstica. Ela trouxe, pelo viés da terminologia, confusdes im- portantes a serem esclarecidas pela semantica dos monumentos histéricos. j As palavras antigiiidades e antiqudrios nao tinham ambit dade, conotadas pelo saber. As expressdes historia e historiador da arte so conotadas por arte, mais que por hist6ria; elas facili tam uma assimilagio e uma confusio entre conhecimento da arte ¢ a experiéncia da arte, ainda hoje comum. E contra essa confusio que Riegl reage, em sua anélise axio- légica do monumento. Ele retoma a dissociacio radical entre valo- res de conhecimento e valor artistico proposta por K. Fiedler nos manifesto da década de 1870, onde este descreve 0 desenvobvi | mento crescente, que os contemporiineos mal perceberam, de uma apreciagao intelectual dos monumentos de arte’, Diante da aten- | | io critica que se dispensava As criacdes das artes plésticas, ¢ parti cularmente da arquitetura, diante da multiplicacdo dos trabalhos historiogréficos que lhes eram dedicados, Fiedler temia pelo pré- 9. “Voltando watencio exclusivamente para a obra de arte singular, e procurando ‘enriquecer cada vez mais sua compreensio, oanalistaobservaré que sua compreen= ‘so histérica se torna a cada dia mais dificil, para finalmente se revelar imposs vel. Ser-the-s cada vex mais trabalhoso reconhecer © lacos que unem a obra a sea passado © a seu futuro; e, descendo ao insondsvel da individualidade criadora do | artista, ele terminard por perder completamente o fio da meada historia (.) ‘Assim (..) aguilo em que consiste o valor hist6rico de uma obra de ate e em que tla depende de realizagdes anteriores (..) pode se revelar apenas como sendo uma pequena parte superficial e ndo essencial da totaidade completa de um obra de arte” (Uber die Beurteilung der bildenden Kunst, 1876, p. 19-30—grifo nosso). Cf. também Bemerkungen iber Wesen und Geschichte der Baukunst, 1878 Sobre Fiedler e sua contrbuigio 8 teoria da arte, cf. Ph. Junod, Transparence et epacité, Lausanne, Lge d’Fomme, 1975, 130 prio destino da ate e de sua vitalidade, Ele via nisso o sinal da hege- Pronia iminente da razio e de seu triunfo, previsto pela filosofia hegeliana, sobre os poderes criativos da sensibilidade e do instinto!® Sem partilhar de uma filosofia da arte tao claborada, as mes- spas inquictacdes foram expressas na Franca por Mérimée e Viollet- Je-Duc. Elas atestam a permanéncia e a consolidagio dos lacos que unem 0 monumento histsrico ao mundo do saber intelectual ‘Osdois homens deram provas suficientes de que viveram a imediatez da experiéncia artistica, tal como a descreve Fiedler: Mérimée foi tum dos primeiros a entrar, com a maior naturalidade, no mundo rominico'!. Contudo, em seu confronto com os monumentos tricos, um e outro recorreram 8 via indireta da andlise racional: o primeiro para convencer os franceses a conservar a heranca monti- ‘mental de que dispunham e para dissimular a falta de sensibilida- de estétical” de que sofriam, o segundo para tentar fundar uma nova arte de construir, vindo em socorro de um “desejo de arte”> ede uma sensibilidade arquiteténica debilitados. 10 Fiedler, Riel Sitce falam de Kunsttrieb (instinto artstica) e Viollet-le-Duc faz do instinto a esséncia da arte (cf. cap. V). L1.CE em Eudes sur les arts due Mayen Age, reeditados pela Flammarion, Paris, 1967, “Essai sur Tarchitecture religcuse (_.J" e "Lglse de Saint-Savin et ses peintuares murals" 12, B Mérimée, Lettres @ Viollet-le-Duc, texto esbabelecida por P. Trahard, Paris, Champion, 1927. Cf especialmente a carta de maio de 1857. “Parece-me certo rio se pode hoje formular principio absolute sobre nada nem, por conse ‘qdencia, reduzir tudo a um sistema tnico. Nesso papel nas artes € muito dificil, ‘Temos uma infinidade de velhos preconceitos, de velhos hébitas que se prendem 1 uma civilizagio que ndo é mais a ness, e 0 mesmo tempo temos nossas neces sidades, nossos hibitos, nossas vantagens moderns. Tudo isso me parece um bicho-de-sete-cabecas, Temos, porém, como os antigos, a capacidade de pensar «um pouco, a de sentir. De minha parte, creio que & pelo pensamento que ddevemos trabalhar nossa geragio e estou convencido de que, habituando-a a pen- sat, conseguiremos refiner seu gosto"(p. 28). Camillo Boito mostraxs, porém, tudo o que Mérimée deve “a intensainfluéncia da literatura, da poesia e da arte romantica", "Restaurare o conservare’, in Question pratiche di belle arti, Milo, Hoepli, 1893, p. 32. 13. Intencionalidade da sensibilidade que dé cor 4 criagfo artstica de uma época Sobre esse conceito, ver E, Panofaky, "Le concept de Kunstwollen” in La Perspective comme forme symbolique, Pars, Editions de Minuit, 1967, e P. Philippot, ef. nota 105, p. 167. Em Entretiens sur ‘architecture, Viollet-le-Duc multiplica as eviden- ‘las da morte da arte no séeulo XIX, ef. eap. V. 131 | ncn Do earonto Esse antagonismo entre as atividades da razao e as da arte man. teve-se no coracio do debate filoséfico ocidental. A morte da arte anun. ciada por Hegel nao péra de se consumar, ao passo que a experiéncia privilegiada por Fiedler se tornou revelacao do ser em Heidegger. “Aexperiéncia da obra de arte como tal s6 pode ser dificil, pre céria ¢ sempre renascente. O monumento histérico nao foge & regra, Mas ele pode também se dirigir 4 sensibilidade e ao sentimento por vias menos drciuas, largas, cOmodas, acolhedoras a todos, e pelas quais o século XIX enveredou resolutamente. Preparagdio roméintica: 0 pitoresco, 0 abandono ¢ culto da arte Com efeito, a sensibilidade romantica descobrira nos mony- mentos do passado um campo de deleites de acesso mais ff Redes de lacos afetivos miiltiplos e novos foram entio tecidas com esses vestigios. Lembrarei apenas, rapidamente, alguns aspectos. A pintura ea gravura roméntica fazem que a representagio figurada dos monumentos antigos tenha um papel praticamente inverso ao que lhe era atribufdo outrora nas obras de erudiclo. A tuma iconizagio museogrifica e abstrata, em que a imagem tende a substituir a realidade concreta das antigiiidades, sucede uma iconi- zacio supletiva que, ao contrério, enriquece a percepeio concreta do monumento hist6rico pela mediagio de um prazer novo. O olhar do antiqudrio construia uma imagem do monumento independente e a mais analitica possfvel. O olhar do artista inscreve 0 monumento numa ambientagio sintética que o dota de um valor pictérico su- plementar, sem relacio com a qualidade estética que Ihe é pr6pria. ‘A diferenga entre as duas abordagens pode, as vezes, se verificar em um mesmo artista, como € o caso de Turner em suas gravuras. De uum lado, ele executa durante a década de 1790, para o antiquério Whitaker, pranchas analiticas apresentando objetos descontextua- lizados, dissociados uns dos outros e definidos com rigor por seus caracteres morfolégicos e decorativos'*. Por outro, ele apresenta em 14. TD. Whitaker, History of the Parish of Whalley, vol. I. Os primeires desenhos de Turner para Whitaker datam de 1799, 132 -sconsctlo 0 wom HeEco diversos Annuals [Anusrios] suas primeiras “topografias pitorescas"™®, Ajstas sintéticas em que o monumento é parte de um conjunto no tual ele é posto em cena: apresentado, esclarecido, colorido em fun- desse meio, com 0 objetivo de produzir um efeito Esse tipo de trabalho ilustrado multiplicou-se durante as pri- eiras décadas do século XIX. Monumentos e edificios antigos, ue se tornaram contrapontos necessérios das paisagens naturais fe rurais ou dos panoramas urbanos, acolhiam novas determina- (ses: implantacio, pétina, formas fantasmag6ricas, signos de um novo valor pitoresco. E a pesquisa atenta e dedicada desse pito- resco aplicava-se a todos os géneros de construgées antigas, por mais obscuras, secretas e modestas que fossem. Hoje, as ilustra- g6es das Vayages de Nodier e Taylor, que se pretendiam livres de qualquer preocupacio cientifica, continuam sendo, em muitos ca- s0s, a tinica fonte documental de que dispéem os historiadores sobre a Franca urbana e rural do comego do século XIX, Para além do imediato e puro prazer visual, a imagem pitores- ca pode também gerar um sentimento de perturbacio ou de angé tia, em que se compraz a alma romantica, quando ela transforma em estigmas as marcas deixadas pelo tempo nas construgées dos homens. Entendidas como simbolo do destino humano, estas ad- quirem um valor moral: emblema duplo da arché criadora e da tran- sitoriedade das obras humanas. A ruina medieval, menos antiga, ‘mais difundida e familiar, é uma testemunha mais dramética que a ruina antiga. O castelo fortificado reduzido a suas muralhas, aigreja sgética da qual resta apenas 0 esqueleto revelam, mais do que se estivessem intactos, o poder fundador que os mandou construir; mas 0s musgos corrosivos, as ervas daninhas que desmantelam os telhados e arrancam as pedras das muralhas, os rostos erodidos dos apéstolos no pértico de uma igreja romanica lembram que a des- truigo e a morte siio 0 término desses maravilhosos inicios, Emocio estética gerada pela qualidade arquiteténica ou pelo pitoresco, sentimento de abandono imposto pela percepcao da 15. Por exemplo, suas primeiras vistas da catedral de Ely (1797). Depois disso, Timer ppublicaria nfo apenas Picturesque Views in England and Wales (1816), mas ter- ‘bém outras sériesinglesas e escocesss eas de Rivers of France (1833-1835). 133

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