You are on page 1of 19

Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço,

com prefácio de Lúcia Miguel Pereira,


São Paulo, Saraiva, 1952, 2000, p. 5-14 e 113-119.
MANOEL DE OLIVEIRA PAIVA

Dona Guidinha
do Poço
Apresentação de
LÚCIA MIGUEL PEREIRA
Posfácio e glossário de
AMÉRICO FACÓ
Capa de
ALDEMIR MARTINS
P rim e iro P rêm io N a c io n a l d e D esen h o da I B ienal
d o M useu de A rte M o d e rn a de S. P a u lo .

C diçãa S a^ aioa
Sãa P<u*ia
1952
MANOEL DE OLIVEIRA PAIVA

C t f í Ão deixa de haver uma tal ou qual impertinência nos prefácios


* ^ que, antecipando-se ao leitor, lhe roubam o prazer de desco-
brir, por si mesmo, as belezas ão livro; que se arrogam ares de guia e
se interpõem entre quem escreveu e quem lê, perturbando e até impe-
dindo a colaboração graças à qual tôda obra se renova ao contato de
sensibilidades diversas, que diversamente a interpretarão. Nenhum
livro ê absolutamente o mesmo para tôda a gente, variando as emoções
que provoca segunda a idade, o estado de espírito, as condições em
que é lido. Destas só há uma indispensável: a solidão. A idéia da
leitura associa-se para todos nós à imagem de um solitário com seu
livro na mão; quer se sente num banco de jardim público, entre o ruído
e o movimento das ruas, quer se agasalhe dentro de casa, sob a lâmpa-
da acesa, cria sempre em seu derredor a solidão propícia ao diálogo
que, consciente ou inconscientemente, estabelece com o autor.
Entre essas duas vozes, será sempre malvinda a do prefaciador, a
menos que se trate de um leitor passivo, sem reações pessoais — para
o qual não paga a pena escrever nem livros nem prefácios — ou de
obra hermética, a exigir comentários explicativos — o oposto desta no-
vela, tão simples, tão aberta, de tão inequívoca sedução. D. Guidinha
do Poço dispensaria qualquer apresentação, revelaria sem auxílio de ter-
ceiro todo o seu valor, se tivesse tido o destino normal dos livros, de
serem lidos pouco depois de escritos. O longo intervalo de sessenta
anos entre essas duas operações, de que restdtará afinal a verdadeira
fisionomia de qualquer obra, de algum modo legitima ou pelo menos
desculpa a intervenção de um prefácio. Êste livro já deveria ter sido
lido pelos avós dos que agora o fazem e disso não se podem esquecer,
para apreciá-lo com apropriada disposição. Não tem esta advertência
o intuito, remoto embora, de desculpar fraquezas ou ingenuidades, que
não as há em D. Guidinha do Poço. Note-se que disse "já deveria?’, e
não simplesmente deveria; o advérbio é indispensável, significando
que, publicado normalmente, teria sido lido por duas ou três gerações,
6 Ma n o e l de Ol iv e ir a Pa i v a

e gozaria hoje de prestígio longamente acumulado. Não se colocaria de


surpresa o leitor moderno ante esta história antiga que, ao contrário lhe
chegaria depois de anunciada por ecos idênticos aos que o predispõem
a aceitar O Guarani ou Inocência como valores permanentes em nossa
literatura. Pois a José de Alencar e Taunay nada fica a dever Manoel
de Oliveira Paiva, ou, melhor, nada ficaria a dever se, quantitativamen-
te não fôsse a sua obra tão reduzida. O confronto com O Guarani e
Inocência vem a pêlo por serem também trabalhos de moços, que para
logo tornaram conhecidos os seus autores. Mas se só êstes houvessem
escrito, seriam do mesmo modo famosos? De certa maneira permanece
incompleto o escritor de um único livro, o que não chega a confirmar
e desenvolver os seus dons, a criar no público o hábito de seu estilo
e de seus temas.
Talvez não fique Oliveira Paiva nessa situação de inferioridade:
há notícia de um romance e de contos seus, publicados na época em
revistas e jornais de Fortaleza, que talvez algum dia possam ser encon-
trados e divulgados. Tardiamente embora, êle há de ser incorporado
à literatura brasileira, como uma das suas mais expressivas vocações
de ficcionista, caso revelem as demais obras qualidades idênticas às de
D. Guidinha do Poço. Ainda, porém, que não dêem resultado as bus-
cas nesse sentido, que esta novela sofra desacompanhada a prova da
leitura por uma geração tão distante e diferente da de seu autor, já
será de destaque a posição do infeliz cearense. Publicando-a, os edito-
res Saraiva escapam ao lugar comum geralmente aplicado em circunstân-
cias semelhantes: não realizam nenhuma "corajosa iniciativa”, já que
tudo leva a crer no bom êxito desta, mas reparam uma injustiça e pres-
tam às nossas letras um grande serviço.
Talvez pareça estranho o fato de ter ficado por tanto tempo igno-
rado um livro do valor dêste. E na verdade o é, embora em parte o
expliquem as vicissitudes não só da vida de Oliveira Paiva como do
meio literário entre nós. Vale a pena recordar umas e outras, que êste
prefácio apenas pretende esclarecer a odisséia de D. Guidinha do Poço,
não necessitando esta — nunca será demais repeti-lo — de qualquer
elogio para ser bem aceita pelos leitores.
Não são muitos os dados biográficos sobre Manoel de Oliveira
Paiva. Sabe-se que nasceu em Fortaleza, a 12 de julho de 1861, provà-
velmente de família não abastada — pois morreu pobre — mas de bom
índice cultural, já que recebeu instrução. Feitos no seminário do
D o n a G u id in h a do P o ço 7

Crato os estudos secundários, veio para a Corte, a fim de matricular-se


na Escola Militar. Talvez, apesar da carreira escolhida, fosse mais
forte a s i m vocação para a pena do que para a espada: logo em 1877,
aos dezesseis anos, aparece assinando versos e contos na Cruzada, re-
vista dos alunos de sua escola. Se se sentia igualmente atraído pelas
artes guerreiras, grande deve ter sido a sua decepção ao ver-se impos-
sibilitado, pela má saúde, de terminar o curso.
Regressando em 1883 à sua província, não cuida, entretanto, de
restabelecer-se, não leva vida tranqüila e egoísta de doente. E como
o faria, se em Fortaleza todos os seus amigos vibravam, empenhados
na campanha abolicionista que traria ao Ceará a primazia na extinção
do regime servil? Ao contrário, todo se dá à defesa dos escravos, faz-se
jornalista, filia-se ao grupo do jornal "O Libertador”, órgão da So-
ciedade Libertadora Cearense”. São dessa época dois poemetos seus,
Isabelinha ou a Tacha Maldita e 25 de Março, o segundo celebrando
o fim da escravidão no Ceará, em 1884, o cuja publicação, feita por
alguns republicanos, leva a crer que também à propaganda da mu-
dança de regime logo começasse a servir.
A servir com sua própria arma, a palavra, que cedo manejou com
rara destreza. Atraído embora, generosamente, por causas sociais e
políticas, era como escritor que se afirmava. Desde as suas primeiras
obras denotou profunda originalidade o seu temperamento literário, a
expandir-se, segundo Antônio Sales, em "uma insubmissão instintiva
aos modelos conhecidos, uma aversão tal pelas praxes de composição
em voga que o levava para o bizarro das concepções imprevistas e das
expressões estranhas pela sua novidade excêntrica”. Observa todavia
o mesmo crítico que "não havia nisto a premeditação de armar ao
efeito”, pois "para que êle parecesse bizarro, bastava que fôsse natural”.
Não se pode fazer maior elogio a um moço, ainda tácitamente lhe cen-
surando as demasias. Não são estas, quase sempre, a marca, nos jovens,
de personalidade forte?
Quem tanto tinha a dizer e com tal energia se exprimia não se
poderia limitar a obras circunstanciais, à margem da atividade pública.
Ainda não triunfara o ideal republicano quando, em 1888, funda, com
João Lopes, Virgílio Brígido, Justiniano de Serpa e alguns outros, o
Clube Literário, em cuja revista, "A Quinzena” publicou vários con-
tos, "de feitio sempre original, mas trabalhados já com uma arte de-
licada e sóbria, que traduzia com extrema felicidade as sensações mais
8 Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a

finas e mais intensas”, diz ainda Sales, em nota não assinada na


"Revista Brasileira”. Mas se a política não furtava Oliveira Paiva à
literatura, não o alhearia por sua vez esta daquela. £ pelo menos o
que se depreende da sua nomeação para secretário do primeiro go-
verno republicano.
Quando parecia, assim, atingir a uma posição de prestígio, nova-
mente o obriga a saúde a interromper a carreira iniciada. Em busca de
melhoras, vai para o sertão, onde "pôde satisfazer a ardente curiosida-
de que tinha de conhecer de perto o povo e de estudá-lo com aquela
paixão de observador que ele possuía no mais alto grau”, informa sem-
pre José Veríssimo, o único de nossos críticos a dar importância a Oli-
veira Paiva. Os longos ócios enfermiços permitiram-lhe escrever
D. Guidinha do Poço, fruto dos contatos sertanejos, e rever A Afilha-
da, romance publicado em folhetins no "Libertador”. A ambos tinha
prontos para serem editados quando faleceu, em 29 de setembro de
1892.
Outro cearense de triste sorte, Adolfo Caminha, talvez haja sido,
no Pio, o só comentador dessa morte que privava a literatura de um
dos seus mais autênticos valores, quando formulava o voto de acabar
num abandono de vítima orgulhosa, como morreu, tísico e só, entre
a mulher e o filho recém-nascido, aquele outro meu vizinho de té-
dios, o Manoel Paiva, junto à imagem de Cristo — ele, um ímpio,
êle um renegado”.
Seria mesmo um ímpio e um renegado quem se finava sob a ima-
gem de Cristo? Como ímpio e renegado foi, isso sim, tratado pelos
fados literários. Picou inteiramente esquecido, ignorado, desprezado.
Os originais da A Afilhada não se sabem que fim levaram, os de
D. Guidinha do Poço só agora encontram editor.
Terminados os sofrimentos do autor, começavam as desventuras
das obras. No mesmo ano de 1892 funda-se no Ceará a "Padaria espi-
ritual que tanto agitou a literatura da província, movimento de moços,
que entretanto nada parece ter tentado para lembrar o nome de Olivei-
ra Paiva, embora publicasse um jornal, "O Pão” e promovesse várias
edições de escritores cearenses. Pouco depois, em 1897, Antônio Sales,
um dos "padeiros” de maior valor, fazia, na "Revista Brasileira”, um
apanhado da literatura cearense, sem mencionar o autor de D. Guidinha
do Poço. Completando, mais tarde, o seu trabalho, só ligeiramente, e
como contista, se lhe refere, não por má vontade — ao contrário, foi-
D o n a Gu i d i n h a d o P o ç o 9

-lhe amigo íntimo e constante — mas levado pela natural miopia dos
contemporâneos, que em geral só enxergam, muitas vêzes com vidros
de aumento, o que se lhes impõe ao olhar. O morto recente, se em
vida não se realizou completamente, fica sepultado sob camadas de
silêncio.
Foi Antônio Sales quem forneceu a José Veríssimo uma cópia de
D. Guidinha do Poço para ser publicada na "Revista Brasileira”: indo,
já fixado no Rio, visitar o Ceará, lá recebera o livro da viúva de Oli-
veira Paiva, e só então lhe percebera o valor. A final surgiria no Rio
a novela, lançada por uma revista de grande autoridade, com a nota
elogiosa da qual foram extraídas as citações aqui feitas. Mas, ao cabo
de quatro números, antes de terminar a narrativa, quem se acabou,
inopinadamente, foi a "Revista Brasileira .
Não se teria então ninguém interessado pela sorte do livro?
N em José Veríssimo, nem Antônio Sales? Não parece provável.
A explicação do abandono de D. Guidinha do Poço estará antes em
contingências econômicas. Poucos eram naquele momento os editores,
sendo comum ver-se um escritor obrigado a custear a impressão de suas
obras, luxo que certamente não se poderia permitir a família de Oli-
veira Paiva. E as raras casas editoriais que lançavam livros nacionais
não se quereriam sem dúvida arrojar à empresa de empatar capital numa
novela de autor que morrera inteiramente desconhecido. Reiterados
esforços, nesse sentido, de Antônio Sales, agora certo do valor do
amigo, tiveram sempre solução negativa.
Acresce ainda que naquela época — o ultimo numero da Re-
vista Brasileira” coincidiu com o fim do século passado domi-
nada pelo ofuscante brilho parnasiano, enveredam a literatura para
rumos opostos ao tomado pelo moço cearense. Entrava-se numa
fase de pompa verbal, de alcandoramento, de sofisticação, na qual
não poderiam de fato ser apreciadas as graças o seu tanto rústicas desta
novela, que destoaria dos requintes literários, como sua heroína, pouco
dama e muito fêmea”, faria má figura numa sala "art-nouveau , das
que então se usavam, cujos moveis pareciam querer rivalizar em fragi-
lidade com os "bibelots”. Dir-se-á que nelas circulou, pouco depois,
a Luzia-Homem de Domingos Olímpio — mas esta tinha pai vivo,
para defendê-la e guiá-la. Se nem no Ceará, sua terra, encontrou
D. Guidinha quem lhe desse a mão, como o faria no Rio, todo voltado
10 Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a

para novas modas? O público preferia romances franceses ou afrance-


sados, os literatos cuidavam de arredondar o estilo em construções
lusitanamente clássicas. Um ou outro leitor mais atento há âe ter la-
mentado a interrupção da história de amor, que em hreve ficaria porém
esquecida, tão morta quanto seu autor.
Da sepultura onde lhe jaziam os semi-restos — a coleção da "Re-
vista Brasileira” — não poderia facilmente ser retirada, que pouca
gente lê velhas revistas. Salvo engano, a única alusão feita a Oliveira
Paiva, graças à parcial publicação de sua novela, foi de Tristão de
Ataíde, no livro sobre Afonso Arinos, já em 1923.
Embora sempre evite falar de mim, de minhas experiências pes-
soais, vejo-me agora forçada a fazê-lo, porque estas se ligam às aven-
turas de D. Guidinha do Poço. E já que, apesar de constrangida,
ponho em cena a odiosa primeira pessoa, não recuarei, irei até à con-
fidência: devo confessar que, não fôra ter sido, com vários outros es-
critores, incumbida pelo editor José Olimpio de escrever uma História
da Literatura Brasileira, certamente morreria sem ter sabido da existên-
cia de Manoel de Oliveira Paiva, de D. Guidinha, do major seu mari-
do e do praciano seu sobrinho afim. Só quando fui obrigado a pro-
curar as obras escritas durante o período a meu cargo, tive notícia do
novelista cearense, que hoje tanto admiro. Comecei a percorrer-lhe a
novela na "Revista Brasileira” por dever de ofício, sem nenhuma pre-
disposição especial à simpatia, antes com o enfado que causam as leitu-
ras impostas. E logo às primeiras frases percebi que estava frente a
frente com um escritor — com um grande escritor. Não me esquecerei
nunca da emoção experimentada, aquela sensação de frio no plexo-
-solar que constituía, para D. H. Lawrence, o mais seguro sinal do
valor de uma obra, ou mesmo de um argumertto. "Não a sinto aqui”,
dizia, ao refutar qualquer idéia, apoiando ambas as mãos sôbre a re-
gião onde, para o seu intuitivismo, se situava a suprema prova crítica.
Nós outros, pobres espíritos presos à lógica, só de raro em raro senti-
mos êsse choque revelador. Mas não o desprezemos quando nos vem,
que seguramente o confirmará o mais cauto e hábil raciocínio. O con-
selho que ora dou, segui-o de instinto no momento: a história da fa-
zenda do Poço da Moita e de seus habitantes absorveu-me tôda, do-
minou-me, subjugou-me, com sua frescura um pouco ácida de fruta
verde, com suas arestas vivas, quase agressivas, com suas cores nítidas
e quentes. Ver que não chegava ao final foi-me uma decepção. Piquei
Do na Gu i d i n h a do Po ç o 11

suspensa, sem saber o que sucedera àquela gente que de repente res-
suscitara e se pusera diante de mim a mover-se, a falar, a amar, a
odiar.
Mas não me podia entregar a lamentações de leitora embevecida.
Se colaborava numa história literária, e mormente se me incumbia pre-
cisamente o período em que vivera Oliveira Paiva, tinha o dever de
informar-me a seu respeito, de tentar incorporá-lo ao nosso patrimô-
nio cultural. E nem sabia ao certo se permanecera inacabada a novela,
ou se fôra apenas interrompida pelo fim da revista. Na nota de An-
tônio Sales e no Dicionário Bibliográfico Brasileiro de Sacramento Bla-
ke encontrei dados sobre o autor e as obras por êle deixadas, mas não
consegui verificar se terminam D. Guidinha do Poço. Supunha que
sim, pois não ocorreria a Veríssimo publicar uma história incompleta.
Dirigi-me a uma pessoa amiga, que residira no Ceará e lá conservara
relações, pedindo que mandasse proceder a buscas nos jornais onde
colaborara Oliveira Paiva; escrevi um artigo indagando, de quem por-
ventura as soubesse, notícias de D. Margarida Reginaldo de Oliveira
Paiva, vulgo Guidinha do Poço, e de seu cronista; falei a torto e a
direito, perguntei, insisti. Nada. Nenhuma resposta esclarecedora.
Diante do silêncio compacto, imaginei que nem da personagem nem
do criador restassem sequer ecos longínquos na terra onde tanto so-
freram.
Eis senão quando, inesperadamente, mim providencial encontro
em casa de um amigo comum, disse-me Américo Facó estar de posse
dos originais completos de D. Guidinha do Poço, que lhe haviam sido
entregues por Antônio Sales. Procurara-os tanto, sem imaginar que
andavam em mãos tão próximas, e tão próprias para acolhê-los, sendo
as de um cearense, um poeta e um letrado. Por sua vez, nada soubera
Facó de minhas buscas. Não me contive que não fôsse imediatamen-
te ver o livro, não o levasse comigo, não o lesse logo até à última
palavra, com o mesmo encanto.
Já não são hoje, felizmente, tão raros entre nós os editores. Não
tardei a encontrar, na vibrante simpatia humana de Paulo Duarte,
então diretor intelectual da editora Ipê, o maior interêsse pela obra e
pelo autor. Obtida, por Américo Facó, a anuência dos herdeiros de
Manoel de Oliveira Paiva, à Ipê confiei, sem mais tardança, a cópia
datilografada em meu poder. Mas os maus fados continuaram a per-
12 Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a

seguir a novela: pouco depois viu-se a editora paulista forçada a inter-


romper as suas atividades. Estando em viagem pela Europa Paulo D u-
arte, fiquei em angustiosa incerteza acerca da sorte dos originais, ou,
melhor, da cópia, que temi fôsse a única existente. Com a volta daque-
le excelente amigo, que cuidadosamente a guardara, tudo se esclareceu.
O escritor Mário da Silva Brito, a quem contei as aventuras póstumas
de Oliveira Paiva, encaminhou o livro para os editores Saraiva. Assim
tudo terminou da melhor maneira.
Vai pois, cinqüenta e nove anos após a morte de seu criador, afron-
tar D. Guidinha do Poço a prova do contato com o público. Não me
parece entretanto que seja tarde, que se haja fanado ou esmaecido a sua
graça. Não a direi talhada para resistir aos séculos, mas meia dúzia de
décadas só são perigosas para as obras cujo único valor reside em se-
guir a moda do momento, o que aqui não se dá. Ao contrário, a exem-
plo de sua heroína, matuta orgulhosa, não imita esta narrativa nem
maneirismos nem elegâncias alheias e passageiras. Ê inteiramente ori-
ginal, espontânea, livre, com aqueles toques de bizarria notados por
José Veríssimo.
Não deixa entretanto de refletir certas tendências de sua época,
embora não as mais ostensivas. Nos últimos anos da curta vida de
Oliveira Paiva, o naturalismo dominava avassaladoramente a ficção,
povoava-a de tipos patológicos, e também de algumas figuras de forte
vitalidade, como as do Cortiço de Aluísio Azevedo. Chegara-nos da
Europa, da França e de Portugal, de Zola e Eça de Queiroz, mas fôra
aqui adotado no momento histórico mais favorável, quando, com a
abolição, terminava o predomínio rural. Em nenhum outro se adapta-
ria tão bem às condições locais, já que, destinado a patentear a ação
do meio sôbre o homem, precisava colocar as suas personagens na so-
ciedade mais densa e coercitiva das aglomerações urbanas. Representa
com nitidez em nossa literatura o ponto de vista citadino, a desforra
das cidades contra o campo tão valorizado pelos românticos, das análi-
ses de temperamento contra as descrições de paisagens. Há por isso em
quase todos os livros que suscitou um báfio de porão, de ambiente
fechado, opressivo e nauseoso. Tão nauseoso e opressivo que não po-
deria deixar de provocar, em gente como a nossa, de origem predomi-
nantemente rural, uns desejos de ar puro, de sol, de horizontes livres.
Por outro lado, a afluência de imigrantes estrangeiros, muito maior
D o n a Gu i d i n h a do Poço 13

depois da extinção do trabalho servil, ameaçava modificar e descaracte-


rizar a vida campestre, o que lhe tornava mais nítida a sedução.
Será por tudo isso que, em fins do século passado, sentiram três
jovens escritores a necessidade de fixar os hábitos, o feitio e a lingua-
gem da parte da população ainda resguardada de influências estranhas
__a roceira? A coincidência de, sem comunicação uns com os outros,
ignorando-se, ao contrário, terem começado a escrever, no mesmo mo-
mento e no mesmo sentido, Manoel de Oliveira Paiva no Ceará, A fo n -
so Arinos em Minas e Valdomiro Silveira em São Paulo, permite supor
que hajam obedecido a impulso semelhante, de ordem tanto literária
quanto social. Reatavam sem dúvida a tradição de José de Alencar, de
Taunay e de tantos outros autores de "romances brasileiros”, como
então se dissera, mais apoiados porém na observação, procurando mais
diretamente recompor costumes e expressões peculiares. Era, aftnal,
depois do indianismo e do brasileirismo, o regionalismo que surgia,
não como movimento consciente, antes espontânea e surdamente.
As datas parecem conferir certa precedência ao cearense. Com
efeito, tendo falecido em meados de 1892, deve ter escrito D. Guidi-
nha do Poço ao mais tardar em 1891. Nesse ano, segundo parece, ape-
nas começava Afonso Arinos a redigir seus primeiros contos, nêle
tendo estreado na imprensa, também, com um conto, Valdomiro Sil-
veira. Já possuía pois Oliveira Paiva pronta uma novela quando os
outros ainda andavam longe de ter todas as histórias que mais tarde
enfeixariam em volumes. Precedência ligeiríssima, só registrada aqui
a título de informação, que não destrói a concomitância, deveras signi-
ficativa.
O que, sem diminuir o valor de seus companheiros, parece consti-
tuir a maior excelência dêste escritor é a mestria com que fundiu os
elementos emocionais e os materiais, isto é, a arte de tornar sugestiva
qualquer minúcia, de valer-se de indicações objetivas para reforçar in-
diretamente o sentido da narrativa ou insinuar o caráter de uma perso-
nagem. O feitio bravio do marido de Guidinha fica, por exemplo,
logo marcado quando nota que tinha "o prêto-do-ôlho amarelo, com
a menina esverdeada, semelhando um tapuru . O que vem a ser tapu-
ru, saberá o leitor pelo glossário para êste livro feito por Américo
Facó; mas ôlho amarelo, de pupila esverdeada, ninguém ignora que è
olho de gato, de animal traiçoeiro e indomável. Assim também, para
anunciar a sêca, preferiu dizer que "a roupa vinha da lavadeira gruda-
14 Ma n o e l de Ol iv e ir a Pa iv a

da de sabão”. A paixão de Guidinha, anuncia-a notando que vivia


como "quando por cá a gente gosta de brisas, de luares, de estrelas,
de auroras, de nuvens que passam”. E se o sobrinho a despertara, era
que tinha um "todo bem espanhadinho de gato de casa de boa gente,
que sabe lamber-se, de ave sôlta, que se cata à sesta e não tem sujo de
gaiola”. Não há em todas estas frases apenas o dom, sempre bem-
-vindo, de dizer sem dizer, permitindo que o leitor conclua por si
mesmo; mas também, e sobretudo, a capacidade, menos comum, de
aproveitar, para a essência da narrativa, os elementos pitorescos que a
realçam. Assim tudo se entrelaça, nada parece postiço: quadro, figuras
humanas, sucessos e linguagem completam-se mútuamente e mutua-
mente se conferem autenticidade. Os contornos duros e salientes da
novela harmonizam-se com a inclemência do clima, com a arrogância
das criaturas, com a solidez do estilo, cujo arcabouço se desenha, re-
sistente, sob o colorido que o adoça. Tudo tem o "vigor nervudo e
musculento” da heroína.
Mas vejo que estou traindo o meu propósito de não privar o
leitor das primícias da leitura. Queria tão somente falar do autor, co-
locá-lo na posição que lhe cabe em nossa literatura; e deixei-me levar
a comentários e explicações sobre um livro que os dispensa. Lembra-
rei apenas ainda um conceito de T. S. Elliot: "Os monumentos exis-
tentes dispõem-se segundo uma ordem ideal que se modifica pela in-
trodução da nova (realmente nova) obra de arte. Completa antes da
vinda da novidade, essa ordem só se manterá em seguida se se alte-
rar tôda, ainda ligeiramente; assim se reajustam as relações, propor-
ções e valores de cada obra em função do todo”. Não virá D. Gui-
dinha do Poço alterar a hierarquia da nossa literatura? Quanto a
mim, não duvido de que isso se dê, de que abram alas para deixar
passar esta novela muitos romances anteriores, e dos mais famosos.
Já tive a fortuna de descobrir um livro a bem dizer desconhecido
de Machado de Assis, Casa Velha; descoberta de machadeana pesquisa-
dora, que nada entretanto acrescentava à glória do nosso maior escri-
tor. Ter contribuído para a publicação dêste é satisfação muito mais
profunda: tornar conhecido um ficcionista como Manoel de Oliveira
Paiva será o melhor serviço que poderei prestar às letras no Brasil.

Rio, junho de 1951.


L ú c ia M ig u e l P e r e ir a
IV

J AÍ,a vida do povoado entrou de novo em pasmaceira.


Dona Guida tornou para o Poço da Moita, assim como
os demais fazendeiros, cada qual para as suas terras. Findou-
-se, encerrou-se aquele comércio diário, apagou-se a música
com as fogueiras e com as velas das trezenas, que além da igre-
ja se faziam nas casas particulares.
Agora, por assim dizer, contava-se quem andava na rua.
Apenas, no domingo à tarde, três cavaleiros, sempre os mes-
mos, esquipando emparelhados, dobrando nos mesmos cantos
como o peixe na piscina. Um dêles era o Secundino, que, os-
tentando uma roupinha curta de equitação, ainda das que
trouxera do Recife, fazia o cavalo passarinhar tôdas as vêzes
debaixo da janela da Lalinha, que se embasbacava com as gau-
chadas pimponas do namorado.
Fora disso, o mancebo praiano achava Cajàzeiras de uma
insipidez horrível, como êle mesmo dizia, carregando muito no
ível. Chamava-lhe a Terra do Silêncio. Comprazia-se às vêzes
em chegar à tardinha até aos altos próximos do lugarejo. Nes-
ses pontos a desigualdade do terreno e alguns sobrados, geral-
mente com os oitões e as frentes bem caiados, lhe apresentavam
Cajàzeiras risonha e grata, no meio do verde tênuemente calci-
nado, a ostentar as suas três igrejas bem alvas, uma das quais,
a matriz, atalaiava meia légua em derredor.
Ao recolher-se, pôsto o sol, inebriava-se no ar embalsama-
do, e o aspirava com o pensamento cheio da imagem da menina
Lalá. Cajàzeiras cheirava a incenso. A piedade e o misticismo
saíam da rocha e da planta, da rês e do vaqueiro, do vale que
pede a contrição e do morro que inspira a reza.
À hora de deitar, ouviam-se as cantilenas do têrço, que
vinham das casas fechadas como se surdissem do próprio solo
pela voz da matéria.
Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a
114

Então, êle ficava sentado à porta de sua loja, e só ia dor-


mir depois de ter escutado a voz da menina, do sobrado do pai,
a entoar as suas preces da noite.
Seja dito de passagem, todavia, que o Secundmo ia ja
desgostando do seu negócio, quando o Quim o convenceu a
passar-se para fazendeiro. Não havia movimento no comercio
da localidade. Quem lhe comprou quase tudo foi a Guida. A
princípio pensou em sortir-se, mas para quê? Imaginava nego-
ciar muito, comprar gado, e em breve estar um «caço casadi-
nho com a Lalá. Mas quem disse!
_ Mercado sem normas! — caramunhava ele. Preços
extravagantes, negocinho de beira de estrada, comércio de
corda ao pescoço! v .
E desandava em murmurações contra Gajazeiras.
A última sêca e a penúltima, com intervalo de uns tres
lustros, haviam deixado no lugarejo um cunho de devastaçao
íntima, como essas moléstias de que se fica ou morto ou aleija-
do Imagine-se que naquele povoado, tão rural e tao bucolico,
com quintais murados e plantados, currais de vacas por toda
parte, flores, hortas, nesse remanso idílico — havia ttech°s de
rua onde duas, três, quatro, cinco casas seguidas, tinham desa-
bado sôbre o silêncio misterioso de longos anos de ausência dos
seus donos, que a fome desalojara e não voltaram mais. Aqui
morou Fulano, ali Sicrano, esta há tantos anos não se abre _• ■
Tristes ruínas, desolados destroços do mastigar de duas grandes
sêcas!
O rapaz, em crise de amores, que são tudo construções,
achava de péssimo gôsto essa afamada poesia das ruínas que lhe
infeccionava o coração, dizia, de funeral tristeza.
Miseravelmente aniquiladora era aquela fisionomia esca-
veirada das habitações abandonadas, contra o suave consolo e
a dourada madureza daqueles matos de junho. A casaria habi-
tada e limpa agravava o contraste, era como vivos felizes ao pe
de mortos atirados ao monturo.
As ruínas eram múmia, silêncio enigmático, esfinge, ar
quivo ininteligível das vidas que ali viveram.
Só devia retirar-se de Cajàzeiras para meados de agosto,
tendo de liquidar os seus negócios.
D on a G u idinh a do P o g o 115

Mais uma circunstância viera ainda tornar-lhe Cajàzeiras


insuportável. Bem que o Mariano Bonfim, tôdas as vezes que
o via, entrava a repetir-lhe que terra pequena não era lugar
onde se morasse, e que no Ceará, ou bem a Capital ou bem a
fazenda; mas povoado só para êle, Mariano, que era um caipora
de sacristão. _
Auxiliada pela Aninha Balaio, que era mesmo que nem
uma lançadeira, a Guida conseguira incompatibilizar o Secun-
dino com o pai de Lalá — eis o caso:
Foi um escândalo, se é que escândalo se pode chamar a
cenas que se renovam todos os dias no tacanho convívio de
localidades que só lêem as diatribes da imprensa indecorosa
das capitais, só adoram os santos de pau pincelados de ouro,
só conhecem a Deus pelo latim do vigário, e que m o tem
noção do trabalho profícuo, do labor inteligente, da superio-
ridade humana, dadas quase unicamente aos mesmos prazeres
que os animais do rebanho e do lote.
A coisa principiou pela conta do juiz, que já ia engrossam
do, talvez um pouco mais apressada do que o natural cresci-
mento do afeto do credor pela filha do devedor. A Balaio fez
” ber ao ouvido do moço que o doutor caloteara a quase todos
na vila que devia a Fulano de Tal tanto, e a Sicrano de Tal
quanto^ que os credores faziam que não viam, d,z que pruque
o home era juiz de dereito. . . ^ , c u ■> rz «
_ Pois cá o degas não precisa de juizes, a e.

deSaDaí vai a Aninha ao doutor: Que o Secundino ia mandar


citá-lo, e que havera de lhe tomar o cavalo lazao.
E bem na orelha do letrado:
_ Disse nas minhas ventas que limpava o fiôto _ com
licença da palavra — com diploma de juiz de dereito.
Na sessão do júri, o Secundino não compareceu. M uta
em cima, ao passo que outros jurados foram dispensados. Mas
se êle nem ao menos dera satisfaçao ao juiz!
A Balaio assegurou ao doutor que o Secundino lhe furta-
ria a filha. Fêz uma narrativa de má-fe sobre o passado
mancebo, inventando coisas de sua cabeça. E desde ai passou
Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a
116
o homem a implicar sèriamente com o rapaz, visto como nem
por sonhos cogitara nem cogitaria nunca de confiar a sorte de
sua filha a um forasteiro sem eira nem beira. Ameaçado no
íntimo, então sim, o doutor começou a tramar surda guerra.
O Secundino papocou-Ihe na rôsca da venta, a proposito de
uma questão do Capitão Chiquinho sôbre o furto de uma besta,
que Sua Senhoria se vendera aos Tubibas por uma manta de
carne e duas terças de farinha. Foi uma alteração, que se fora
entre gentinha, era logo cadeiame velho com ambos, segundo
comentou o borracho do negro Catolé, veterano das prisões de
correção. ....
Secundino foi chamado à responsabilidade por injurias
verbais. Mas a Guida, com uma palavra, fêz o juiz desistir da
ação.
Ah! em que angústias não se viu o mancebo, repartido,
bipartido entre o seu ódio e o seu bem-querer! Lalinha vivia
triste, cada vez mais simpática, mais alva, com uma suavidade
de traços que era todo um segrêdo de seduções.
Houve uma missa de visita de cova no São Bom Jesus, que
ficava num alto, ao entrar do povoado. No fim, os convida-
dos foram espargir água benta. Secundino passou o hissope a
Lalinha, e dela recebeu um longo olhar cheio de intenções.
Que felicidade! Qual claridade diurna, êsse instante, pequeni-
no foco solar, espalhou-se pelo universo criado por aquelas
duas fantasias.
Ao sair da ermida, a donzela estêve um pedaço na porta,
à espera dos mais. A sua tez ia tão bem com o vidrilho preto.
Olhava para o sertão. O sol acordava na terra as primeiras
quenturas da estação tórrida. Ao lançante, estendiam-se as cor-
covas de catingas já pintando.
Para a baixa do rio, a fita de vegetação tornava-se verde-
-negra. Por tôda parte as frondes caducas iam amadurecendo, e
as pertinazes, muito raras, preparavam-se para a vida do verao.
O umari, do meio das vazantes, suspendia cada vez mais a pere-
ne copa como que espartilhada. Um paraíso de pássaros a can-
tar. Já era por entre o pasto, já era nas cêrcas, nos pendões de
milho, nos oitões erguidos das casas caídas, distantes já, nas
D o n a Gu i d i n h a d o P o ç o 117

andes árvores sozinhas. Uma infinidade de avezitas, sobretu-


do a esfusiar por entre as gramineas, por entre os capmzais, que
se embaSam por todo o terreno como o pêlo no couro uma
abundância de tolinhas e quanta espécre de pombas arrulhant .
No rio, ainda o vôo branco das garças e a risadinha cons-
tante dos maçaricos. rrafl_
Aquêle amor do Secundino estava no meridiano, e est
guladaqde dor, a m o ^ t ^ ô l S T i S ^ £

fKhadas’ d a casa onde


ple tivera a venda. .
Mordia-a a saudade. Mas é um engano querer-se que sejam
veementes, vulcânicos, assoberbantes, certos sentiment^ As
afeições v i d e i r a s , legítimas, têm por ambo . brandura, um

nnr ela. sem remédio. _ „


N inguém pode avaliar o grau de afeição em que tem^a
outrem. s e„us
icu
m
A in re
alguns tumores que so doem quando se mago^ ^ ^ ^
que se tratam com a maior ind Ç, spondam. Marido

do agudo, em crise de
tura tem o seu sentimento Pel°
= ££B z- -bre,
J homem é verda-
pelo mais sagrado. E n“ sa^ C^ d ^ esses m0mentos não

X e n e S r n i n u n d l . Sô se vê
através da pureza de suas lágrimas.
118 Ma n o e l d e Ol i v e i r a P a i v a

Outra característica é a necessidade de esvaziamento: é um


açude cheio, que deve sangrar. Transborda. Aí vem o grito,
a lamentação, a lamúria, os impropérios, e até a blasfêmia;
noutros, a confidência; noutros, uma certa passividade, porque
todo o trabalho de eliminação está sendo feito pelas idéias.
Como na embriaguez, nessa crise aguda põe-se ao claro o tem-
peramento, a educação, o caráter, e sobretudo a condição pre-
sente da criatura. Um mesmo indivíduo que há anos sairia a
correr pela rua, desgrenhado, hoje ficaria inerte, petrificado
ou doido de mudez, conforme à modificação que lhe houvessem
imprimido as voltas que o mundo dá.
Lalinha era das pessoas que, feridas numa afeição, ficam
em certo estado passivo. A explosão é própria dos sentimentos
excessivamente fortes, um tanto de superfície; o manso deslizar
é das águas profundas e perenes.
Há temperamentos em que é tal a persistência do afeto, que
lhes é mister personificá-lo de novo, e assim se explicam alguns
esquisitos casamentos de viúvos. É essa teimosia de imagem que
faz a gente, ainda por muito tempo, como que não acreditar no
desaparecimento de uma pessoa, a cuja morte entretanto assisti-
mos com os nossos olhos.
Lalinha atravessava essa quadra em que os próprios órgãos
do corpo humano como que têm paixão pela vida, vegetativa-
mente, entre as primeiras luzes dos sete anos e os primeiros
sobressaltos dos vinte. Podia-se dizer, em relação às funções do
entendimento, que os seus sentidos eram suspeitos. Tudo choro
ou riso. Tudo lhe era gostoso e belo do céu à terra: tudo sim-
patia.
Idade da incubação de todos os amores, desde a afeição
normal até o amor da Pátria, o amor às Letras, à Ciência, à Guer-
ra, à Virtude, ao Vício, e até ao Ódio.
Ao labirinto, com as mãos esquecidas sôbre a grade, ela
punha-se a olhar, a olhar pela janela para o rumo onde o namo-
rado se sumira pela derradeira vez. Olharia êle para trás? Dis-
sera amá-la tanto! Que esperasse ela, o tempo tinha tempo.
Ao anoitecer, essa escala descendente da luz, solfejo da
mãe-da-lua que fenece no silêncio negro, morre o último canto
da graúna, piando o bacurau, ao prelúdio das primeiras estréias
D o n a Gu i d i n h a do P o ç o 119

para a serenata de cintilações pela noite adentro, ela rezava,


rezava ainda espreitando para aqueles lados; e a qualquer hora
do dia, no seu vexame abafado, reparava sempre o mesmo telha-
do da casa de Aninha Balaio, por onde êle se foi, lá no alto,
ora vermelho dorso de peixe, ora imensa onda verde, espumada
de inflorescendas.
Lalinha vivia da própria seiva, da própria beleza; vivia de
desabrochar. Mas a necessidade, demônio onipotente, começara
a minar-lhe o ser com as infiltrações do amor, sutis, deliciosas,
infernalmente celestiais. A menina vadiava com êste sentimento
como a criança com um punhal.

You might also like