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TAH cma cete Biblioteca — ICHSUFOP "4000213924" auténtica Nas paginas a se Olav leresiaats eta s]e maestria de Antoine Prost CCR aimee aa Celart NEUE Le MSI GlEeUlelgy @studantes € demais envolvidos fa area de Ciéncias Humanas, este livro surpreende por tecer em uma unica edigao, uma Cola Olu cee te nec cei eee RULE Cesena ma id STEUER RTE CMU e = PSR o ecu ci cer ectlo, UA ulm OMe le aca gna em (oro Rc Freitas Teixeira, convida os his- AG UCU OO CcRe MN MNU ee ane) Pec Puemec eS cS € reveladores, escapando & eet Rt oat EMS cm (Ca) BEVeie oye yuscsle seer TOMO a Rus LeUgen ease One gie ela UOT cM WIS OEMs eMeea eee lelo} ECE mre CuI OC Ue came} leitor tem em maos, portanto, PERO CM ese eNo kt sae) Uc} Ean cleat to Aes ease ae Ma SCE SSM cere ccece-e ny ae) WS Oelelslg 0 AUTOR eA att NO Og Peco meee Uis Coaac ra sy pesquisador na rea de historia da Bee cet Ree OC On. fis: PMT icoeacn ae cme i een ne MU teem (ecu comae Moat eRe CLO ene) expliquée 4 mon petit fils (Seuil) € $e NIC elem SOL Re OeY a vada v. 5 (Companhia das Letras). ESE RCI mer eer) Hist6ria e Historiografia: EMER saat) cea 6} GURU us kc ces ood sobre Hist6ria Cultural Jean-Yves Mollier Doze licdes sobre a histéria Scanned by CamScanner Scanned by CamScanner Colecao HISTORIA & HISTORIOGRAFIA Antoine Prost Doze licdes sobre a histéria Teapugio Guilherme Jodo de Freitas Teixeira auténtica Scanned by CamScanner Titulo original: “Douze legons sur |'histoire”, de Antoine Prost Copyright © Editions du Seuil, 1996 COORDENADORA DA COLEGAO HISIORA E HBTORWOG RATA Eliana de Freitas Dutra PROJETO GRAFICO DE-CAPA carn Sobre imagem de Teco de Souza Puvis de Chavannes. Le Bois sacré (detalhe). Grand Amphitheatre de la EDITORAG AO ELETRONICA. Archives Giraudon. Sorbonne, Paris Tales Leon de Marco REVAO, Aiko Mine REWISAO TEENA Vera Chacharn FOITORA RESPONSAVEL Rejane Dias Todos o$ direitos reservados pela Autentica Editora Nerhuma parte desta publicacdo poderé ser renroduzida, s9j2 por meios mecinicos, eletrBnicos, soja via cépia xerografica, sem a autorizacao previa da editora AUTENTICA EDITORA LTDA. Rua Aimorés, 981, 8° andar Funcionérios $0140:071 Belo Horizonte MG Tel (55 31) 3222 68 19 Tetvinons 0800 283 13 22 wrenn autenticaeditora com br Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro) Prost, Antoine, 1933- Doze ligbes sobre a histéria / Antoine Prost ; [traducao de Guilherme 4Jo20 de Freitas leixeira]. — Belo Horizonte ; Autentica kditora , 2008, Titulo original: Douze lecons sur histoire. Bibhiografia. ISBN 978-85-7526-348-8 1, Historiografia 2, Historia - Metodologia |. Titulo, 08-07528 ‘cop-907.2 Indices para catdlogo sistemitico: 1. Historiografia 907.2 Scanned by CamScanner SUMARIO Introducéo... Capitulo | — A historia na sociedade francesa (séculos XIX e XX) Capitulo Il-A profissdo de historiador Capitulo Ill — Os fatos e a critica historia... Capitulo IV ~As quesies do historiador. Capitulo V—Os tempos da historia Capitulo VI-Os conceitos... Capitulo Vil - A historia come compreensdo. Capitulo Vill Imaginacdo e atribuigdo causal. Capitulo XO modelo sociolagico.. Capitulo XA histéria social... Capitulo XI ~ Criagdo de enredos e naratividade.... Capitulo XII-A historia se escreve... Conclusdo - Verdade e funcéo social da historia. Referéncias....... Lista dos livros em destaque... Scanned by CamScanner 13 3a 53 75 95 . 115 . 133 153 . 169 . 189 . 211 » 235 » 253 « 273 286 CAPITULO XII A histéria se escreve Nio é 0 enredo que faz a diferenga entre um texto histérico e um texto jornalistico. Em compensagio, basta abrir o livro para desfazer qual- quer davida: de fato, a historia erudita manifesta-se por sinais exteriores muito mais evidentes ¢, em particular, por seu aparato critico © pelas notas de rodapé ‘As notas na margem inferior da pagina sio essenciais para a histéria: elas constituem o sinal tangivel da argumentagio. A prova sé é aceitivel se for verificavel, A verdade no imbito da historia, conforme ji afirmamos, é aquilo que ¢ comprovado; no entanto, sé comprovado aquilo que posa set verificado. O texto histérico serve-se, em profiusio, de notas porque ele nio recorre ao argumento de autoridade. O historiador nio solicita, de modo algum, que Ihe seja depositada uma confianga incondicional: con- tenta-se que alguém aceite acompanhé-lo no enredo construido por ele. As “marcas de historicidade” (PomtAN, 1989) preenchem, no texto histérico, uma fungio especifica: elas remetem o leitor para fora do texto, indicando-lhe documentos existentes, disponiveis em determinado lu- gar, que permitiram a reconstrugio do pasado. Elas constituem um pro- gtama de controle. 41. — Krzysztof Pomian: A narracao histérica Portanto, uma narragio é considerada histérica quando comporta marcas de historicidade que confirmem a intengio do autor em dei- xat o Ieitor sair do texto, além de programarem as operagdes susceti- vis, supostamente, de verificar suas alegagdes ou reproduzir 08 atos cognitivos que teriam servide de base para suas afirmagdes. Em pot cas palavras, uma narragio é considerada histérica quando exibe a intengao de se submeter a um controle de sua adequagio 4 realidade 235 Scanned by CamScanner extratextual do pasado, abjeto de sew ests No entanto, conven que esa intengio tenha algum contedde; mo sign ges de controle devern ser, efetivamente, acessiveis ao leitor com das resulte de que as opers petente, 4 menos que a ipussibilidade de execu acontecimentos ocorridos (por exemplo, destruigio dos arquivos, perda, roubo ou outros acidentes da mesma natureza), depos da escrita dessa narragdo, (PomIAN, 1989, p, 121) Dai, a dificuldade em sacrificar as notas de rodapé, conforme a im- posicio de um grande nimero de editores de colegSes de historia a fim de nao desanimar os clientes: a obra hist6rica oferecida nas festas de Ano Novo, profusamente ilustrada, mas desprovida de seu aparato critico, podera ser ainda considerada como histéria? Para que a resposta seja positiva, convira que seja possivel supor sempre a existéncia, em algum lugar, no manuscrito do autor ou em suas notas, de um conjunto de notas; de alguma forma, sera necessirio que o aparato critico mantenha uma exis- téncia, no minimo, virtual. Eis o que, no decorrer da leitura, ¢ perceptivel quando o historiador cita exemplos precisos para comprovar suas afirma~ ges ou discute uma fonte. O aparato critico é, entretanto, menos discriminante do que possa parecer & primeira vista: sua auséncia ou sua presenga — e sua amplitude — dependem, sobretudo, dos destinatirios da obra e nio de seu autor, Em ver de estabelecer uma diferenga entre profissionais ¢ amadores, tal cons- tatag3o corresponde, afinal de contas, a dois mercados da edigio. No en- tanto, um estudo mais criterioso nio terd qualquer dificuldade em identi- ficar — entre um texto de histéria ¢ outros escritos ~ diferengas mais sutis ¢, ao mesmo tempo, mais profundas.! As caracteristicas do texto histérico Um texto saturado O texto do historiador aparece, em primeiro lugar, como um texto pleno, Esa ¢ a conseyticucia de sua propria construgio, de sua eriagio de enredo. Ele possui sua coeréncia propria, sua estrutura, que constitui, por si sé, uma argumentagio ¢ indica as teses que pretende demonstrar. O plano de um livro de histéria é, a um s6 tempo, 0 esbogo de uma narragio € 0 de uma argumentacio: isso ¢ © esencial, Em certo sentido, pode-se dizer que © proprio texto contenta-se em apresentar provas e dar contetido A primeira parte deste capiculo basena-se, em particular, nas anilises de Michel de Certeau (1975), 236 Scanned by CamScanner Womesbogo. Asimycnaniese aowestudantes, com toda a Fiza, 0 habite dle comegat stu lerttira pela tabuia das matérias, Essa caracteristica, gio, 0 trabalho do historiador aparece recheado de fatos ¢ precisdes: ele da a justificativa de tudo © que afirma. Trata-se de um texto completo, satura~ do, em principio, sem vazios nem lacunas. Contudo, tais i feiges nio deixam de existir, inclusive, so inevitiveis; no entanto, tomam-se imper- ceptiveis no que diz respeito aos infimos detalhes ou, entio, 0 historiador consegue oculté-las ou, ainda, decide assumi-las. Nessa circunstincia, ha duas maneiras de proceder: argumentar sua reduzida importincia para seu intuito ou sublinhé-las como lacunas a superar através de pesquisas ulterio- tes, deplorando 0 fato de nao ter realizado ainda essa tarefa por falta de fontes ou de tempo. Existem numerosos exemplos desse tipo de remorso de historiadores: aliis, ele faz parte dos mais freqiientes lugares comuns da profissio ¢, em particular, surge quase sempre na conclusio das apresenta- ces de defesa de rese, assim como na parte firual dus preficivs. porém, nio exclusiva da historia, Em compensi~ O encerramento da exposicio historica em si mesma ¢ a saturagio do texto pleno opdem-se 4 abertura inerente 4 pesquisa; alids, as notas de rodapé fazem lembrar a presenga, a necessidade e a vigilincia em relagio a suas proprias caréncias, no proprio interior do texto acabado. © pesqui- sador vai resolvendo, sucessivamente, as lacunas, sempre insatisfeito e cada ver mais consciente de sua ignorincia, Ele nio pode encerrar um dossié sem abrir um grande nimero de outros. Dai, a dificuldade de passar da pesquisa para a escrita e a insatisfag3o do historiador diaute do livro acabado porque sé ele conhece o niimero de artificios adotados para colmatar aspectos deficientemente pesquisados quando, afinal, seu texto se limita, na melhor das hipéteses, a asinald-los: 0 que diria o leitor se, em cada pagina, viesse a encontrar uma confissio de ignorincia? O encerramento do texto historico é, igualmente, cronolégico: o livro parte de uma data ¢ — sejam quais forem os meandros ou recuos escolhidos pelo historiador para tornar seu enredo mais interessante — dirige-se, inexoravelmente, para outra, © livro acompanha © transcoiter do tempo; por sua vez, a pesquiisa havia sido mais sinuosa, remontando 0 tempo que fora percorrido em todos os sentidos. Uma vez justificada a cronologia de seu tema — este aspecto deveria constar sempre de qual- quer obra histérica ~, 0 historiador escreve como se a origem c o desfe- cho se impusessem por si mesmos, A pesquisa vai consideri-los sempre como problemiticos ¢ © pesquisador sabe que era possivel referit-se a coutras balizas, descartadas no decorrer de seu trabalho. oteca Aipnons «we Hen" asp ICHS J UF Ngstana Wi Scanned by CamScanner Por tiltimo, a delimitagio do texto pelo enredo adotado contrasta cont a abertura inerente pesquisa. Na abordagem de uni tema, o histonador sabe que teve de proceder a um recorte que sera justificado por sua argu mentagio, No entanto, a investigagio mostrou-lhe que seu objeto de estudo tinha alguma relagio com numerosos asuntos conexos que, por ventura, ele teria desejado abordar, O mesmo é dizer que, entre a pesquisa histérica propriamente dita ¢ a obra oriunda dessa operagao, existem diferengas relevantes, embora a segunda comporte vestigios da primeira. Pasar da pesquisa para a escrita € transpor um Rubicio... [sso indispensivel; de fato, 0 que seria a pes quisa sem livros? No entanto, deve ser descartada a idéia de uma conu- nuidade linear entre a pesquisa e a escrita. Um texto objetivado e digno de crédito O texto de histéria apresenta uma segunda caracteristica que merece ser mencionada: a exclusio da personalidade do historiador. O en & pros- crito; no maximo, aparece, as vezes, no preficio quando o autor — mesmo que se trate de Seignobos — explicita suas intengdes.? Todavia, tendo ini- ciado a abordagem do assunto, 0 eu desaparece, Os enunciados apresen- tados pelo histonador como fatos (A é B) nao deixam de ser assumidos por cle (H diz que A é B), mas ele offusca-se, reaparecendo apenas em raras oportunidades; em trechos bem delimitados (inicio ou fim de capi- tulo, notas e discussdes com outros historiadores); ou, entio, sob formas arenuadas, pelo emprego de nds que associa autor ¢ leitores ou por uma referencia 4 corporagio dos historiadores através de expresses mais im- pessoais, por exemplo, a gente, diz-se. Do mesmo modo, ele evita implicar- se em seu texto, tomar partido, indignar-se, manifestar suas emogées, inclu- sive, de apoio, Essas so, em geral, as convengdes respeitadas: para eviti-las, parece ser necessirio ter alcangado uma excepcional legitimidade instirucio- nal ¢ midiftica (Carnnarn, 1992, p. 99). Em sua substancia, a obra acabada himita-se a fornecer enunciados objetivados, ou seja, o discurso anomimo da Historia que, por sua vez, ¢ feita de enunciados sem enunciagio, Isso deve-se a0 fato de que, em conformidade com sua reivindica cio ou pretensio, ela foi escrita do ponto de vista da propria Historia * Atirma-se, em geral, que a escola metédica, 20 pretender a formulagio de um saber objetivo, excluia qualquer referéncia 4 posigio subjetiva do historiador Iso nio € exato. Até mesmo Seignobos experimentou 2 ecessidae de prevenir o leitor de suas “preferéncias pessoais em favor de umm regimac liberal aico, democri- fico € ocilental’, 20 escrever 0 preficio ~ inteiramente na prmeira pesox ~ de sew primeine grande ‘ommplndig: Hive poktigue de Eaepe em ittpcneine. vali di pats et det formes pliiques — 1814-1896, 238 Scanned by CamScanner (aqui, impde se a uthzagio de unt FE mariselo niaestinca), Ne propre lwato, jniox simay evocam tal postura, Em pnmeiro lugar, a freqiiéncia day dedicatorias a outros historiadores que situam o novo livro na longa coorte de uma profissio composta — a exemplo da Humanidade, segun- do A, Comte = por um nimero maior de mortos que de vivos. De acor- do com a modéstia, efetiva ou conyencional, do historiador-artesio, ele hijo passa de um “compagnon” em atividade na imensa oficina da Historia, Segundo sinal: as inumeriveis referéncias a outros historiadores. Além de pretender mostrar, desse modo, seu pertencimento 4 profissio, 0 au- tor do novo livro sublinha 0 fato de que, ao inserir-se em uma espécie de hipertexto coletivo, seu estudo vem completi-lo em determinados as- pectos e contradizé-lo ou renovi-lo em outros, Na maior parte das vezes, ele contenta-se em retomar, 4 sua maneira, esse discurso coletivo, sem chegar a renov-lo realmente, mas nio deixa de invocar sua iniciativa. O trabalho do historiador nio se limita a ser um texto, mas tata-se de um elemento integrado em um conjunto que o supera € 0 engloba; 0 novo livro participa do prestigio global da disciplina. Assim, antes de ser um livro de Pedro ou de Paulo, a obra do histo- riador € um livro de Histéria, Ao reivindicar a objetividade, ela chega, até certo ponto, a concretizi-] la: trata-se de um saber que se enuncia ou, me- Ihor ainda, se manifesta. De fato, cla tem necessidade de tempo € espaco para desenrolar seu enredo ¢ sua argumentagiio; no lugar do ponto de vista, necessariamente discutivel, de Pedro ou de Paulo, ela exprime a Histéria. O historiador nao consulta seu leitor, até mesmo, supostamente cul- to; além de dispensar sua opiniio, ele Ihe toma impossivel sua formula- gio em razio de sua relativa ignorincia; 3s vezes, chega a utilizi-lo como testemunha para induzi-lo mais facilmente a acompanhar seu empreen- dimento. Evita qualquer tipo de relagio polémica, opondo seu ew de autor ao vices dos Ieitores: tal atitude desvalorizaria seu texto. Estamos descortinando a posicio que © historiador pretende ocu- par: ele se instala, com maior ou menor razio, no préprio lugar do saber objetivo constituido pela profissio ¢ & dai que ele se exprime. A reivindi- cagio dessa competéncia exibe-se, alis, na quarta capa ou nas folhas de guarda, com os titulos oficiais do autor que se apresenta como historiador, além da indicagio dos livros j4 publicados. Ela é particularmente signifi cativa nos empreendimentos de vulgarizagio em que o risco de confasio obriga a sublinhar a legitimidade dos autores: assim, para cada artigo, a revista L'Histoire apresenta uma resenha biogrifica sobre autor, alguns 239 Scanned by CamScanner comentarios ¢ uma bibhograitia suminia, Pars ser revestilo de autondade, 0 texto do historiador devera ser qualificado nio s pelo siber que cle rewin dica, mas pela inscrig3o desse saber na grande obra da corporagio crudita Fis 0 que fundamenta uma relagio diditica do autor com os leitores, inclu sive, na propria estrutura do texto: quem possui o saber, explica; por sua vez, quem nao sabe, deve instruir-se! Por outras palavras, qualquer histor ador é, em maior ott menor grau, um profesor: ele trata sempre seus leito: res, de maneira mais ou menos agressiva, como se fossem alunos, Neste dispositive, a nota de rodapé desempenha um duplo papel, para nao dizer uma dupla representagio. Por um Jado, ela permite a verificagao das afirmagdes do texto que, deste modo, escapa ao argu- mento de autoridade. E como se dissesse: “Nao inventei 0 que afirmo; se conferirem as notas, vocés vio chegar as mesmas conclusées”. Mas, por outro lado, ela é também indicio visivel de cientificidade & expos gio do saber do autor, podendo funcionar, neste aspecto, como argu- mento de autoridade. Alguns historiadores chegam a manipular 0 apa- rato critico como’ uma arma de dissuasio para intimidar © leitor, mostrando-lhe a amplitude de sua ignorancia ¢, por conseguinte, inspi- rar-lhe respeito por um autor to culto. Ocorre também que algumas notas supérfluas servem para antccipar as criticas dos colegas, ao mani- festar-lhes certa deferéncia ou que 0 autor esté ao corrente dos debates do momento. O recurso as notas iniiteis poderia ser uma caracteristica que se ajusta perfeitamente aos autores pouco seguros de sua compe- téncia, manifestando sua necessidade de consolidar uma posigao de au- toridade precariamente alicergada, sem deixarem de consideri-la indis- pensavel para a enunciacio do texto histérico. 42, ~ Michel de Certeau: Um discurso didatico [... © discurso] funciona como discurso didatico, o que tem suas vantagens: assim, ele dissimula © lugar de onde se exprime (ofiasca 0 eu do autor), apresenta-se sob a forma de uma linguagem referencial (€ 0 “real’ que se exprime ao leitor), narra em vez de argumentar (no se discute uma narrativa) e adapta-se 4 situago dos leitores (erve-se de sua linguagem, apesar de diferenciar-se deles pela utilizagio de outros modos, mais corretos, de se exprimit), Por ser semanticamen- te saturado (nio hi vazios na inteligibilidade), “apressido” (gragas a0 “maximo encurtamento possivel do trajeto ¢ da distincia entre os niicleos finciomais da narragio", Ph, Hamon) e conciso (uma rede de catiforas € anéiforas garante incessantes chamadas do texto a ele mes- mo como totalidade orientada), esse discurso nfo deixa a minima 240 Scanned by CamScanner ehcapatoria Sta esteaitura interna serve se dea sas 6 prcniaz aan upo de letor am dest aan cide, wlentticade e cnvmnadder poly pre pro tato de estar colocado na sttuagao dda erdmea dhante de anv saber (Cricreau, 1975, p. 113) Um texto manuseado Terceira caracteristica: o texto histérico desdobra-se em dois niveis distintos; apesar disso, ele no cessa de inter-relaciona-los. O pmimeiro nivel corresponde ao discurso do historiador: seu enre- do ¢ sua argumentagio. Fsse texto é continuo, estruturado, esta sob con- trole; exprime o desenrolar ¢ a significagao da histéria, estabelece os fatos, discute as explicagSes possiveis. Entretanto, esse discurso é interrompido, constantemente, de forma mais ou menos breve, por notas ¢ citagdes. Assim, no texto histérico, apare- cem, episodicamente, fragmentos de outros textos extraidos, as vezes, de outros historiadores e, quase sempre, de documentos de época, crénicas ou testemunhos. Deste modo, 0 texto do historiador compreende, em um duplo sentido, material ¢ interpretativo, a palavra de um ou varios outros interlo- cutores. No entanto, trata-se de uma palavra recortada, desmembrada, des- construida e reconstruida pelo historiador que volta a utilizé-la nu lugar de sua escolha em fungio das necessidades de seu tema. Assim, com toda a boa consciéncia, ele apropria-se do depoimento das testemunhas ¢ das perso- nagens de seu enredo, utilizando-o 4 sua maneira. Michel de Certeau — aliis, a apresentayao deste aypecto € baseada em sua anilise — mostra perfeitamente como o uso da citagio produz um duplo efeito. Em primeiro lugar, um efeito de verdade que serve de certificagio ou confirmagao: as afirmagdes do historiador nao sio extraidas de seu proprio aceryo, mas j4 hayiam sido proferidas, anteriormente, por suas testemunhas. As citagdes servem-lhe de escudo contra eventuais con- testagdes € cumprem, também, uma fun¢do de representa¢io: com as pa- lavras do outro introduz-se no texto a realidade do tempo situado a dis- tancia, A citagao, afirma M. de Certeau, produz um efeito de realidade. Garantia da verdade ¢ da realidade relativamente 4 afirmagio do his- toriador, a citagio confirma sua autoridade e seu saber. Ao escolher deter minados fragmentos que Ihe parecem ser mais importantes, ele decide consideri-los como tais. Seu conhecimento é mais bem fiandamentado que ‘© de suas testemunhas: por um lado, em relagio 4 pertinéncia ¢ a verdade de suas afirmagdes; e, por outro, a0 que elas julgavam ser importante ¢ nem sempre corresponde ao que, efetivamente, foi afirmado. O historiador 24) Scanned by CamScanner assemelha-se a Agripina de Racine: “Entenderei olbares que, para vi seriam silenciosos”. Ele decodifica os subentendidos ¢ os nio-ditos; et suma, mantém-se a certa distancia para julgios, O saber do outro, con firmado pela citaga0, é um saber da verdade do outro. 43, - Michel de Certeau: A historia como saber do outro Considera-se historiogrifico 0 discuno que =a cidsita, os aryuives, 0 movinento —, ou seja, ayuilo que se orgie niza como texto manuseado, do qual uma metade, continua, se apéia nna outra, disseminada ¢, assim, se atribui o poder de exprimir 0 que a outra significa sem saber. Pelas “citagSes”, referencias, natis © por todo © aparato de chamadas permanentes a uma linguagem primordial (designada por Michelet como “crénica”), ele se estabelece como saber do outro. Ele se constroi segundo uma problemitica de proces- so, ou de citagio, capaz no s6 de “fazer emergir” uma linguagem referenciil que, neste caso, fimciona como realidade, mas também de julgita como se tratase de um saber. A convecacio do material obe- dece, aliés, & jurivdigao que, na encenagio historiogritica, procede a sua avaliagio. Assim, a estratificagio do discurso nao pode assumir a forma do “dillogo” ou da “colagem”, mas conjuga © saber no singular, citando © plural dos documentos citados. Nesa representagio, a de- composicio do material (pela anilise ou divisio) esti sempre condici- ‘onada ¢ limitada pela unicidade de uma recomposigio textual, Assim, a linguagem citada tema fungio de credenciar 0 discurso: como refe- rencial, fornece-Ihe um efeito de realidade; ¢ por sew esficelamento, cla remete discretamente a uma posigio de autoridade. Sob esse viés, a estrutura desdobrada do discurse funciona 4 maneira de um maquinis- mo que, pela citagio, garante a verossimilhanga da narrativa e a valida- 30 do saber. Eh produz credibilidade, (Cerreau, 1975, p. 111) mpreende” seu outro No entanto, como observa J. Rancire (1992, p. 108ss.), as duas narrativas imbricadas, a do historiador ¢ a dos textos citados, definem uma posigio de saber diante de uma dupla ignorincia: Perante © Ieitor ov 0 aluno, saber do pesquisador que abritt © armé: Tio; ¢, perante os tagarelas inexperientes, saber do cientista que arru- ‘MoU Os textos no armano para dizer o que, na prosa desses tagarelas, se exprimia sem seu conhecimento. © jogo do oculto ¢ do visivel, pelo qual a ciéncia se manifesta como tal, instaura-se no espago que separa essa duph ignorincia. © simples uso dos nomes propries, por si s6, chama a atengio para esse duplo saber: enquanto o romance deve revelar, aos poucos, as caracte- 242 Scanned by CamScanner ristieas dos personagy eOy — INCOHItGS para o leltor — EujoOs NOMS proprios haviamy sido citados desde @ comego, a historia recebe personagens ji bem definidos, sobrecarregados com todos os saberes acumulados pela tradigio © pela historiografia, Citar o nome de Filipe II, Robespierre, Napoledo ou, agora, Martin Guerre,’ além de resumir uma biblioteca, é propor uma visio sintética pela qual a totalidade da existéncia dessas per sonalidades é reformulada a partir de sew papel histérico; ocorre que elas proprias teriam sido totalmente incapazes de claborar esse atalho. No entanto, até mesmo desconstruida e reconstruida, a citagio con- tinua sendo a palavra de outro. Tal concep¢io foi considerada por M. de Certeau (1975), inspirado por uma corrente critica foucaldiana, como uma ameaga: essa palavra estrangeira e, as vezes, estranha, poderia fazer irrup- gio no texto do historiador e exprimir-se em seu lugar ow utilizar formu- las que nio Ihe sio proprias. Eis o prego a pagar pelos efeitos de realidade € de verdade que © historiador espera obter mediante a citagio, Trata-se de uma cécnica literinia de processo © julgamento que as- senta 0 discurso em uma posigio de saber a parur di qual ele pode exprimir 0 outro, Entretanto, nese discurso, alguma coist de dite Tente retoma com a citagio do outro: cla permanece ambivalente mantem © pengo de uma estranheza que altera o saber do tridutor ou do comentarista, A citagio é, para o discurso, a ameaga © 0 sus pense de um lapso. A alteridade dominada (posuida) pelo discuirse conserva, de forma latente;-o poder de ser um espectro fantastico, até mesmo, um possessor. (1975, p. 256) O texto do outro pode ser visto, igualmente, como manifestayao de amizade ¢ como uma cumplicidade. Na medida em que o historiador se conforma a seu tema ¢ nio impde uma interpretagdo arbitriria — trata-se de uma questio tanto de método, quanto de disposigio pessoal =, a pala- vra do outro nao é uma ameaga, mas uma vantagem ¢ a probubilidide de uma confirmagio* No entanto, & verdade que ese contraponto incesunte, ‘Camponés francés do século XVI que abandonow a familia; alguns anos depots, um impostor passou a viver com sua muller sew filhe, mas foi desmascarado ¢ condenade 4 morte apxis um procewo, dtante ‘© qual 0 verdadeiro Martin Guerze voltou a aparecer. (N.T). * Cited, cm profisio, “meus” ex-combatentes: em certos aspectos, perso rer conseyaunde (pressing ie der histonador!) uma percepgio mais bem depurada em relagio ao que fot sua experiéners, Entretant percepgio elzborou-se em companhia © gragas a eles, ao termo de uma longa familiariile com seus textos de toda a espécie; assim, diante desse matenal, sinto ndo o nsco de rrmupyi de uns palavra de ‘outro que eu tivesse introdurido, de forma brutal, em uma interpretagio arbieraria. mas, sobrenido, wma powibilidade de confirmasio © de enriquecimente de men estudo, 243 Scanned by CamScanner no Ambito da historia, entre a palivra de outto ¢ a do historiadoe ¢ 4 trachiy inclusive, na escrita, da impossive! dialética do mesmo ¢ do outro, Perebe se perfeitamente quando se passa do ponto de vista do leitor diante do texto. acabado para o ponto de vista do autor diante do texto a ser escrito, Os problemas da escrita no Gmbito da histéria O pensado e@ a experiéncia vivida Acabamos de reconhecer o duplo efeito de realidade e de verdade que 0 historiador espera obter mediante a citagao, Seu interesse ¢ tanto maior na medida em que € dificil conciliar esses dois efeitos; na maior parte das vezes, eles mantém uma tensio semelhante a de um texto que associa 0 pensado ¢ a experiéncia vivida. O texto do historiador é da ordem do conhecimento: trata-se de um saber que se desdobra e se expée. Ele procura a razio do que se pasou: di explicagSes e apresenta argumentos. Recorre a conceitos, cujo proceso de claboragio nao & homogéneo, de qualquer modo, serve-se de nogoes. Trata-se de um texto relativamente abstrato; caso contrario, ele perderia qualquer pretensio a certa cientificidade. Por outro lado, cle procede a uma anilise: estabelece distingdes, divide em partes, descreve todos os porme- nores para levar em consideragio, em melhores condigdes, o que a gene- ralidade © a especificidade, além de exprimir em que aspecto e por que motivo 0 objeto de estudo difere de outros objetos semelhantes e, apesar disso, diferentes. Além de ser inevitavel, a abstrag3o ¢ indispensavel. A historia se faz refletindo e, escrevé-la, é uma atividade intelectual. Entretanto, no mesmo instante, 0 historiador procura levar o leitor a se representar 0 objeto de seu estudo. Para isso, faz apelo a sua imaginagao e ndo somente a sua tazio. Com toda a certeza, ninguém insistiu sobre essa necessidade pedagdgica mais enfaticamente que o calculista ¢ austero Seig- nobos. Sua obsessio estava focalizada nos homens que utilizavam palavras abstratas — tais como povo, nagio, Estado, costumes, classe socal, etc. — sem atribuir-Ihes um sentido. Ora, dizia ele, no artigo “L’enseignement de histoire comme instrument d’éducation politique”, esse risco € muito maior em historia que em geografia, disciplina em que os alunos sabem do que estio falando: “Eles sabem o que é um rio, uma montanha ou uma falési Pelo contrano, em histéria, a maior parte nio sabe absolutamente 0 que significa parlamento, constituigdo ou regime representativo” (1881, p. 117). Ele atribuia essa diferenca 20 cariter “psicolégico ou social” dos fatos politicos; no entanto, cquivocava-se cm relagao a geografia porque ela 244 Scanned by CamScanner tambeni serve se de concertos abstra que podem tornanse palayray esvariiday de sentido, Como adverténcia permanente, conserver a len branga da candidata ao baccalauréat que falava da industria quimica na Franga, Na questao ~ “Mas, a industria quimica produz o qué?" =, ela respondeu-me com toda a serenidade: “ferro”... No entanto, em relagio 3 historia, Seignobos (1906) tinha toda a razio; manusear palavras sem. contetido é um sério risco. Dai a importincia de “se representar, pela imaginagio, coisas que correriam o risco de permanecer em estado de palavras por nio serem diretamente representiveis”: (© ponto de partida so as imagens: antes de qualquer outra operagio. (© aluno deve se representar os homens ¢ as coisas; em primeiro lugar, seu aspecto exterior, ot seja, a aparéncia Fisica, os tragos do rosto, as atitudes, 0 traje das personagens € dos povos, a forma das habitagdes ‘ov dos monumentos. Ele deveri imaginar, também, os fendmenos intemos, os sentimentos, as crengas, as idéias (na medida em que ji tem experiéncia para procedet « essa anzlise). Poitanto, em primeira lugar, é necessirio fornecer-lhe representagdes. (1906, p. 15-18) A ewa necesidade pedagégica acrescenta-se uma razio ligica. De fato, a historia serve-se de conceitos empiricos, generalizagSes e descrigdes resu- midas; sua particularidade, como j vimos, consiste na impossibihdade de dissocif-los inteiramente dos contextos designadoy por cles. O aluno ou o Ieitor nao podem, portanto, manusei-los de maneira pertinente, sem um conhecimento de seu contetido concreto: compreendeé-los é ser capaz de descrever as situagées das quais eles Gao resumo. Dai, a claboragio intelec- tual do texto histérico, deve-se acrescentar uma evocacio mais expressiva da realidade que o leitor é convidado a se representar. Convém que, afirma J. Ranciére, “as palavras sejam a verdadeira expressio da realidade”S Portanto, a escrita da historia inclui, simultaneamente, o pensado e a vivéncia porque ela ¢ 0 pensamento de uma experiencia vivida; por isso, ela deve ser considerada no plano epistemologico ¢ nio litcririo. “A questio das palavras no Ambito da histéria ndo tem a ver com o estilo dos historiado- res, mas refere-se 4 propria realidade da histéria”; a questiv do estilo diz respeito, em primeiro lugar, av objeto do historiador © nie ae pidprio historiador, “A problemitica da escrita tenta responder, também, 3 ques- tio do que, em dltima instancia, significa falar de um ser que faz historia” DRANCIERE (1094, p. INA), a penpoura da accrins de Annalee 245 Scanned by CamScanner fou, ainda, de any ser que fala" Equant pretende levar, poly unaginagie, a re-apreender, re-compreender, re-presentar uma vivencia do pasado, ela procura fazé-la re-viver. Eis por que, desde Michelet, «literatura his totiogrifica € permeada pelo tema recorrente da historia como “ressurret ¢a0” do passado. Essa ressurrei¢io é, naturalmente, impossivel: a historia lé nio se vive; ela é pensamento, representagio, ¢ mio emogio associada a imediatidade © ao imprevisto. De qualquer modo, convém que “as p. vras sejam a verdadeira expressio da realidade”. Intimeros procedimen- tos contribuem para realizar tal operagio; os mais freqiientes consistem em despertar a imaginacao do leitor através de pontos de referencia, tais como 0 uso de pequenos detalhes aparentemente inateis e 0 recurso 4 cor local. A evocacio do passado — como se estivesse, de novo, presente — apéia-se também na utilizagio defasada dos tempos do verbo. Desde Benveniste, foi estabelecida a oposicao entre o discurso que explica ¢ a mas narrativa que relata; o primeira utilizana o presente ¢ 0 futuro, enquanto a segunda empregaria 0 pasado ou 0 imperfeito, a exemplo do texto de Guizot, citado mais acima (boxe 36). Mas, tal oposi¢ao tem a ver com uma tadi¢io ja obsoleta. J. Rancigre mostra que cariter proprio da narrativa historica — em Michelet, assim como em Febvre, Bloch ou Braudel — con- siste precisamente em ser escrita no presente, negando a diferenca entre nartar e explicar. Trata-se de uma narrativa na forma do discurso. 44. Jacques Ranciére: Uma narrativa no sistema do discurso ‘A revolugio erudita da historia manifesta-se, de fato, por uma revo- [..] Sabe-se como este (Benveniste), em um texto que se tornou clissico, estabeleceu a oposigio entre o sistema de discursio © o da narrativa, segundo dois critérios fiandamentais: © uso dos tempos © 0 das pessoas, Marcado pelo compromisso pessoal de um locutor preocupado em conven- lugio no sistema dos tempos da narrativa cer seu interlocutor, 0 discurso utiliza livremente todas as formas pessoais do verbo, ao contririo da narrativa, cuja pessoa predileta, a terceira, funciona de fato como uma auséncia de pewoa, Do mesmo modo, com excegio do aoristo, cle utiliza todos os outros tempos do verbo ¢, sobretudo, o presente, © perfeito ¢ o futuro que se referem ao momento do discurso. Inversamente, a enunciagio hist rica ordena-se em torn do aoristo, imperfeito ¢ mais-que-perfeito, com exclusio do presente, perfeito e futuro. A distincia temporal ¢ * Poroutras vias ¢ em urn sentido um pouco diferente, estou de acordo com RANCIERE (1994, p. 184.¢ 199) 246 Scanned by CamScanner J neuttaliagio da peso conterent 4 tanativa stta objetividade ado asumida & qual se opde a presenga atinmativa do-discurso, seu poder de auto-atestagio. Segundo essa oposigAo, a historia erudita pode definir-se como uma combinayio em que a naragiv se encontra enguadrada pelo discus que a comenta ¢ a explica Om, a verdadeira tarefa da nova historia consiste em desregular 0 funcionamento dessa oposiga0, construir uma narrativa no sistema do diseurso. Até mesmo, na parte événementiel ¢ de La Méditerra- née, os tempos do discurso (0 presente e 0 futuro) fazem uma ampla concorréncia aos da narrativa; aliés, eles impéem sua dominagio a0 conferirem 4 “objetividade”” da narrativa a garantia de certeza que Ihe faltava para ser “algo mais que uma historia”. © acontecimento repen~ tino, assim como 0 fato de longa duragio, diz-se no presente, enquan- to a relagio de uma agio anterior com um: Jo posterior exprime-se pela atribuicio do futuro 3 segunda, (RaNciERE, 1992, p. 32-33) Um bom exemple desses procedimentos, analisado por J. Rancigre (1992), €. morte de Filipe I, no final de La Méditenanée. Braudel pega, de algum modo, 0 leitor pela mio: “Entremos no escritério de Filipe II, sentemo-nos na sua poltrona...” (p. 25 ss.). A evocagao de detalhes ~ tais como 0 escritério do rei, 0 uso do presente — tém o objetivo de ajudar o leitor a imaginar © cenirio. Seria possivel citar outros exemplos; bastaria abrir um livro de histo ria qualquer, em qualquer pagina. De fato, a histéria é também um géne- ro literario, Exprimir-se corretamente com palavras Todos os autores de obras sobre a histéria tem dedicado algumas pa- ginas 4 necessidade de escrever corretamente. Assim, Marrou, em scu livro, De la connaissance historique: “Para levar a bom termo sua tareta, para desem- penhar plenamente sua fungao, é necessirio que © historiador seja também. um grande escritor” (1954, p. 238). No entanto, 0 fato mais surpreendente € 0 de encontrar esse conselho nos textos de Langlois e Seignobos, cujo ensinamento era dirigido totalmente contra uma concepgio demasiado “li- teraria” da historia; 0 proprio Seignobos aproveitava todas as oportunidades para sublinhar, em seus preficios, 0 esforgo despendido para escrever de maneira simples ¢ clara. A conclusio do capitulo sobre “L’exposition” de sua obra Jutrodution aux dudes historiques indica o seguinte preceito: “© his- toriador deve escrever sempre de maneira correta ¢ com clegincia, sem per- der sua naturalidade” (LANGLoIs, 1992, p. 257). Afinal, a rejeigao desses eng tee BAN R RHE 24 mRipiotes® * eae ah * Scanned by CamScanner - historiadores ascéticos visava a metitort © a Comparagie que, para tacihitar al compreensio, vio 4 procura de exemplos fora do dominio consilerado correm 0 risco de confundir © sentido; apesar disso, eles téin plena cons Giéncia de que a historia se escreve e de que s6 existe boa histéria quando é escrita corretamente e com elegancia. O sentido e © gosto da eserita encontram-se, mais ou menos aparen tes. em todos os historiadores: em Febvre ou Bloch, assim como em Renouvin ou Braudel, para evitar a mengio de autores vivos. Ui grande livro de histéria inclui sempre o prazer da linguagem e do estilo. Esse 6 0 caso, até mesmo, das obras de histéria quantitativa, tais como a de Labrousse. A rejeigio do acontecimento, o recurso 3s curvas ¢ aos grificos, nao é, de fato, a transformagio da historia em algebra. Diferente- mente da economia, cujos modelos exchairam os homens concretos, a historia nio se escreve com equagdes ¢ simbolos matematicos, mas com palavras na lingua culta contemporinea, Neste caso, 0 histotiador nio pode escapar 4 literatura, 45. Jacques Ranciére: Saber qual literatura que se faz [J a suspeita que pest sobre a histéria chamada contemporinea levou- 3, de maneira demasiado ficil, a agarrar-se ds armas ¢ insignias da cientifi- cidade, em vez de procurar esbogar a figura da historicidade propria & sua época, A oposigio da ciéncia séria a literatura oferece-se, com toda a naruralidade, para transformar esse recuo em algo de vantajoso. A inter= digio aprriguadora da “literatura” procura conjurar simplemente 0 se= yuinte: ao rejeitar ser reduzida unicamente a lingaagem das cifias ¢ dos unificos, a histéria accitow vincular © destino de suas demonstragéies a0 dos procedimentos pelos quais a linguagem comum produz e fiz circu- lar o sentido, Demonstrar, na Iinguagem comum, que os documentos ¢ as curvas tém um sentido ~ ¢ tal sentido — iri pressupor sempre uma escolha em relagio aes poderes da lingua ¢ de seus encadeamentos. Qualquer texto, para efeito de amostra ow demonstragio, opera foryost- mente tal escolha ¢, nese sentido, fiz “literanira", Portanto, 0 problema nio é 0 de saber se o historiador deve fizer, ou ndo, literatura, mas qual literatura ele faz. |...) (RaNcHRE, 1992, p. 203) De fato, 0 historiador deve representar ¢ fazer compreender © passa~ do: esse objetivo s6 pode ser alcangado com palavras, Ora, a manusea- mento das palavras ndo é asim to simples, © problema consiste em en- contrar a palavra adequada. Mas o que é uma palavra adequada? Os lingiiistas costumam estabelecer a distingao entre denotarao e conotacao: a primeira é 0 que a palavra designa; por sua vez, a segunda é a aura do sentido que Ihe 248 Scanned by CamScanner esti vinculada, a série harménica que ressoa por seu intermédio, Por exemplo, sn poilw’ & um sokdado da guerra de 1914, Mas, 0 termo conota a tmncheira, onde ele ficava confinado, durante varios dias, sem se lavar, nem se barbear; portanto, piolhos ¢ sujeira. Entre as correntes politicas de direita, na Franga, durante a época do Front populaire, a palavea comunista comportava conotagdes assustadoras. Ela estava sobrecarregada com todos oy horrores atribuidos, de bom grado, aos revolucionirios espanhdis - de preferéncia, anarquistas € ndo tanto comunistas — dinamitadores de carme- litas: tratava-se de um termo tingido de vermelho tanto pelo fogo, quanto pelo sangue. As conotagées atuais do termo sio diferentes: ele veicula as imagens das democracias populares, certamente, o gidag, assim como a fa Téncia cconémica. A palavra adequada deve adequar-se no sé a seu pri- meiro sentido, mas também a suas conotagdes. Ela deve, sobretudo, ter 0 mesmo sentido tanto para o leitor, quanto para o autor, No entanto, as palavras estio impregnadas de uma cultura. Eis o que torna as tradugdes do dificeis; e toda a leitura é, em parte, uma tradugio porque a cultura do leitor sé raramente é semelhante 4 do autor. Dai, a dificuldade do ensino ¢ da vulgarizagio. Escrever historia para um piblico de historiadores é relativamente ficil porque se pode supor no leitor a mesma cultura: no minimo, é isso 0 que se presume ¢ despende- se menos esforgo na escrita. O que produz, as vezes, textos monétonos ¢ enfadonhos, a exemplo do que ocorre com determinadas teses, cuja re- dacio é deplorivel. No entanto, ao dirigir-se a estudantes ou ao grande publico, é indispensivel elaborar um estudo prévio para evitar servir-se de conutaydes ou alusSes que correm 0 risco de serem enigmiaticas. Desse ponto de vista, a escrita da historia € apenas um caso particular dos problemas levantados pela escrita de qualquer texto, seja ele literirio, Jomalistico ou politico, Certo dia, em uma entrevista, um primeiro mi- nistro utilizou a palavra stede — termo pedide de empréstimo ao vocabu- lirio da economia — para designar os professores na ativa por oposigao ao fluxo dos que deveriam ser contratados. Nenhum dos revisores de seu texto havia percebido a insigne impericia na utilizagio de um termo que ulava conotagdes redutoras, associadas a seu uso nos inventarios co- merciais € A sua origem inglesa (0 gado, as ages): um grande mimero de professores sentiram-se insultados. No entanto, a escrita da histéria apresenta, além disso, dificuldades especificas, oriundas da distincia que separa 0 passado do presente. * Literalmente, “peludo®, (N-T.) 249 Scanned by CamScanner Exprimir-se corretamente com palavras falsas A histéria serve-se incessantemente da continuidade dos sentidos das palavras. Se fago referencia a um openirio do inicio do século XX ou a um canponés da Idade Média, sou compreendido pelo leitor contempo rineo porque ainda existem operirios e camponeses na Franca (talven, ainda durante algum tempo). © termo parece ter conservado, através ds épocas, um sentido constante: o historiador exprime © passado com ay palavras do presente. Essa facilidade é enganadora. O sentido das palavras nio deixa de soffer alteragdes no decorrer do tempo. A alteragio é em geral, mais intensa para os periodos antigos; no entanto, ¢ mais insidiosa para os periodos recentes. Para 6s periodos antigos, o leitor esta precavido; ele duvida que o “camponés” da [dade Média tenha alguma coisa a ver com o produtor agricola atual, No entanto, em relagio ao operirio do inicio do século, ele pode nao suspeitar que esse termo designe um personagem completamente diferente de scu proximo — ¢, todavia, ja distante — sucessor. Quando dizemos operirio, vemos um metaliirgico com seu macacio, aliés, equivocadamente, porque a imagem comega a tomar-se obsoleta. O operario do inicio do século usa boné, camiseta e, freqiientemente, um cinto de flanela:* ele trabalha com maior freqiién- cia na construgao civil, nas minas ou nas fabricas de téxtil, ¢ ndo na metalurgia ou siderurgia: ele vive em alojamentos abarrotados de gen- te, sem conforto, em comparago com os quais os HLM? modernos, tio criticados, sio verdadeiros palicios; ele est4 imerso em uma cultura po- pular da qual as cangdes de A. Bruant (1451-1925), que utilizam a giria, nos fornecem apenas uma imagem atenuada ¢, ao mesmo tempo, envi- esada; ele conhece um desemprego sazonal que deixou de existir; em caso de doenga, nio tem direito a previdéncia e devia trabalhar até a velhice para sobreviver. Esse universo nada tem a ver com 0 do operi- rio que, sem esses breves comentarios, 0 leitor seria levado a imaginar, Acrescento que, atualmente, operirio designa um operirio sem qualifica- G20, um OS," ao paso que, no inicio do século XX, © termo designava, "A cxemplo do que ocorreu comixo ao reler 0 texto, 0 Ieitor atento j se dew conta de que, neste teecho, hz, espontaneamente, o presente * Sigh de Hatuations 4 layer modert, ov seja, moradias em conjuntos habitacionais, atribaidas pelo podcr pliblico a familias de bares tenda, (NT). Sila de Oummer speiatst hiteralmente, “operano especislirado”; ha realidade, ¢ de acordo com 0 texto, trata-se de um operitio sem qualilicacio, por exemplo, servente de pedreino. (NT) 250 Scanned by CamScanner dle preferéncia, um operirio com qualificagio profissional por oposigio a joumalier ow a0 compagnon. E bem patente o dilema do historiador: ele utiliza os termos atuais ¢ © facilmente compreendido, embora se trate de uma compreensio neces suriamente enviesada, errénea; ¢ acaba caindo no anacronismo, © “peca- do capital” do historiador (L, Febvre), Ou, entlo, serve-se das palavras do pasado, fala de plebeu ¢ rendeiro, de oficiais e sublimes;" neste caso, corte © risco de nio ser compreendido porque essas palavras estio desti- tuidas de sentido para nossos contemporincos. Quem sabe, atualmente, © que era um sublime no tempo de Denis Poulot (1870)? * Neste momento, estou utilizando a solucio natural: independente- mente de se servir das palavras do passado ou de hoje, o historiador nao escapa 4 necessidade de um comentitio. A diferenca entre os sentidos dos termos no passado € no presente deve ser superada por uma descrigio do sentido concreto do termo no passado ou por uma explicagio de sua diferenga em relagio ao sentido no presente. Ao lado, 4 margem de sua narrativa, o historiador faz correr, assim, de forma intermitente, um texto paralclo, um mietutexto, que fornece 0 sentido dos termios, seja por uma nota de rodapé, seja por uma descrigZo integrada no proprio texto ou, ainda, por um inciso no momento da primeira apari¢io do termo. No entanto, a dificuldade ¢ simplesmente duplicada porque, por sua vez, esse metatexto escreve-se com palaveas que suscitam problemas seme- Ihantes; ora, € impossivel passar demasiado tempo ou servir-se de varias paginas para o registro do vocabulirio histérico. © tempo que passa reduplica, assim, a dificuldade de qualquer texto que procure exprimir © outro: devera exprimi-lo com suas palavras ou com as palavras do outro? O problema do mesmo e do outro — que se encontrava no amago da compreensio historica — levanta-se, de novo, de maneira bastante légica quando se trata de escrever. Valeri a pena insistir? O problema nio tem solugio teérica; é logica- -lo no mente insolivel. No entanto, 0 historiador deve procurar resol exetcicio cotidiano de seu oficio, por meio de sucessivas tomadas de po- sigdo, nem sempre bem-sucedidas, nas paginas de suas obras ¢ nas aulas, Existem historias laboriosas que exibem os vestigios de tais dificuldades como se fossem ferimentos em carne viva; outras, de uma forma mais "Elite operiria panisiense do séeulo XIX. (N.T). 251 Scanned by CamScanner habil, chegam quase a fazé-las esquecer se, ao virar uma pagina, neces sidade de explicitar 0 sentido de um termo nio viewe lembrar a dilerenya em relagio a0 outro ¢ a distincia em relagio ao pasado. A cultura hteritia, a pritica e © gosto pela escrita constituem, aqui, preciosas ajudas. A histé ria ndo pode deixar de lado um trabalho que é de natureza literaria com ay especificidades de um género particular. Eis por que escrever historia seri sempre uma arte ¢ uma tarefa laboriosa: além, talvez, de um prazer. 252 Scanned by CamScanner

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