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Gramática de Gênero PDF
Gramática de Gênero PDF
A gramática do
orçamento a partir
das perspectivas de 1
gênero e raça
U. Dettmar / ABr
que racional-compreensivo em con-
traposição ao do planejamento ad-
vocacional3 .
Não cabe aqui aprofundar a dis-
cussão sobre os enfoques de plane-
jamento. É importante, contudo,
voltar a atenção para os processos
de planejamento e de gestão gover-
namentais, uma vez que é sobre eles
que incide a capacidade de conce-
ber e executar políticas públicas que
considerem a diversidade de agen-
tes sociais. É sob esse aspecto que
reside um dos principais desafios
para os mediadores de políticas pú-
blicas: apesar de imersos no mundo
técnico e político da burocracia go-
vernamental, viabilizar sistemas de
Falar de políticas de direitos da criança e do adolescente significa pensar tanto no impacto
diferenciado das políticas sobre meninos e meninas negros e brancos, quanto sobre a vida das informação, monitoramento, imple-
mulheres, e, especialmente, das que são chefes de família mentação e avaliação de políticas
públicas que pressuponham a diver-
ta-se com um conteúdo preponde- sos limita-se a investigações teóri- sidade e especificidades dos diferen-
rantemente normativo e herméti- cas produzidas em outros contex- tes grupos sociais, especialmente
co. Isso significa dizer que é essen- tos mas, ainda assim, passíveis de aqueles sobre os quais as desigual-
cial, inicialmente, compreender a transposição, considerando-se a dades sociais incidem com maior
gramática orçamentária e sua im- sociedade brasileira e as especifici- tenacidade. Nesse sentido, trata-se
bricação com os aportes de gêne- dades do orçamento municipal. não apenas de mudança de percep-
ro e raça. ções de todos aqueles, homens e
O orçamento público é o resul- DESIGUALDADES DE GÊNERO mulheres, envolvidos diretamente
tado de injunções políticas e nor- E RAÇA: UM DESAFIO NÃO com as políticas governamentais,
mativas, fazendo-se necessário, por SÓ PARA AS POLÍTICAS mas também de mudanças de pro-
esse motivo, a realização de estu- PÚBLICAS cedimentos que auxiliem a eclodir a
dos e o monitoramento de experi- diversidade para a qual as políticas
ências que permitam o acompanha- A despeito da diversidade de públicas poderiam ser concebidas.
mento in loco dos processos soci- abordagens subjacentes aos proces- Podemos afirmar que a catego-
ais subsumidos à sua elaboração e sos de implementação de políticas ria gênero – a despeito de suas dis-
implementação. Não há um mode- públicas voltadas para as mulheres tintas utilizações – tem viabilizado
lo a ser perseguido, cabendo, em ou, em alguns casos, para a redu- um maior reconhecimento do ide-
cada caso, e em função do com- ção das desigualdades de gênero, ário feminista, assim como das de-
promisso, disposição e disponibili- prevalece a existência de progra- sigualdades estruturais que afetam
dade dos governos municipais e da mas, projetos e ações pontuais, isto distintamente homens e mulheres,
sociedade civil, desenvolver uma é, desvinculadas de uma prática de contribuindo para inscrever, no
metodologia de trabalho a ser es- planejamento governamental que campo das políticas públicas, a per-
tabelecida em comum acordo. viabilize a implementação de polí- tinência do tema e da utilização do
A proposta de uma metodolo- ticas públicas com enfoque de gê- termo. O esforço empreendido na
gia ou de um savoir-faire para análi- nero. Via de regra, tende a prevale- construção de “políticas de gêne-
se e incidência políticas – marcadas cer, entre as múltiplas abordagens ro” tem resultado em políticas se-
pelos enfoque de gênero e raça – de planejamento, implícita ou ex- toriais que incorporam determina-
no processo de alocação de recur- plicitamente implantadas, o enfo- das demandas dos segmentos fe-
3 Entre outros artigos introdutórios e publicações, sugere-se: Levy, Caren. Which framework? Gender training: four current models. In: The Network Newsletter, The Bri-
tish Council. November, 1997, nº 14, p.4-5. Costa, Delaine Martins. Notas ao planejamento para o gênero. In: Rocha, Nilton Almeida (org.). Novas leituras de administra-
ção municipal. Rio de Janeiro: IBAM, 2002, p. 178-183. Moser, Caroline. Gender learning and development; theory, practice and training. London: Routledge, 1993.
4 Para argumentos a respeito da produção da “unidade” entre as mulheres, ver especialmente Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identi-
dade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Sujeito e História.
5 Ver texto e anexos com quadros da literatura identificada e classificada em Hermann, Jacqueline. Políticas públicas de gênero e raça e sua articulação com a gra-
mática orçamentária. Disponível na homepage do IBAM.
ação e tensões inerentes aos movi- te significa pensar tanto no impac- mocracia, tanto sob o ponto de vis-
mentos populares, o que permitiria to diferenciado das políticas sobre ta do acompanhamento e influên-
aprofundar a discussão sobre assi- meninos e meninas negros e bran- cia direta ou indireta sobre as esco-
metrias de gênero e raça. cos, quanto sobre a vida das mu- lhas orçamentárias, quanto sob a
As experiências gestadas no cam- lheres, e, especialmente, das que são ótica da divulgação e difusão da
po do orçamento participativo têm chefes de família. Portanto, as inici- “leitura” dos gastos públicos. No
contribuído significativamente para a ativas de gênero e orçamento não caso dos governos municipais, o
discussão sobre a democracia repre- podem prescindir da investigação tema é particularmente relevante
sentativa e participativa e os respecti- das políticas voltadas para a infân- dada a possibilidade de ingerência
vos modelos de gestão e de planeja- cia e a juventude. e mediação dos diversos agentes
mento. Por conseguinte, trata-se me- Dentre as principais reivindica- sociais na arena política.
nos de uma discussão normativa acer- ções do movimento de mulheres e
ca do orçamento e sim da capacida- do movimento feminista, destaca- AS INICIATIVAS DE GÊNERO
de de influência sobre as políticas pú- se a do aumento do número de cre- E ORÇAMENTO
blicas e a avaliação de seus resulta- ches públicas pois, como sabemos,
dos, considerando-se, é claro, que não a mulher com filhos que não de- Nas duas últimas décadas, estu-
há efetivamente política pública sem tém recursos próprios, ou dispõe diosos de diversos países têm se de-
alocação e execução de recursos, se- de arranjos familiares, dificilmente dicado à discussão do orçamento
jam eles financeiros, econômicos ou poderá ingressar no mercado de público e à crítica de sua neutrali-
políticos. trabalho em igualdade de condições dade sob a ótica de gênero. O de-
O “orçamento criança” 8 , resul- junto a homens e mulheres. Na bate foi inaugurado na Austrália,
tado do trabalho desenvolvido pelo medida em que o Estado retrai a sendo este o primeiro país a desen-
INESC9 desde 1999, em parceria execução orçamentária, ou gasta volver, em 1984, uma metodolo-
com o UNICEF, está voltado para menos do que o previsto (no caso gia de intervenções, na esfera fede-
a análise da execução da política na- 57,16% em 2002), com o atendi- ral e estadual, visando à identifica-
cional de direitos para crianças e mento em creche, além de violar ção das despesas efetuadas com
adolescentes, desenvolvida pelos um direito da criança, também está mulheres e meninas, assim como
diversos ministérios, e divulgação acirrando as disputas para inserção aquelas voltadas para a igualdade de
dessas informações para os conse- das mulheres no mercado de tra- oportunidades, entre outros aspec-
lhos de direitos, conselheiros tute- balho. Outro exemplo a ser adicio- tos. Hoje, existem mais de 40 paí-
lares, membros de entidades não- nado, entre vários, refere-se aos ses em que tais iniciativas foram ou
governamentais e governamentais, gastos com o programa de aleita- estão sendo implantadas.
isto é, para todos os responsáveis mento materno, do Ministério da As iniciativas de gênero e orça-
por fazer cumprir o Estatuto da Saúde. Conforme análise desenvol- mento variam tanto em termos de
Criança e do Adolescente – ECA. vida pelo INESC, a execução do metodologias e de abordagens,
Não cabe aprofundar a discus- programa, em 2001, atingiu cerca quanto de propostas e arranjos ins-
são sobre a iniciativa do “orçamen- de 43% do total do valor autoriza- titucionais, existindo experiências
to criança”, mas sim, chamar a aten- do. Tal restrição produz conseqü- com distintos matizes. Com o ob-
ção para essa iniciativa, no sentido ências não só sobre os direitos hu- jetivo de traçar um sucinto panora-
de que opera com um recorte ge- manos fundamentais, mas também ma do campo em que tais iniciati-
racional, que não agrega as perspec- compromete o êxito da política vas são geradas, cabe voltar a aten-
tivas de gênero e raça. É consenso, nacional de saúde como estratégia ção especialmente para os trabalhos
contudo, que as responsabilidades de enfrentamento da pobreza desenvolvidos por Elson, uma das
sobre as crianças e adolescentes, via (maio 2002, p. 3). principais precursoras do debate, e
de regra, recaem sobre as mães e, Iniciativas como o orçamento por Bundlender, Sharp e Allen que,
por conseguinte, sobre as mulhe- participativo e o orçamento crian- juntos, desenvolveram um manual
res. Portanto, falar de políticas de ça são distintamente exemplares no que tem subsidiado muitas das ini-
direitos da criança e do adolescen- processo de consolidação da de- ciativas em curso.
8 Termo utilizado para definir o total de recursos públicos investidos nas crianças e adolescentes brasileiros. Ver o Guia de Direitos Humanos. Ver http://
www.guiadh.org/glossario Capturado em 3/02/03
9 Para consulta, ver o Boletim Orçamento e Política da criança e do adolescente, publicado pelo INESC, assim como a homepage do Instituto: http://
www.inesc.org.br.
Elson nos convida a examinar o contabilizada pelos grandes mercados conceitual e estatísticas econômicas
modo como o Orçamento Federal (1999, p.4). O trabalho das mulheres, nacionais “sensíveis ao gênero”, isto
é formulado, isto é, ignoram-se as que a autora toma como referência, é, que possam revelar conexões e
diferentes e socialmente determina- constitui a “economia do cuidado não resultados entre as relações econô-
das responsabilidades e capacidades remunerado” o qual, por sua vez, é micas e os efeitos macroeconômi-
de homens e mulheres. Tais diferen- vital para o desenvolvimento e a ma- cos. Como proposta em face des-
ças são geralmente estruturadas de nutenção da saúde e da força de tra- se desafio, a autora sugere: (a) a cri-
tal maneira que levam às mulheres a balho, assim como para o senso de ação e a implementação de meto-
ocuparem uma posição desigual em comunidade, de responsabilidade cí- dologias que permitam medir a
relação aos homens e, por conse- vica, para as normas e valores que sus- contribuição das mulheres à econo-
guinte, com menos poder econômi- tentam a confiança e a ordem social. mia; (b) a incorporação da ótica de
co, social e político. Se tal perspecti- As atividades desenvolvidas pelas mu- gênero aos modelos macroeconô-
va dificulta produzir impactos posi- lheres são percebidas pela sociedade micos e (c) a criação de estratégias
de gênero para o orçamento.
Uma das principais estratégias
destacadas diz respeito a proposta
do “orçamento sensível ao gênero”
ou “orçamento de gênero” ou “or-
çamento mulher”. Desde já é im-
portante sublinhar que independen-
temente da nomenclatura ou abor-
dagem utilizada, tais iniciativas não
significam orçamentos separados
para homens e para mulheres. Como
destacado por Bundlender, Sharp e
Allen: “São tentativas de destrinchar
as diretrizes do orçamento gover-
namental de acordo com seu impac-
to sobre homens e mulheres e so-
bre diferentes grupos de homens e
mulheres, a partir do reconhecimen-
to de que a sociedade produz as re-
lações de gênero (1998, p. 5).
A execução do programa de aleitamento materno, do Ministério da Saúde, atingiu, em 2001, apenas
43% do total do valor autorizado
As experiências apresentadas re-
ferem-se a uma variedade de pro-
cessos e ferramentas que objetivam
tivos sobre o crescimento econômi- como uma doação ou como inerente apreender o impacto de gênero do
co e o desenvolvimento humano, ao papel social a ser desempenhado orçamento governamental, e, se-
outros fatores contribuem para re- pelo segmento feminino da popula- gundo as autoras, com o desenvol-
forçar o bias inerente à concepção ção, não sendo, portanto, levadas em vimento desse exercício, o foco tem
do orçamento, entre os quais desta- consideração na discussão sobre a po- sido sobre a auditoria do orçamen-
ca-se a medição da contribuição das lítica econômica. Para a autora, tais ati- to governamental e seu impacto
mulheres à economia. vidades tendem a ser vistas como so- sobre mulheres e meninas.
Segundo a autora, o trabalho das ciais em vez de econômicas, embora Se há consenso sobre o fato de
mulheres (produção de subsistência, sejam econômicas, uma vez que pro- que toda política pública produz im-
emprego no setor informal, trabalho vêem insumos vitais para os setores pacto diferenciado sobre homens e
doméstico ou reprodutivo, trabalho públicos e privados da economia mulheres, podemos afirmar que
voluntário ou comunitário) mais do (1999, p.6). todo orçamento, explicitamente ou
que o dos homens, não é incluído nas Um dos principais desafios para não, viabilizará políticas que incidem
estatísticas econômicas nacionais por- a macroeconomia refere-se ao de- distintamente sobre segmentos da
que grande parte desse trabalho não é senvolvimento de um arcabouço parcela feminina e masculina da po-
10 A título de ilustração ver o Anexo III, Planilhas-síntese: análise exploratória dos orçamentos municipais de Londrina/Pr e Vitória/ES, do Relatório Final do projeto
Gastos públicos e cidadania de homens e mulheres: uma comparação entre intenções (o orçamento) e ações (o realizado) em municípios selecionados. IBAM/UNIFEM/
Fundo Belga: 2003.
brasileiros enfeixa relações marcadas tários quanto de analisá-la e propor al- sunto, o artigo ora apresentado
pela tensão entre o clientelismo e a pa- ternativas sob o ponto de vista das re- espera ter fornecido insumos para
tronagem e os princípios orientadores lações raciais, de gênero e de classe. as discussões e as iniciativas em
da prática democrática, tensão esta que O processo de consolidação curso, de modo a contribuir para
acompanha as discussões sobre o con- da democracia, no Brasil, tem a incorporação das dimensões de
trole da administração dos recursos pú- ampliado os espaços de partici- gênero e raça. Amparando-se na
blicos. As iniciativas que venham a ser pação e de diálogo entre o go- sistematização de experiências que
desenvolvidas apresentam, portanto, verno e a sociedade civil, e, ao vêm sendo realizadas nesse cam-
elementos que tornam esse campo de mesmo tempo, contribuído para po, o artigo dá início à constru-
discussões passível de problematiza- a criação de fóruns de debate e a ção de uma metodologia que per-
ções, caso seja desejável romper com inclusão de novos temas na agen- mita monitorar e avaliar as políti-
uma abordagem normativa. Trata-se da política, entre eles, o do con- cas públicas, tanto sob o aspecto
tanto de compreender as lógicas soci- trole e fiscalização do orçamento do seu impacto quanto da aloca-
ais que orientam os processos orçamen- público. Longe de esgotar o as- ção e execução de recursos.
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