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ANDREAS HUYSSEN Culturas do passado-presente modernismos, artes visuais, politicas da memoria TRADUGAO Vera Ribeiro conTRaPOnTO Le — (© Andreas Huyssen, 2014 © William Kentridge com referénci a suas imagens (© Nalini Malani com zeferéncia a suas imagens Diteicos adquiidos para o Brasil por Contraponto Eiirora Lea, ‘Vedada, nos termos dali, reprodugio coral ou parcial dese fivro, por quaisquer meios, sem a aprovasio da Eltora. Contrapomto Edivora Ltda. “Avenida Franklia Roosevelt 23 / 1405 (Centro Rio de Janciro, RJ- CEP 20021120 “Telefax: (21) 25440206 (2215-6148 Sire: woww.conteapontoeditora.com.hr smal: contaro@contrapontoeditora.com.br ‘Museu de Arte do Rio (MAR) Praga Maui 5 ‘Centro - Rio de Janeiro, RJ CEP 20081-240 ‘Tels (20) 3031-2741 Sine: ww:mnseudearedorio.org.br E-mail infolmuseudeartedovio.org be Coordenagao editorial e preparacio de originas: Cesar Benjamin Revisiotéenica: Tadev Capistrano Revisio tipogrfica: Tereza da Rocha Projeco grifico: Aline Paiva e Anciéia Resende (Capa: Andréia Resende e Clarice Pamplona Diageamagdo: Aline Paiva Colegio dirgida por Tadeu Capistrano eouner Bea es /Uvennonce een 00 ROEE eRe 1 reimpresio: setembro de 2015 “Teagem: 2.000 exermplares CaP. ASL.CATALOGAGAO.NAFONTE pCO NACIONAL DOS EDITORES DELIVEOS, I HBS. Huysen, Andreas, 1942 ‘Gators pasado pesente: modernsmnos artes visas pleas do semi! Andress Huysaen ;eoodenagio Tadew Capitan]: radieSo ‘Vera Rbvico~ I. ed. Bio de Janeto = Conraporo: Maseu de Arte do Ric, 2014 | 216 psiks2Sem (Are; 9) ISBN 978.85-7866-098-7 1 Modern (Ate) 2, Are moderna 3. Ares ~ Aspects polos 4, Artec sosidace 5, Plea eealera. I Titulo. Sse ass ep: 306.47 cou. 316.747 Apresentacio Geografias do modernismo em um mundo globalizante Guillermo Kuitea: pintor do espago teatro de sombras como veiculo da meméria em William Kentridge e Nalini Malani © jardim como ruina A nostalgia das ruinas Figuras da meméria no correr do tempo: o modernismo € 0 apés-guerra A.cultura da meméria em um impasse: memoriais em Berlim ¢ Nova York Resisténcia & memériz uusos e abusos do esquecimento piiblico Usos tradicionais do discurso sobre 0 Holocausto ¢ 0 colonialismo Os direitos humanos internacionais e 4 politica da meméria: limites e desafios "Gest ge entrou em declini 0 debate sobre o “pés-moderismo” es ase Jobalizagéo” como significantes-mestres de nossa época, os discursos “jo = modernidade ¢ © modernismo encenaram um retorno admirével “ wibess provocadora de Jean Frangois Lyotard, dizendo que qualquer obra “ex cntha de ser pos-moderna para poder tornar-se autenticamente moder Se meerializou-se de modos que ele dificilmente teria previsto. Hoje fala-se “joe em modernidade em geral, segunda modernidade, modernidade liqui- “= wedernidade alternativa, contramodcrnidade e sabe-se 14 0 que mais. “| seemidade e sva conflituosa relagao com @ modernismo vem sendo rea- “Sostss na arquitetura ¢ nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas “ges clisticas, na musica, nos estudos midiaticos, na antropologia e nos estu- “Geo ==edo ~ alternativa e complementar, entenda-se, a doutrina liberal dos direitos humanos, ‘Sees mencionar um tiltimo ponto sobre a cultura da meméria em ge- sbordei com mais detalhes em alguns ensaios de meu livro anterior, Ses pela meméria (2000). Desde entao, as indtstrias ocidentais da cul- “em um ntimero cada vez maior de passados num presente simulta~ semoce mais atemporal: modas retr, méveis retr6 auténticos, musco- © 4s vida cotidiana através de cimeras filmadoras, Facebook c outras secsis, reencontros saudosistas de miisicos de rock mais velhos etc. | { Ja houve quem falasse numa “retromania” caracteristica da década passada. © que esta em jogo ai, num sentido mais amplo, a meu ver, sio mudancas continuas nas estruturas da temporalidade vivida e novas percepgdes do tem- po e do espaco nas sociedades mididticas contemporaneas. As dimensdes po- liticas dessas mudanas e percepgGes ainda estéo em discussio. Tudo isso comegou na década de 1980, mas se acelerou, claro, com a introdugio co- mercial da Internet em 1995. O eixo entre a meméria, os direitos humanos € 4 Internet constituiu, claramente, outro grande tema transnacional de hoje, no apenas em termos do episédio da Agéncia Nacional de Seguranca norte -americana como ameaca politica a democracia, Como espero que demonstrem os ensaios sobre as artes plisticas ¢ a cul tura da meméria reunidos neste livro, a modernidade, 0 modernismo e a ‘meméria, com todas as suas complexidades hist6ricas € geograficas, conti- nuam a ser significantes fundamentais para qualquer um que procure com- Preender de onde viemos e para onde podemos estar indo. As respostas que formos capazes de dar serio matizadas, inevitavelmente, pelos diversos con- textos geograficos ¢ intelectuais em que trabalhamos, sem impedir, espera- ‘mos, uma compreensdo transcultural e transnacional mais ampla. O trabalho de tradusio, seja em sentido literal ou metaférico, continua a ser um desafio que nao se deve subestimar, Como sugeri acima, as questies da modernidade estado hoje invariavelmente ligadas a globalizacdo. Nem 6 preciso pensar nas mudancas climaticas para perceber que o moderno tornou-se uma situacdo planetaria, £ bem possivel que certo triunfalismo incémodo sobre a globalizaco, vista como a mais recente forma de progresso, tenha sido 0 que trouxe de volta a questéo histérica de como a globalizagao deve ser distinguida de uma formagao anterior da moder nidade e de seus movimentos internacionais, de como se relaciona com a na- $40, imperialismo ¢ o internacionalismo de eras passadas, ¢ de como suas ‘manifestag6es culturais ainda trabalham com os legados do modernismo e do Pos-modernismo. Dado que as utopias do século XX ~ comunismo e fascismo, modernizacao e descolonizagao — fracassaram ou nao cumpriram suas promes. sas, alguns falaram com desinimo em ruinas do modernismo e da modernida- de No entanto, também é preciso dizer que 0 retorno contemporineo a uma concepgao imensamente mais ampliada do modecno nas artes atuais deve mui- to as intervengdes do pés-modernismo. Apesar ou por causa, talver, de suas afirmacées de inovacio radical, o pés-modernismo deu visibilidade a dimen- ses do proprio modemnismo que tinham sido esquecidas ou reprimidas pelas codificagdes institucionais e intelectuais do dogma modernista da Guerra Fria: uestdes relacionadas com o anarquismo semictico da vanguarda, a figuragio 16 Andieas Huyesen eetecroc a sexualidade, a raga ea migracio, 0s usos da tradicio, = politico € o estético, a mistura das mfdias ¢ assim por diante. sctecares do discurso pés-moderno, depois da ascensio dos es- cs, foi a abertura geogréfica da questo de outros modernis- dades alternativas pelo mundo afora ~ 0 modernismo de ou- ems realidade global mutante, e néo como algo limitado ao ‘Continua-se a debater se tais modernismos alternativos de- ‘scrsicalmente, como imposicées do Ocidente, vindas de fora, ou larerais, tradugies, digestées ¢ transformagies criativas de -speoprizdos pelas respectivas culturas locais, regionais ou nacio- des srabalhos mais interessantes sobre 0 modernismo vém sendo sea. De qualquer modo, a modernidade depois do pés-mo- © medcrnismo na pés-modernidade, continua a ser um tema cen- c= biscoria cultural do presente e qualquer tentativa de repensar Gs exxética € da politica de nossa era. Soe. Aer the Great Divides Modernism, Mass Culture, Postmodernism, Bloo- Timesty Press, 1986, sere. Proling the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution", Severs Press, 1992; Shoshana Felman e Dori Laub, Testimey: Crises of “essere, Paychoanalytis, and History, Nova York, Routledge, 19925 Lawrence Tiesemomiess The Ruins of Memory, New Haven, Yale University Press, 1991 somal Memory: Remembering she Holocaust in the Age of Decoloni- Seomtond University Press, 2008. 2: Jascucs Semelny Purify and Destroy: The Political Uses of Massacre and ‘Seek, Columbia University Press, 2007. Sooke Scoaides, Hiern Rights and Memory, Universiy Park, Pennsylvania Stare Soe Ron Tetel, Heamanity’s Law, Nova York, Oxford University Press, 2011 nd Sovereignty: Rethinking Legality, Legitimacy, and Consttutiona- ‘University Press, 2012. Sex Moy, The Lest Utopias Human Rights ie History, Cambridge, Harvard Apresintagio 17 Os direitos humanos internacionais e a politica da meméria: limites e desafios* Os discursos sobre direitos humanos, como movimento social transnacional, ¢ sobre a meméria surgiram em muitas partes diferentes do mundo na década de 1970, ganharam forca na de 1980 e, juntos, atingiram proporcées inflacioné- rias na de 1990. Os dois discursos foram historicamente sobredeterminados. Hoje, ambos so cada vez mais questionados a respeito de seus pressupostos ocultos, sua eficdcia e suas perspectivas de futuro. Num livro recente, Samuel Moyn interpretou o movimento pelos direitos huumanos como uma derradeira tatopia, depois do colapso das utopias anteriores do século XX, como 0 comu- nismo e o fascismo, além da modernizagao ¢ da descolonizagao.' Em meu livro resont Pasts [Passados presentes], defendi a tese andloga de que o colapso de uma imaginagdo ut6pica anterior foi a condi¢ao que possibilitou o surgimento dos novos discursos memoriais. Afirmei que a consciéncia temporal da alta modemidade no Ocidente tentou garantir futuros utépicos, a0 paso que conscigncia temporal do fim do século XX envolven a tarefa no menos peri- ggosa de assumir a responsabilidade pelo pasado. O movimento dos direitos hhumanos, contudo, permaneceu firmemente orientado para a meta futura de criar um regime internacional, ou talver até global, de direitos. Neste ponto, € importante lembrar que © movimento internacional pelos direitos humanos, em sua configuragio contempordnea, tem uma hist6ria to curta quanto a cul- tura atual que privilegia uma politica da meméria. E claro que sempre houve tum discurso da meméria, ¢ o discurso dos direitos, em si, tem uma histéria mais antiga. A tragédia grega ofercce muitas percepgdes dos vinculos entre memoria, justiga e direito, Desde as revolucdes norte-americana ¢ francesa, passando pela descolonizacao, os direitos ¢ a meméria sempre tiveram uma li- ¢gagio umbilical com o Estado ea nagio, com as questdes da cidadania ¢ com a invencio das tradigées nacionais. No entanto, 0 arual movimento internacio- nal dos direitos humanos ¢ 05 fluxos transnacionais da politica da meméria expressam, desde a década de 1990, uma conjuntura fundamentalmente nova. ~ Ageadego aos partcipantes do semindrio da Colimbia sobre Geragao de Arquivos por sua exica thada a una verso anterior deste ensaa, sou grato a Danie Levy por ter sugerido sm modo de {efongar a reagio reciproca entre 0 dzsto ea meméria em minka andlise. Or eltoshurnanaeneemcionals ea police da mem L Isso me leva a uma pergunta simples, que desafia os dircitos tém a ver com a memoria, para comegar? N | poderfamos dizer que somente a meméria das violag 1 mentar o faruro dos direitos humanos no mundo, fr cial entre passado e futuro. Nao raro, porém, o discuss. ¢- ~-— bates contempordineos sobre os direitos permanecem: +2+ =~ que apenas a especializagao disciplinar, na qual o disc: minante nas humanidades ¢ o discurso dos direitos. = ‘meu ponto de vista nas humanidades, eu diria que os da meméria deveriam ligarse de maneita mais robus: ia traumitica, se torne ==: e forma parasitéria e esreize. tiria que, a menos que seja alimentado pela memoria 2 0 dos direitos humanos corre 0 risco de perder em arrisca A abstragio legalista e ao abuso politico, Aiinz. * direitos humanos tanto € um problema quan: uma 2-0 Histéria dos ‘Cursos sobre os direitos humanos e a me—: Reconhecer os pontos fortes e as limitagdes intrinsecs edo discurso da meméria ¢ importante, se quisermos < : As forcas individuais dos dois campos devem ser r mentar umas as outras, a fim de mitigar as deficién, interessam pela violacdo e a protecio dos direitos h:: tem de recorrer & histéria para fazé-lo. Ambos q corrigit, 0s erros ou injusticas do pasado, e ambos futuro melhor para 0 mundo. Ambos brotaram, a: 80s juridicos, morais e filos6ficos sobre 0 genocidio = = tos humanos apés a Segunda Guerra Mundial. A C Direitos Humanos ¢ a Convengiio das Nagdes Unie. 1948, foram o resultado politico da meméria {embers. os dois documentos da ONU tenham evitado a dimers? .-- rista do Holocausto). A meméria, no apenas d: transferéncias forgadas de populagées da p: mas também dos legados da tradicio do direito moldagem desses documentos da ONU. Ainda ass tias outras décadas para que o movimento interna nos fosse deslanchado, Alguns trabalhos recentes de socidlogos ¢ eientistas politicos comegacam 2 explorar 0 elo constitutivo entre dircito € meméria. Assim, W, James Booth enfatizou “a intimidade do lago entre a meméria e a justica, nao como um vinculo obsessive ou uma sindrome, mas como uma face da prépria justiga”2 E Joachim J. Savelsberg ¢ seu coautor Ryan D. King exploraram a relacio te- ciproca entre direito e meméria com o direito moldando a meméria coletiva, © as proprias Iutas da meméria moldando o dircito.> Esses argumentos de- vem ser complementados pela observagao histérica de que nossa compreensio atual dos direitos humanos ¢ da meméria representa uma nova fase no desen: volvimento desses discursos, os quais, nao por acaso, tém corrido em trilhos Paralelos nas tiltimas décadas, Em meu livro Present Pasts tentei fornecer uma genealogia dos discursos da memoria desde a década de 1980, num contexto ansnacional.* Nao repetirei aqui aqueles argumentos, exceto para reafirmar necessidade de analisar os discursos contemporaneos da meméria nio como uuma segunda natureza, mas como construgdes complexamente sobredetermi- nadas, geradas por constelac&es politicas especificas do final do século XX, as {uais resultaram do fim das ditaduras na América Latina, da queda do Muro de Berlim, do colapso da Unio Soviética, do fim do apartheid na Africa do Sul e dos massacres genocidas da Bésnia e de Ruanda. Para que a ascensio do discurso da meméria se torne inteligivel através da sontextualizacao histérica e politica, também precisamos compreender 0 movi- mento contemporaneo dos direitos humanos em sua evoluggo historica ¢ seu :<: =: * “= te no Leste Europeu ¢ na América Latina). £ claro que. pelos direitos jé eram internacionais, em vez de ainda sere vamente nos contextos nacionais tradicionais. A terceira onda diferiu drasticamente das anteriores. D. mee ra Fria, as violagdes dos direitos humanos foram sce “s como justificativa para impor sangdes debilitantes, invas - nos de ocupacio autoritarios, por parte de organizagSes == + = . tados que agiram unilateralmente sob a rubrica da ria. Tipicamente, tais intervengées foram justificadas co legislagio internacional dos direitos humanos. A Bosna Iraque so os exemplos pertinenses, embora muito dist'=> + - cos. Portanto, Cohen distingue uma ideia tradicional dos 2: - = uum lado, ¢ uma concepeio politica mais atual das inter=~-* direitos humanos, de outro. O que est em jogo af éo cont: = <= humanos transnacionais ¢ a ideia, antes sacrossanta, = De fato, talvez o Estado nacional j4 nao continue 2 ser > =.=. om garante dos direitos num mundo globalizante, numa ép, ~~ tas novas convengdes da ONU sobre os direitos huma='s = <= Corte Penal Europeia e da Corte Penal Internacione!. A ~ - nal sobre Intervencio © Soberania Estaral (ICISS) caly que foi mais longe na limitacao da soberania do Estac: 2001 intitulado “A responsabilidade de proteger”. E: saido, obviamente, das falhas da ONU na década de 1 Bésnia-Herzegévina) e em Ruanda, nfo fica claro p. intervengio humanitéria (“humanismo militar”, come para o direito de proteger constitui, na verdade, mais semAntica, visto que os proverores potenciais continue: te, as grandes poténcias que também conduziram as Gens ewdel rias (com uma pequena excecao: as tropas da Uniio Africana da ONU em Darfur). De qualquer modo, para todos os efeitos, os direitos humanos torna- ram-se, nesse estagio, genuinamente intcrnacionais, e mantém uma liga¢ao problematica com a intervencdo militar em Estados soberanos. Na situago atual, parcce-me que as dimensdes fundamentais de cada uma das trés ondas misturam-se em graus diferentes, dependendo das diversas constelacées de hase. Considerados em conjunto, 0 genocidio e a limpeza &- nica, a sociedade civil e os direitos eivis, assim como a interveneao humanité- tia, formam um aglomerado denso e confuso de problemas politicos e juridi= cos que requer uma andlise especifica em cada caso. Nao devemos permitir que o abuso da intervengdo humanitaria, nestes éltimos anos do governo Bush, nos cegue para o potencial de internacionalizacao das lutas pelos direi £05 humanos, menos ainda quando se trata de violagSes dos dircitos nos Esta- dos Unidos € na prépria Europa. Independentemente d imperialistas, qualquer regime transnacional de direitos sntra neces: sariamente em Confite Com a ideia de soberaiis wacional = um conilito que Precisa de muito mais negociagio ¢ reflexto:* ‘Qual é a diferenca? Isso me leva de volta a minha pergunta inicial sobre a relagao entre a meméria € 0 discurso dos direitos. Embora a memoria e o direito sempre interajam de formas complexas, também precisamos entender algumas diferencas episte- mol6gicas ¢ priticas que determinam o aleance afetivo de ambos, suas opera~ ‘Bes ¢ seus efeitos em longo prazo. Permitam-me comesar por uma questo enfética sobre a meméria do trau- ma histérico, que insiste em rejeitar a reivindicagao da conclusao total que costuma acompanhar o término dos julgamentos. Como sugerin Walter Ben- jamin, os mortos tém, sim, um direito sobre nds, uma vez que, do ponto de vista deles, somos as futuras geracdes. Benjamin afirmou que, por conseguin- te, fomos dotados de um pocler messinico fraco.? Max Horkheimer opds-se & tentagdo teoldgica de Benjamin: 0s mortos esto mortos ¢ nao podem ser des- civilizagio humana, desde muito antes da articulacdo explicita dos direitos naturais, dos direitos humanos, dos direitos civis e de quaisquer outros, ¢ mais ainda depois do século que acabamos de deixar para tras, 0 mais mostifero da historia da humanidade. Onde estaria hoje o movimento internacional dos direitos humanos, sem a reméria dos campos de camificina do século XX? Osdheets humanosinteracienaisea pelticadameméraclinitssedesafss 199 pertados. Nao ha necessidade de messianismo nem sezventia para a redencio. Mas eles tém, sim, o direito de ser relembrados. Afinal, essa é uma marca da A dignidade das vitimas, suas lutas e seu destino devem ser pres meméria, sobretudo porque era um objetivo expresso dos mestres © = dio obliterar qualquer lembranga de suas vitimas. Ainda assim, os discursos da meméria ¢ dos direitos nao se cor facilidade. Com demasiada frequéncia, os debates sobre os diseitos sobre a justiza transicional ou retroativa, no direito e na teoria polite: mantidos separados por um abismo profundo das discusses sobre 2 © trauma histérico no campo das humanidades. Isso é surpreendent, = de se esperar que csses campos fossem intrinsecamente complens: apoiassem mutuamente. Mesmo que reconhecamos que. legislagio <= - - hhumenos € frégil, contestada ¢ amitide ineficaz como meméria, ress: = so fandamental entre a meméria e o dircito. Ha limitagdes reseri ealcance social nos dois lados desse divisor discursivo. O discurso < costuma concemir a passados coletivos ¢ a seus efeitos no presente, 7+ _~ uma solida dimensio normativa jurfdiea que leve diretamente as res: de direitos legais de individuos ou grupos. Nao € & toa que o camps == - sao © do ressarcimento juridicos baseados na memoria continue + controvertido. Alguns juristas e te6ricos politicos chegaram até a lembranga de danos passados sé pode ser um palido substituto O debate sobre a Comissio da Verdade e Reconciliacdo da Africa ¢- + bom exemplo, na medida em que os perpetradores receberam a gae7 anistiados, se prestasscm dos direitos humanos nao devem ser legitimados nem deslegitimacs+ > ~ origem na civilizacdo europeia e no sistema westfaliano de Estados soberanos.!! Os opositores citam com frequéncia essa origem hi desacreditar 0 discurso dos direitos como eurocéntrico ¢ impe: fensores, por sua vez, permanceem majoritariamente desconhecedc de que nao se pode simplesmente citar a genealogia dos direitos pa:2 ou justificar as préticas vigentes. Se retornarmos a hist6ria antiga, primeiro deveremos reconhec® lagdo entre os direitos humanos e a democracia ocidental € comp: rada, ¢ ndo de impecavel harmonia. Durante séculos, travaram- direitos humanos em Estados europeus, com definicdes e entend plamente variaveis dos direitos. As cemocracias, com extrema fre laram os direitos das minorias, ¢ ainda os violam. Além disso, @ 2° > dos direitos humanos sempre se aliou & negago deles nas situacdes < e nas sociedades escravagistas. Essa historia possibilitou a alguns Esc -coloniais a demincia dos direitos humanos como uma imposicao =: a negacio de direitos a suas prdprias populacdes. A questio dos diss: pre foi uma questio de poder e de relagdes assimétricas, e © mesmc 0 que Michael Rothberg chamou de competi¢ao de soma zero ent discursos da meméria. Embora a genealogia colonial deva ser reconhecida, a ideia ¢ a > direitos humanos passaram por tantas transformagées, que as oris: reito natural divino ou até nas revolugdes norte-americana ¢ franc ram-se basicamente irrelevantes como recurso legitimador. Os di nos internacionais de hoje s4o legitimados, antes, pela necessidade ce inteiro responder aos desafios de uma modernidade social e econé: por mais locaimente frarurada-€ transformada que s¢jé, tornou-se = Como seria inevitavel, isso envolve certo nivel de abstraséo no julga=s atrocidades e dos abusos dos direitos humanos. ‘Trata-se da abstras 202 Andreas Huyseen ria modernidade, sem a qual as lembrangas de atrocidades nio atingiriam seu poder transnacional afetivo nem mobilizariam comunidades que nao sto as das proprias vitimas. No entanto, um regime de direitos humanos que ultrapasse inteiramente Estados ¢ nagies ainda ndo é imaginavel, apesar de alguns te6ricos politicos terem comecado a conceituar uma “sociedade civil global”, em oposigio a uum governo mundial [Weltbiirgergesellschaft] ou sem ele." jA despeito de certas formas de desnacionalizagio da cidadania em algumas partes do mu do (dupla cidadania, passaportes da Unigo Europeia, concessio de direitos regionais de voto a no cidadios ete,), 0s Estados continuam a ser importan- tes legisladores ¢ garantes da ampliagao dos dircitos, sobretudo por meio de Constituigdes, de'novas regulamentagdes da cidadania e dos direitos culturais € de compromissos com organizacdes transnacionais, Quase todas essas lutas pelos direitos, que nao tm modelos no pasado, ainda fancionam nesse con texto, embora tenha havido um aumento de organizagdes transnacionais de direitos, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ¢ a Corte Penal Internacional. Apesar desses avangos, novas formas de apatridia desenvolve- Fam-se no contexto das migragdes “ilegais”, do comércio sexual e de outras novas formas de escravidao trabalho forcado. Isso tem especial pertinéncia rno caso dos “imigrantes de outros paises” na Unio Europeia e de imigrantes majoritariamente latino-americanos e chineses nos Estados Unidos. Como alertou Hannah Arende, [3] concepcao dos direitos humanos, bascada na existéncia presumida de tum ser humano como tal, rulu por terra no exato momento em que, pela primeira vez, os que professavam acreditar nela confrontaram-se com pes. soas que de fato haviam perdido todas as outras qualidades e relagdes espe- cfficas —exceto a de ainda serem humanas.* De modo andlogo, a crenca em que a lembranca do genocidio como exime contra a humanidade poderia impedir novos genocidios ruiu por terra no mo- mento em que © mundo deparou com novas formas de genocidio, massacres estatais ¢ limpeza étnica, na Bésnia, em Ruanda ¢ em Darfur, Ameméria ea nagio Os direitos c a meméria estao ligados, porém se diferenciam em mais um as- Pecto. Assim como um dia a nagao proveu o arcabouco dos direitos, ¢ ainda o fornece, ela também serviu de espaco privilegiado para a meméria coletiva, tal como definida por socidlogos historiadores, desde Maurice Halbwachs até ‘On dretos humane internaienir es poticadamemérissinites safes 203 Piecre Nora ¢ outros mais. Todavia, enquanto o discurso dos direitos he: nos, desde a Declaragao Universal de 1948, almeja a universalidade, 05 dise=- sos sobre a meméria coletiva tém-se limitado, tipicamente, a situagdes naz: nais ou regionais. Isso tende a bloquear o discernimento dos modos = quais uma nova politica transnacional da meméria espalhou-se pelo m desde 1989, juntamente com o discurso dos direitos humanos, mas dis dele." A ideia da meméria coletiva baseou-se sobretudo numa concep. tropolégica da cultura como homogénea e fechada, ou auténoma.”* Ass— uma memoriadora como Carol Gluck defendeu a diferenciacio da mex - em oficial, verndcula e individual, e eu props, ém outro texto, que aban. mos ou, pelo menos, cofoquemos-entre parénteses toda a ideia de mem coletiva.'” Isto parece especialmente necessario nuit 6poca em que a mes coletiva, hoje entendida sobretudo como meméria nacional, é inevitavel= perpassada por lembrancas grupais no nivel subnacional ou regional, >=— como pelas misturas da meméria diaspérica encontradas com os fluxos <-- centes de migragio, que questionam as ideias de homogeneidade cu’ Além disso, a construgio da meméria através dos meios de comunicag massa torna cada vez. mais ilus6ria a visio sociolégica de memérias gr: Como quer que seja definida, a meméria coletiva, como ideia norte22 == tomou-se problematica em termos conceituais e sociolégicos. Com a expansio dos direitos ocorrida desde a Segunda Guerra Mu=2.: as concepgdes das culturas nacionais como unidades coerentes ¢ dis::—-: no sujeitas a reivindicagdes de direitos internacionais através das fr ras, foram aos poucos enfraquecendo. As tendéncias para a globalizas financas, da economia ¢ das migragdes eriaram novas redes, que sub: as concepsies tradicionais de soberania nacional. Houve época em c=: : aces continkam a economia. Hoje, a economia contém as mages. +2- possivel sugerir, analogamente, que um dia as nagdes contiveram & me: a0 passo que agora uma cultura global da meméria contém as nagdes? © efeito, Levy e Sznaider sugeriram que a antiga nogio de meméria ec poderia ser repensada como meméria global ou cosmopolita. Ember: +. concorde com sua tese de que a globalizacio, a midia tecnolégica e 05 =~ tos politicos da década de 1990 mudaram 0 status da memoria no =~ - inteiro, sou cético quanto a linguagem da cosmopolitizacao. Afinal, ¢+ = cursos da meméria vivenciada continuardo primordialmente ligados ~ . munidades ¢ territérios especificos, ainda que a propria preocupagio © — meméria tenha-se tornado um fendmeno transnacional em todo 0 me== que a lembranga do Holocausto tenha migrado para outros casos hiss. - mente nao correlatos. 204 Andeaas Hoyssen Até no nivel nacional, porém, as lembrangas esto sempre em conflito entre si, hoje mais do que no auge do regime westfaliano que viu pela primeira vez a invencio das tradigSes nacionais ¢ a construgao de memérias nacionais. As lembrangas se chocam, do mesmo modo que as reivindicagoes de direitos con- frontam umas As outras. Em qualquer coletividade, é inevitavel haver conflitos ¢ lutas a respeito de memérias que raras vezes, até mesmo em pequenos gru- pos, constituem algo que se possa chamar de coletivo, muito menos cosmopo- lita, Essas tenses e conflitos so um componente principal da esfera piblica nas sociedades abertas ¢, idealmente, devem estar sujeitos ao reconhecimento politico, a deliberacio democratica e & negociagao. O fato de grupos de pes- soas, ¢ ndo individuos, costumarem ser marcados para perseguicZo ou opres~ so nio garante uma meméria grupal coletiva homogénea. As atuais éreas- have de conflito concernem aos direitos dos povos indigenas, aos direitos de linguagem, as desigualdades de género, aos direitos sexuais, aos direitos de cidadania ¢ aos direitos politicos dos imigrantes. A afirmacao fundamental de Hannah Arendt de que existe um direito de ter direitos, afirmacao que remon- ta 20 periodo entreguerras, no qual populagées inteiras foram desnaturaliza- das e privadas dos direitos individuais ¢ de cidadania, tornou-se uma forca politica condutora no mundo contemporanco. Os debates sobre a meméria nas humanidades tém sido especialmente ro- bustos em seu foco interpretativo na meméria cultural, encarnada na literaru- ra, na arquitetura, nas artes plisticas ¢ nos monumentos.’* Eles também con- tribuiram muito para nossa compreensao do trauma histérico, por seu foco no depoimento e no testemunho. Mas houve quem perguntasse até que ponto esse foco nas subjetividades, por legitimo que seja, corre o risco de perder de vista as dimensdes politicas do discurso dos direitos no presente e suas impli- cages para o futuro.'° Embora essa objego tenha alguma forca em relagio a um exagero do trauma, num espirito pés-estraturalista e psicanalitico, eu diria que precisamente 0 foco na forga das lembrangas individuais de violagdes de direitos & capaz de impedir que o discurso dos direitos humanos resvale mui- to depressa para uma abstracao histérica. O discurso dos direitos humanos e culturais deve apoiarse em exemplos concretos de violagdes dos direitos, interpretados no contexto de situagdes sistémicas € historias antigas, e pode ser respaldado por obras de arte que treinem nossa imaginacio nfo $6 para reco- nhecer 0 que Susan Sontag chamou de a dor dlheia, mas também para construir remédios juriicos, politicos e morais contra a proliferacdo desenfreada dessa dor. A tragédia grega classica foi a primeira a articular esse elo constitutivo en- tre a meméria ¢ os direitos: Antigona é uma peca que diz respeito ndo apenas as obrigagées para com os mortos, mas também aos direitos dos vivos. Cscrcitor humane iternaionsis es paltiendamemstislimtesedesafes 205) ? Meméria e direitos culturais A descricdo feita por Jean Cohen sobre trés fases consecutivas do discurso ¢. direitos humanos, desde a Segunda Guerra Mundial, poderiamos acresce: uma quarta dimensio, que também emergiu nos anos recentes. Ela concerne transformagio do discurso dos direitos humanos para destacar reivindicac de direitos culturais pertinentes a populagées indigenas ou descendentes de = cravos, na América Latina, no Canada ou na Austrdlia. E surge tambéi respeito a dircitos civis € sociais, na esteira das novas formas de imigeacie = diéspora, Enquanto a terceira fase de Cohen questiona as ideias tradicionais ¢= cs que atravessem fronteiras, ess soberania do Estado, admitindo interve quarta dimensio reivindica os dircitos de geupos culturais dentro de na soberanias, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humar. ‘como direitos dos individuos, cambém com um entendimento homoganed < fiacionalidade. Portanto, desestabiliza ainda mais as ideias de identidade nac? nal, sobretudo quando direitos civis e sociais ¢, as vezes, até direitos politic ~ limitados sao sensatamente concedidos a imigrantes no cidadios, ou qua. se concedem dircitos culturais @ povos indigenas, desde que tais direitos = entrem em conflito com a lei da terra (Constituicdo colombiana de 1993), 0 que os direitos culturais de grupos so invariavelmente impregned « de tradigio e meméria, é claro que isso levanta outra questo: pode haver —— direito & memoria cultural que seja juridicamente executério, assim como ex te um dircito a liberdade de expressdio? Nao parece fazer muito sentido f2:= num direito 4 meméria que possa ser legalmente imposto, exceto, talvez, =~ contexto em que os seres humanos fossem tecnolégica ou geneticamente me: pulados para esquecer. Alguns filmes de ficgao cientifica, como Blade Riaz: 0 cacador de androides (ditegio de Ridley Scott, 1982) e O vingador do fu (direcao de Paul Verhoeven, 1990), abordaram essas questes. Somente em: = situacdo faria sentido falar de um direito legal a prépria memoria. E claro ¢: em certa visio sombria dos desdobramentos hist6ricos globais, como a arr= lada na Dialética do esclarecimento, de Max Horkheimer Theodor Ado= (1947), no limiar entre a guerra total ea Guerra Fria e muito antes da enger- ria genética, esse tipo de manipulacio e a consequente destruigao da mem« foram analisados de forma convincente, embora reducionista, como 0 pro’ da inddstria capitalist da cultura e de sua ideologia consumista. Tratow-s? ' uma teoria inicial, embora exagerada, do distirbio do deficit de ateng amnésia e da perda da subjetividade nas sociedades de meios de comunic: t de massa, A ameaca 4 meméria, de fato, seria uma ameaga & propria identi humana ~ uma identidade sempre moldada por nossa insercao em uma 206 Andvessiyssen época eum dado lugar. Ainda que os meios de comunicagio da meméria ¢ 0 prOprio lugar da meméria na cultura difiram enormemente no tempo e no es- pago, Luis Buiiuel teve razao ao dizer: *E preciso comegar a perder a meméria, nem que seja 20s pouguinhos, para perceber que € a meméria que constitui nossa vida [...]. Nossa meméria € nossa coeréncia, nossa razdo, nossos senti- mentos € até nossos atos. Sem ela, no somos nada.” Assim, como dado antropolégico e hist6rico, a meméria, especialmente a memeéria grupal, pode ser relacionada com 0 que veio a ser conhecido como direitos culturais, Mas a ideia de direitos culturais suscita problemas sérios. Seguindo te6ricos dos direitos humanos, como Seyla Benhabib, quero primei- ramente rejeitar a ideia de que os direitos culturais possam ser separados dos direitos individuais. Alguns direitos culturais jd estdo refletidos em diversas ‘léusulas da legislagio internacional sobre dircitos humanos (Declaragéo Uni- versal: liberdade de pensamento, consciéncia e religido [Artigo 18]; liberdade de expresso [Artigo 19]). Os direitos culturais dos grupos também sio impli- citamente reconhecidos na Conveneao sobre o Genocidio, de 1948, uma vez que é comum as politicas de genocidio serem precedidas por ataques & cultura de grupos excluidos.* Os direitos culturais e os individuais nao podem ser separados, pois a autonomia individual, ao contracio de certas crengas libe- rais, nao é dada pela natureza, mas surge no reconhecimento recfproco dos cidadios inseridos numa cultura € engajados em relacdes sociais ¢ politicas. Toda individualidade é intrinsecamente social. No entanto, 2 autonomia indi- vidual é comumente atacada em nome da comunidade. Ento, por que alguns insistem numa categoria separada de direitos culturais comunitatios? (© movimento pelos direitos culturais surgiu recentemente, em torno de pro blemas das minorias ¢ dos direitos das nagGes originarias, ou primeiras nagbes, em Estados nacionais como o Canadé, a Austrilia, a Colombia, o Brasil e ou- ‘20s paises latino-americanos. Ele pode ser visto como unta expresso da énfase crescente na diversidade cultural de um mundo cada vez mais intetligado, € € em si mesmo uma transformagao de lutas anteriores, sobrettido fuitas pelo di- reito & terra, antes comumente formuladas cm termos marxistas. Liga-se fun- damentalmente a politica da identidade grupal, e muitas vezes manifesta ceti- cismo ou até hostilidade em rela¢io ao discurso dos direitos individuais. Aqui, uum grande problema é que, muitas vezes, o discurso dos direitos culturais tem uma ressonancia nefasta com a tradicao do que os colonialistas chamavam de direito costumeiro ou consuetudindrio. Portanto, suas reivindicagées temon- ram a descendéncia linear, em vez de atenderem as necessidades atuais. Ele pode ser visto, é claro, como uma formagio reativa legitima contra a globaliza~ io e a temivel perspectiva da homogeneizacao cultural pelo capital financeiro, 207 Cs dreitoshumanosinternoionsis ea pl ' ; pelo desenvolvimentismo, pelo consumismo desenfreado e pelo inglés global. No entanto, ao tomar invariavelmente © partido do local contra o global, o discurso dos direitos culturais produz seu proprio conjunto de limitacoes. Com efeito, hi uma tendéncia a romancear as chamadas formas nao o dentais de diversidade cultural e a congeli-las em termos de direitos culturais e valores tradicionais. Aqui, a ironia é que a propria reivindicagao de direitos culturais dos grupos, muitas vezes postulada contra o privilégio de direitos individuais, articula-se, por sua vez, no campo da propria tradi¢ao europei dos direitos, a qual alguns qucrem rejeitar. De fato, os direitos culturais dos srupos jd eram avaliados nas primeirissimas articulagdes catélicas do direite natural (a Escola de Salamanca), 0 que refletia mais o contato colonial do que. digamos, a tradicio de direitos que evoluiu a partir das revolugées francesa norte-americana, Seja como for, as lutas atuais pelos direitos (grapais ou ing Viduais) em todo 0 mundo representam uma resposta ativa a uma situacdo q) no permite nenhuma fuga das modernidades mutantes. A natureza problemética das reivindicagdes de direitos culturais torna-s Particularmente visfvel quando tais direitos si0 mobilizados no para faze: reivindicagies a favor de grupos marginalizados (as primeiras nagdes do C= nadé, os povos indigenas da Amazdnia), mas a favor de Estados e do pocs= estatal, No campo internacional, isso acontece nas tentativas de oposicao = influéncia estrangeira, quer se trate da influéncia ocidental nas sociedades 's- Tamicas, quer dos efeitos da presenca islimica nas sociedades ocidentais acontece no interior das nagGes, quando se evocam direitos culturais para =~ conservadores, a favor de uma cultura nacional rio cotejo com suai tenure des de imigrantes. © recente exemplo alemao do debate sobre a Leithut uma boa ilustragio deste siltimo caso, e as reivindicagdes culturais europe::~ contra a inclusto da Turquia como membro da UE sio uma ilustragao 2 Primeiro. Em ambos os casos, o reconhecimento da diversidade cultural vo: “se contra 3 propria diversidade, para favorecer a cultura dominante, E>: reivindicagdes de direitos culturais, muito diferentes em termos politico: cionam com base numa concepeo unitéria obsoleta da cultura, Todas av « turas afetadas pela modernidade so invariavelmente cindidas, quer essa c= ‘opere em sentidos verticais (superior versus infer ‘ior, autdctone versus diz: rico), quer em termos do privilégio concedido a diferentes meios de com: fo (imprensa versus oralidade, literatura versus mtisica). Tais estratificec sempre sero um campo de luta sobre os significados e a compreensio c::: ‘ (08. n+ (Cultura de referéncia on cultura dominante, [NT] | 208 Andeeosuyssan grupos tém deles mesmos, Elas tornam palpdvel o fato de que € impossivel manter uma discussio significativa sobre os direitos culturais sem considerar 08 direitos sociais ¢ politicos do individuo. A cultura nao deve ser separada” dos direitos da pessoa ou dos direitos de cidadania. Quando isso ocorre, ela se torfia inevitavelmente constritiva, unitéria, homogencizadora e excludente, ‘quer no nivel nacional, quer no subnacional. Em ver de superarem os proble- mas de poder inerentes &s culturas majoritdrias nacionais, as reivindicacdes de direitos culturais, conforme articuladas por grupos subnacionais, podem sim- plesmente reproduzir esses problemas em outro registro. Ainda assim, acompanhando Benhabib, reconheco as reivindicagées cultu rais, especialmente da linguagem ¢ dos valores expressivos nela inseridos, € penso que os direitos culturais devem ser conciliados com a categoria mai ampla dos direitos humanos como direitos dos individuos.” Tudo o mais pode evar & opressao cultural e ao relativismo juridico, ou a coisa pior, Construir um bindrio irreconciliavel entre os direitos humanos universais, como direitos “ pénas dos individvos, e os direitos culturais, como direitos de grupos étnicos {bu racials, traz o risco de rejeitar os direitos individuais dos membros dos gru- pos em nome da cultura. Seria igualmente inaceitavel, contudo, desconhecer™ todas as reivindicagées culturais dos g individvos auténomos, como se pudesse existir autonomia fora das relagées Postular esse bindrio também reproduz 0 abismo improdutivo entre a teoria politica liberal e comunitdria ¢ a teoria politica republicana, em vex. de enxergar as duas como interligadas e necessitadas de mediagio. Permitam-me destacar © problema com um exemplo simples: assim como os direitos huma- ngs incluem o direito de sair de uma na¢io ou um Estado, os direitos culturais— devem preservar a prerrogativa de que o individuo na c ‘Bossa deixa-la e escolher outra. Essa dimensao, que nao & suficientemente ‘abordada pelos proponentes dos direitos culturais grupais, é especialmente per- tinente as mulheres ¢ a outras pessoas privadas de direitos em sociedades ou grupos étnicos religiosos que hes atribuem um status legal inferior. Os direitos culturais podem tornarse produtivos como trampolim para exigéncias sociais ¢ politicas, mas podem tomnar-se asfixiantes quando permanecem no nivel da compensacio identitéria, dentro de uma pobreza ¢ um sofrimento continuos. O discucso dos direitos culeurais compartilha outra dimensio problematica. com o discurso da meméria. Ele tende a confrontar os direitos de um grupo ‘com os de outzo, como ocorte hoje nas reivindicacées dos povos indigenas que contrariam a cultura dominante das nagdes em que vivem. Isso pode até levar a _uma bifurcagio entre 0 ditcito civil e o direito consuetudinério, como em alguns paises latino-americanos (2 exemplo da Colémbia). Fssa constelagdo pos, limitando os direitos apenas a sociai cido numa dada cultura (cedveiteshumenos marnacionas eopolite domeméritlinitese datos 209 ‘encontra uma analogia nos debates sobre a meméria em lembrangas traumé- ticas de pogroms, massacres estatais organizados e genocidios, Aqui, no <2 trata de um grupo fazendo reivindicacdes legais contra outro, passiveis de se- decididas num tribunal ou num processo politico deliberativo. A cultura cs meméria caracteriza-se, antes, por disputas, amitide acerbas e ressentidas, s¢- “bre a meméria, as quais reivindicam a prioridade de um tipo de lembrar. traumatica em relago a outro, com isso criando insidiosas hierarquias ¢ sofrimento.** A mais dificil e contestada dessas disputas em torno da memor::, € a que ocorre entre a lembranga do Holocausto ¢ as lembrangas do coloniz- lismo, que hoje parecem separadas pelo que W. E. B. Du Bois chamou, cer: ver, em outro contexto, de linha da cor. Nos debates sobre a politica da m: méria, devemos tentar evitar essa hierarquizacao vertical de sofrimentos pas- sados, na qual um tipo de meméria tenta suplantar outro. Nesse aspecto. discurso da meméria pode aprender com os avangos juridicos. A negociac3. dos direitos dos indigenas, no arcabougo da na¢ao e da constituigao, tal com: evoluit lentamente no Canadé ou na Colémbia, talvez possa fornecer u= modelo tedrico para a reconciliagao, em contraste com a irreconciliabilidade = a concorréncia feroz. A tarefa é reconhecer uma dimensdo universal na opres- so sistémica ¢ no sofsimento humano, ¢ no jogar um tipo de lembrans contra outro. O discurso da meméria ¢ o dos direitos precisam alimentar uz:* dimensio universalizante que reconheca a particularidade, mas sem reific Assim como existe reciprocidade entre meméria e diteito, entre direitos cul rais e direitos individuais, também devemos atenuar as fronteiras entre ler brangas rivais de sofrimento e perseguicio. ‘Nao ha davida de que, em nossa época, a politica da meméria ¢ os direiecs humanos jé esto mais intimamente ligados que nunca, Alias, um marco ats! do discurso dos direitos humanos & que ele se alimenta do discurso da mem<- ria, embora amiéide o deprecie. A forca permanente da politica da memée:= continua a ser essencial para garantir os dircitos humanos no futuro. Por mais que sua presenga seja essencial para estabelecer regimes de direitos humane onde eles ainda nao existem, no podemos esquecer que 2 meméria també= pode alimentar violacdes dos direitos humanos, do mesmo modo que os dire tos humanos esto expostos ao abuso politico. Todavia, mesmo nos casos e: que a meméria apoia os direitos humanos, talvez nos convenha investigar m: fundo. Com o declinio das utopias sociais e politicas do século XX — 08 futures imaginados do fascismo, do comunismo e da modernizacio capitalista glob= —e com as montanhas de cadéveres que as ditaduras desse século sinistro legs~ ram A nossa rememoracdo, as vezes uma parte excessiva da luta pelos direitos humanos parece concentrar-se em corrigir injustigas passadas, por meio de re!- 210 AndieasHuyssen vindicagdes de reparacio ¢ ressarcimento. Garantir 0 passado pode ser uma iniciativa Ao perigosa quanto tentar garantir 6 futuro através de projecdes utépicas. Se 0 ativismo dos diceitos humanos vier a & tomar prisioneiro do passado e da politica da meméria, isso apenas significard que ele terd sempre chegado tarde demais. No entanto, se vier a se tornar prisioneico de uma ideia vvaga e abstrata de globalizagao, 0 resultado serd igualmente problemético. Apolitica da imigracao Concluo com uma nota sobre a imigracio na atualidade, uma questo de di- reitos que tem enorme interesse para mim, pois se situa na fronteira entre 0 passado da meméria e o futuro dos direitos. Afirmei em outro texto que o Holocausto ¢ © discurso sobre 0 colonialismo devem ser considerados relacio- nados entre si, ¢ nao se manter reciprocamente hostis.* Mas a ligago entre o Holocausto e 0 colonialismo também deve ser estendida ao problema contem- pordneo da politica de imigra¢io nas principais nagées do Ocidente. 0 Ma- greb e as antigas colénias subsaarianas estio para a Franga tal como a India e © Paquistao para a Inglaterra, a Indonésia para a Holanda, € os paises mugul- manos formados das ruinas do Império Otomano para a Europa e os Estados Unidos. politica de em tempos pés-coloniais para as proprias antigas poténcias colonialistas. Isso aia novas constelagbes, qUE SHO aTTICUIETas © usadas nos contextos do passa- do colonial e de outros passados que se recusam a desaparecer: 05 turcos como “os novos judeus” da Alemanha; a dominagao neocolonialista nos arredores de Paris; as pequenas prises de Guanténamo nos lucrativos centros de deten- cao para imigrantes “ilegais” espalhados pelos Estados Unidos. Tanto na Eu- ropa quanto nos Estados Unidos, a linha da cor nao existe apenas em certos discursos antagénicos entre si, mas na propria realidade social Mais do que nunca, precisamos de obras artisticas que questionem a perma- néncia de praticas coloniais racializadas e deslocadas na prépria metr6pole, obras que possam fazer justica, em sua figuracio estética, 4 complexidade da situagio. Um poderoso exemplo recente € 0 Shibboleth de Doris Salcedo, uma instalago de 2008 no Tate Modern de Londres. Nessa obra, 0 tema da imigra- fo como exclustio e negacio dos direitos ¢ articulado com a linguagem e a isibilidade, sob a forma de uma fenda que se vai alargando no piso por toda a extensio do antigo salio da turbina do Tate. As paredes de concreto da fenda so rompidas por uma cerca de malha de ago — nao 0 arame farpado dos cam- pos nazistas ou bésnios, mas a malha de aco das atuais fortificagées de fronte rae oconcreto das paredes pretende manter os barbaros do lado de fora, scja Ordisitorhomrarintsmaconszepeltice damemér: imtasedesafios 211 ragao desloca o problema da dominacio colonial ema da dominagio colonial em Israel, seja na fronteira mexicano-americana. Shibboleth [xibolete] é a pa- lavra biblica que os estrangeiros no conseguem pronunciar cotretamente ¢ ave divide 0 mundo em amigos ¢ inimigos, com consequéncias mortiferas. O Passado biblico e o presente contemporaneo chocam-se nessa obra que, numa poderosa linguagem visual ¢ arquitetdnica, reflete sobre as continuidades ob- servadas entre 0 colonialismo, o racismo e a imigragSo. O arco ndo vai apenas do Holocausto ¢ do colonialismo até a Bosnia, Ruanda ¢ Darfur, mas também até a migragio c até praticas de negacdo de direitos assimetrias fundamentais de poder entre os seres humanos, que um dia talver. se tornarao parte de uma politica da meméria. Quiséramos nés que ela jé houvesse chegado. Notas » Samuel Moy, The Last Utopia: Human Rights ix History, C Press, 2010, nbridge, MA, Harvard Univers; © M. Jems Booth, “The Unforgoren: Memories of Justice", Americon Political Science Review 9, 1294, 2001, p, 777-791, * James J Savelibeng ¢ Rran D. King, “Law and Coletive Memory", Anna Ret of Len Social Science 3,2007,p, 189-211. 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Edmund Jephcont otal, Cambridge, MAY Hares Universicy Pres, 2003, p. 389-400, citacio nas p. 369s, ' Mahmood Mamdani,* Amnesty o: Impurity? A Preliminary Critique of the Report ofthe Truth an? 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Cakural Memory inthe Pesen, Stanford, CA, Stanford Univesity Press, 2003, 1 Esse uso no concorda intecamente com 2 definicio do termo na obra de Maurice Halbwachs, au- tor que reconheceu diferentes grupos como portaores de diferentes lemibrangascoleivas, mas evjo _guadro de referénciacontinuol a seta nagao francesa. Encontramos 0 mesmo enfoque nacional em. Reshns of Memory: The Construction ofthe Pronch Past, rexo organizado por Pieere Notas a ei- ‘clo em inglés foi organizads e prefaciada por Lawrence D. Krizzman, com trad. de Arthur Gol= Akamamer, 3», Nova York, Cohumbia University Press, c. 1996-1998; @ Fiengo Frangois e Hagen Schulze jogs, Deutsche Erimserangsort, 3 t, Munique, Beck, 2009. © Ver Carol Gluck, “Operations of Memory: ‘Comfoct Women’ and the World”, in Shella Mivoshi Jager e Rana Mitter (orgs), Rapeured Histories: War, Memories, and the Post-Cold War in Asi Cambridge, Ma, Harvard University Press 2007, p, 47-77; ¢ Andreas Huyssin, “Transnationale Verwertungen von Holocaust ud Kolorialinmus", ir Elsbeth Wagner e Burkhardt Wolf for. VerWertungen vom Vergangenvi: Masse Lectures 2008, Berlin, Vorwerk 8, 2009, p. 30-51 1% Jan Asemann distingste 2 meméria cultural da merodria geraconal em *Collctixe Memory and ‘Caltural demi", New German Cotique, 0°65, 1995, p. 125-134. » Beatriz Sarto, Tiempo pasadox Cultura de hi memara y gio sujet — Ua discusion, 2° ed, Buenos Aires Sigio Veinsono, 2005 [Tempo pasado: cultura da meme ginad sujet, tr28. Rose Freire d’Aguiag Si0 Pavlo, Companhia des Letas/Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2007) % Luis Buivel, My Last Sighs The Autobiography of Laie Buel, crad. Abigail Israel, Nova York Alfred A. Knopf, 1983, p. 45 [Mew atime saspio, erad, Andeé Tales, Sio Paulo, Casac & Naify! Mostra, 2009) 21 Nio posso abordar aqui o problema do genocdia cultural, formalagio ambigua 0s primeos de bates sabve o genocidio no trabalho de Lentkin. Ver Anson Rabinbach, *Genoria Konzepte”, i Bagriffe auc dem Kalter Krieg: Totltarismus, Amtifaschinus, Genorid, Jena, Wall tein, 2009, p. 43-73; ¢ Bartolomé Clavero, Genocide or Etbnocide, 1933-2007: How to Miake, Unmake, and Remake Law with Words, Miko, Giutfe, 2908, 2 Seyla Renbabib, The Claims of Cultures Equality and Diversity in the Global Bra Prinoson, NJ, Princeton Universi Pres, 2002 3 Ver Rothberg, Multidirectional Memory. 2% Hoyssen, “Transnationale Verwerrungen” r ‘¢ deitos humana: ternacionss police da mem: iiese desatos

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