You are on page 1of 11
468 Herbrios: resgate histérico e cientifico MACHADO, C.C.C."; BARBOSA, L.G"; FELIX, LP; BORGES, LA.A.P "Universidade Estadual da Paraiba, Centro de Ciéncias Biolégicas e Sociais Aplicadas, Jodo Pessoa/PB — Bra- sil. “Autor para correspondéncia: celiaccmachado@gmail.com "Universidade Federal da Paraiba, Centro de Ciéncias Agrarias, Areia/PB ~ Brasil. “Autor para correspondén- ja: celiacemachado@gmail.com RESUMO: Para resgatar a origem dos herbarios, 6 necessério olhar trés milénios de histéria das ciéncias naturais e remontar até a Grécia Antiga onde os rhizofomoi - “cortadores de raizes” - coletavam plantas para abastecer os herbaril- ervandrios - e onde grandes fl6so- fos, como Aristételes e Teofrasto, iniciavam estudos sobre as plantas, dando a Botanica os ‘seus primeiros passos. Desde entao, e até 0 século XVI, a Botdnica se desenvolveu sem © auxilio dos hortus siccus - jardins secos - hoje conhecidos como herbarios, fazendo uso apenas do cultivo de plantas, principalmente em jardins botanicos. O surgimento do papel, © barateamento de sua produgao © a possibilidade de unir varias folhas em um livro seriam determinantes para o surgimento dos herbarios. Varios boténicos rapidamente se apercebe- ram do potencial desse material e 0 adotaram como meio de suporte @ de armazenamento de ‘exemplares prensadas e secos, para posteriores andlises. Primeiramente unidos em livros @ depois em folhas separadas e armazenadas nas gavetas de armérios especiais, os herbarios foram aumentando em ntimero. Hoje se contam mais de trés mil herbrios em todo o mundo, ‘contendo cerca de 350 milhdes de espécimes que documentam a vegetagao da Terra nos Ultimos 400 anos. Atualmente, os herbarios apostam em aumentar a sua visibiidade e tornar ‘suas colegdes mais acessivels para o ptiblico em geral, garantindo um futuro para estes ines- timaveis testemunhos secos dos jardins do passado. Palavras-chave: colegao botAnica, Lineu, Index Herbariorum. ABSTRACT: Herbaria: an historical and scientific rescue. In order to rescue the origin of herbaria, itis necessary to look at three millennia of natural sciences history and trace back to ancient Greece, where the rhizotomo - “root cutters” collected plants to supply the herbarii- herbalists - and where great philosophers such as Aristotle and Theophrastus, initiated studies ‘on plants, giving Botany its first steps. Since then and until the sixteenth century, botany was developed without the aid of siccus hortus - dry gardens - now known as herbaria, making use ‘only of plant cultivation, mainly in botanical gardens. The emergence of the paper, the cheap- ‘ening of its production and the possiblity of joining multiple sheets in a book, would be decisive for the emergence of herbaria, Several botanists quickly realized the potential of this material and adopted it as a mean of support and storage of pressed and dried specimens, for further analysis. First united in books and then in separated sheets stored in the drawers of special cabinets, herbaria increased in number, Today, there are more than three thousand herbaria worldwide, containing about 350 million specimens documenting Earth's vegetation in the last 400 years, Currently, the herbarium bet to increase its visibility and make their collections more accessible to the general public, ensuring a future for these priceless dry testimonies of past gardens. Keywords: botany collection, Lineu, Index Herbariorum. xadas em folhas de cartolina e acompanhadas de INTRODUGAO uma etiqueta (Pinto da Silva, 1986), Nesta etiqueta Um herbrio 6 uma colegio organizada devem constar os seguintes dados: identificagao do exsicatas, isto 6, plantas prensadas ¢ secas, fi do téxon em latim, local © data de coleta, nome Recebido para pubicagao em 19/08/2016 ‘cote para publicacao em 20/03/2017 10,1590/1983-084x/00651X Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017 do(s) coletor(es) @ notas que se julguem adequa- das sobre caracteres da propria planta, ecologia @ 0 habitat do espécime. Os exemplares podem ainda ser completados com desenhos, estampas, folografias e publicagées. Além disso, se a quanti- dade coletada permit, ¢ recomendada a inclusdo de material adicional de varias partes da planta na capsula (pequeno envelope colado na cartolina da exsicata), da qual futuros pesquisadores poderdo coletar suas amostras sem danificar o exemplar (Bean, 2013), Um herbario organiza um conjunto de do- ‘cumentos indispensaveis para muitos estudos bo- tanicos, constituindo um sistema de informagao ou uma base de dados sobre a flora de uma regio ou de um pais, contemplando nao sé a flora atual como aquela ja extinta (Correia, 2010). Os espé- cimes de herbario so essenciais para os estudos taxonémicos e dao uma ajuda inestimavel a iden- tificagao de espécies vegetais. O acervo dos her- bérios esté na base de estudos fenolégicos, ecolé- gicos, evolutivos, biogeograficos e etnobotanicos. A preservagéo de dados sobre a vegelagao e a distribuigéo das espécies tornam-se indispensé- veis em estudos sobre a biodiversidade, em todas as escalas. A preservagao de material testemunho histérico, em muitos casos, de floras passadas, 6 também uma vertente importante dos herbarios. Os herbarios estao abertos a todos os pes- quisadores que queiram recorrer as suas colegdes e, emnivel mundial, estabeleceu-se um servigo de empréstimos. Cada herbario, quando solicitado, envia, por tempo limitado, alguns dos seus espécl mes ao herbérrio solicitante, onde serdo estudados € posteriormente devolvides. Os pesquisadores devem colocar nos espécimes que cbservaram pe- quenas etiquetas de confirmacao ou revis4o, con- forme o caso (Correia, 2010) E importante garantir 0 continuo crescimento de um herbario, Os investigadores da instituigao que 0 alberga depositam espécimes por eles colhidos e que estao na base dos seus estudos, Outra forma de crescimento resulta das ofertas vindas de outros herbarios ou de permutas: materials coletados em duplicatas, triplicatas, etc, podem ser enviados a outros herbarios que, num sistema de troca, oferecem também os seus exce- dentes (Correia, 2010). Neste trabalho apresenta-se um resgate das origens e ideias fundadoras que levaram ao surgimento dos herbérios e a sua evolugdo, Para tal, ¢ realizada uma retrospectiva sobre os progres- sos da Botanica e a influéncia de Lineu em seu desenvolvimento. E realizada uma breve concel- tuagao teorica da importancia dos herbarios, assim como ¢ analisado o estado atual da arte no mundo © no Brasil e as tendéncias futuras, 467 ORIGENS E IDEIAS FUNDADORAS Um dos primeiras trabalhos sobre a ork ‘gem dos herbérios foi publicado em 1885 por Jean Baptiste Saint-Lager, um botdnico e médico fran- cs. Nele, o autor afirma que nenhuma mengdo a colegdes de plantas previamente prensadas e se- cas ¢ feita em anotagoes de naturalistas anteriores, ao século 16 (Saint-Lager, 1885). No entanto, séo apontadas evidéncias da existéncia dos botanolo- {goi, homens que se dedicavam a coleta de plantas nna Grécia Antiga. Estes, também conhecidos como rhizotomoi- “cortadores de raizes’- abasteciam os ‘estoques das lojas de phytopolai - negociantes de ervas, chamados em latim de herbani - ervanarios (Torrey Botanical Society, 1885). Para faciltar suas atividades de coleta e com o propésito essencial- mente utilitério, 0s botanologoi ou rhizotomoi reu- niram conhecimento e estabeleceram um sistema que seria a base para a ciéncia da Botanica Assim, Saint-Lager (1885) reconhece que & impossivel dissociar a origem dos herbarios da histéria da Botanica. Dessa forma, é importante realizar, em primeiro lugar, uma breve retrospecti- va sobre os progressos da Botanica, de forma que ‘a posigéo ocupada pelos herbarrios na historia das ciéncias seja entendida em sua verdadeira pers- pectiva. AORIGEM DA BOTANICA Desde 0 inicio de sua existéncia, o estus do das plantas era abordado de acordo com duas diferentes perspectivas: a filoséfica e a utlitéria De acordo com a primeira, a Botanica se sustenta ‘em seu proprio mérito como um ramo integrante da Filosofia Natural, ao passo que, de acordo com, a segunda, é apenas um subproduto da Medicina e da Agricultura, No entanto, essa distingao é um ouco subjetiva, uma vez que 0s filoséticos bota- nicos ndo desdenhavam os usos das ervas, assim ‘como aqueles que entravam no assunto com pro- pésito puramente medicinal ou comercial muitas vvezes se tomavam estudantes da vida das plan- tas, para seu beneficio (Arber, 1912). Em algumas épocas da evolugao das ciéncias, essas diferentes perspectivas convergiram. Porém, na maioria das vvezes, seguiram caminhos paralelos ou, até mes- mo, desconexos. ‘A Botdnica, como ramo da Filosofia, teve seu inicio durante a profunda atividade mental do fascinante periodo de explosao cultural na Grécia Antiga, Aristételes (384 a.C a 322 aC), pupilo de Platdo, interessava-se pela tolalidade do campo das ciéncias, tendo influenciado profundamente ‘© pensamento Europeu na Idade Média. Infeliz~ mente, a maior parte de seus textos botdnicos foi Perdida, mas legou os originais de seus trabalhos Rev. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.468-476, 2017 468 e a biblioteca ao seu pupilo, Teofrasto, fildsofo designado por Aristételes como seu sucessor no Lyceum (Liceu) - escola floséfica fundada por Aris- t6teles em 336 a.C. (escola peripatética), proximal a Atenas. Teofrasto produziu a "Histéria das Plan- las’, uma obra onde a Botanica é tratada de for- ma mais concreta e definida do que nos textos de natureza abstrata de Aristételes. No entanto, Teo- frasto menciona apenas cerca de 450 espécies de plantas, cujas descrigoes sao pobres e diffcais de identificar. Em varios aspectos, Teofrasto estava a frente do seu tempo como, por exemplo, ao fazer a distingao entre inflorescéncias centripetas e cen- trifugas, algo que sé viria a chamar a atencao dos botanicos do século 16 (Arber, 1912). Teofrasto, por sua vez, legou a biblioteca, o museu de historia natural e suas moradias aos seus discipulos. Aristételes e Teofrasto alcancaram certo conhecimento do universo e da natureza das col sas e realizaram avangos cientificos no dominio vegelal. No entanto, suas ideias preconcebidas prevaleciam sobre os fatos da Natureza, o que I- mmitava os progressos da ciéncia Na Idade Média, os conhecimentos bota- nicos de Aristételes @ Teofrasto chegaram ao resto da Europa ocidental em dois periodos diferentes: no nono e no décimo terceiro século. No século 9, Rabano Mauro, um escritor alemao, compilou uma enciclopédia que continha informagdes sobre pian- tas, derivada indiretamente dos escritos de Teo- frasto. J4 no século 13, podemos referir os traba- lhos botdnicos de Alberto Magno, fildsofo, escritor e tedlogo catélico da Baviera, baseados nos escritos do fil6sofo grego Nicolau de Damasco que, por sua vez, era um seguidor de Aristételes e Teofrasto. As ideias de Alberto Magno eram bastante avangadas para a época, especialmente aquelas relacionadas com a classificagao das plantas e com suas obser- vagbes detalhadas das estruturas de certas flores, construindo assim as bases da Botanica Sistemati- ca (Lourteig & Jovet, 1997). Depois de Alberto Magno, surge Andrea Cesalpino, filésofo, médico e botanico italiano do século 16, como seguidor da Botanica de Aristéte- les. Seu trabalho teve grande qualidade, mas foi de pouca influéncia para a ciéncia de sua época, sen- do visto como 0 ultimo representante da Botanica Aristotélica (Arber, 1912), Com relagéio a perspectiva de origem da Botanica como conhecimento aplicado, observa-se a importancia da Medicina em impulsionar o seu desenvolvimento. Desde tempos antigos, varias espécies de plantas eram usadas como agentes de cura, tornando-se, por isso, necessério estudé-las detalhadamente, simplesmente para discriminar as espécies e partes usadas para os diferentes pro- Pésitos. A necessidade de estabelecer um sistema para reconhecer de forma acurada as espécies de plantas medicinais levou a um conhecimento mais robusto exato de sua morfolagia do que o exe- cutado por pensadores @ filésofos como Alberto Magno. Os estudantes de Medicina deviam apren- der sobre as propriedades curativas das plantas, animais e minerais, motivo pelo qual a maioria dos botanicos eram médicos. Na Inglaterra, por exem- plo, 0 Ato dos Apotecérios, de 1815, exigia de to- dos os esiudantes de Medicina um exame sobre conhecimentos boténicos para atuagao como pro- fissionais licenciados. Dessa forma, de um comego uramente utltério se desenvolveu a Botanica Sis- tematica (Arber, 1912). Os ervanarios da Grécia Antiga mantinham © seu negécio atras de uma muralha de supersti- ges, defendendo que a coleta de ervas seria uma ‘ocupagéo perigosa demais para os inexperiantes. © proprio Teofrasto apontou em seus textos diver- sas recomendagées de ervanérios para coleta de plantas que ele considerava absurdas. Uma re- Comendagéo apontada por ele foi a de coletar a Rosa-Albardeira (Paeonia) apenas durante a noite, pois se seus frutos fossem coletados de dia e, na eventualidade de um pica-pau testemunhar, 0 er- vandrio estaria em risco de perder a visdo. No inicio, o conhecimento dos ervanarios, era transmitido apenas oraimente de geragao em goragéo, mas progressivamente os conhecimen- tos seriam colocados em registros escritos. O mais antigo livo europeu sobre plantas medicinais 6 a famosa enciclopédia e farmacopeia “De Materia Medica’, a principal fonte de informagao sobre drogas medicinals até 0 século 18, de autoria de Pedanio Dioscorides, um médico greco-romano do século |, considerado o fundador da farmacogno- sia (Osbaldeston, 2000). Um importante e raro ma- rhuscrto iluminado (letras capitulares decoradas) do "De Materia Medica’ & 0 Dioscérides de Viena, do século 6. Esse exemplar foi encomendado pela princesa bizantina Anicia Juliano, filha do impera- dor romano do Ocidente Flavio Anicio Olibrio (ret nado 472-472) e apresenta mais de 400 imagens, algumas extraordinariamente belas, de animais © plantas, a maioriafeita em estilo naturalsta Os botanicos do Renascimento dedicavam uma grande quantidade de tempo e energia estu- dando os trabalhos de Dioscérides. Cantempors- neo @ ele, Caio Plinio Segundo, conhecido como inio, © Velho, foi autor da enciclopédia “Histéria NNaturat’ - um compéndio das ciéncias antigas, onde faz referéncia a um numero ainda maior de plantas, nao se tendo restringido as medicinais apenas. Portanto, 08 trabalhos dos autores cléssi- cos, especialmente de Teofrasto e de Dioscérides, dominaram por completo a Botanica europeia até 0 século 16. Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017 A ORIGEM DOS HERBARIOS A origem dos herbérios 6 vinculada aos brimeiros jardins botanicos, onde os médicos da antiguidade culvavam suas plantas medicinais Eles eram essenciais para consulta de plantas de referéncia e para o ensino e formagao de futuros: médicos. O mais antigo jardim botdnico de que se tem conhecimento ¢ 0 de Aristteles, estabelecido fem Atenas, doado a Teofrasto, que por suia vez 0 legou aos seguidores. Apés Teofrasto, ainda se en- contram em textos antigos referéncias aos jardins botAnicos: (1) proximo a famosa Escola de Medici- na da Alexandria cidade Egipcia do terceiro século .C. quo, embora seguisse os ensinamentos hipo- cxticos, ora altamente influonciada pelas praticas dda medicina egipcia; (2) de Atalo Il itimo rei da Dinasta Atalida, entre 138 © 133 a.C., que devor fava seu tempo ao estudo da medicina, boténica jardinagem; (2) de Mithridate (132 a 63 a.C.), rei da Anatolia; (4) de Antonius Castor, um médico ro- mano do século 1, que cultivava plantas de diver- a8 origens em seu jardim boténico estabelecido fem Roma: Plinio, o Velho, fala em seus escritos ue apreciava visitar o jardim onde Castor cultiva- va todas as plantas da Italia, Grécia, Asia, Egito © india; e (5) mais tarde, na Idade Média, 0 centro dos estudos filoséficos foi transferido para Salerno = Italia, onde Matthaeus Sivaticus, médico © boté- nico, fundou um jardim botanico de referéncia para outros estudiosos da época © modelo para todos 08 outros jardins estabolecidos em varias cidades da Italia, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Russia © Franga (Torrey Botanical Society, 1885) Devido as suas diversas aplicagées medi- cinais, a Botdnica era a ciéncia natural com mais aderentes da época. Assim, parece surpreendente que a arte de preservar plantas prensadas e secas nao acompanhou o ritmo de desenvolvimento de seu cultivo em jardins botfnicos ¢ que o famoso aforismo de Carolus Linnaeus (Lineu): omni bo- tanico herbarium necessarium est (todo 0 boté- nico necessita de um herbario"), nem sempre foi uma clausula fundamental nos escritos botanicos (Miiler-Wil, 2006). Na verdade, até o século 16, a brépria palavra herbarium era utiizada para desig- nar um lvro botanico acompanhado do gravuras, dedicado a plantas medicinais e aos produtos de- las (Saint-Lager, 1885; Arbor, 1912). O Herbarium de Brunfels (Herbarum vivae eicones - 1530-1536), apontado por Lineu como 0 “pai da boténica” e 0 Herbario Nuevo de Castore Durante, publicado em 1585, sdo exemplos de herbarium ‘A expressao hortus siccus ou hortus mor tus, “jardim seco" ou “jardim morto”, que designava_ aquilo que hoje chamamos de herbario, so apa- receu em meados do século 16, sendo creditado a Luca Ghini (1490-1556), professor de Botanica 469 na Universidade de Bolonha (Italia), a sua ctiagao. Este pesquisador entendeu que secar plantas man- tendo-as prensadas e monté-las sobre uma cartoll- na permitia a preservagao das suas caracteristicas botdnicas durante longos periodos de tempo. Fi- cou claro que uma colegao de plantas nestas con- digées, a qual denominou de hortus siccus, reunia variada informacao botanica, que poderia servir de referencia para observagdes, comparagdes e pu- blicagdes cientificas, com a vantagem adicional de que facilmente se poderiam transportar amostras para outros locais de pesquisa. Luca Ghini, 0 primeiro diretor do Jardim Botanico de Pisa, coletou mais de trezentos es- pécimes © os preservou em papel com o props sito de Identificaao. A pratica de prensar e secar plantas rapidamente se torou comum pela Europa , até 0 surgimento de Lineu, os herbarios seriam constituldos por grandes volumes de livros conten- do plantas prensadas e secas. Assim, os estudos botanicos poderiam ser conduzidos 0 ano inteiro, bastando consultar as colegdes de plantas secas, {que se tornavam uma fonte de referéncia mais con- {ivel que ilustragdes ou gravuras (Keller, 1972). ‘© herbario mais antigo conservado até hoje ¢ 0 de Jehan Girault (15387-1608), muitas ve- zes citado como Greault ou Cyrault, por erro de interpretagao (Lourteig & Jovet, 1997). De acor- do com estes autores, Girault montou o herbario ‘em Lyon, no ano de 1558. Foi aluno de Jacques Daléchamp (1513-1588), um dos mais famosos médicos e botdnicos franceses da época. O her- bério de Girault 6 composto de um volume, enca- dernado em pergaminho, com 81 folhas de papel branco, onde s4o apresentadas 313 plantas da re- gio de Lyon, apresentando dois a seis espécimes por folha. Apesar da capa bastante danificada, de corde com Lourteig & Jovet (1997), a colegao encontra-se bem conservada, Atualmente, est preservado no Laboratério de Fanerégamas do Museu de Paris, ‘Assim, permanece a questo: por que os herbarios nao foram inventados antes do sécu- lo 16? Nao se trata de uma invengao que requer um génio, pois até criangas da época, sem ensi- namento, sabiam fazer pequenos herbarios, inse- rindo flores entre as paginas de um livro enquanto caminhavam pelos campos. Saint-Lager (1885) apresenta @ teoria de que a palavra “livro” seria a resposta & questéo. Os antigos no preparavam herbarios simplesmente porque nao conheciam, ainda, a arte de juntar em um livro, folhas de papel, um material admirével que, apesar de fino, é bem resistente. A escrita era fella sobre papiro ou so- bre folhas de pergaminho que enrolavam em um rolo (‘volume” de voivere). Além disso, os primeiros botanicos nunca se atreveriam a usar papiro, um Rev. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p 466-476, 2017. 470 material caro, nem pergaminho, para um propé- sito considerado vulgar (Torrey Botanical Society, 1885) A fabricagéo do papel a partir da seda (Charta bombycina) e do algodao (Charta coto- nea), comegou na Europa no século 12, apesar de ser um processo ha muito dominado pelos chi- neses (Ellis, 2014). Foi apenas no século 14 que se descobriu como fazer papel a partir de linho canhamo. No entanto, nessa época, todo o proce- dimento era manual, tormando o produto oneroso, Em meados do século 15 inventou-se a arte da impressao © os fabricantes de papel, usando de sua engenhosidade para reduzir o custo da mao de ‘obra, construiram maquinas adaptadas para tritu- rar a matéria prima e espalhar a polpa na forma de folhas, de forma rapida e eficiente. Assim, reduziu- -se bastante o custo da fabricagéo do papel, tor- nando-se este mais acessivel para o consumidor. Nota-se que o aparecimento dos herbarios coinc- de com 0 melhoramento mecdnico da fabricagdo do papel e a consequente melhoria no seu custo de produgo. Dessa forma, assim que o papel se tomou monetariamente mais acessivel, a ideia de reservar plantas secas sobre ele deve ter ocorrido fm varios botanicos ao mesmo tempo (Torrey Bo- tanical Society, 1885). Embora Arber (1938), Meyer em Geschi- chte der Botanik (Sachs, 2013) @ varios outros pesquisadores coloquem Luca Ghini como 0 tinico inventor da técnicalarte dos herbarios e que essa foi disseminada pela Europa pelos seus alunos, Saint-Lager (1885), acredita que outros botdnicos, na mesma época, devem ter manifestado o mesmo desejo de preservar as plantas coletadas, em sua biblioteca. Uma evidéncia disso € o herbario de Jehan Girault (descrito anteriormente), criado na mesma época que os de Ghini. No entanto, nao existem evidéncias de qualquer comunicagao entre eles. Assim, ninguém em particular seria o autor da arte dos herbarios, mas varios botanicos tiveram a mesma ideia, a0 mesmo tempo, em varios lugares diferentes, Saint-Lager (1885) conclu que a dificul- dade nao foi conceber da ideia de coletar plantas prensadas e secas todas juntas em um livro, mas encontrar um material para a montagem das plan- tas que fosse eficiente e barato. (OS HERBARIOS E LINEU A Lineu, naturalista sueco do século 18, 6 creditado o estabelecimento dos fundamentos da taxonomia moderna através da criagao da no- menclatura binominal. No entanto, outra inovacao determinante de sua autoria tem usualmente pas- sado despercebida: Lineu fol o primeiro botanico a formar um herbario com as plantas secas dispos- tas em folhas soltas (Milller-Wille, 2006). No método de Ghini para os hortus siccus, os espécimes prensados secos eram colocados fem folhas que, por sua vez, eram unidas em um livro. As paginas néo podiam ser removidas nem rearranjadas sem danificar o herbério ou, até mes- mo, 0 espécime. Essa abordagem apresentava a vantagem de facilitar o armazenamento dos volu- mes na vertical, em estantes de uma biblioteca, de forma igual a qualquer outro livro. Além disso, dificultava 0 roubo de amostras, No entanto, a sua maior desvantagem 6 que os espécimes nao odiam ser rearranjados a luz dos novos conheci- ‘mentos que iam surgindo ¢ nem podiam ser aco- modados para a insereao de novas amostras. Essa técnica persistiu até 1751, quando Lineu trouxe uma nova e decisiva inovagao, no seu Philosophia Botanica: colocar apenas um espécime por folha, sendo estas mantidas separadas, em um armério com gavetas diferenciadas, especialmente cons- truido para esse propésito e onde as folhas seriam inseridas na horizontal, posigao mais adequada para a preservagao dos espécimes. Além disso, uma vez que so mantidos separados, o seu trans- porte individual para uma andlise mais detalhada toma-se mais facil e eles podem ser rearranjados ara ajustar em novas categorias taxonémicas a luz de novas descobertas, Também foi Lineu que adotou 0 termo herbarium, tendo hortus siccus caido em desuso. Seu livro Philosophia Botanica, uma obra que teve uma grande influéncia no de- senvolvimento da Taxonomia e da Botanica Siste- matica nos séculos XVIII e XIX, contém instrugées detalhadas de como construir um herbario. Lineu descreve como as plantas deve ser coletadas, prensadas, secas e coladas no papel, especifican- do até o tipo de material e cola a usar. Lineu escre- veu essas instrugdes com 0 intuito de uniformizar 08 procedimentos botanicos. Para 0 armazenamento dos espécimes montados, Lineu propés um armario propositada- mente arquitetado para esse fim e deu instrugdes ilustradas de como construi-lo, De desenho bas- tanto simples, 0 armario seria constituido por duas portas e duas colunas estreitas de prateleiras, sen- do o nimero e distancia entre elas faciimente alte- rado para acomodar novo material ou rearranjar a colegao camo um todo. Assim, embora 0 herbaria de Lineu colocasse os espécimes em uma deter- minada ordem, folhas individuais poderiam ser fa- cilmente inseridas em qualquer lugar ou removidas fem qualquer momento para serem reinseridas de novo em qualquer lugar da colegao, similar a um fichario (Miiller-Wille, 2006). Em contraste aos vo- lumes de espécimes unidos dos herbarios antigos, a ordem que 0s armarios-herbarios de Lineu trou- xeram a sua colegao nao era fixa nem definitiva, Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017 sendo desenhados para acomodar a constante chegada de novo material e permitir ao utilizador rearranjar material repetidamente (Miller-Wille, 2006). Os armérios-herbarios de Lineu, aparen- temente uma inveneao simples e rudimentar, re- volucionaram 0 modus operandi dos boténicos do século 18, e suas instrugdes para montagem de herbarios se perpetuam até hoje (Figura 1). Lineu construiu trés desses armérios para acomodar sua colegao pessoal. Em dezembro de 1783, Sara Eli- sabeth Moraea, viiiva de Lineu, vendeu a colecao de hist6ria natural do esposo por mil quinéus, uma moeda de ouro britanica cunhada entre 1663 ¢ 1813, a James Edward Smith, um botanico amador (White, 1999). Em 1784, Smith recebeu a colegio que continha manuscritos, cartas, fichas, livros, minerais, insetos, peixes e répteis empalhados e os trés armarios contendo 0 herbario pessoal de Lineu, contendo um total de cerca de 14.000 espé- cimes. Nos dias de hoje, seria impossivel atribuir um valor para tal colecdo inestimavel. Dois dos trés armarios que Smith comprou amt retornaram & Suécia em 1938, mas a Sociedade Lineana reteve todo seu contetido original (Gage & Stearn, 1988). Os armérios vazios encontram-se ‘expostos num pequeno museu adjacente ao jardim botdnico de Uppsala, tentando ilustrar a almosfe- ra em que Lineu viveu e trabalhou. A colegao dos espécimes esté preservada em um ambiente com, temperatura e umidade controlada, em Londres, na sede da Sociedade Lineana, fundada por Smith em 1788. Essa colegao constitui material de refe- réncia para muitos taxonomistas, servindo como ‘espécimes-tipos para as 5.900 espécies de plan- tas © 4.378 espécies de animais que Lineu identi- ficou e nomeou em suas obras Species Plantarum @ Systema Naturae, respectivamente (Miller-Wille, 2006) (© INDEX HERBARIORUM Ha mais de quatro séculos, cientistas tam documentado a diversidade de plantas e fungos da Terra através de espéclmes prensados e se- cos, mantidos em colegées chamadas herbarios. Figura 1. Armérios com exemplares (A) e sistema de prensa com termoventilador (B) do Herbario de Coimbra autor, (COl), criado em 1873, Armarios com exemplares do Herbario de Aveiro (AVE) (C e D), criado em 1977. Fonte: Rev. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.468-476, 2017 472 © Index Herbariorum (IH) & um diretério global dos herbérios e seus associados distribuidos no mundo. O Index possibilita aos cientistas um ré- pido acesso as informagées sobre os herbarios indexados: o nome da instituigéo (frequentemen- te uma universidade, jardim botdnico ou organiza- des sem fins lucrativos), seu contetido (nimero € tipos de espécimes), a cidade, estado e pals de localizagao, o seu acrénimo (c6digo identificador do herbario), contato do curador e informacao sobre a especialidade de pesquisa e colegées particular- mente importantes de cada herbario, O IH foi origi nalmente publicado pela Associagao Internacional da Taxonomia Vegetal (IAPT), que patrocinou as seis primeiras ediges (1952-1974). Posteriormen- te, 0 Jardim Botanico de Nova lorque assumiu a responsabilidade do Index. Em 1997, 0 IH tornou ‘seus dados disponiveis online (Thiers, em continua atualizacéo). De acordo com o IH, existem aproxima- damente trés mil herbarios no mundo, com cerca de doze mil curadores e especialistas em biodiver- sidade associados (Thiers, em continua atualiza- (940). Coletivamente, os herbarios de todo o mundo contém cerca de 360 milhdes de espécimes que documentam a vegetagao da terra nos tltimos 400 anos, Assim, 0 IH constitui um guia para esse re- curso, crucial para as ciéncias da biodiversidade © conservagao. O IH apenas inclui colegdes que constituem repositérios cientificos permanentes. Os herbarios que pretenderem se registrar devem indicar que a sua colegdo esta acessivel para cien- tistas e que 6 gerido ativamente, A cada institui- 40 6 atribuido um dnico identificador permanente Sob a forma de um cédigo constitulde por uma a vito letras (0 acrénimo do herbério), uma prética que remonta a fundagdo da IH, em 1935. Seu site possibilta a busca de herbarios pelo seu acrénimo, nome, localizacao, curador ou membro associado. ‘Ainda possui um mapa de localizago e quantida- de de herbarios distribuidos pelo mundo, OS HERBARIOS DO BRASIL Georg Markgraf, naturalista do século XVII, realizou uma das primeiras coletas de plantas no Brasil. Em uma expedicao holandesa ao Nordeste do Brasil, em 1636, Markgraf produziu um herbé- rio em forma de livro com 173 espécimes (Vieira, 2015). Atualmente, esse herbério, estudado por Lineu, integra as colegées do Museu de Histéria Natural da Dinamarca. Apartir do século XVIII, podem-se citar os botnicos brasileiros, formados na Universidade de Coimbra - Portugal, como Alexandre Rodrigues Ferreira, Frei José Mariano da Conceigao Veloso, Frei Leandro do Sacramento @ Manuel Arruda da Camara (Ferri, 1980; Nogueira, 2000; Prestes, 2000). © século XIX @ 0 inicio do XX caracteriza- -se pelo periodo “dos naturalistas viajantes", assim denominado devido ao movimento de botdnicos estrangeiros vindos para o Brasil. Na sua maioria, as coletas eram enviadas e depositadas em her- barios europeus (Ferri, 1980). O objetivo principal deste periodo era estudar a flora e o seu potencial de utlizagao. Grande parte do acervo coletado por estes naturalistas estrangeiros, visitantes ou resi- dentes no pais, e de alguns poucos botanicos bra- sileros, fi utiizada na descrigao de novos taxons ou integraram 0 conjunto de amostras que servi- ram de base para a descricao das mais de 22.000 espécies da obra Flora brasiionsis. © primeiro herbario criado no Brasil foi o Herbario do Museu Nacional (R), no Rio de Janei- ro, em 1831. Até o final do século 19, fundaram-se © Herbario do Jardim Botanica do Rio de Janeiro (RB), 0 Herbério Professor José Badini, em Ouro Preto (OUPR), o Herbario Dom Bento José Pickel, em Sdo Paulo (SPSF) e o Herbario da Universida- de Federal de Minas Gerais (MG), todos ativos ¢ integrando o IH até os dias de hoje. Peixoto (1999), em seu trabalho sobre 0 estabelecimento e desenvolvimento dos herbarios brasileros, reconhece quatro etapas principals: (1) enire 0 século XIX e 0 primeiro quarto do século XX, caracterizado pelos ‘naturalistas viajantes"; (2) tentre 1925 © 1950, marcado por insttuigées voltae das paras as Ciéncias Agrarias; (3) entre 1950 1975, quando a pesquisa botanica em Sistematica 6 impulsionada pela institucionalizagao das agén- cias de fomento nacionais para 0 ensino superior € a8 alividades da Sociedade Botdnica do Brasi; © (4) no titimo quarto do século XX, assinalado pela ctiagdo e expansdo dos cursos de pés-graduagao Entre 2000 até 2015 registra-se uma nova etapa, na qual o niimero de herbarios 6 ampliado em 43% em todas as regides brasileiras (Vieira, 2015), Esse aumento é fruto do reconhecimento e apoio as colegées biolégicas e consequente inves- timento na manutengao © ampliagao dos acervos, sua informatizagao e disponibilidade dos registros © das digitalizagées das oxsicatas online, consti- tuindo os Herbarios Virluais (Vieira, 2015). ‘A Rede Brasileira de Herbdrios (RBH) fol criada no ano de 2000 a partir da Comisséo de Herbarios da Sociedade Botdnica do Brasil (SBB), ssendo composta por um catélogo com dados sobre 08 acervos dos herbérios nacionais, desenvolvido or Hilda Maria Longhi-Wagner com a ajuda do Centro de Processamento de Dados da Universi dade Federal do Rio Grande do Sul (CPD/UFRG), disponibilizado por Vinicius Castro Souza, na épo- ca coordenador da Comissao de Herbarios, Em Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017 2012, esse catélogo deu origem ao Catélogo dos Herbarios da Rede Brasileira de Herbérios, situa do na pagina da Sociedade Brasileira de Bota cujo objetivo é ampliar a divulgagio dos dados so- bre os herbarios e divulgar alividades da RBH. ‘Até setembro de 2015, contavam-se 237 herbérios no Brasil, sendo 196 considerados ati. vos, ou seja, com dados atualizados, 11 herbarios foram transferidos, isto 6, foram fechados e seus acervos incorporados em outras instituigdes e 30 ndo apresentavam seus dados atualizados (Gas- per & Vieira, 2015). Como resultado do 66° Congreso Nacio- nal de Botanica (outubro 2015, Santos, S40 Paulo), foi publicado um volume especial da UNISANTA, Bioscience "Herbérios do Brasil’, que reuniu e am- pliou as informagées atualizadas dos herbarios brasileiros. Neste volume so apresentados, em detalhes, dados histéricos, estrutura fisica, area de abrangéncia, equipe de trabalho e imagens das instalagdes de 118 herbarios de todas as regides do pais e de quase todos os estados, ou seja, 60% dos herbérrios ativos (Gasper & Vieira, 2015) Em 2010, 0 Jardim Botanico do Rio de Ja- neiro (JBRu) iniciou a construgdo de um herbario virtual para abrigar as imagens de plantas brasilei- ras depositadas em herbarios estrangeiros. Finan- Ciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tecnolégico (CNPq), 0 Programa RE- FLORA pretendia armazenar e fomecer dados de qualidade sobre a flora brasileira, através do res- gate de imagens dos espécimes da flora brasileira @ das informagées a eles associadas, depositados nos herbarios estrangeiros, para a construgdo do Herbério Virtual Reflora. So varios os parceiros desta iniciativa, dos quais podem-se citar: o Royal Botanic Gardens of Kew (K), 0 Muséum National Histoire Naturelle de Paris (P), 0 Missouri Natio- rnal Gardens (MO) ¢ muitos outros. A base fisica do Herbario Virtual REFLO- RA esta instalada no Jardim Boténico do Rio de Janeiro, instituigo responsavel pelo recebimento das imagens e transcrigo dos dados. A partir de 2014, 0 programa deu inicio a publicagao de ima- gens e dados de acervos nacionais. Assim, tanto as imagens @ informagées toxtuais provenientes do repatriamento, quanto as do acervo de varios herbérios nacionais estéo sendo disponibilizadas para a comunidade cientifica e a0 piblico geral A\é 0 final de 2015, 0 Herbario Virtual REFLORA possula 1.390.129 imagens de espécimes disponi- veis e, dentre elas, 128.668 tipos nomenclaturais e 273.114 registros georreferenciados. O sistema da Lista de Espécies da Flora do Brasil também é par- te integrante do Programa REFLORA, funcionando ‘como um validador para os nomes atribuidos 4s imagens do Herbario Virtual REFLORA, que tam- 473 bém sera atualizado e enriquecido por taxonomis- tas trabalhando em rede. Dessa forma, os botanicos brasilelras so incentivados a realizar um maior ntimero de expe- digées de campo e coletas para ampliar 0 regis- tro completo da flora brasileira nos herbarios e a prosseguir com a continua informatizagao de seus acervos e sua disponibilizagao online. Esse € um esforgo conjugado com botanicos estrangeiros, rumo & confecgao da Flora do Mundo, prevista para 2020 (Gasper & Vieira, 2015), Prevista para esse mesmo ano esta a finalizacao da Flora do Brasil Monografada, com acesso online, que constitui a primeira meta da Estratégia Global para a Conser- vagao de Plantas (GSPC-CDB). A plataforma de trabalho do Herbario Virtual REFLORA e a Lista de Espécies da Flora do Brasil serao ferramentas es- senciais para o cumprimento dessas metas. HERBARIOS E 0 FUTURO Diversos trabalhos indicam os problemas enfrentados por varias colegées de historia natural, especialmente os herbarios (Dalton, 2003, Gropp, 2003; Funk, 2003; Funk, 2004; Grayer, 2009). Nestes aponta-se que as instituigdes que regem as colegGes estdo sendo alvo de grandes cortes orgamentais, por vezes levando ao seu encerramento @ a transferéncia ou demissao de funcionarios. Funk (2003), numa tentativa de lutar con- tra a tendéncia atual de abandono e desmembra- mento dos herbérios, publicou um trabalho onde so listados 32 usos que estas colecées apresen- tam para pesquisadores de diversas reas e para © pliblico em geral, Um ano mais tarde, o mesmo autor publicou uma atualizagao dessa lista (Funk, 2004), com contribuigdes de varios pesquisadores, ‘aumentando para 72 nlimero de usos e eviden- ciando a importancia dos herbarios e de sua con- servacdo. Dentre os usos citados podemos desta- car: 1, Determinagao_ ou —_confirmagao da identificagao de plantas ou a descoberia de novas espécies para a cigncia (taxonomia); 2. Informago sobre espécies raras, erradicadas ou extintas (taxonomia, conservagao); 3. Repositério seguro para novas colegées (Laxonomia, sistematica); 4. Repositério seguro para os espécimes- tipo (taxonomia); 5. Documentacao das épocas de floragai {rutificagao e formas juvenis das plantas, (taxonomia, ecologia, fenologia); 6. Informagdes para estudos em SIG (sistemas de informagao geogratica) de Rev. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.468-476, 2017 47a localizagao e distribuigo das espécies ‘ao longo do tempo, bem como das expedigées realizadas _(taxonomia, ecologia, etc); 7. Informago base para organizar fuluras expedigdes (Laxonomia, ecologia, etc) 8. Disponibilizaggo de material para medigdes morfoldgicas (taxonomia, sistematica) 9. Disponibilizagéo de material para andlises de DNA (sistematica, evolugao, genética); 10. _Disponibiizagao de amostras de olen para estudos de polinizacao de alergias (taxonomia, sistematica, ecologia da polinizagdo, ecologia dos insetos); A importancia dos herbarios para a descoberta de novos téxons, apesar de bvia, muitas vezes & esquecida. Em um levantamento sobre a descoberta de novas espécies publicadas entre 1970 e 2010, observou-se que apenas 16% delas foram coletadas diretamente do campo, enquanto as demais 84% foram descritas a partir de colegoes previamente depositadas em herbarios, muitas delas coligidas ha mais de 50 anos (Bebber et al,, 2010). Muitos espécimes sao identificados como novos taxons, descrtos ¢ ilustrados, porém nunca publicados. Muitas vezes a descoberta desses novos téxons decorre de monografias, como no caso da familia Chrysobalanaceae. Sobre esta familia, a primeira parte de uma monografia, publicada em 1972, descreveu 90 novas espécies, enquanto os aditamentos posteriores, publicados entre 1972 e 2001, com o acréscimo de 11.791 espécimes de herbarios analisados, acrescentaram 101 novas espécies (Prance, 1972; Bebber et al. 2010), De acordo com Hyde (1945), a Botanica ‘ocupa, em geral, uma posigao muito subordinada nos museus britanicos e, em 1954, Harry Stansfield, curador de Botanica dos Museus Publicos de Liverpool, referiu que os herbarios sao a “Cinderela das colegées das ciéncias naturais’ (Stansfield, 1954). Em 2009, Grayer publicou um trabalho demonstrando que, como ele mesmo escreve, a “Cinderela merece ir ao baile", argumentando que existe um futuro de destaque para os herbérios fe que esse futuro passaria por Ihes dar maior visibiidade. © relatério “Collections for the Future" (Wilkinson, 2005) enfatizou que os museus devem tomar medidas para assegurarem maior uso de suas colegdes € que 0 seu papel tradicional de referéncia, embora vital, nao é mais suficente, Assim, em resposta, os museus tém reunido esforgos e inovagées para levar os herbarios até © pilblico geral e, dessa forma, assegurar o seu futuro. Uma das inovagées foi a nomeagao de artistas para enaltecerem a beleza dos herbérios. Através de trabalhos artisticos, os jardins secos tém sido trazidos a vida, por meio de projetos como © "Fragrant Project’, coordenado por Jyll Bradley (Colegao Botanica de Liverpool), um trabalho interdisciplinar, que conta as histérias escondidas atrés de cada folha de herbario, "memérias secas de um jardim vivo original" (Grayer, 2009). utra iniciativa inovadora tem sido a promogao de cursos em herbarios para grupos de pessoas sem conhecimentos prévios de Boténica. © pubblico em geral demonstra significativamente mais interesse em conhecer a histéria das pessoas atras das colecdes e o tempo em que viveram do que a histéria das plantas. Essa perspectiva histérica social das colecées, facultada através de sessées informais, tem sido um meio efetivo de cativar o piiblico e promover os herbarios (Grayer, 2009). Um desenvolvimento adicional_ dos herbérios @ a sua importancia para os estudos sobre mudangas climaticas. O estudo das colegdes de herbarios proporciona um aumento significativo do entendimento de como as mudangas climaticas afetam os sistemas biolégicos em localidades ainda nao analisadas, para uma grande variedade de espécies (Miller-Rushing, 2008), constituindo minas de ouro que oferecem uma inestimavel série temporal (Adams, 2008). Delas pode-se obter in'formagées sobre ciclos de floragao, contetido de carbono, densidade de estématos (varidveis de acordo com a quantidade de CO, na atmosfera) (Adams, 2008). Além disso, a vasta colegao de plantas secas armazenadas em museus ¢ jardins botanicos em todo o mundo pode ser usada, de forma confidvel, para observar a relagao entre as alteragdes de temperatura ao longo do tempo as épocas de floracao das plantas (Robbirt et al., 2010), tornando possivel predizer os efeitos que as mudangas climaticas, quer sejam causadas pelo homem ou no, terdo sobre as espécies vegetais. Outro aspecto apontado em Grayer (2009) 6 0 uso cada vez mais frequente das tecnologias da informacao e da digitalizagdo dos exemplares para acesso online aos herbarios. Atualmente, as instituig6es reconhecem a importancia da internet como ferramenta para promover e alé mesmo ‘aumentar as colegdes. Voluntarios e/ou estudantes contribuem para a digitalizagéo das colegdes, através da alimentago de uma base de dados onde sao inseridas todas as informacSes contidas ra etiqueta do exemplar, assim como informagdes relevantes sobre o espécime. Essa base de Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017 dados € posteriormente disponibilizada online juntamente com uma digitalizagao do exemplar, ‘com tamanho e resolucao adequada para internet. As digitalizagbes em alta resolugo so salvas pelas instituigées em sistemas de armazenamento, uma vez que representam um backup digital das colegées, no caso destas se deteriorarem ou danificarem. Essa 6, portanto, uma forma do pliblico ter acesso as colegdes que normalmente nao esto disponiveis para consulta e interagirem com os herbarios, colocando questdes sobre coletores e espécimes ou até mesmo partithando suas proprias observagoes ¢ coletas. Assim, percebe-se que as instituigSes se esforgam para encontrar formas inovadoras @ criativas de promover suas colegdes. A exploragdio da perspectiva artistica, histérica social e educacional dos herbarios expée as colegdes a um piblico mais amplo, Além disso, a internet se apresenta como um étimo veiculo para “levar a Cinderela ao baile”, abrindo as portas dos herbarios para uma inestimavel colegdo, testemunhos secos dos jardins do pasado. REFERENCIAS ADAMS, T. Seventeen million creepy crawlies housed at a cost of £78m in 3 kilometers of state of the art cabinet. The Observer Magazine, 7 September 2008, p.43, 2008. ARBER, A.R. Herbals, their origin and evolution, a chapter in the history of botany, 1470-1670. Cambridge: University press, 1912. 330p. ARBER, A. Herbals, Their Origin and Evolution. Cambridge: University Press, 1938. BEAN, T. Collection and preserving plant spec- imens, a manual. Department of Science, In- formation Technology, Innovation and the Arts. Queensland Herbarium, 2013, BEBBER, D.P; CARINE, MA; WOOD, JRL; WORTLEY, A.H.; HARRIS, D.J.; PRANCE, G.T.; DAVIDSE, G.; PAIGE, J; PENNINGTON, T.D.; ROBSON, N.K.B; SCOTLAND, R.W. Herbaria are a major frontier for species discovery. Pro- ceedings of the Nacional Academy of Sci ences of the United States of America, v. 107, p.22169-22171, 2010. CORREIA, A.D. As colecgées de plantas vas- culares no Herbarios do Jardim Botanico (LISU). Lisboa: Museu Nacional de Histéria Nat- ural, 2010. DALTON, R. Natural history collections in crisis as funding is slashed. Nature, v. 423, p.675, 2003, ELLIS, MH. Historical Perspectives in the Con- servation of Works of Art on Paper, Los Ange- les: Getty Conservation, 2014. 608p, 475, FERRI, M.G. Histéria da Botdnica no Brasil. In FERRI, M.G; MOTOYAMA, S. Historia das jancias no Brasil. S40 Paulo, EPU: Ed. da Uni- versidade de Sao Paulo, 1980. p.33-88. FUNK, VA. The importance of Herbaria. Plant Sci- ence Bulletin, v.49, n.3, p 94-95, 2003, FUNK, V.A. 100 uses for an Herbarium (well at least 72). Yale: Division of Botany, The Yale Uni- versity Herbarium, 2004. p.1-4 GAGE, AT; STEARN, WT. (eds). A Bicentenary History of the Linnean Society of London, London: Academic Press of the Linnean Society, 1988, GASPER, AL; VIEIRA, A.0.S. Herbarios do Brasil ~ Apresentagao da Edigao Especial. UNISANTA Bioscience, v.4, n6, p.1-11, 2015 GRAYER, S. Is there a viable future for herbaria in British Museums? NatSCA News, v.17, p.14-28, 2008, GROPP, RE. Are university natural science col- lections going extinct? Bioscience, v.53, 9.550, 2003 HYDE, H.A. Reconstruction in the botanical muse- um, Museums Journal, v.45, p.89-93, 1945, LOURTEIG, A; JOVET, P.Anciens herbiers conser- ves au laboratoire de Phanérogamie du Muséum (Paris), Journal d’Agriculture Traditionelle et de Botanique Appliquée, v.39, n.2, p.505-560, 1997. KELLER, A. G. 1972. Luca Ghini. Dictionary of Scientific Biography, v.5, p.383-384, 1972. MILLER-RUSHING, A.J., et al. Photographs and herbarium specimens as tools to document pho- nological changes in response to global warm- ing. American Journal of Botany, v.93, n.11, .1667-1674, 2006. MULLER-WILLE, S. Linnaeus’ herbarium cabinet: a piece of furniture and its function. Endeavour, v.30, n.2, p.60-64, 2006. NOGUEIRA, E, Uma histéria brasileira da Bota- nica. Brasilia: Paralelo 15 Editores, 2000. 255p, OSBALDESTON, T.A. Dioscorides de Mate- ria Medica. Johannesburg, South Africa: Ibidis Press, 2000. 78p. PEIXOTO, A.L. Brazilian botany on the threshold of the 21th century: looking through the scientific collection. Ciéneia e Cultura, v.51, n.5-6, p.349- 362, 1999. PINTO DA SILVA, AR. Notas sobre a colheita © a preparacao de exemplares para herbari (Nova Verso). Coimbra: Estado Agronémica Nacional, 1986. 10p. PRANCE G.T. Chrysobalanaceae. Flora Neotropi- a, V9, p.1-410, 1972. PRESTES, M.E.B. A investigagao da natureza no Brasil Colénia, Sao Paulo: ANNABLUME, FAPESP, 2000, 153 p. Rev. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.468-476, 2017 478 ROBBIRT, K.M.; DAVY, AJ; HUTCHINGS, MJ; ROBERTS, D.L. Validation of biological collec tions as a source of phenological data for use in climate change studies: a case study with the orchid Ophrys sphegodes. Journal of Ecology, v.99, n.41, p.235-241, 2010 SACHS, J. von. History of Botany (1530-1860). Ox- ford: Clarendon Press, 2013. 588p. SAINT-LAGER, J.B. Histoire des herbiers. Anna- les de la Société botanique de Lyon, p.1-120, 1885, STANSFIELD, H. The display of botanical material, Museums Journal, v.53, n.10, p.243-248, 1954, THIERS, 8. [continuously updated]. Index Herbar- jorum: A global directory of public herbaria and associated staff. New York Botanical Gar- den’s Virtual Herbarium. hitp:/sweetgum.nybg, orgisclencefit. TORREY BOTANICAL SOCIETY. The origin of her- baria. Bulletin of the Torrey Botanical Club, v.A2, 1.42, p.129-131, 1885, VIEIRA, A.O.S. Herbarios e a rede brasileira de her- barios (RBH) da Sociedade Botdnica do Brasil UNISANTA Bioscience, v.4,n.7, p.3-23, 2015. WHITE, P. The purchase of knowledge: James Edward Smith and the Linnaean collections, En- deavour, v.23, p.126-129, 1999. WILKINSON, H. Collections for the Future: Re- port of a Museum Association Inquiry. Lon- don: Museums Association, 2005, 33p. Rov. Bras. Pl. Med., So Paulo, v.19, n.3, p.466-476, 2017

You might also like