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Marco Antonio Coutinho Jorge pREUD E A INVENGAO DA cLiNICA ESTRUTURAL EMBORA NAO SE ENCONTRE na obra de Sigmund Freud a nogo de estru- tura clinica, introduzida na teoria psicanalitica pelo ensino de Jacques Lacan, pode-se evidenciar nao apenas que o criador da psicandlise concebeu a ideia de uma tripartigao estrutural desde as primeiras formulagées tedrico-clinicas concebidas na década de 1890, como também que seu mais arguto leitor se yaleu disso para estabelecé-la, na esteira de sua concepcao' do inconscien- te estruturado como uma linguagem: “OQ que cria a estrutura é a maneira pela qual a linguagem emerge no inicio num ser humano. £ isso, em uilti- ma andlise, o que nos permite falar de estrutura” (Lacan, 1975: 33). A intima relagdo entre linguagem e estrutura aparece de forma soberba no célebre afo- rismo de Lacan “o inconsciente € estruturado como uma linguagem’, mas tncontra-se explicitada com simplicidade na bela conferéncia proferida por dle, pouco antes da publicagdo de Escritos, num coléquio sobre o estrutu- ralismo, ocorrido na Johns Hopkins University, em Baltimore, em outubro de 1966: “o inconsciente esta estruturado como uma Jinguagem. Que quer dizer isso? Para ser mais preciso, ha aqui uma redundancia, pois para mim ‘estruturado’ e ‘como uma linguagem’ significam exatamente a mesma coisa. Estruturado significa minha fala, meu léxico etc., que é exatamente o mesmo que linguagem” (Lacan, 1966: 200). Foi ao retornar as formulages de Freud nesse campo que Lacan, no ini- cio de seu ensino, estabeleceu a relagao entre estruturas clinicas e mecanis- mos de defesa, todos eles isolados por Freud em sua relacgo com uma de- terminada estrutura: 0 recalque (Verdrdngung) para @ neurose, a renega¢ao (Verleugnung) para a perversio e a foraclusio (Verwerfung) para a psicose. 5 mecanismos surgem num work in progress que os faremos aqui balizamentos intrody. fortes desse trabalho de construcig tabelecimento da chamada pra de Freud tais {gs estruturas ™ principals issitudes de’ encionadas, e momentos ssembocaram no es Como nao relacionam aS trios sobre eixos teorica, cujas vicis clinica estrute artigo “Fantasias histéricas e sua relagdo com a bissexua. Aabertura escrito no inicio do perfodo em que Freud se debrucou ex- sobre 0 estudo da fantasia, que localizamos entre 1906 e 19, clusivamente de “ciclo da fantasia” (Jorge, 2010: 38), estampa de modo e€ sen mapearentO de trés grandes dimensdes no vasto campo da clinica inegavel 0 psicanalitica: familiarizados com as invengoes delirantes do paranoico acerca da c Ban vos do seu proprio eu, que aparecem em formas .deza ou dos sofriment ean s. Conhecemos também, através de numero- bem tipicas e quase monétonas : sos relatos, as raras cenas pelas quais cert0s Perversoe obtém sua satisfagao sexual na ideia ou na realidade. Mas talver seja novidade, para alguns leito- maces psiquicas andlogas estao presentes regularmente em to- res, que fo I Jar na histeria, e que podemos demonstrar das as psiconeuroses, em particu terem elas ~ as chamadas fantasias istéricas ~ importantes ligagbes com a causagdo dos sintomas neur6ticos (Freud, 1908: 141). Como sublinhou Laéria Fontenele, nessa frase “podemos observar tanto a definicéo diferencial entre os modos de defesa na paranoia, na perversio ¢ na neurose quanto as maneiras pelas quais o eu significa a si mesmo e a rea- lidade, apontando para diferentes estruturas” (Fontenele, 2014: 22). De fato, a questo da realidade - continuamente bipartida por Freud entre realidade interna e realidade externa, realidade subjetiva e realidade objetiva, realidade psiquica e realidade material — é uma referéncia central que o leva a atribuir 4 fantasia um estatuto primordial, passivel de ser traduzido nos seguintes ter- ‘mos: na psicose, ha a prevaléncia do delirio, um tipo particular de fantasia; na Bae Prepondera a busca do gozo sexual — segundo Lacan, a “vontade Raja eae.) ~ seja na fantasia ou na realidade; e na neurose sintornas mas igualnen G seus intimeros derivados — privilegiadamente os Por meio das quais a satis ae oF demals aire eee Veremos quea distin abe Pulsional se realiza de modo indireto. desde seus trabalhos ae essa triparticao estrutural, implicita para Freud com 0 estabelecimento ere s6 apresenta maiores consequéncias tedricas la chamada segunda tdpica, em artigos escritos n@ 16 FUTUROS DA PSICANALISE esteita de “O eu € 0 isso” (1923): “Neurose ¢ psicose” “A perda da realidade na neurose ¢ na psicose’, ambos de 1924, ¢“O fetichismo”, de 1927. Na verdade, porém, esse bloco de textos da década de 1920 é a retomada, A luz das ino- yagdes trazidas pela segunda t6pica, de investigacées feitas muito antes, em dois célebres artigos inaugurais: “As psiconeuroses de defesa” (1894) e“Novos comentarios sobre as psiconeuroses de defesa” (1986). GRAFICO 1 94 196 1923, 1924 1927 + 4 4 4 4 > “Psiconeuroses “Novos comentiétios “Oeueoisso” “Neurosee psicose” _“Fetichismo” de defesa” sobre as psiconeuroses de defesa” “A perda da realidade na neurose e na psicose” 1894-1896: ABWEHR E VERDRANGUNG Comecemos a leitura desses dois artigos de 1894 € 1896 por dois comentarios gerais. Note-se, em primeiro lugar, que eles sucedem os escritos iniciais de Freud sobre a histeria, desenvolvidos entre 1886 e 1893. Nesse periodo, cabe enfatizar trés produces surpreendentemente precursoras, escritas entre 1890 € 1892: 0 ensaio intitulado “O tratamento psiquico (mental)” (1890), 0 livro Sobre a concepcao das afasias (1891) ¢ 0 artigo “Um caso de cura pelo hipno- tismo” (1892). Além disso, vale observar que, entre os artigos de 1894 e 1896, Freud redigiu Projeto para uma psicologia (1895), espécie de vasto plano piloto da teoria psicanalitica. ‘Ao introduzir a no¢do que dé titulo ao artigo “As psiconeuroses de defesa” (1894) para tratar da histeria, das obsessées e fobias, e de certas psicoses alu- cinat6rias, Freud retine essas afeccdes sob um mesmo denominador comum, a defesa (Abwehr), que aparece nelas como um mecanismo fundamental. Tal nogdo preserva sua importancia ao longo da obra freudiana, como se pode ver, em “InibigGes, sintomas e angistia” (1926), j4 em sua fase final, na pro- 1 Sobre os quais nos estendemos amplamente no terceiro volume de Fundamentos da psicandlise de Freud a Lacan (Jorge, 2017, cap. 1). PREUD EA INVENGAO DA CLINICA ESTRUTURAL ” raga do velho conceito de detest’ na invocags, Fede wma nogio englobante, cujo aleance inclutsse, a0 lado dy rnétodos de defess ena enfase no estabelecimente gy “ igagdo {ntima entre certas formas de defesa e determinadas afeccoes Fae eae ge ainda que, meso tendo considerado o recalcamento 44 Observes ja defesa, Freud defence, em “Anélise termindvel ¢ inter ularidade em relagio aos demais processos defensivos, he ¢ Jean-Baptiste Pontalis, isso se deu porque o rec: al. to é constitutivo do inconsciente enquanto tal (Laplanche & Pontalis sar red, ao mesmo tempo que destacoua nogdo dedefesa,situando., a . an fendmenos histéricos, procurou especificar outras afeccées psi. seas cegundo a fora pr6pria da aio de defesa em cada uma dea ‘Assim, em Estudos sobre a histeria, afirmou que diversas afeccbes neurdticas provinham dos diversos procedimentos nos quais 0 “eu” se comprometia para libertar-se de sua incompatibilidade com a sua representa¢ao. ste que, nese momento (1894-5), Freud distinguia tres tipos de histeria— de defsa, hipnoide e de reten¢ao - determinando a primeira como 0 prototipo das psiconeuroses de defesa. E 0 que se pode observar é que tal ego Ihe servria apenas para, primeiro, limitar e, em seguida, descartar ‘oulmenteo papel do estado hipnoide relativamente & funcao da defesa. Em suas palavra.“Coisa curiosa, na minha propria experiéncia, nunca encontre verdadeira histeria hipnoide; todos os casos que comecei a tratar se transforma- ram em histeria de defesa”. (Freud & Breuer, 1893-5: 291) Ele, igualmente, poria de lado a nogao de uma histeria de retengao (os afetos nao puderam ser ab- -reagidos devido a circunstancias externas), a0 observar que, “na base da histeria de retencdo, hd um elemento de defesa que transformou todo o processo em fenémeno histérico” (: 292). Novamente Laplanche e Pontalis notam, com justa razio, que a expressio “histeria de defesa” desaparece depois de Estudos sobre a histeria (Laplanche & Pontalis, 1967: 181). Tudo se passou, portanto, como se da tivesse sido introduzida apenas para que a noco de defesa prevalecesse sobre a de estado hipnoide. Alcancado esse resultado — ver na defesa 0 processo funda- mental da histeria, estender o modelo do conflito defensivo as outras neuroses 0 sintagma “histeria de defesa” perdeu a sua razio de ser. Com efit, o temo “defesa” se apresenta pela primeira vez em “As psico- tae ; oe em que Freud empreende uma teorizacio mais esse 0 conceto que i los patolégicos diferentes, tendo sido precisamente ria, das fobias e obvessen, eda Senne ei ae se elere&acitaio » € das Psicoses alucinatérias, Quanto a histeria, €!¢ geral dos estudiosos em admitir uma divisio da consc- mogto da ideia dle “rests da necessidad mento, outros "T caso particula : navel” (1937), sua SIM Segundo Jean Lapland 8 PUTUROS DA PSICANALISE ncia na histeria, ainda que divergissem quanto d origem dessa divisa janet, tratavase de uma fraqueza inata da eapacil fy Iara Brett dt existéncia de “es Para aed ‘ lade de sinteses psiquicas os hipnoides” nos quais as idei i 8” nos quais as ideias emer- gentes se encontravam exelutdas da comunicagto associativa com o tested : s a conscigneia, Para este, portanto, « divisio da consci¢ncia na histeria no era mais, como para aquele, primiria, ¢ sim secundéria e adquirida, Freud contrapde a essas das teoras a afirmagio de que a divisio do con- teido da consciéncia na histeria resultava de um ato voluntirio do sujeito. ‘Tratava-se, para ele, de uma participagao ativa do sujcito ou, como ele mesmo diz, de“um ato voluntirio do paciente [..] um esforco de vontade cujo motivo pode ser especificado” (Freud, 1894: 48). Aqui, introduz-se o que se define em Estudos sobre a histeria como uma “motivasio inconsciente” e responde pelo tipo de histeria que Freud chamaré de “histeria de defesa’, para distingui-la da histeria hipnoide (de Breuer) e da histeria de retenco, ou seja, aquelas nas quais, como vimos, havia uma falta de reagao aos estimulos traumiticos. Freud salienta — ¢ esta observagio foi essencial naquele momento de seu percurso — que sua histeria de defesa, tal como a histeria hipnoide de Breuer, era “adquiri- da” e nao inata, como na concep¢ao de Janet, podendo-se notar aqui todo um projeto para a concepso de uma teoria puramente psicol6gica. O que se passa na histeria de defesa é precisamente uma incompatibilidade na vida ideativa do sujeito, ou seja, “seu eu foi confrontado com uma experiéncia, uma ideia ou um sentimento que suscitavam um afeto tao aflitivo que o sujeito devia esquecé-lo, porque nao confiava em sua possibilidade de resolver a contradigao entrea ideia incompativel e seu eu por meio da atividade de pensamento” (: 49). O modo pelo qual Freud descreve o “processo geral” comum & histeria, & fobia e 4 obsessdo é extremamente interessante, uma vez que ele, em ultima andlise, formula que nesses casos nao houve foraclusao: “A tarefa que 0 eu se coloca, em sua atitude defensiva, de tratar a representaco incompativel simplesmente como ‘non-arrivé nao pode ser cumprida. Tanto os tragos de memoria como 0 afeto referente a ideia la estao de uma vez por todas € nao podem ser erradicados” (: 50). O que o eu faz entao é tornar essa ideia fraca, privando-a do afeto com que esta carregada, sendo esse 0 momento a partir do qual os processos se diferenciam em cada uma das estruturas clinicas. Na histeria, a ideia incompativel é tornada inécua pelas transformagées da soma de excitagdo em alguma coisa somitica — 0 que Freud chama, pela primeira vez, de “conversio”, acrescentando que 0 fator caracteristico da his- teria ndo é a divisio da consciéncia, mas a “capacidade de conversio”, ou seja, uma “aptidao psicofisica de transpor grandes somas de excitagio para a iner- vagdo somatica” (; 52). Quanto as obsessdes € fobias, ele introduz o seguinte FREUD EA INVENGAO DA CLINIGA ESTRUTURAL 19 vel & separada do afelo que @ acompanhy 4 qualquer associagiio; 0 afeto, por fad ideias que nio sao incompattveis com a primejr, rexdes” tais idcias se tornam obsessivas. Ja idcia sexual incompativel e assumeny cin incompatt scien i Tiga-se anccanismo: | eee nat con! perm ' clivree yez,torna-se livre ca idein no entanto, gragas 4 essils falsas cor na representar Wn substituto d cuupava na consciéncia 1 mecanismo bastante semelhante ao que Freud apresenta en snas (1900) 20 abordara censura, que opera retirandy ‘cantes de clevado valor pst{quico, a fim de investir em s nificantes de baixo valor psiquico. Na neurose obsessiva, todavia, as ideias signifcamtes Mom espetoprecsamentea vida sexual do sujito€ as nova incor etdaspasam a ter valor de verdadeitas ideas fixas. Como Freud su- Dlnha bd empenho e uma tentativa de defesa por parte do sujeito em relacdoa ‘denciadas no que ele diz, residindo aqui a formula. is ideias que podem ser evi f oo ee do recalcamento, igualmente concebido por Lacan como umativo hao querer saber” por parte do sujeito (Lacan, 1972-3: 9). e tais processos operavam “fora da consciéncia” Freud ressalta ainda qu Sie ‘ embora a teoria ainda nao dispusesse de meios (Freud, 1894: 54) do sujeito, ee Mesmo que, significativamente, a palavra in- para explicar como isso ocortia. ren eciente jé houvesse aparecido trés vezes no verbete sobre ahisteria que ele escrevera para a enciclopédia Villaret em 1888,* faltava-lhe o conceito de in- consciente. Nessa mesma medida, insinua-se, desde entdo, uma especulacao tateante sobre a natureza do inconsciente, evidentemente ainda em estado germinal: “Talvez fosse mais correto dizer que tais processos nao sio abso- Jutamente de natureza psiquica, mas processos fisicos, cujas consequéncias psiquicas, que se expressam pelos termos ‘separacao da ideia de seu afeto' e “falsa conexao’ deste ultimo, tinham de fato ocorrido” (: 54). Nos pacientes em que ideias obsessivas e ideias sexuais de carater aflitivo se apresentavam concomitantemente, Freud descreve um processo de “defesa perpétua” que se erige em relacdo as ideias sexuais, as quais, por sua vez, nao passa fo lugar que esta 0} Trata-se de um em A interpretagio dos s o investimento de signifi 2 Ble afirma que as alteracdes ps{quicas, fundamento do estado histérico, ocorrem intel ramente na esfera da “atividade cerebral inconsciente, automtica”s assevera que “o de- eames dos distarbios histéricos muitas vezes exige um period de incubagi0, 04 tin dentin, ome ‘0 qual a causa desencadeante continua produzindo efeitos mile names fe am 1 fo resumo que finaliza o texto, pondera que o excesso de sth pe dsributdo por epresentagbesconscientes ou inconscentes Feat ate Gh) Bn even abe live Sane asa — um eto eric, de, ee ia-Roza chama a ateneio para o fato de termo “inconsciente ¢m sua forma substantiva, das Unbewupte (Garcin-Roza, 1991: 149)+ 20 PUTUROS DA PSICANALISE am de emet gar-se Aquelas fol + No caso das fobins, a angistia de origem sexual podiali- primérias da espécie humana (de animais, de escuro, de tempestade) ou ainda a coisas que sio associadas inequivocamente ao sexual (mice, defecagio), mesmo que de forma geral(sujeira, contigio). A defesa obsessiva, assim, é tida como menos “econdmica” do que a histé- rica, uma vez que nela o afeto seacha inalterado, no diminui, e apenas aideia érecalcada e expulsa da lembranga, Freud observa que nas fobias e obsessées as alteragbes se davam na esfera psiquica, enquanto na histeria atingiam a inervagao somitica, fazendo com que nelas ocorressem os sintomas extraor- dindrios que caracterizam a formacao de um grupo Psiquico independente. Um dos exemplos que fornece em seguida chama a atengéo, haja vista ele nao somente ressaltar a dificuldade diagnéstica que as vezes se instala entre as ideias obsessivas ¢ as ideias delirantes, como também, de maneira mais essencial, falar de “psicose de esmagamento ou de avassalamento” (Uber- wiltigungspychose) como um caso decorrente de uma simples intensificagao (:56). Trata-se de um dos momentos em que se lé na obra freudiana a ideia de uma possivel continuidade entre neurose e psicose, ou seja, de transposicao entre estruturas diferentes, outra vez igualmente observavel na obra de Lacan. Os exemplos fornecidos por Freud demonstram que comegava a impor- -se, de modo decisivo, a importancia da sexualidade na etiologia das neuroses, algo fortemente destacado dois anos depois, em continuidade com esse artigo, Em seguida, ele aborda as psicoses alucinatérias, nas quais observa — a diferenga da histeria, das fobias e das obsessGes, nas quais a defesa contra a ideia incompa- tivel separava-a de seu afeto—a ocorréncia de “uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida” (: 59). Nessas psicoses, o eu foraclui (verwerfen) aideia incompativel juntamente com seu afeto e comporta-se como sea ideia jamais lhe tivesse ocorrido. Mas o sujeito, a partir do momento em que o consegue, vé-se numa situago que s6 pode ser qualificada como “confusio alucinatéria” (:59). Nessa passagem, Freud associa intimamente tal tipo de defesa, surgida como um procedimento de rejei¢ao radical da ideia incompativel, a ocorrén- cia da alucinacao (psicose alucinatéria). Com isso, de certo modo, situa avant Ia lettre 0 que Lacan descreve, em O Semindrio, livro 3: as psicoses (1955-6), como o mecanismo especifico da psicose, a foraclusio: o que foi foraclutdo do simbélico, do registro da linguagem, retorna no real, vale dizer, no fe- némeno alucinatério. No texto de Freud, o eu, por defender-se da ideia in- compativel que se acha inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, também acaba por destacar-se, parcial ou completamente, da realidade. Ora, é precisamente a defesa contra uma experiéncia sexual de cardter trau- mitico que é enfatizada, dois anos mais tarde, em “Novos comentirios sobre as PREUD EA INVENGAO DA CLINICA ESTRUTURAL, a sded Jofesa” (1896). Como 0 conceito de inconsciente aind, i Va sido elaborado, vé-sea etiologia das psiconeuroses ser atributda a trauma ocorrido na tenra infncia: tanto na histeria quanto na obsessio, Frey sublinha a ocorréncia de uma cena traumatica em queo sujeito ocupa uma id sigto passiva, ainda que, na segunda, trate-se, num primeiro plano, deumg sigio de atividade sexual € sempre subsista um substrato de sintomas histéri que podem set reportados a passividade que precede a agao Praverosa ativa, ‘A anfase na “defesa como 0 ponto nuclear no mecanismo psiguicg day neuroses em questo” (Freud, 1896: 163) € ainda maior e Freud se vale indise, minadamente dos termos defesa e recalcamento. No caso da histeria, repata que “nao sio as préprias experiéncias que agem traumaticamente, mas 9 seu reviver como uma lembranga depois que o sujeito entrou na maturidade Se xual” (:165). O que ele situou, no primeiro artigo, como uma espécie de“ ‘dis. posigo histérca” se eslarece ent3o como algo préprio a um trauma sexual na infincia. Em suas palavras, “o ‘recalque’ da lembranga de uma experiéncia sexual aflitiva, que ocorre em idade mais madura, s6 é possivel para aqueles ue podem ativar o traco de meméria de um trauma da infancia”(:167). Por fim, nesse segundo momento, Freud ainda fala de seducao e de trau- ma quanto & etiologia sexual das neuroses, mas € precisamente uma revira- ‘volta nessa concep¢ao que se produz em seguida, quando ele, com base na compreensao da importancia da ago da fantasia inconsciente, passa da con- cepcao do trauma sexual 4 concep¢ao propriamente analitica do sexo como algo traumatico (Freud, 1905; Jorge, 1988). psiconeurs ba. dey 1924: VERDRANGUNG E VERWERFUNG Chama a atengao nos textos de Freud da década de 1920 0 estabelecimento de uma distingdo entre neurose e psicose com base na entio recente introdugao da segunda t6pica em “O eu e 0 isso”, de 1923, 0 que desemboca, no segundo artigo de 1924 aqui destacado, na diferenciacao entre neurose e psicose, & luz da distin- céo entre fantasia e delirio, Toda argumentagio freudiana é estabelecida a partir do conflto entre 0 eu e as demais instincias psiquicas, e jé no final do primeiro artigo de 1924 h4 uma primeira mengdo & questio da clivagem do eu, em termos ue prefiguram o que constitui a esséncia do artigo de 1927 sobre o fetichismo. Consideramos essa distingdo das estruturas clfnicas a partir do lugar ocu- Leal dies sine ¢m cada uma delas crucial para 0 nosso entendimento aay ‘Alen ‘tsa, ae Para esclarecé-lo € preciso retomar o trajeto feito por Frew 7 » nota-se nessa série de artigos que sua tentativa de distinguir com 2 PUTUROS DA PSICANALISE preciso o Mecanismo operante na psicose nao pode prescindir de uma elabo- ragdo em torno de uma terceira estrutura clinica, a perversio, Saliente-se ainda que, no interregno dess 's questionamentos, Freud produzitt seu notavel artigo “A denegagio” (1925), sobre o qual Lacan se deteve longamente, ao outorgar a cle um estatuto primordial para o estude dos mecanismos de constituigao do sujeito, O percurso de Freud nessa busca conceitual parece obedecer ao seguin- te trajeto, cujo termo final foi acrescentado por Lacai GRAFICO 2 Defesa ——> Recaleamento ——> Denegaghe ——e Renegaggo ——p senenen (Abwehr) (Verdritngung) (Verneinung) (Verleugnung) { Foraclusio (Werwerfung) Em “Neurose e psicose”, primeiro artigo da dupla de textos de 1924, Freud desenvolve uma distingo muito simples entre neurose e psicose, valendo-se da relacdo, preservada ou nao, que o sujeito entretém com a realidade: na neurose, essa relagao se mantém; na psicose, nao, Na dialética introduzida por Freud, oeu ocupa um lugar de mediagao dos conflitos entre o isso e suas exigéncias pulsio- nais imperiosas, de um lado, eo mundo externo e suas interdigdes igualmente imperiosas, do outro. Em outras palavras, o eu se situa na intersecio entre dois mestres poderosos ¢ irasciveis: ambos nao admitem ser contrariados e ele, por- tanto, vé-se obrigado a executar a ardua tarefa de conciliar 0 inconciliavel. ‘Na neurose, trata-se de um conflito entre o eu € 0 isso: 0 eu nao admite a satisfagao de certas reivindicacdes pulsionais oriundas do isso, e se 0 faz, é porque se alia as exigéncias impostas pelo mundo externo. Na psicose, por sua vez, 0 conflito se estabelece entre o eu e o mundo externo, posto que tudo ‘ocorre como se 0 eu cedesse amplamente as invectivas do isso ¢ afrouxasse, de maneira radical, seu vinculo com 0 mundo externo, Freud resume assim essa dupla possibilidade de conflitos: “A neurose é 0 resultado de um conflito entre 0 eu € 0 isso, ao passo que a psicose é 0 desfecho andlogo de um dis- tdrbio semelhante nas relagdes entre o eu ¢ o mundo externo” (Freud, 1924: 155). A distinco dos conflitos que se passam na neurose e na psicose pode ser resumida esquematicamente do seguinte modo: 3 Ressalte-se que Lacan pingou o termo alemao Verwerfung de passagens da obra de Freud que tratam da psicose, em especial o caso do Homem dos lobos. PREUD BA INVENGKO DA GLINICA RSTRUTURAL 23 GRAFICO 3 ‘Mundo externo 180 Eu Neurose Pricose Aqui, vale abrir um paréntese para destacar 0 quanto Freud, nesse artigo, insiste na ideia de que o eu é essencialmente uma unidade, aspecto para 9 qual Lacan contribuiria de modo decisivo com sus teorizagio sobre o estilo do espelho (Lacan, 1949). Nesse momento de constitui¢ao embrionéria doeu, pincado por Lacan nos estudos psicolégicos descritivos de Henri Wallon, ° bebé se apodera com intensa alegria—Lacan utiliza sairianad tibilo”—de uma unidade corporal que nao possuia até entdo. Tal vivéncia precoce de uma uni- intre os seis e 0s 18 meses de idade, ainda dade corporal, que em geral se dé e1 nao acompanhada — e, na verdade, bastante distante — do pleno dominio mo- tor, éa fonte de uma alienacdo constitutiva do eu numa imagem de plenitude que nao corresponde ao real da maturagéo bioldgica do corpo. Essa imagem, todavia, permite a crianga nao apenas criar um perfil imaginario em que as vivéncias angustiantes do corpo espedacado anteriores a esse momento se apaziguam, como também prefigurar uma poténcia futura com a qual pode- 4 afirmar-se junto ao outro e no mundo externo. No caso da neurose, Freud observa a operacao do mecanismo do recal- que com o consequente retorno do recalcado. Lacan, a esse respeito, chega a afitmar que o recalcado e 0 retorno do recalcado se equivalem, haja vista nada podermos saber sobre 0 recalcado que jamais retorna: “o recalque € 0 retorno do recalcado séo uma s6 e mesma coisa, 0 direito e o avesso de um 6 € mesmo processo” (Lacan, 1955-6: 75). O sintoma, decorrente do rechaso de alguma mosao pulsional pelo eu, passa a constituir, tal como a pulsdo parcial, algo que ameaca e prejudica a “unidade do eu” (Freud, 1924a: 156). Ele se constitui como a resultante do conflito entre a interdi¢ao e 0 desejo, razio pela qual sua manifestacao sera, paradoxalmente, fonte de sofrimento e satisfacao. A dialética observada revela que 0 eu se encontra assujeitado as ordens do supereu, as quais, por sua vez, se originaram de influéncias do FUTUROS DA PSICANALISE mundo externo que encontraram nele uma importante Tepresentacio, out manera de dizer que, ness daltica de forgasintrasubjetivas, as do mundo externo se mostraram mais fortes do que as exigéncias Pie do isso. Freud resume esse estado de coisas das neuroses de transferéncia, dizendo que “o eu entrou em conflito com 0 isso, a servico do supereu e da realidade” (: 156). J4 na psicose, sobressai-se a perda dos vinculos com 0 mundo externo. Quer na améncia de Meynert (confusao alucinatéria aguda), em que nao ha nem mesmo a percepeio do mundo externo, quer na esquizofrenia, o rumo tomado pelo proceso psicético leva a hebetude afetiva, isto é, a perda de qualquer participacao no mundo externo. Freud situa as géneses da neurose e da psicose num tinico e mesmo plano: em ambas, trata-se Precisamente da nio realizagao de algum desejo infantil muito poderoso. Para ele, o efeito patogénico particular a cada uma dessas afeccdes resultava exclusivamente do fato de o eu tornar-se dependente do mundo externo e tentar silenciar 0 isso (neurose) ou de ser vencido pelo isso e arrancado da realidade (psicose). Em seguida, Freud sustenta que a estrutura do supereu é compdsita e pos- sui elementos do isso ¢ do mundo externo, constituindo “um modelo ideal daquilo a que visa 0 esforco total do eu: uma reconciliacao entre os seus diversos relacionamentos dependentes” (; 158). Nessa mesma direcao, Lacan nao apenas observa comicamente que nio devemos jamais esquecer que 0 supereu é um “super eu” ~ Freud chega a defini-lo como o prdprio nticleo do eu-, como também assevera que o supereu, além de ser uma instancia de interdicao, é responsdvel por ordenar o sujeito a gozar. Adicionalmente, Freud toma a melancolia, considerada por ele uma neu- rose narcisica, como fruto do conflito entre o eu e o supereu, 0 que nos per- mite acrescentar um elemento ao esquema anterior: GRAFICO 4 Supereu 1 Melancolia Isso Eu Mundo externo Neurose Psicose FREUD BA INVENGKO DA CLINICA ESTRUTURAL 25 as instncias psfquicas, ¢ { dois problemas em jogo, ética das diferentes forcas Mas 0 que fiz, nesse conflito do cu com as oull desfecho pendet para um lado out para 0 outro Um econdmico, por meio do qual se ae Epa eatin iacionado ao que ocorre CO! a : qual este evita “uma ruptura em qualquer Sie or eon subme, tendo-se a ustrpagdes em sua propria uni cefetvando até mesos ver, uma clivagem ou divisio de si proprio’ (Frew ae saber qual a es an: arenas epsicse” defendendo a necesidace al sera “o mec. vedio 0 eu se desliga do mundo jo interm i go recalcamento, por cujo 1m d eo m0) vale dizer, o mecanismo de defesa especifico da psicose. ito da perda da in tapha Safouan, 4 formula a respeito Pe Goes aes artigo de 1924 € tao facilmente desmentida i sta nesse primeir e paresis i tardou a retificd-la num segundo artigo es- observacio, que Freud nao tardou a retific d ca apenas alguns meses depois,* ¢ cujo titulo ja chama a atencao para isso: “A perda da realidade na neurose ¢ na psicose” (cf. Safouan, 1974: 102). A for- mulacao anterior de que se evita a perda da realidade na neurose, mas nao na psicose € substituida pela afirmasao de que, em ambas, ha de fato uma perda Jt realidade e a prevaléncia da realidade psfquica: na primeira delas, sob a forma de fantasia, e na segunda, sob a forma de delirio, entendido como uma tentativa de reconstruir a realidade psiquica fantasistica. Freud desenvolve entio uma nova distingao entre neurose ¢ psicose, dis- posta em dois tempos diferentes. Na neurose, o primeiro tempo diz respeito aquele em que “o eu, a servico da realidade, se dispde ao recalque de uma mogio pulsional”. Mas o que a constitui propriamente é o tempo subsequen- te, no qual, depois do conflito entre o eu e 0 isso, e do recalque ai operante, hé tanto uma “reacao” contra o recalque quanto o consequente fracasso deste. Dito de outro modo, esse segundo tempo define o retorno do recalcado e é eS gue Freud as a ocrnc de um “afrouxamento da relago com a lidade” (Freud, 1924c: 193). eee passa ar cath como “o resultado de urn real falar do “fracasso da defess" com ios sol re as psiconeuroses de defesa’, a0 caleamentoe retorno do recaleado sdo os he eee real retoma oconhecido exemplo de a pacione Pe on eee Freud ‘a paciente Elisabeth von R. para formu- atuantes, ¢ outro rel 4 Bigualmente significati tame line ae ue, entre esses dois artigos, Freud tenha escrito um de seus no qual estende a ancien: ° Problema econémico do masoquismo” (1924), 'a do masoquismo para além do dominio da perversio. FUTUROS DA PSICANALISE lar a diferenga bisica entre os mecanismos em jogo na neurose e na psicose Em seus termos, 0 pensamento ocorrido a Elisabeth no enterro de sua irma, “agora, meu cunhado esta livre e pode se casar comigo”, foi recalcado e teve como consequéncia uma paralisia histérica, Caso se tratasse de uma psicose, a reagio a esse pensamento “teria sido uma foracusio (Verwerfung) do fate de que a irma morrera” (: 194). Tal compreensio do mecanismo de recalque e da dialética entre o cue o isso na neurose pode ser esquematizada da seguinte maneira: GRAPICO 5 Eu > Isso Eu < Isso (Recalque) __(Retorne do recalcado) | | Pulsio <———» Fantasia. <———> Sintoma NN Fim da anilise Anilise Vé-se, entre parénteses, que a anilise de um sintoma implica o desvela- mento da fantasia subjacente a ele (Jorge, 2010: 52). Além disso, o que Lacan situa na dimensao do fim da anilise tem a ver com a travessia da fantasia e com o deparar-se com a pulsao mais além dela, tendo sido esse o sentido da questao formulada por ele aos analistas a respeito do que seria a relacao do sujeito com a pulsdo apés o término da andlise (Jorge, 2017). ‘No que concerne & psicose, Freud observa que o segundo tempo em jogo visa criar uma nova realidade e, como na neurose, “serve ao desejo de poder do isso, que ndo se deixard ditar pela realidade” (Freud, 1924c: 195). Neurose e psi- cose constituem expressées da indisposigao (ou incapacidade) do isso de adap- tar-se 4s exigencias da realidade, podendo as diferengas existentes entre elas, no que tange a relacao com a realidade, ser apresentadas do seguinte modo: GRAFICO 6 Neurose Psicose 1° Fuga. ———> 2° Tentativa de 1 Obediéncia. ————> 2° Fuga inicial remodelamento inicial FREUD & A INVENGKO DA CLINICA ESTRUTURAL 7 sesso patogenico, @ fuga da realidade, Tesi ss lt se situa no primetro, Na neuroye rostra uma evilagio da realidade, ay icialmente accita. Jé na Psicose, 4 &igorada mas no TP, consequentemren repudadly buscandone fuga & primiria ¢ a realidad, COU Fe Sanaa aera Fe eit. Nos termos de Freud, a primel ‘i i a Ps icoses 6p, eerie aes6 pode conduzir enfermidade” (Frew 1924: 156), tolégica em si mesma € 86 P' ragio é accita de inicio ¢ evitada em a neurose, a cast ‘Niaca ras palayras, na neu a, ha \ciliagdo entre Em outras paras Pe sada, Numa, ha conciliagao entre a catragi, ida; na psicose, recus: jue permanece no inconsciente, re. one admitida,ea faa de Sees Palconita a completude do fon calcada em decorréncia tracto & recusada de forma priméria, segundo um pro. incestuoso. pete ae ie foraclus80 (Verwerfung) do Nome (do Nao) do Pai, cesso chamado por neira, que todo esse artigo de Freud conflui para enfa. __ Vemos, an meat ‘sua importancia na constituicao do sujeito, Sua tizar a questo ee o fato de que, na neurose, também ha uma tentativa ae aaa ama realidade desagradavel por outra que esteja mais de acor. do com os desejos do individuo” (: 196) A fantasia ¢ situada como um ele. mento verdadeiramente estrutural e Freud, retomando © que desenvolvera em “Formulagées sobre os dois principios do fancionamento mental” (1911), considera-a “um dominio que ficou separado do mundo externo real na época da introdugao do principio de realidade” (: 197), acrescentando que “6 desse mundo de fantasia que a neurose haure o material para suas novas construgdes de desejo e geralmente encontra esse material pelo caminho da regressao a um passado real mais satisfatério” (: 197). Na psicose, o mundo da fantasia também é fonte para uma tentativa de construir uma nova realidade, mas nela o novo mundo imaginério “tenta co- locar-se no lugar da realidade externa” (: 197). Embora Freud nao empregue 0 termo delirio, entende-se que este se define pela emergéncia de uma fantasia nio referida ao principio de realidade, ou seja, de uma fantasia que nao passa pelo teste de realidade, Ao novo mundo imaginério que, na neurose, se ligaa um fragmento da realidade, diferente daquele contra 0 qual o sujeito se de- fende, conferindo-lhe uma significacao simbélica, acrescenta-se, na psicose, a questao da substituicao da realidade fantasistica pelo delirio. nfyse do process enquanto na psico gundo tempo Mos! " Jo repudiada, pois foi in Na neurose aa no segundo tempo, fiaga presente No 1923-1927: VERLEUGNUNG Em 192; . 927, apenas trés anos apés a escrita da dupla de artigos sobre a neurose 28 PUTUROS DA PSICANALISE ca psicose acima abordados, Freud redige o seu texto princeps sobre o feti- chismo, no qual torna o mecanismo da renegacio’ (Verleugnung) responsavel pela divisio do eu. Aqui, é essencial notar que Freud, ao postular que esse me- anigmo opera tanto na perversvio quanto na psicose, distingue duas formas de renegagio, ou seja, a renegacao opera nessas duas estruturas clinicas de formas diversas: na perversio, produz-se ~ assim como no recalque proprio A neurose - uma perda parcial da realidade, ao passo que na psicose essa ma- nutengo parcial do reconhecimento da realidade nao se di.* Em “Fetichismo’, ao analisar o que se passara anteriormente na dialética entre 0 cu € 0 isso na neurose e na psicose, Freud cita o caso de dois meninos, de dois e dez anos de idade, que escotomizaram (0 termo é de René Laforgue) a parte da realidade que dizia respeito morte de seu pai, mas nao desenvolve- ram uma psicose. O segundo, ao ser chamado para o jantar, disse: “Eu entendo que papai tenha morrido, s6 no entendo por que ele ndo vem para o jantar”, A questio examinada por Freud é, no fundo, saber como a realidade pode ser renegada sem que se desvele uma posicao psicética do sujeito. Assim, compara essa renegacio, que poderfamos chamar de “normal”; com aquela dos fetichis tas, que renegam a castracio femninina, bem como pondera que, nas criangas, esse mecanismo é extremamente frequente, sem que deflagre um processo pro- priamente patolégico: “Fora apenas uma determinada corrente em sua vida mental que nao reconhecera a morte daqueles; havia outra corrente que se dava plena conta desse fato. A atitude que se ajustava ao desejo ea atitude que se ajustava a realidade existiam lado a lado” (Freud, 1927: 151). Freud, portanto, postula a renega¢ao na psicose, na perversdo e na “nor- malidade” (leia-se, na neurose) e admite que sua estrutura é a mesma nas duas {iltimas. Ali4s, em “A perda da realidade na neurose e na psicose’, ele enun- ciara algo semelhante, ainda que nao o tenha associado a perversio: 0 sadio corresponderia 4 associac’o de uma tentativa de alterar a realidade (como na psicose) com a aceitagdo ¢ o nao repitdio dessa mesma realidade (como na neurose), vale dizer, entre o primeiro tempo da neurose e o segundo tempo da psicose. Ora, essa consideragao se aproxima muito da ideia, desenvolvida na base do mecanismo da perversio em “Fetichismo”, acerca de duas correntes que caminham lado a lado sem se influenciarem, 6 que aqui essas duas correntes rrentes tradugdes adotadas no Brasil em épocas diversas para 0 termo alemio Verleugnung sdo: recusa, renegacio ¢ desmentido. 6 André Bourguignon retomou a dupla dimensio da renegagio (Verleugnung) num formi- dével estudo sobre a gencalogia desse conceito na obra de Freud (cf. Bourguignon, 1980). FREUD EA INVENGAO DA CLINICA ESTRUTURAL 29 sy “ce influenciam” cinelusive se asociam! De acordo com Freud, 9 ™ecahign da renegagio, cuja estrutura de linguagem foi ping ida por Octave Manon, na frase “Eu sei, mas mesmo assim...” (Mannoni, 1969: 9), nto parece x como tal, especitico da perversio, possuindo cardter universal % Observe-se entdo que a dialética da submissio do cuao isso (Psicose) ® ao mundo externo (neurose) acrescenta-se uma terceira Posicao, correspon, dente precisamente d perversio (| fetichismo) ou a um mecanismo comum ma infincia, a renegagao, em que a divisdo do cu se instaura, e este, sem tornar. -se servo do isso ou da realidade externa, pretende fazer com que duas ten. déncias opostas convivam: aquelas pertinentes ao desejo e aquelas propria. realidade. Tal posigdo comparece na construcio de um objeto fetiche que vig conciliar, a um s6 tempo, a negagao e a afirmagio da castracao: ele tampona a castragdo, mas sua existéncia s6 faz confirmé-la. O exemplo fornecido por Freud é 0 de “um suporte atlético que também podia ser usado como calcio de banho e, cobrindo inteiramente os 6rgaos genitais, ocultava a distingao entre eles” (Roudinesco, 2014: 373).” Na anilise desse objeto fetiche, eviden. ciou-se que isso significava afirmar, simultaneamente, que as mulheres eram endo eram castradas, e que também se podiam castrar os homens. O final do artigo freudiano de 1927 é, em ultima instancia, um questio- namento a respeito do vigor da renegacao na psicose: “(...] posso ater-me a expectativa de que, numa psicose, uma daquelas correntes — a que se ajusta- va realidade — esteja realmente ausente” (Freud, 1927: 151). Compreende-se assim que, ao buscar uma distingdo entre neurose e psicose, Freud nao péde deixar de abordar a tematica da perversao, tendo tal questio, isto é, a vigéncia de um mesmo mecanismo na psicose e na perversdo, sido retomada em dois textos de 1938, publicados postumamente: “A clivagem do eu no processo de defesa” e Esbogo de psicandlise, __ Para Lacan, a psicose nao se define pela mera prevaléncia do mundo ima- nario. Ao investigar o que constituiria o “traco essencial da psicose” (Lacan, 1955-61133), ele diz:“[.,.] a distingo entre a realizagdo do desejo recalcado no plano simbélico na neurose, e no plano imaginario na psicose, j4 é bastante aaa dent noe satisaz, Por qué? Porque uma psicose nao é - | aaa eae ies de uma Telagiio imaginéria, fanta z resume a predominaneia de. 126), Se Lacan insiste em que a psicose 6 se simbélica é Panes a novo mundo imaginario, € porque a 01 7 vertida na psicose, ae at Paulie a realidade, ¢ é ela que se acha sul foraclusio do significante do Nome-do-Pai, 7 Trata-se do caso inédito do; inédivo do jovem miliondtio norte-americano Cal Liebman. 30 PUTUROS DA PSICANALISE go qual se deve o préprio funcionamento do simbélico como tal. Dito de gutro modo, a definicio fornecida por Lacan do significante do Nome-do- _Pai diz respeito justamente ao fato de que ele é“o significante que, tro como lugar do significante, é 0 significante do Outro como lugar da Lei” (Lacan, 1957-8: 590), Isso quer dizer que, sem o Nome-do-Pai ~ “falta que 44. psicose sua condigio essencial” -, 0 Outro simbélico nio opera como simbolico e tende ora a se imaginarizar (como na paranoia), ora a se realizar (como na esquizofrenia). Desse modo, os remanejamentos do imaginario na psicose sio — e nao po- deriam deixar de sé-lo — essencialmente tributarios de uma alteragao na estru- tura do simbélico. A subordinagio do imaginario (registro psiquico respon- sivel pela imagem do corpo ¢ pelo eu) ao simbélico (registro da linguagem) — denominada por Lacan de precedéncia do simbélico (Ferreira, 1999: 7) — re- monta a ligdo trazida por ele com o estdio do espelho, no qual se explicita que acrianca sé se assegura de que a imagem no espelho é a de seu corpo proprio,a partir do momento em que o adulto o ratifica pela palavra. Entre 0 eu e 0 outro, ou entre o ew e sua imagem especular, a presenca do Outro, da linguagem, é necesséria, outra maneira de dizer que o imaginério, na espécie humana, nio se sustenta por si s6 e necessita do simbélico para constituir-se. no Ou- PARA CONCLUIR Vé-se quanto a nocdo de realidade é um obstaculo a teorizacao freudiana. Como formula Lacan, “o que aparece diante de nosso olhar ¢ 0 cardter proble- miatico do que Freud coloca sob o termo de realidade” (Lacan, 1959-60: 31-2), uma vez que, tanto na neurose quanto na psicose, ele demonstra o carater central operado por uma perda da realidade em prol da fantasia, na primeira, ou do delirio, na segunda, Fantasia ¢ delirio constituem as formas de reali- dade mais corriqueiramente passiveis de serem apreendidas, levando-nos a cogitar, com Freud, que a realidade psiquica é aquela que desempenha papel decisivo e da a ultima palavra diante do imposstvel do real. Um exemplo do uso equivocado da nogao de “sentido de realidade” pode ser encontrado no trabalho “A relacao da formagio perversa com o desenvolvi- mento do sentido da realidade”, de Edward Glover, em que 0 autor, ao associar as categorias de objeto total e de amor genital 4 de realidade, estabelece uma associacao entre as estruturas clinicas e a obtengio de determinado grau do sentido de realidade: “as perversoes ajudam a preservar 0 montante de sentido de realidade ja alcangado, o que representa, no longo prazo, um sacrificio de FREUD & A INVENGAO DA CLINICA ESTRUTURAL 3 ‘ a funcio libidinal adulta, ao passo que as neuroses muitas y Deted ee tan pdinal aduita obter um grau de liberdade suplemys® Fen a sty inibigdo das relagoes com a realidade, ¢ as psicoses freq” ao prego de certs IMT | aparente liberdade da fungao libidinal adulta, acon tementeapresentt sbacdes do sentido da realidade” (Glover, 193: gy panbada de raves Pec ao formula aida de uma perda da realidade Parece-nos yn pscose, Freud relativiza completamente a prépat tons neurse as que passa a designar muito mais a realidade psiquica noglo de reall realidade compartlhada e dita objetiva. Nesses terme, cada cues ‘ me retificar os questionamentos freudianos sobre a nocio & tse gue Lacan intrduzu a dimensto do real, 0 registro do que, py at ao mais além do simbolico e do imagindrio, nao tem qualquer re presentagao possivel. O real é“o impensavel >0 “sem sentido’, 0 passo que a realidade, para Lacan, € feita de uma trama simbélico-imaginaria, isto ¢, de palavras e imagens que se articulam para fazer frente ao impossivel de ser representado do real. Esse real designa nao apenas o mundo externo ~ que 6 de fato, uma de suas melhores designacdes -, como também as regides do mundo interno que sao irrepresentaveis, como as pulsdes. Lacan atribui aos planetas (que nao falam) o pertencimento a ordem do real, ao lado dos quais podemos acrescentar a morte, o trauma, a anguistia e tudo o mais que escapa radicalmente a0 registro da nomeacéo pela linguagem. A fantasia, para Lacan, que se vale da apreensio freudiana de seu lugar precipuo no aparelho psfquico, constitui o “enquadre da realidade”, ou sej, cla € uma “janela para o real’, da qual o sujeito “extrai seguranca” (Lacan, 1967:259).Sua funcao é realgada imimeras vezes ao longo de seu ensino, por oe a realidade & comandada pela fantasia como aqulo veers nar ae em jeto do deseo atravessado pea falta, ba Se ae tituigfoe, por iseo means : a in barrado do gozo em sua Prépria cons- sijeito do oro, cm aan - do a completude. Lacan fala inclusive do prineio sjeto a mien — do significante, designando com o Quanto a0 delitio, trata-se de vine oa oe » ‘a tentativa mais ou menos exitosa do 2 FUTUROS DA PSICANALISE ai, Nesse du Lei do Nome-do-P, 0,0 qe se produ, ,0 delitio, entendido como uma Ja (no caso da paranoia) ou aniano (na esquizofrenia), s pode-se dizer, uma fantasia” que pode ser altamente realizada, no gubespécie da fantasi altamente imal sentido do real k Nesses termos, opor fantasia e delitio para abordar pode fornecer-nos elementos mais precisos das estruturas, nos pois que. fantasia esté para a neurose, assim como o delirio esté para a psicove, Ambos ocupam © mesmo lugar em cada uma dessas esteutures qual talvez seja preferivel ndo falar de fantasia na psicose. neurose ¢ psicose ravao pela REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BOURGUIGNON, André (1980) “O conceito de renegacao em Freud ~ alucinacdo negativa, renegacao da realidade € escotomizagao”. In: O conceito de renegagao em Freud e outros ensaios. 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