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Psicanalise na Contemporaneidade Para Além da Clinica $s Cruzeirodo Sul Virtual aca ds Conteudista: Prof.? M.? Joana Alvares Revisao Textual: Prof. Me. Claudio Brites Objetivo da Unidade: + Contextualizar a psicandlise no cenario contemporaneo enquanto ciéncia e abordagem teérica. Material Teérico = Material Complementar Referencias 3 Material Teérico Introdugao Estimado(a) aluno, conhecemos anteriormente os principais preceitos relacionados a pratica e& técnica na clinica psicanalitica. Agora, nesta Unidade, conheceremos um pouco mais sobre a psicanalise atual e por onde, além da clinica, ela perpassa com seus fundamentos. Leitura Clinica Psicanalitica: Aproximacées Histérico-conceituais e Contempordneas e Perspectivas Futuras Clique no botdo para conferir o contetido. Psicanilise para Além da Clinica “Se a psicanélise, ao lado de sua significagao cientifica, tem valor como procedimento terapéutico, se é capaz de fornecer ajuda aqueles que sofrem em sua luta para atender as exigéncias da civilizacao, esse auxilio deveria ser acessivel também a grande multidao, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho.” ~ FREUD, 1923, p. 319 Embora reconhecida em diversas dimensées da cultura e da sociedade a partir de conceitos € modos de pensar, a psicandlise permanece isolada e inacessivel & maioria das pessoas devido ao seUcardter clinico e institucional. A psicanélise nasceu com o médico Freud, que, sem recursos para lidar com o sofrimento dos pacientes, cria uma nova abordagem terapéutica. Com base em observacées clinicas, Freud desenvolveu um modelo para explicar o funcionamento mental e 0 desenvolvimento dos sintomas. A psicanélise recomenda a compreensao dos sintomas pelo método da "associacao livre", pois esse método liberta o paciente de maiores sofrimentos psiquicos e proporciona melhores condigdes para o desenvolvimento da andlise. A psicandlise pode trazer outra versao para os eventos mentais e buscar a origem e o desencadeamento dos sintomas na compreensao dos processos de satide mental. ‘Mesmo que a psicandlise seja uma poderosa ferramenta clinica e contribua para 0 estudo dos motivos humanos, Freud dedica uma ampla e profunda reflexao a "insatisfacao da civilizagao", & relagao do individuo com o poder ea formacao de nossos ideais, moral e ética. Assim, a psicandlise, como ciéncia humanista, experimenta o impacto da vida moderna e nao ignora as mudangas que ocorrem hoje. As exigéncias que o mundo moderno faz.a psicanilise, no sentido de que dela e de seu conhecimento dependem para resolver problemas urgentes e essenciais, obrigam muitos analistas a estudar e utilizar técnicas que permitem grupos pequenos ou especiais, como um casal, como uma familia sem problemas, abandonando o método e os conceitos basicos de sua teoria. Ointeresse dado aos grupos de psicandlise esta relacionado a varios componentes das crises do mundo moderno diante de suas doencas, ¢ o grupo é inventado ou reinventado para restaurar as fungdes psiquicas. No texto de 1919 de Sigmund Freud, Linhas de progresso na psicoterapia analitica, encontramos manifestagdes que iluminam 0 que vem se materializar um pouco mais adiante. Trata-se de um texto que tem como pano de fundo o final da I Guerra Mundial, quando 0s seus efeitos produziram extrema miséria na populacao, bem como traumas psiquicos importantes. Nele, Freud traz 0 desejo de que a psicanilise alcancasse as camadas mais amplas da populasio, vislumbrando tal prética através de instituiges de dentro e fora do Estado, que atendessem gratuitamente. Em Freud's Public Clinics (2005), Elizabeth Ann Danto faz um interessante estudo que revela os objetivos e as iniciativas de Freud e da primeira geracao de psicanalistas no sentido de tracar 0 caminho da ajuda psicanalitica & populagao relevante, da pobreza e da miséria. A historia comeca com o discurso de Freud no Quinto Congresso Psicanalitico Internacional em Budapeste, em 1918, que foi publicado em 1919 ¢ teve um impacto significativo, estimulando os psicanalistas a entrar no campo social prético. A primeira e a segunda geragées de psicanalistas trabalharam para estabelecer clinicas de ensino e instituigdes piblicas e privadas destinadas a atender pessoas marginalizadas em sua busca por recuperago de traumas e normalizacao social. Outro texto freudiano que langa luz sobre a articulagao interna do trabalho psicanalitico individual e social é Psicologia de Grupo e Andlise do Self (1921), no qual Freud argumentou que 0s contrastes entre a psicologia individual e a psicologia social desapareciam quando analisados mais de perto, agudeza que afirma que a psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social. Isso possibilita pensar na transi¢ao entre 0 individual e o social, em que a inconsciéncia nao é um fato individual, que se relaciona apenas com as especificidades do sujeito, mas um fato social, considerando que a vida mental de uma pessoa é sempre acompanhada de outro objeto de investimento, de agregacao, o que requer a atuacao ¢ o reconhecimento do outro, para que a cultura garanta a pessoa um lugar. Como vimos, hé mais de um século a clinica psicanalitica saiu de seu consultério, de seu ambiente tradicional, e criou novos dispositivos de escuta, por exemplo, para clinicas onde vivem refugiados, em escolas, com vitimas de todo tipo de violencia, e com politica, género e sexualidade de inclusio etc. Psicanalise e a Cultura Freud afirmou varias vezes ao longo de sua obra que a psicanalise é uma "ponte", um "elo", ou pelo menos prometia ser, e, por isso, assume o papel de intermediéria entre a medicina, a psicopatologiae as ciéncias, humanidades, ciéncias culturais. Sua verdadeira "esséncia" residiria em seu desenvolvimento bidirecional. De fato, Freud argumentou em A Interpretagao dos Sonhos (1900) que os processos psiquicos que funcionam durante sono produzem sintomas tio ativamente quanto os fenémenos culturais e sociais. Assim, a psicanalise nao é redutivel a psicopatologia, pois ela também tem algo a dizer sobre a atividade mental normal e, mais ainda, sobre a criacao sociocultural. Desde o inicio, Freud defendeu a tese sobre as causas libidinosas da cultura, que posteriormente definiu como "capital psfquico", o que para um psicanalista nao familiarizado com as teorias socioantropolégicas nao é surpreendente! Na verdade, depois dos trés ensaios (1905), as produgées culturais sao uma questao de componentes sexuiais adquiridos, apelos sexuais que foram deslocados de seu objeto sexual e direcionados através do processo de sublimagao para novos objetivos nao sexuais, tanto individual quanto coletivamente. Por um lado, afirmou que esse processo participa da construcao da cultura, por outro, éuma producao coletiva da qual cada membro participa. Assim, esses componentes instintivos, sublimados ou suprimidos, mesmo suprimidos em relacdo sua finalidade, objetos na forma de rentinciae transformacdo representam o "capital psiquico da cultura", que necessariamente deve retirar grande quantidade de energia psiquica da sexualidade dos participantes para suas préprias necessidades de consumo. Essa abordagem econémicae estimulante da cultura é particularmente visivel na "moral sexual" de 1908. Embora a cultura seja geralmente construida sobre a supressao dos desejos, ela é também o dom pessoal de cada pessoa como parte do capital pulsante, libidinal e hostil, representando assim a contribuigao de cada individuo para a formacao desse "valor cultural comum de bens materiais ¢ ideais" como um verdadeiro participante na construgdo dessa cultura, que é um empreendimento coletivo e propriedade comum. Esse mesmo conceito de "valor cultural comum'" seria ignorado na segunda temporada. Ele ainda apontou que, ao suprimir e deslocar os desejos, a sexualidade normal contribui para a cultura, ao contrario do desvio distorcido que a contradiz, porque esses componentes sextiais nao podem ser mobilizados. Freud simplesmente diz.que o "valor cultural" da pulsao consiste em sua capacidade de se afastar do objeto. Em Totem e tabu, por analogia com as formacdes neuréticas sintomaticas, as instituigdes primérias sdo instintivas e animais. Pertencem aos conflitos instintivos das espécies de carter edipiano e representam solugdes sociais de compromisso para o problema da subs tuigdo do desejo. Juntos, eles representam as "coisas da humanidade"’. Seu método o levou a afirmar 0 lado paterno ambivalente do complexo de Edipo como base da cultura, um elo entre dois dominios ~ 0 individual-intrapsiquico e o coletivo, sociocultural ~ baseados em certas necessidades, habilidades e processos, atividade mental humana, mas também considerando a analogia essencial entre o individuo e a sociedade, no primeiro caso a psique do individuo e no segundo, a massa — na qual inevitavelmente encontramos processos semelhantes. A psique individual e a cultura sao correlatas e, portanto, interdependentes. Finalmente, a introdugio do conceito de "psique de massa", que assegura a continuidade da vida psiquica através das geracdes, é uma continuacao do conceito de Wundt da psique coletiva como uma extensdo da psique individual. E isso apresenta paralelos com a “consciéncia coletiva” de Durkheim (1993). Como jé disse, pertence exemplifica a cultura, referindo-se a "atividade mental do homem". Ao contrério do que Freud imaginava, ela nao entra em relagao de identidade com a psique individual, como demonstraram os psicanalistas de grupo. De fato, seus Processos e formacdes sio especificos, embora existam analogias entre essas duas realidades psiquicas: individual e coletiva Em Um breve relato (1924), apresenta a cultura como campo de expresso da "atividade mental humana', pressupondo a atividade projetiva de "modelagem" externa do mundo interior, ¢ constituida por trés partes correspondentes as trés areas da sua apresenta¢ao. Cultura: a lita contra a realidade, a natureza, a defini¢ao da comunidade de trabalho e os interesses libidinais e da vida social relacionada; as satisfagdes que substituem o desejo reprimido incluem mitos, criagées literdrias e artisticas; as grandes instituigdes que permitem o controle do complexo de ipo e 0 movimento da libido do individuo de seus lacos infantis para os lacos sociais desejados. Mais tarde, em 0 futuro da ilusdo (1927) A civilizacdo e seu contetido (1930), Freud nos. mergulha em descrigdes detalhadas e revela a oposicao estrutural ~ entre cultura ou sociedade e seus membros — e os paradoxos inerentes & cultura ou sociedade ele mesmo, Primeiro, ele pinta um quadro da cultura como um todo, novamente cobrindo trés areas: aspectos materiais decorrentes de duas atividades titeis, permitindo a ordem essencial, aquisi¢ao e fabricacao de bens e referindo-se a "cultura material” e initil, mas ainda necessaria para o homem, incluindo beleza, ordem e pureza; aspectos "intelectuais" ou "bens psiquicos" que combinam, como “capital cultural psicol6gico", sistemas religiosos, especulagdes filoséficas, criagées artisticas e formacdes ideais ou o pano de fundo dos ideais culturais humanos e do superego humano; finalmente, na civilizagao e no mal-estar de Freud — que produz seus préprios ideais e estabelece suas préprias dernandas ~ enfatizaria 0 que pertence is formas de regulacao das, relacdes sociais garantidas pela ética ou pela moral, que é uma das expressdes do superego cultural Quais sao suas principais contradigdes e paradoxos que causam contradigées e ambivaléncias em voce? Mas ele também é ameacado por outra fonte de perigo em si mesmo: ele deve se proteger contra seus participantes, contra pessoas que tém "desejos animais", ou seja, os chamados desejos antissociais, tanto sexuais quanto destrutivos, que os tornam inimigos virtuais. Sem esquecer 0 seu narcisismo, que deve ser refreado e transformado em objeto de amor, para que o amor seja fator cultural, Freud identificou duas fontes de hostilidade dos individuos das quais a cultura precisa se proteger: . A inerente a natureza animal dos seres humanos, constituida de pulsées "egoistas", sexuais e destrutivas, antissociais e anticulturais, em busca de satisfa¢3o, e confrontada com privacdes instauradas pelas proibicdes basica: . AAs determinadas pela restricao ao trabalho individual e coletivo e a renéincia pulsional exigida, que engendra sacrificios psiquicos em seus participantes, determinando uma posigao virtualmente hostil cultura es suas exigéncias. Seus métodos de protegao também sao numerosos: deve compensar seus participantes pelos sacrificios instintivos que fazem por eles, fornecendo-Ihes o que Freud chama de "bens psiquicos" que servem a esse propésito, bem como instituigdes, dispositivos e comandos. 0 método, porém, considerado o mais decisivo e importante para proteger a cultura contra os impulsos destrutivos dos participantes, e o mais perigoso, seria a instalacao de um superego, ou consciéncia moral, em cada individuo. Neste caso, isso muda. H4 correlagao de portador de cultura e culpa. Acultura, obra e servico de Eros, é solidéria com esse sentimento de culpa, que conduz inevitavelmente a perda da felicidade. Este é 0 objetivo da Kulturarbeit (cultura), tanto individual quanto coletivamente. A Kulturarbeit (cultura) permeia todaa obra de Freud, comegando pela interpretagao dos sonhos, embora nao seja assim chamada. Como vimos, esse conceito expressaa existéncia de relacdes de interdependéncia e interpenetracao entre realidade sociocultural e individual, psiquica e corporal. A originalidade do pensamento de Freud reside no fato de que ele mostrou diferentes formas, tanto corporais quanto intrapsiquicas, de registrar e transmitir o individuo cultural e social, e isso significa para nés que essa representacao da sociedade e da cultura condiciona o dispositivo psiquico, ou seja, a hominizacao psiquica de cada individuo, que possibilita a sua socializacao, ou seja, a sua integracao na sociedade, que Ihe confere o estatuto de "pessoa" ou "sujeito". Esses sujeitos cooperam de forma social por natureza produtiva, que preserva e reproduz sua sociedade e cultura, 0 “bem comum”. Leitura Sigmund Freud eas Intersegdes entre Psicandlise e Cultura Clique no botao para conferir 0 contetido. Psicandlise e as Artes “14 um caminho de volta da fantasia paraa realidade; este caminho é a arte” (FREUD, 1908). A psicanalise sempre esteve ligada & arte. Segundo Nasio (2017), pode-se pensar que a psicandlise eaarte atuam como duas disciplinas intimamente relacionadas. Freud criou a psicandlise, a filosofia, a terapia ea pesquisa, que se concentram no estudo e nainterven¢ao do humano, especialmente em relacao aos aspectos do inconsciente. Em seus estudos, ele mencionou varias vezes que a arte é via como "um movimentador da dor". Freud tinha uma relagao muito préxima com a arte. Passava horas analisando obras em museus, apreciava e se interessava por muitas expressdes consideradas arte, chegando a colecionar esculturas. Além disso, em algumas de suas cartas a outros psicanalistas e membros importantes da sociedade, ele confessou stia admiragao por certos escritores como Cervantes. Stia admiragao pelas obras literdrias e mitolégicas o levou a importantes analises que posteriormente publicou em seus livros. Entre eles: 0 complexo de Edipo, 0 poeta e a fantasia, Dostoiévski eo parricidio, eUma meméria de infancia de Leonardo Da Vinci, entre outros. Se pudermos listar o legado importante que Freud nos deixou com relacao a evidéncia da ligagao entre psicandlise e arte: . Questionamento da origem artistica, mitoldgica e cultural. . Anélise da relacao do criador e sua obra. . Oefeito da obra de arte no espectador. . Aintengio do artista . Conceito de sublimagio. Freud estava to preocupado com aarte que influenciou muito de seu pensamento. Ele definia o artista como alguém que encontra o caminho de volta a realidade, que tem um poder inerivel de modelar o material até que se torne uma cépia fiel de sua representacao fantastica, Segundo Nasio (2017), Freud via o artista como uma pessoa que tem a capacidade de transformar seus instintos em realidade por meio da arte. Além disso, ele conseguiu transformar esses impulsos em algo estético, ou seja, socialmente aceitavel. Por outro lado, Freud argumentou que o artista e o psicanalista estavam intimamente relacionados porque ambos trabalhavam no mesmo assunto. A Gnica diferenca é que eles usam métodos diferentes; o psicanalista por meio da andlise do inconsciente eo artista por meio de sua obra. Tendo mergulhado nos estudos de arte, Freud desenvolveu o conceito de sublimagao, que é também talvez uma das obras mais importantes sobre o aparelho psiquico de Freud. Sublimagdo é um mecanismo de defesa que permite trocar 0 objetivo sexual por um valor mais elevado e social. Ou seja, a arte seria uma maneira de seguir os nossos impulsos através de um veiculo que a sociedade aceita, De fato, alguns psicanalistas, junto com Freud, comecaram a entender que a arte é uma espécie de ferramenta porque facilita a mobilizacao e, como jé foi dito, neste caso, a mobilizagao da angiistia. A sublimagao encontra uma forma de transformar o sofrimento, Mais adiante em sua obra, Freud argumentou que a arte é uma forma de organizar 0 vazio. 0 vazio seriam as pulses e impulsos que temos, ea arte é uma forma de conté-los. Ento transformariamos ansiedades, impulsos e outros mecanismos inconscientes em arte. E assim que conseguimos transformar o que carregamos dentro de nés em algo mais aceitavel para nés e para os outros. Assim mobilizamos nossas emogées e as transformamos em arte. Eassim a psicandlise vé a expressao criativa como um alivio, um meio eficaz.de limpar as feridas. Um suplemento terapéutico de valor imensurével pela auséncia de lim Video Didlogos | Psicandlise e Arte A Formacao do Psicanalista Em Anélise finita e infinita, Freud ({1937] 2017, p. 356) se pergunta sobre a preparagio do analista: "Onde e como pode um pobre obter as qualificagées ideais para sua profissao?", Aresposta é: Freud ({1926] 2017) retorna aos pilares da psicandl e, argumentando que sua pratica ndo deve se limitar aos médicos, por isso enfatiza a andlise pessoal, mostra que a psicanélise é independente e que a formacao do analista segue as préprias necessidades independe da sua formagao anterior; 86 é possivel através de uma anélise pessoal, nao se tratando de "mudanga de emprego" ou "especializagao". uma transposigao — um movimento de um lugar para outro ~ que pode ter por efeito aparecer um sujeito que pode atuar na posigo/tarefa do psicanalista. Isso porque consiste em ser capaz de se colocar em uma posica0, que nao é cair completamente, aceitar a imperfeigao, sentir falta e aprender a fazer algo a respeito, tecer um novo suporte para vida, suportar a pulsdo, com os préprios recursos. fa experiéncia do despertar — este termo ¢ utilizado por Lacan — despertar para além do significado imaginario nareisico (JORGE, 2010). Nao é um despertar absoluto, porque isso é impossivel, porque o inconsciente nao pode ser despertado, a realidade nao pode ser curada, mas hd momentos de despertar. Para Jorge (2010), trata-se de desvendar o sentido onde ele quer ser mais completo, tentando torné-lo opaco onde ele resiste. £0 despertar de um sonho no qual o sujeito estava imerso e que dew algum sentido & sua vida, apenas para que ela reinventasse o sentido, criasse um novo sentido que superasse os sentidos jé dados. As qualificagdes profissionais adquiridas nos cursos universitarios so apenas roupas, mascaras feitas a partir da imaginagao de todos. O sujeito tende a se cobrir com seu diploma no sentido fechado de “eu sou x”. Independente do x”, é preciso retirar esse sentido fechado dado & vida. Vocé deve esvaziar sua esséncia. A interseccao decidida deixa de ser um falo imaginario com um falo simbélico, uma passagem do 020 ao desejo, da alienacao & separacdo, uma obra que visa desmontar molduras, para construir uma outra castragao possivel, dada 4 morte como forma de habitar a linguagem. Acordar! Sea formagao do analista consiste em um tripé de andlise pessoal, estudo teérico e ensino clinico, abase dessa formagao é a andlise pessoal, por meio da qual nés, analistas em formagao, temos acesso a conhecimentos que de outra forma nao terfamos, pela instrugdo teérica — por mais rigorosa que seja - e nao pela supervisao clinica do analista mais experiente, No texto Variantes do tratamento-padrao, Lacan ([1955] 1998, p. 360) nos diz.em sintese que alguém s6 pode se enveredar por analisar alguém ao reconhecer no seu saber o sintoma de sua nesse ignorancia e que a funcao do mestre (falando da transmissao) deve ser a de forma-lo “.. nao saber, sem o que ele nunca sera nada além de um robé de analista”. De uma posicao de nao saber, hd algo que o analista sabe, que interage com a ignoranciacom a qual ele trabalha: que o psicanalista sabe que o sujeito sabe (conscientemente), sem saber (conscientemente) que ele sabe. 0 préprio Ouvinte Imparcial de Freud ([1926] 2017, p.2 8) faz uma conexao interessante sobre como seria a psicandlise depois de ouvir as aulas, eno elogio de Freud diz: “Eu apenas repeti o que ouvi do senhor, como se repetisse algo decorado. Nao consigo imaginar como eu faria isso [...)” Em outras palavras, a transmissao da psicanalise nao pertence & categoria da razao ou do aptendizado. Nao envolve simples "engolir livros", teorias de escuta/estacionamento. A. psicandlise difere de todos os outros saberes e praticas terapéuticas por considerar 0 objeto inconsciente. Uma coisa sao receber noticias sobre o inconsciente, outra coisa é ver esse tema inconsciente trabalhando dentro de nds em sonhos, doengas, sintomas. S6.com 0 apoio dessa experiéncia é possivel realmente ouvir analiticamente e acreditar que dali, dessa conversa vazia, de toda a intriga de um romance familiar, um dia sairé esse tema. Freud j nos alertou que o analista s6 pode ir com seu paciente até onde ele conseguit com sua andlise, porque como analistas lidamos com tudo o que esta reprimido na alma humana, que desperta em nés demandas instintivas, que, caso contrério, devemos tentar estar alertas. Como lidar com esse material recalcado se estivermos (por falta de andlise) querendo que 0 nosso recalcado nao seja tocado, seja deixado quieto? Como podemos conduzir um tratamento seo recalque entrar em acao a todo tempo quando a fala do analisando despertar nossa pulsio? (BERNARDES, 2019). As repressdes em nds aconteceram numa época em que o ego ainda ndo conseguia lidar com os desejos de nenhuma outra maneira. 0 objetivo da analise é que eu possa acolher o desejo e leva~ lo em consideracao, e nao o ocultar pela repressio automatica e excessiva (FREUD, [1926] 2017, p. 230-231). Para manter sua posigao e realizar 0 tratamento, o analista deve estar livre do recalque, sob pena do sofrimento, e operar com essa dor, querendo tampond-la, tornando-se incapaz de ouvir os recalques de seu paciente. Segundo Bernardes (2019), é possivel perceber trés aspectos da andlise pessoal: . Como preparo do inconsciente do analista, que se apropria tanto quanto possivel do seu préprio material recalcado, que esgota o cendrio fantasmatico, que esvazia o seu eu para que possa operar no lugar de objeto a causa de desejo; . Como tinico modo de realmente entender a teoria por sentir na pele o que na teoria ver em palavras; ¢ . Como forma de construgao de um saber pelo qual o analisando passa quando esta ali no diva, Para ouvir o analista falar de seu sintoma e da fantasia associada, o analista deve esvaziar-se de suas fantasias, caso contrario trabalhard com elas sabendo (mente fechada, imaginagao) o que a fantasia lhe da. O analista deve saber operar a partir de uma posigao de ignorancia (para além de toda fantasia), que desperta um desejo de saber, um desejo movido por uma falta antes dominada pelo conhecimento fantastico. Segundo Quinet (1991), quando o sujeito atua como analista sem que sua fantasia seja afetada na anilise, ele tende ase colocar em um polo da fantasia 0 analista em outro. Jorge (2017, p.186) cita uma passagem valiosa de O desejo do analista e o Desejo de ser analista, de Laurence Bataille, onde diz. que “[...] 0 desejo que vem mais sutilmente substituir 0 desejo do analista é 0 desejo de ser analista: é este tiltimo que me induz a adotar atitudes ditas analiticas, a colocar na posicao de semblante, em vez do nada, uma imagem de analista.” ~ JORGE, 2017, p.186 Sem a experiéncia da analise pessoal como base do tripé da formacao psicanalitica, 0 médico/psicélogo, quer seja analista ou nao, age pelo desejo de ser analista, mas nao pelo desejo de ser analista. Eles operam em um sentido ficcional baseado em sua prépria fantasia de perfeigao. Pode ser qualquer coisa, menos psicandlise. Para Quinet (1991), com base no seminario sobre o Ato Analitico ea Proposicao e 9 de outubro (1967), “[..] 0 ato analitico é o ato realizado a partir do advento do sujeito como objeto, quando o sujeito se destitui como analisando para instituir-se como analista, podendo suportar bancar o objeto causa de desejo para um analisando.” ~ QUINET, 1991 No Posfécio a “A questao da analise leiga”, Freud ({1927] 2017, p.299) jé havia alertado que “[..] os analistas médicos sem formacao especifica seriam ainda mais perigosos que os leigos”. Nao 6 por acaso que Freud ([1910] 2017), no texto psicanalitico “Selvagem”, discutiu o tratamento clinico dado por um médico que tentou usar o conhecimento te6rico da psicanalise, abandonando repentinamente a psicandlise um paciente que o procurou para tratamento. Esta foi a prova tnica de que o treinamento pré-tratamento sem treinamento psicanalitico especifico € um fracasso. Reconhecemos ainda hoje que uma licenciatura em medicina e psicologia muitas vezes compensava a falta de formacao psicanalitica. Freud ([1926] 2017, p.285) diz quea experiéncia leva o analista a um mundo onde as leis sao diferentes. A luz de Lacan, podemos dizer que hd diferengas na conversa, 0s cursos da educagio bisica sao dominados pelo discurso universitério, onde a posigio do agente é baseada em informagées sistematizadas. Segundo Fink (1998), 0 discurso da universidade fornece para Lacan uma espécie de legitimacao ou racionalizacao da vontade (capitalista) do mestre, o que se alinha com o argumento dos anos 1960 ¢1970 de quea universidade é um ramo da produgao capitalista. E sugere que a verdade escondida por tras do discurso universitério 6, afinal, amarca de um mestre. Oconhecimento aqui, portanto, questiona a mais-valia e a racionaliza ou justifica. 0 produto ou perda sugere um sujeito dividido e alienado, mas como o representante do discurso universitério 6 0 sujeito do conhecedor, o sujeito inconsciente é produzido e simultaneamente excluido. A mediacao da psicanidlise, ao contratio, esté no discurso do analista, no qual o objeto, como causa do desejo, é 0 ator da conversa. O analista é um espaco puro do desejo que interrogao sujeito em lugares divididos, onde ocorre a separacaio entre consciéncia e inconsciente (paradas, sonhos, deslizes etc.). Assim, 0 analista orienta o analista a associar, a trabalhar, eo produto dessa associacao é 0 novo signo bisico para a produco do conhecimento, que aqui substitui a verdade. Informagdes que nao so as informagées sistematicas do discurso universitario, mas informagées inconscientes que se entrelagaram em uma cadeia importante e tiveram que ser subjetivadas durante a disciplina, Calligaris (2008, p. 53-65), em Cartas a um jovem terapeuta, diz. que o essencial da formagao do analista se dé depois da faculdade, fora da academia, por uma questdo que ¢ intransponivel: a peca-chave da formagao do analista é seu préprio tratamento analitico. E, a0 comparar o ensino te6rico universitario com a transmissao em instituigao psicanalitica, diz: “Ha uma diferenca relevante entre ler como estudante, que deve dar conta do que aprendeu, e ler como analista em formacdo, que interpreta os textos a partir da sua singular experiéncia de andlise” (CALLIGARIS, 2008, p. 57). nifica que a formacao tedrica do candidato a analista depende muito mais dos efeitos construidos pelo seu percurso analitico do que propriamente por um curriculo, por um saber ‘sistematico’, Freud também nos diz da soberania da pratica clinica. No Posfécio ([1927] 2017, p.298), elenos diz.que a experiéncia analitica ensina que “..] na psicandlise, tem existido desde o inicio um laco inseparavel entre cura e pesquisa”. £0 aprender tratando ou tratar aprendendo. ‘Mas isso nao pode acontecer de qualquer maneira, por acaso. E aqui que entraa supervisao cli . Para quem é um jover praticante da pratica analitica, mas que j4 possui alguns conhecimentos tedricos e um percurso de analise pessoal que permite uma escuta analitica, existe um analista mais experiente que pode desempenhar um papel ora relacionado coma anéllise pessoal, ora com 0 conhe Jorge (2017, p. 162) fala de “[..J recolocar em acao a vigéncia do discurso psicanalitico”. Isso se dana medida em quea supervisio clinica assume duas fungdes: . Remeter o analista em formacao a sua propria analise, quando alguma questao pessoal dele esta interferindo em sua escuta analitica; e . Remeter o analista ao estudo teérico, quando alguma falha no seu conhecimento teGrico é a responsével pela dificuldade na condugao do tratamento. Podemos fazer, a partir dai, do tripé da formacdo, um né borromeano (constituigao de trés anéis| entrelagados). Video como éa Formacao em Psicanalise? Leitura Como Alguém pode Tornar-se Psicanalista? Clique no botao para conferir 0 contetido. Material Complementar Indicagées para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: NogGes Basicas de Psicandlise: Introdugao a Psicologia Psicanalitica BRENNER, C. Nogdes basicas de Psicandlise: introducao a Psicologia psicanalitica, 5.ed. Rio de Janeiro, Imago, 1987. leos Em quais Textos Freud Fala sobre Cultura? Psicandlise e Surrealismo Formacao do Analista: Um Impasse Necessario Clique no botao para conferir o contetido. 38 Referéncias BERNARDES, W. L..F. Como se forma um psicanalista? Reverso, Belo Horizonte, v. 41, 0.77, P. 111-117, jun. 2019. Disponivel em . Acesso em: 12/02/2023, CALLIGARIS, C. Cartas a um jovem terapeuta: reflexdes para sicoterapeutas, aspirantes e curiosos. 6. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. DANTO, E. A. As Clinicas Pablicas de Freud: psicanalise e justiga social. Sao Paulo: Perspectiva, 2005. DURKHEIM, E. Division of Labor in Society. Nova York: The Free Press, 1997. (Trabalho original publicado em 1893). 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