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Corpo utépico” José A. Braganga de Miranda” Resumo Dé-se conta de uma mutagao no imaginério ut6pico, a passagem do *mundo” para 0 “corpo”. Desde sempre a categoria de “mundo” serviu de garantia de uma transformagio da ‘experiéncia, segundo clivagens estéticas e cientificas, mais ou menos violentas. A crise do utopismo que o concentracionairio e as guerras do século XX originaram, levaram a deslocagéo do impulso utépico do mundo para 0 “corpo”, que serve agora de “imagem geral” para a abordagem especulativa da experiéncia contemporanea, crescentemente requisitada pela técnica digital Este processo coloca novos desafios ao pensar, que se procuram apreender nas suas grandes linhas. Palavras-chave: Corpo, Utopia, Virlualidade, Esteticizacao. * Recebido para publicagso em novembro de 2000, Professor do Departamento de Ciéncias da Comunicagio, Faculdade de Ciencias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; tesponsavel pela Area de Comunicagao © Cultura; presidente do Centro de Estudos de ‘Comunicagéo e Linguagens (www.cec pt) cademnos pagu (15) 2000: pp 248 Corpo utépico Body and Utopia Abstract ‘An account of a mutation in the utopic imaginary, the passage of the “world” to the “body” is given. Since always the category “world” was a guarantee of a transformation of the experience, according to aesthetic and scientific cleavages, more or less violent. The crisis of utopianism that the concentration experience and the wars of century XX have originated, has led to the displacement of the utopian impulse of the world for the “body”, that now serves of “general picture” for the speculative approach of the contemporary experience, increasingly requested by digital techniques. This process places new challenges to thinking that are ‘examined to apprehend their major lines, Key words: Body, Utopia, Virtuality, Aestheticism, 250 José A. Braganga de Miranda Le prothese de Tame ne doit pas se voir Stanislaw Jerey Lee © que poderd ser um “corpo utépico”? E pensdvel um corpo que nao tenha lugar ou que nao esteja em algum lugar? Ou um corpo “perfeito” ou “glorioso” que escape a fragilizagéo que o tempo desfere nos corpos? Estas questées _evidenciam imediatamente o cardcter aporético desta formulagao. Na verdade 86 sera possivel tratar esta questao partindo da tinica “utopia” que a histéria nos legou, ou seja, a “alma” ou Psyké. © que nos faz adentrar no reino das imagens, pois a Psvké é basicamente um assunto de “imagem”, Di-lo, por exemplo, Erwin Rhode cujo caminho se cruzou de muitas maneiras com 0 de Nietzsche no mundo homérico o homem tem uma dupla existéncia: a da sua corporeidade perceptivel e a da sua imagem invisivel, que s6 ganha vida prépria e independente depois da morte. Essa imagem invisivel e somente esta é a Psyké! Aquilo que se seguiu foi a enorme complicagao histérica, de fundo teolégico ou metafisico, para circunscrever a “alma”, Nunca tanta inventividade se gastou com outro assunto, mas dele dependia demasiado, a imortalidade, a liberdade, a vontade, etc. Os modemos nao fizeram menos esforgos, mas agora para a “anular” ou “desmistificar”, encontrando por todo o lado somente “corpo” @ apenas “corpos”. As medicinas, as fisiologias, as neurologias continuaram a circunscrevé-la, transformando-a em “espitito”, “consciéncia”, “cérebro”. No fim restaria o “corpo”. Sé que nao se atentou suficientemente, como vimos com Rohde, que originariamente nao é possivel a nogao de corpo sem a nocao de alma. Depois dos modemos terem cacado 0 “espiritualismo”, 0 * nope, Enwin (1876). Prique. La idea del alma y la inmortalidad entre los _gregos. Ciudad de México, FCE, 3ed. 1994, p.10. 251 Corpo utépico fantasma na méquina, ficando apenas com 0 “corpo”, como é possivel incluir nesse corpo despojado de toda a divisso - ea Payké era isso mesmo, uma diviséo incorporal e imposstvel do corpo -, aquilo que ela visava: a de um corpo sem lugar, sem decadéncia, sem morte? Analisar este paradoxo equivale a interrogar o estatuto contemporaneo do corpo, no momento em que parece constituir uma utopia irreconhecivel. 2. Ha um novo relacionamento, inexordvel, entre “corpo” e “utopia”? Serd necessério comecar por umas breves palavras sobre a “Utopia”, palavra que ainda fez estremecer coragoes — de esperanca ou de horror, pouco importa. Desde o inicio esté marcada pela imagem com que, primeitamente, foi cunhada: a Utopia de Thomas More. Depois dessa obra a utopia & apresentada como imagem inversa ou outra do “Mundo”, Que se venha a aplicar ao corpo significa que, através desta aplicacao, ainda se visa 0 mundo, ou, inversamente, que 0 mundo esta a ficar “circunscrito” ao “corpo”. Em qualquer dos casos trata-se de uma juncao inesperada e que teremos de inquitr. Todo um arco de tempo decorreu entre as utopias de More ou de Rousseau, que ndo visavam realizar-se, mas “criticar” a época, ¢ as utopias do século XIX, como as de Fourieur ou de Saint-Simon, inteiramente voltadas para a sua efectivagao, para a sua inscrigo no real, até as perversidades do concentracionario no século XX. O problema nao esté, como pretendem Deleuze e Guattari, no facto de que “a utopia nao é um bom conceito porque, mesmo quando ela se opée & Histéria, ainda se refere a ela ¢ inscreve-se nela como um ideal ou uma motivacao"? E a obsessao pelo “real” e pela realizacao que obceca os doentes da utopia. Daf o seu parentesco com a vontade teolégica de alucinar ® Dexuze, Gilles & GuaTTan, Félix. Quiest.ce que la Philosophie. Paris, Minuit, p.l06. 252 José A. Braganga de Miranda © “real”, de the dar um fundamento absoluto. Mas se a teologia ainda deixava no vazio a “figura” do outro espago - 0 paraiso, por exemplo -, a utopia tende sempre para a apresentacdo de uma “imagem” total do outro espaco. A crise da utopia derivou menos da tentativa de realizar uma das “suas” imagens, do que do imperativo utépico que leva, simultaneamente, a desrealizar a existéncia e realizar-se como “imagem”. O impulso para realizar essa imagem toma-se grave quando existem poderes e técnicas capazes de “inscreverem” no “mundo” a utopia. Como esquecer o cortejo de violéncias que esta vontade de 10 provocou? Daf a inutilidade das tentativas de Gianni Vattimo de salvar a utopia de si mesma, criticando as suas figuras distépicas ou contra-ut6picas", para a “salvar” ainda, Eis a razo da sua critica de da utopia como “um realidade optimizada através de programacao racional, seja esta orientada metafisicamente ou tecnologicamente"* a que se oporiam as “distopias” na sua recusa decidida dos efeitos da racionalizacéo, que privilegia no presente as suas possibilidades mais catastréficas. Dada a crise das programacées racionais do mundo que se alimentavam do impulso utépico, néo admira que o “distépico” tenha imperado no século XX, que o Admiravel Mundo Novo de Huxley ou 0 1984 de Orwell exemplificam bem. A primeira vista estariamos diante de um “esgotamento” da utopia, como se ela tivesse ficado para trés, ou tenha, talvez, caido em destrogos no mundo que ela deveria ter salvo. Nao seré que o impulso utépico acabou por assuumir outras formas? Tudo indica que estamos a viver os efeitos da perda de transcendéncia do impulso utépico. A situagao fica mais clara se recordarmos que, para Ernst Bloch “a funcao utépica é a Gnica funcao transcendente que permaneceu e é a tinica que vale a 8 VartiMo, Gianni. A Sociedade Transparente. Lisboa, Relégio éAgua, 1992, p.16. (La Societd Transparente, 1989] "1p. p.79, 253 Corpo utépico pena conservar: transcender sem transcendéncia”. A utopia estava, assim, encarregada de garantir uma transcendéncia sem Deus, a transcendéncia s6 se podia fundar na “esperanga” ou na imanéncia de uma figuragdo. Com a crise das grandes imagens picas do mundo, de que somos contemporaneos, o efeito imediato acaba por ser a sua disseminacao por toda a experiéncia Com 0 que se explicita algo a que aludia Walter Benjamin: no sonho em que cada época se representa em imagens a época seguinte, esta aparece misturada com elementos vindos da histéria primitiva, quer dizer da sociedade sem classes, Depositadas no inconsciente colectivo, as cexperiéncias dessa sociedade, em ligagdo reciproca com 0 novo, dao nascimento & utopia, de que se acha trago em mil figuras da vida, desde os edificios durveis até as modas passageiras A primitividade da utopia tem a ver justamente com a maneira como se funda num fundamento ultimo, a “natureza”. E isso precisamente que alimenta a sua “idealizagéo” da existéncia, dividindo-a para melhor a negar e, finalmente, para abolir toda a divisao. Se a utopia permanentemente reativa esse fundo primitivo, por outro lado, ela opera através do agenciamento dos modos como a teologia fazia habitar cada “particular” por um fluxo de transformacao ou de redencdo, que a todos abolia, propulsando-os para o final da hist6ria, onde tudo seria salvo. A diferenga agora, é que este processo nao ocorre no tempo, mas no espaco da actualidade. A imanentizacdo da utopia leva a que cada fragmento ou objecto, qualquer “particular”, seja possuido por forcas ja nao transcendentes, mas de “absorcao” interna de todo o particular reduzido a “objectos” ou “matéria”, mais ou menos § Boum, Walter. Le Lire des Passages. Paris Capital du XIX Siecle. Pavi, Corl, 1989, p.36 (trata-se do 1°. exposé) José A. Braganga de Miranda plésticas, ¢ uma dissipagéo ao extera em imagens “materiais’, dotadas de consisténcia técnica.* Quando a diferenca entre “real” ¢ “meal” se desvanece tudo pode ser “utépico”, que se dissemina por toda a experiéncia, desdobrando-se em infinitas pequenas utopias ou “micto-utopias” que, aparentemente, j& no visam o “mundo",” Corresponderé esta disseminacdo a uma nova “etapa” da utopia? Ha progressao hist6rica das “utopias”, que abandonariam as imagens grandiosas, do tremendum sublime, para se tomem mais “modestas” “locais"? Pelo contrario, tudo indica que as pequenas utopias cortespondem a uma espécie de “estado viral” do utépico, quando este deixa de poder ser “usado”, esteticamente ou politicamente. Quando 0 Poder se enleia nos mecanismo que poe em movimento, Diremos, portanto, que a difusdo viral do ut6pico € sua forma contemporanea. Ora, 0 que a utopia procurava afectar era o “real” no seu conjunto, 0 que explica a centralidade da categoria de “mundo” A crise das utopias, a dominancia das distopias, é insepardvel da crise da imagem “racionalista” de um “mundo” alternativo, de um. outro espaco. Com uma consequéncia interessante: a ideia de “mundo” sai radicalmente abalada. Um novo espaco é necessério © Evidenciada “esgotamento” estranhamente a utopia sobrevive, na teoria © na pratica, E certo que a sua sobrevivéncia teérica a deixa num estado lamentével, como © mostram as tentativas de Richard Rorty de reduzila & “invengio teria, ou as teses de Vattimo que a “salva” enquanto pequenas “heterotopias” ou a de Frederic Jameson que a encara como “reprimido” da cultura pés- moderna, Pouco se passa aqui, de facto, Um exemplo apenas, de Rorty que defende “a realzacdo de utopias ¢ 0 perspectivar de ainda outras utopia com um processo sem fim: uma realizagio sem fim e prolifrante da Liberdad, em vez de uma convergéncia para uma Verdade previamente existente”. RORTY, Richard, Contingency, Irony, and Solidarity: Cambridge, Cambridge UP, 1989, p.XIV. 7 Tom Siebers refere, por exemplo, as “heterotopias” que s8o uma espécie de “micro-utopias” cuja natureza é bastante ambigua. Vio desde as utopias dos arquitectos, as das feministas que querem escapar a0 mundo “do” homem, mas também a espaco de instalacao dos artistas, escultores, mas também da poesia. CF. Steatas, Tobin, (org.) Heterotopia, Postmodlem Utopia and the Body Politic. Institute for the Humanities, University of Michigan Press, 1995. 255, Corpo utépico € ser “constituldo” a partir de uma das categorias mais resistentes da metafisica ocidental - a de “corpo”. As micro-utopias sao utopias do corpo, e o espago em que se desdobram é o espaco de um “corpo ut6pico”. E certo que tais “micro-utopias” mal sao. reconheciveis, que em boa medida nem recorrem a palavra utopia. E ela que alimenta os bodybuilders, os atletas de alta performance, aos paraisos arificiais do Prozac, os cyborgs ou a estranha “fisica” da Virtual Reality. O facto de que a “imagem” mais forte da utopia tenha deixado de ser a do “mundo” para se tomar na do corpo é, em si mesmo, enigmatico. Seja, como for, quando comeca a vacilar a relacdo entre corpo e mundo, entre real ¢ irreal, 0 efeito mais imediato ¢ uma crise de fronteiras, que se consubstancia, contemporaneamente, na questéo do “hibrido” e da contaminagao.* 3. © processo de criacao de um “corpo utépico” tem duas caracteristicas essenciais. Por um lado dé-se a substituicao do “mundo” pelo “corpo”, como categoria organizadora das imagens ut6picas, por outro, este processo € acompanhado pela crise do proprio “corpo”. O que nao dever constituir surpresa, pois para o “corpo” poder ocupar o ligar do mundo € preciso que expluda e se dissipe. E este processo de explosdo que estamos a assistir, Quando isso ocorre o “hibrido” domina, Aliés, 0s dois aspectos so concomitantes. A particular importancia do “corpo” vem dela ser uma categoria altamente resistente, da qual depende, na metafisica ocidental, a relacdo interior e exterior, entre visivel e invisivel, entre mortal e imortal, entre senhor e escravo, etc. A identificagio do corpo com o “individuo” é tardia, sendo basicamente moderna. Basta atentar na maneira como Hobbes refere a comunidade como body politic, A categoria de “Hibrido” domina em autores contemporaneos como Homi Babba, Arjun Appadurai, Edward Soja, ete 256 José A. Braganga de Miranda como a salvacdo era, teologicamente, dependente da ideia de um. “corpo lorioso”, ou até da identidade das modemas corporations, etc. O corpo é, portanto, uma categoria de, longa continuidade, que afecta toda a instituigéo da metafisica. E certo que se toma central apenas na modernidade, de tal modo que o corpo “préprio” é a base para pensar a questo da propriedade” ¢ da liberdade. Todo o sistema jurfdico moderno depende dele. E ‘um conceito limite, a que se op6e o de “mundo”, como dissemos, € que, por condicao, tem de ser permanentemente diferido. Como refere algures Claude Lefort, a liberdade moderna implica uma desincorporagao generalizada do mundo. A haver “corpo” € no privado, mas néo no piiblico, em que apenas existe uma “identidade” abstracta. Esta nogdo de corpo, mesmo se diferida, servia basicamente para proteger a “came”. Dai o intenso dramatismo da doenga e do crime, em que a cate emerge absolutamente desmunida e intervencionada, operada, etc. A categoria de corpo era 0 pressuposto geral da ordem modema, tendo vindo para a frente da cena a medida que se torna problemética, Para além da crise da utopia do mundo, esta mutacao prende-se ver com a crescente enxertia, miscigenacdo, substituigéo, etc, da came por aparelhos técnicos. Enquanto “categoria” politica 0 “corpo” conseguia proteger a “came”, mas {sso era feito & custa de uma fixagao juridica do “corpo” que rapidamente se revelou demasiado frégil. E era-o, deveras, 0 “corpo” préprio tinha assumido a diviséo corpo/alma da teologia, eplicando-a como corpo organico e “corpo simbélico” ou “consciéncia”, nas quais se vo encapsular uma série de outras divis6es. O corpo como propriedade propulsou as tendéncias a intervir nele, a partir de imagens de todo o género. Perversamente © proprietétio esta a ficar sem propriedade. Fazendo com que 0 “corpo” mal consiga sobreviver as forcas & solta na modemidade terminal que é a nossa. A actual afirmacéo do corpo leva, ° Cf. Por exemplo, MACPIIERSON, Crawford B, The Political Theory of Possessive Individualism. WCarbrigde, C. UP, 1962, 257 Corpo utépico paradoxalmente, A crise do “corpo” modemo. Como tefere Nicholas. Mirzoeff: “O corpo esta assediado pelo mundo farmacolégico, aerdbico, dietético, liposuctivo, caloricamente controlado, cibernético do pés-modemismo”.” O autor dé-se conta de algo essencial: “O corpo tornou-se numa questo central da academia e da cultura, fornecendo um dos poucos pontos de contacto directo entre esferas frequentemente divorciadas”." Acrescente-se a esta lista as novas préteses, 05 novos processos de scanning clinico, as novas politicas do feminismo e dos gay studies, e tora-se inteiramente claro o papel que 0 corpo desempenha na experiéncia contemporanea. Para Mirzoeff esté a ocorer uma “amplificacéo do corpo”, similar ao que Walter Benjamin descreve na | Guerra: Uma geragao que ainda fora A escola em carruagem puxada a cavalo, viu-se indefesa, numa paisagem em que tudo se alterava excepto as nuvens, Debaixo delas, perdido num campo dominado por explosées e forcas destrutivas, ‘estava 0 mintisculo e frégil corpo humana.” O céu azul e imutavel, que assombrava Mallarmé em “L’Azur”, é 0 tinico sinal de transcendéncia. Mesmos e cheio de nuvens ele é 0 Xinico sinal de transcendéncia, que esté sempre atrés, num primitivismo da natureza. Para os contemporaneos o proprio céu apresenta-se como ameacador, depois de ter sido trespassado pelos avides, de ter sido esburacado pelo “buraco de ozono”, de gravitado por misseis de longo alcance. Nao se trata de nenhuma “ampliagéo” ou “extenséo” do corpo, mas de um momento de passagem em que este, assediado por forcas desmesuradas, ir explodir, disseminando-se por toda a experiéncia. Pedacos de "© Mipzoerr, Nicholas. Badhscape. At, Modemity and the Ideal Figure. Londts, Routledge, 1995, p.. "= Banana, Walter. Namrador. In: Sobre Arte, Téenca, Linguagem e Poltica Lisboa, Reldgio dAgua, 1992, p.28. 258 José A. Braganca de Miranda corpos que juncam os campos, que as Tempestades de Ago que Janger tao bem descrever, mas também disseminagao do “corpo metafisico”, cuja cisdo foi provocado por essas forgas. Tem razio Mirzoeff a0 afirmar que “quando 0 corpo muda entao tudo esta em transformagao”. Esta bem indicado o lugar do problema, falta explicé-to. ‘A crise do corpo modemo, simultaneamente organico € racional, acabou por ser potenciada pela critica fundamentalmente estética que se desenvolve no pés-querra. Bom exemplo disso é a afirmacao provocatéria de Burroughs de “ofereceram-te um corpo para sempre. Para cagares sempre”. Ou na critica de Artaud aos “érgaos” © compo 0 corpo.existe por si e nao precisa de érgios, 0 corpo nunca é um organismo, os organismos s8o 0s inimigos do corpo, as coisas que nés fazemos amanham-se sozinhas sem 0 concurso de qualquer érgéo, todo o érgao é ‘um parasita, cumpre uma funcao parasitéria destinada a ‘manter vivo um ser que nao deveria existir."” Se a critica do orginico vem, pelo menos, da antiga teologia, jé a critica aos “érgaos” é mais reveladora da tendéncia que procuramos aprender. Seria absurda se nao estivesse em causa 0 “corpo do mundo”, e nao 0 corpo “fisico”. De facto, a critica dos 6rgaos, por Burroughs, Artaud e também Deleuze, 6 no cabe na nogéo de “corpo” moderno, revelando que o “corpo” era, desde sempre excedido, por um feixe invisivel de relacées e de ligacdes, em reserva, que o “fixavam”. Sao relacées politicas, juridicas, contratuais, mas também passionais, etc. Apenas num “mundo” de “fome” o estémago domina. Numa sociedade sem fome o estémago jé nao conta, ou conta de outro modo. E.0 mesmo se aplica a todos os “érgaos” Em suma, 0 corpo tornou-se urgente porque a sua crise implica uma crise de alcances metafisicos absolutos. As anélises "8 Astaup, Antonin. Para Acabar com O juizo de Deus, Lisboa, Sete, p.152. 259 Corpo utépico anteriores seria preciso ainda acrescentar os efeitos das méquinas 6pticas que fixaram todas as espectralidades ¢ invisibilidades do otpo organico”. O corpo mais do que “amplificar-se” tomou-se gente. E por isso que, no momento actual, 0 corpo é um ampo de batalha”. Numa das suas montagens diz Barbara Krueger: “The body is a battleground”."* O campo de batalha esta a ser propulsado por uma utopia do corpo, que resultou da crise referida, quer da utopia quer do corpo, tal como se constitufram moderamente. A ideia de uma extensao ou ampliagao do corpo, que resulta da descoberta da “trama” de ligagées que 0 corpo dléssico “ocultava”, mas que o constituiam, tende a ser puramente tecnolégica. No por acaso Donna Haraway tem vindo a insistir no novo hibride de que 0 cyborg seria a “imagem”, como sendo “o sonho utépico da esperanca de um mundo monstruoso sem género”."" O “monstro” significa aqui apenas 0 que nao cabe no corpo identitério moderno, resumindo-se toda a “monstruosidade” & “utopia” de uma “imagem condensada da imaginagéo e da realidade material, que conjuntamente estruturam toda a possibilidade de transformacao histérica”."° hibrido é, antes de mais, o efeito de uma “confuséo” de fronteiras e de linhas, que se sustentam do extremar da categoria de corpo. A utopia do “corpo politico”, da comunidade perfeita, é suportada pelo “corpo utépico” contemporaneo, O compo esté a tomar-se, portanto, a imagem do mundo. Tudo se torna cada vez mais “biotécnico”, cada vez mais wet, ¢ as formas “recénditas” do biolégico comecam a reorganizar a experiéncia actual. Imagens internas do corpo, que comegam a sair em catadupa do “interior” para se espalharem pelo “exterior” Enquanto no cinema os cyborgs interiorizam uma série de préteses de dispositivos técnicos. Como se houvesse uma corpo é um campo de batalha”. "Estou a parairasear 0 Manifesto Cyborg de Donna Haraway, amplamente disponivel na Intemet “1p, 260 José A. Braganga de Miranda convergéncia, entre ambos movimentos, que abole todas as fronteiras metafisicas ¢ as instabiliza. Mas esta hibridez baseia-se numa “imagem” perigosa: a da extenséo do corpo. A titulo de exemplo refira-se a obra escultor americano, Michael Rees que exibe na perfeigéo os tragos de tal extensionamento do corpo a toda a experiéncia. As suas esculturas sao concebidas através de métodos de scaninng dos érgaos internos e de modelacao em tres Dimensées. Depois de recombinadas com outros objectos, quer mundanos quer digitais, so seguidamente reescaladas, sendo depois executadas. O resultado tem a ver com uma reversao de interior e exterior, langando no mundo objectos que jé foram descritas como “humanéides”, mas que séo mais “organdides", implanto no “espaco organico” objectos que Ihes so “ A aparéncia produzida é a de uma reversio do corpo, que Rees fixa através de meios tipogrétficos novos"”. Para uma comentadora, Dana Self, “ao usar métodos high-tech de design, a obra de Rees pressagia o potencial do corpo fisico metafisico para a sua alteracdo, substituico, prétese e clonagem”. A metafisica que Rees procura activar para “juntar” ao corpo e “alargé-lo” tende fundamentalmente a fortalecer o investimento técnico do “corpo” e através deste, a reconstituicéo do “mundo” a partir do “corpo ut6pico”. Os métodos tipogréficos deste artista, a0 darem volumétrica aos corpos “ultra-finos” da imagem, antecipam uma tipografia nova, a de um mundo feito & imagem de um corpo, em que se hibridiza toda a experiéncia, Nao ha nada que nao possa ser recombinado, redesenhado, seja imagem”, corpos e matéria, Querer superar a obsolescéncia técnica do corpo tem o efeito perverso de fazer dele o tinico ponto de “ancoragem” do mundo. £0 corpo que espreito e é espreitado nos terminais teleméticos, como se fosse a tinica interface para 0 mundo. "Trata-se de uma tecnologia denominada por rapid prototyping que “imprime” as exculturas em volume. 261 Corpo utépico Se no Gulliver de Swift o “corpo” se telescopava, jumentava e encolhia, isso sucedia porque era um revelador do mundo” de que a utopia era o espelho. Agora, o corpo torna-se © centro, porque se identifica com o préprio mundo. © “corpo utépico” coresponde, entao, ao momento em que utopia, sempre 0 outro do mundo, se fixa na imagem do corpo. A sua extensao implica a realizacao técnica ou literéria da metafisica pela utopia. E interessante verificar que, se nao ha pia sem corpo, ou sem corpos, basta pensar nos tres corpos da Repiiblica de Platio, em muito poucas o “corpo” tem o lugar decisive. E certo que nas distopias de Orwell ou de Huxley o corpo esta obsessivamente presente, mas isso sucede para melhor revelar o estado das coisas. Do vasto corpus da literatura ut6pica apenas em Andrei Platonov encontramos uma reflexdo essencial sobre 0 “corpo ut6pico”. Por falta de espaco, limitemo-nos a algumas observagées sucintas, para recolocarmos 0 problema. Em O Pogo da Fandacao", publicado apenas em 1987, mas que foi escrito nos meses de inverno de 1929 e 1930, 0 “corpo utépico” entra em cena ao mesmo tempo que a “utopia” se esvanece, enterrada no “pogo” que ela prépria originara: 0 de construir um “casa” perfeita, um “mundo” absolutamente feliz. A histéria tem a ver com a construc de uma casa para os futuros jovens nascidos na “revolugéo”. Alegoricamente est’ em causa o retomo da “humanidade” a casa, da Unica maneira como pode ser pensada. Construindo-a. Sucede que o plano da casa é téo incomensurével e infixdvel, por razdes misteriosas, que as fundacées exigem um “pogo” que vai crescendo desmesuradamente. Finalmente nao ha " Andrei Platonov & autor de obras densas e fantasmagéricas, caso de O poco das Fundagées e Chevengur, que tendo sido escrtas nos finais dos anos 20, s6 foram publicadas, em russo, nos anos citenta, ' Em Inglés o titulo é The Foundation Pit, e em Francés La Fouille 262 José A. Braganga de Miranda mais que um enorme buraco, esse imenso poco. Por uma “casa” que nao chega a ser construida, de que apenas ficou 0 poco, todos os trabalhadores abandonaram as suas, os kulaks foram expulsos, as mortes sucedem-se, e no fim, até Nasiva, a rapariguinha que parece representar 0 “novo comeco”, também, ela acaba por morrer. ‘A ambivaléncia de Platonov é maxima neste ponto. A utopia de regeneragéo do mundo desaparece, revelando-se como impossfvel. Tudo indica que Platonov descobre que nao € possivel realizar a “utopia” sem um trabalho sobre os corpos. Como se 0 segredo da utopia fosse 0 “corpo utépico”. Apesar de neste processo nao se construir a casa, ele é altamente eficiente: No seu decurso 0s corpos vao ser transformados, apagando-se todos os seus atributos um a um, até ficarem em puros “corpos”. A construgéo da casa é apenas o pretexto para instituir 0 “corpo utépico” da Humanidade, Trata-se de uma destruigéo necesséria? Prushevsky, 0 engenheiro que dirige a construgéo da “casa de todos os proletérios”, num olhar desencantado, mas que ndo 0 impede de continuar a obra, j4 néo vé mais “do que material de construgéo inanimado e pessoas exaustas ¢ sem espirito”. Mas esse € 0 efeito necessdrio da construgdo que prepara apenas uma outta. O engenheiro interroga-se se numa outra década ou duas, algum outro engenheiro ‘conseguiria construir uma torte, no centro justo do mundo, onde as massas de toda a terra poderiam residir felizes até a0 fim dos tempos. Mas ele era incapaz de adivinhar a cestrutura psiquica dos habitantes dessa casa comum... E que espécie de corpos teriam entao esses jovens? A casa comum dependera entéo do “corpo ut6pico” e se este nao é imediatamente intuivel, é passivel de preparacdo. Tem de se comecar por destruir os “corpos reais" e os “corpos espirituais” que a histéria nos legou. Na verdade nao se esté a construir 263 Corpo utépico nenhuma casa, mas a preparé-la, através da exausto da Terra € dos corpos. Apesar da linguagem poética ¢ irénica de Platonov™, que a toma dificilmente analisével, este parece reconhecer que corpo proletério passa pelo abalar das relagées entre corpo e espiito, que nao as da metafisica, O corpo ut6pico existe como Psyké, mas esta ¢ infigurdvel. Dai a necessidade de destruir 0 “psiquismo” do sujeito modemo, Por exemplo, o her6i Voshchev quando entra na barada dos trabalhadores sé ve “corpos devastados”, emagrecidos de uma “fome” que nao consegue definir. A magreza do corpo parece deverse a uma “fome” alimentada “espiritualmente”, abstractamente, que se confunde coma linguagem usada pela Construgao, em que “o abstracto ¢ o concerto, 0 animado e © inanimado sao sistematicamente confundidos’.* Seré que esse “espirito” que a todos possui e exaure ¢ “exaustiia” tem de ser 0 do “comunismo” ou melhor do estalinismo? Dirfamos antes que é 0 corpo “utépico” enquanto Payké, que s6 pode sobreviver alterando radicalmente a maneira como o “corpo” se constitui ao longo da histéria. O que passa pela confusao do corpo e espirito. E nele que se ancoram todos os atributos, caracteristicas e propriedades, as mais concretas € as mais abstractas. Daf a existéncia de uma espécie de prosopopeia das categorias. Os actores so “quadros de vanguarda”, “categorias de baixos salérios”, “o sector kulak”, “o proletariado”, etc. Sally Laird chama a atengéo para o facto de que no final do romance a prépria fazenda colectiva adquiriu autonomia como © Frederic Jameson defende que a escita de Platonav nao ¢ irénica nem critica, cortespodendo basicamente @ uma ulopia do "segundo Mundo” de comunismo, {que nao faz apelo nem & mercadoria nem ao dinheiro, Cf. JAMESON, Frederic. The Seeds of Time. Columbia, Columbia University Press, 1994, nomeadamente © capitulo "Utopia, moderism and death’, pp.73-128, * Ch Lago, Sally, Russian Bodies and Souls. In: wuw.prospect- magazine.co,uivhichlightsrussian bodies. Para além de Laird, na leitura de Pratonov foime partcularmente til o trabalho de PoDoROGA, Valery A. Machines of disorder, In: hitpu/ynwys liudmilora/embassy/3bjsel13 him, 264 José A. Braganca de Miranda sujeito: “The collective farm went outside, sat down by the fence and settled there”. O que estas “categorias” vampirizam ~ mas este vampirismo nao é necessariamente mau para Platonov, sendo certo, porém, que os seus romances foram proibidos -, sao 08 individuos concretos, que jé esto eles préprios vampirizados pelas categorias herdadas da histéria. O que se enterra no poco a individualidade, mesmo que seja a da “utopia” Nesta obra Platonov mostra que o operador do corpo ut6pico sao finalmente maquinas metafisicas, de que, aliés, a sua obra esta repleta, Um filésofo russo. Valery A. Podoroga define-as como “méquinas catastréficas” cuja “...finalidade titima é fazer com que a realidade do desejado se torne verdade, 0 que implica a entrada numa época de catéstrofe telirica”. Tratam-se de méquinas estranhas, feitas sempre do aparelhamento de instrumentos, corpos e imagens, que Podoroga distingue entre maquinas de morte, como a do “pogo”, ou maquinas de vida, a maquina de luz, caso da “maquina etérea”. Mas o resultado é sempre 0 mesmo, libertar um espaco que se identifica com o corpo ut6pico, no qual ndo cabe absolutamente nada. Seja como for, 0 resultado final é idéntico. Perdida a meméria, as propriedades, a lingua, nada resta senao uma paisagem desolada, sem homens. Num esboco do final do romance, pergunta Platonov: “Sera que a USSR motreré como Nastya, ou ctescerd até tornar-se numa tinica pessoa, numa nova sociedade histérica”. © “corpo utépico” que estava em curso surge no preciso momento em que o hiperpoder do Estado ¢ impotente perante a maquinaria que pés a funcionar. Seré das maquinas que vira 0 dele? Tudo indica que as duas assergées sao verdadeiras. Mas para isso é preciso abolir as “particularidades” da histéria, sentida sempre como obstaculo. Platonov presente um problema crucial, que nos nossos dias s6 um James Ballard tratou convenientemente. Basta lembrar 0 romance Crash, pejado de uma enorme melancolia pelas interminéveis “filas” de automéveis, que nao conseguem mover-se rapidamente, parecendo restar apenas o acidente como “corpo utépico” ou estas alimentam-se metafisicament 265, Corpo utépico destino, ou a elevagdo maquinica dos avides, que cruzam incessantemente o espago literdrio do Crash. O segredo da técnica esté em “criar corpo”, destruindo tudo o que se oponha. E o corpo equivale, nesta perspectiva, ao “cosmos” Este resultado é, finalmente, um efeito da metafisica ocidental, ¢ da maneira como se fixou numa dada relagéo de corpo e Payké. O “poco das fundagoes” acaba por ser o abismo em que cai a metafisica na sua fase terminal, em que se realiza automaticamente, tecnicamente. E por isso que a imagem do corpo se difunde por todo o lado, como um virus, capturando 0 impulso utépico de destealizacdo e perfeigéo, que leva a uma inactividade absoluta, que ¢ 0 seu efeito imediato, como se pode depreender de outro romance de Platonov, em Chevengur. A ideia de estender o corpo, s6 tem sentido em duas direccées. Alargar 0 corpo até recobrir o mundo, fazer incluir o mundo nele. Em todos os casos, temos a doenga das fundacées, com a queda no “pogo” platonoviano. O corpo metafisico esta a ser destruido pelo corpo utépico, levando a uma abismacao sem fundo, a um pogo infinito, que levaré a anulagéo de tudo. Aumentando a velocidade ou a intensidade ou a presséo, tudo se transforma numa “mescla", que cai para o turbilhao sem fim da Physis. Nenhuma solugao no “hibrido”, portanto. Paralelemente, a Psyké como imagem do corpo perde-se numa infinidade de “imagens”, nada a permitindo distinguir. A extenséo actual do corpo fisico ocorre a custa da proliferacao do corpo metalisico.” E nesta tendéncia que vemos a légica profunda do “corpo utépico”. Nao esté em causa redesenhar o “corpo”, seja para estendé-lo, seja para escoré-lo. O que esta em causa so as formas actuals da Payké Problema este que vem do fundo dos tempos. Artaud pode ser de utilidade: % Se me perguntassem qual é hoje a “imagem” de “corpo utépico”, dria que é a ddo “Corps Sans Organes" de Gilles Delewze, por paradoxal que pareca. 266 José A. Braganga de Miranda Néo, © corpo humano € imperectvel e imortal e mutével, ‘mutavel fisicamente e materialmente, anatomicamente manifestamente, mutvel visivelmente e aqui mesmo bastando que queiram dar-se a pena material de o fazer mudar.” Todo o mistério est em distinguir o que é mutavel e o que nao é mutavel, sem cair nas armadilhas do “corpo”. Diz ainda Artaud: “Obrigaram o corpo humano a comer, obtigaram-no a beber para evitar pé-lo a dangar”.?* Mas as propostas de fazer “dangar” o corpo, de “estendé- lo, de “tedesenhé-lo”, sao, finalmente intteis. Infelizmente 0 “poco” de Platonov esta também no interior do corpo, fundamentalmente nele, Da a similitude que se pressente entre os construtores do pogo tusso, e os esforgos de Stelarc, nomeadamente na “escultura do estmago”, que se agencia sobre um 0 “corpo oco”. Para Stelarc, essa escultura permitit-Ihe-ia instalar uma obra de arte dentro do compo. O compo torna-se vazio sem qualquer distingéo significative entre espagos ppblico, privado e fisilégico. O corpo oco torna-se num hospedeito, ndo para um sujeito nem para uma alma, mas simplesmente para uma escultura.™ Mais uma vez é verdadeiro 0 dito: Fiat Ars, pereat Mundus. Como as grandes maquinas metafisicas de Platonov, também Stelarc, Rees e muitos outros estio aparelhados por um aparelho que os inclu’, Que os inclui tanto mais, quanto mais pensam ser “livres” € “criativos” As maquinas de criagéo do corpo utépico, que misturam a técnica com 0 bios, que separaram a imagem da carne, ® AnrauD, Antonin. Teatro da Crueldade. Lisboa, &ete, p3. Ip, Para Acabar com o Juzo de Deus: Lisboa, &ete, p.152. * Stelarc. Hollow Body/Hollow Space. In: hi Corpo utépico deveriamos opor outras ligages. A vontade de fundamento, de fundagées, que levam apenas ao nihilismo realizado tecnicamente, seria preciso encontrar uma outra forma de responder. Todo 0 esforgo esté em sair do poco. Num outro momento da modemidade, em que se instalava 0 diélogo mortifero entre o abismo da liberdade ¢ a maquina, Poe escreveu um conto infitulado “O Poco e 0 Péndulo”.** Preso por um “poder” desmesurado” que Ihe destinava o pior, descobriu que Ihe estava destinado um “pogo”, de que as escuras ndo conseguia medir a profundidade, Preferia, lé-se, qualquer outra morte do que artiscar-se aos “terrores dos pocos”*, “evocador do inferno considerado_vulgarmente a ltima Tule de todos os seus castigos”.” O “terror do pogo” é esclarecido antes pela opressio provocada pela “simples ideia da profundidade interminavel das descida”." Nao precipitar-se, ter frieza, eis a ligéo, se & verdade que “mesmo no tiimulo nao esta tudo perdido. Ou entao nao ha imortalidade para 0 homem”.*' Quando a morte é certa e 0 corpo mutével, desaparece necessariamente a “imortalidade” da Psyké e © imutdvel. A tinica forma de tha retirarem seria fazé-lo precipitar- se no “poco”. Os torturadores vao, com légica inapelavel, fazer intervir outras maquinas de destruicdo da “Psvké", Primeiramente © péndulo, que baixava rigorosa e matematicamente a cada movimento e que tinha uma lamina que acabatia por corté-lo ao meio. Descida controlada, maquinica, milimétrica mesmo, que o heréi afronta com astticia, libertando-se das amamas que o * CE Por, Edgar Allan. Contos Completos. Il volume, Coimbra, Editorial faber”, 1944, pp.193-219. (Trad. De Manuel Barbosa) * A acgéo passa-se em Toledo, e trata-se, de facto, da "inquisi¢lo”, 0 que nio admira, pois para © heréi estavam destinados os “horrores morals” © nao os ™ Poe, Edgar Allan. Contos Completes. Op. cit, p.204, Ip, t8, p.208, Ip, 1, p.198. "1p, m, p97. 268, José A. Braganga de Miranda prendiam. Depois, uma terceira méquina entra em movimento, que poe em brasa as paredes de ferro do cércere. Finalmente as proprias paredes se tornam numa méquina, comegando a mudar de forma e avancando para 0 empurrarem para 0 pogo, em que se nega a lancar-se: ““A Morte’, disse eu, ‘qualquer morte que nao do pogo!””. Resistindo a0 movimento que o lancava para o poco: Recuei ~ mas as paredes, que se fechavam, empurravam- me inresistivelmente para a frente. Por fim, para o meu queimado e contorcido corpo jé nao havia uma polegada de espago no solo firme da priséo. Deixei de lutar, mas a agonia da minha alma encontrou saida num grito alto, longo e final de desespero, Senti-me cambalear a beira do pogo — voltei a cara. No final j s6 resta voltar a cara ao “poco”. O que parece insuficiente. E eis que, no tiltimo momento, um acaso merecido: Ihe permite escapar. A revolucdo chega e com ela “um braco estendido apanhou o meu, quando cafa, desmaiando para o abismo”.* ‘As maquinas de Poe estavam ao servigo de um hiperpoder de que o poco é a imagem invertida e que acabou de o tragar. Cento e cinquenta anos volvidos sao estas mquinas, que realizam ‘© “corpo” com que todo 0 poder histérico sonhou. A parabola de Poe é instrutiva: a resposta nao esté num outro corpo, nem num corpo melhor. Fundamentalmente, nao est no corpo utépico. Basta um “brago” certo, na altura certa. E apenas isso que podemos e devemos esperar. Demasiado insuficiente, porque podera nunca vir? Isso jé ndo depende de nés. E preciso que esse braco jA tenha vindo, em cada um. Sé é aceitével o acto que propicia a vinda desse “braco”, ou duma “mao” ou de uma Ip, tm, p2I8, Ip. p219. Ip, u 269 Corpo utépico “palavra” certa. A vir, sendo o braco certo, podera ser o braco de um outro homem, de um “monstro” ou de um cyborg, mas sera sempre um brago humano. 270

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