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nA \ Peale Lucio Kowarick e Eduardo Marques (orgs.) SAO PAULO: NOVOS PERCURSOS E ATORES Sociedade, cultura e politica editoralll34 cS N.Cham. 307.76 $239 2011 Titulo: Séo Paulo : novos percursos ¢ atores : sociedade, cultura e politica + a: ‘Ac. 238387 Ex3 IPM UPM-AC | =caulll 14 Transformagoes sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo’ Gabriel Feltran Este ensaio discute as relagdes contemporaneas entre a dinamica social das periferias de Sao Paulo e a esfera dos direitos da cidadania. Para tanto, apresento uma linha de transformacées, em quatro décadas (1970-2010), do projeto dos “trabalhadores”? que colonizaram esses territdrios, fundindo 0 desejo operdrio de ascensao social & aposta politica na expansao da cidada- nia. Analisando o percurso de tensdes desse projeto nas iltimas décadas, argumento que o estatuto do conflito social e politico ensejado pelas perife- rias urbanas foi deslocado. Se nos anos 1980 esse conflito pode ser pautado numa perspectiva de “integracdo” das camadas “trabalhadoras”, pela apos- ta na contrapartida social do assalariamento, agora trata-se sobretudo de gerenciar as fronteiras entre periferias e direito — de modo compartilhado entre Estado, policias e “mundo do crime” — pela énfase sistematica nas representagdes da violéncia urbana. O estudo dos significados recentes das categorias “trabalhador” e “bandido”, internos e externos as periferias da cidade, auxilia o argumento. A pesquisa de campo que subsidia a argumentacio deste artigo teve inicio no municipio de Carapicutba, Zona Oeste da regio metropolitana, hé mais de dez anos;? mas desde 2002 fago pesquisa na Zona Leste da cida- 1 Este texto foi desenvolvido a partir de exposigio no 1 Encontro Nacional de An- tropologia do Direito, organizado pelo Niicleo de Antropologia do Direito da Universi- dade de Sao Paulo em 2009. Agradeco a Ana Liicia Pastore pela oportunidade de elabo- rar essa reflexio. 2 Utilizo aspas para demarcar as categorias de uso corrente nas periferias da cida- de, como “trabalhador”, “mundo do crime”, “bandido” ete. Os nomes préprios citados sao ficticios. 3 Os procedimentos metodolégicos utilizados na pesquisa foram: i} observacio direta e participante de rotinas de individuos, familias, organizagdes sociais e estatais dos bairros, com posterior anotagio sistemstica em cadernos de campos ii) entrevistas semies- trucuradas ou abertas com interlocutores previamente selecionados, por vezes gravadas ‘Transformacdes sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 347 de: inicialmente na Vila Prudente e, nos tiltimos seis anos, em alguns bairros do distrito de Sapopemba, na divisa com Santo André.4 Os temas estudad entretanto, mudaram muito durante esse tempo. Em suma, a énfase analiti- ca nos “trabalhadores” e seus movimentos sociais foi, aos poucos, cedende lugar ao estudo do “mundo do crime” e suas aces coletivas nas perifer da cidade, notadamente o PCC (Primeiro Comando da Capital). As questoes de fundo que me moveram nesse percurso, entretanto, permaneceram pratt camente as mesmas: propunha-me a compreender os sentidos politicos que se desprendem das mudangas no tecido social das periferias nas tiltimas dé cadas, relacionadas a transformacées intensas nas esferas do trabalho, @ familia, da cidade ¢ do associativismo popular. As nogies de politica, direit e cidadania foram, por isso, operadoras centrais da minha andlise: stas categorias me permitiram elaborar a questao das periferias no espaco entre os mundos social e politico, entre as formas de vida locais e sua expresso como discurso ptiblico e institucional, entre os cotidianos de familias ¢ os modos de sua figuracao associativa e de senso comum, ou seja, na tensiio sempre presente entre essas esferas.5 CENARIOS DE TRANSFORMAGAO No estudo dos movimentos sociais das periferias de Sao Paulo, apoiei- -me na literatura que identifica um mexo constitutivo entre cultura e politica, captado e problematizado a partir do trabalho de campo. Imerso nessa em dudio ¢ integralmente transcritas; iii) longas conversas informais com intimeros inte locutores, diurnas e noturnas, durante os periodos (intercalados) de permanéncia nos bairros estudados; iv) coleta de documentagao formal e informal de interesse, sobretudo no plano das organizagées locais. 4 Sapopemba é um distrito com pouco mais de 300 mil habitantes, em Area intei- ramente urbanizada entre os distritos Parque Sao Lucas e Sio Mateus. © distrito sera melhor caracterizado adiante. 5 Para as distingdes entre as esferas social e politica, ver Arendt (2003, 2004). A distingao teérico-normativa da autora inspira minha abordagem, embora seja subvertida aqui com o intuito de pensar ndo as esferas que se distinguem, mas justamente suas rela- g6es constitutivas. § Dagnino (1994) eo Grupo de Estudos sobre a Construgao Democritica, agrupa- da em Dagnino (2002); Dagnino, Olvera ¢ Panfichi (2006); Dagnino e Tatagiba (2007). Tatagiba desenvolve essa perspectiva, no capitulo 9 deste volume, pautando dilemas contemporaneos dos movimentos sociais do centro e das periferias de Sa0 Paulo. 348 Gabriel Feltran perspectiva, meus territ6rios de pesquisa ¢ 0s seus atores politicos mais evi- dentes — os movimentos populares — foram construidos a partir das teorias normativas; essas periferias seriam espagos de privagao e resisténcia, espe- cialmente quando politizadas contextualmente pelo ciclo ascendente dos movimentos sociais, a partir dos anos 1970. Na década seguinte, estes atores forjariam ainda, nos espagos ptiblicos, um Iécus de expressao dos interesses dos mais pobres da cidade, primeiro por suas agdes diretas, depois em canais institucionalizados de relagdo entre sociedade civil e Estado.’ A representa- tividade desses atores, entao analiticamente fora de questo, geraria maior pluralismo na cena politica, e dai seu impacto democratizante: ampliando a atividade politica para além dos marcos do Estado e das instituig6es formais, os atores coletivos das periferias traduziriam a reivindicacdo por bens sociais (asfalto, agua, luz, casa etc.) em luta por universalizacao de direitos. De movimentos sociais, portanto, em contextos especificos, esses atores se tra- duziam em sujeitos politicos. Nesse marco interpretativo, a nogao de direito se colocaya tanto como categoria analitica quanto como aposta politica. Dai a normatividade intrin- seca a anélise, Pressupunha-se no proprio corpo conceitual, junto das “lide- rangas” dos movimentos, que com a transi¢ao de regime politico estaria aberta uma possibilidade de integracao das classes trabalhadoras a um pro- jeto de nacio mais democritica, portanto menos desigual. Democracia justica social se confundiam. O dizeito aparecia na andlise de modo similar as formas como era figurado como categoria estratégica de um projeto de construcdo democritica.? A tematizagao do direito nesses termos me trazia, sem que me desse conta, um ganho etnogréfico. Pois ela impedia, de saida, que as periferias da cidade fossem lidas pela ética da exclusao ou da ausén- cia — de civilidade, de educagio, de inteligéncia, de formacio etc. Pois a pauta no direito verificava que justamente ali, naquelas periferias, é que se plasmara o projeto politico que se expandia para muito além daqueles terri- t6rios. As conexées eram visiveis — das reunides dentro de favelas aos mo- vimentos, dali aos partidos, eleigdes, governos ¢ assim por diante. 7 Vale lembrar que os movimentos populares das periferias associavam-se também a movimentos das areas centrais da cidade, que descrevem trajet6rias distintas nas iiltimas décadas, Para um olhar sobre as dinamicas das mobilizages nas areas centrais, contem- porancamente, ver o capitulo de Liicio Kowarick neste volume, § Sader (1988) ¢ Paoli (1995). 9 Sobre a reivindicagao de direitos como estratégia politica, ver Evelina Dagnino (1994). Tran Formagies sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 349 Partindo desse cendrio quase celebratério da virtude democratica das periferias urbanas, entretanto, a investigacao etnografica me conduziu, ao longo dos uiltimos anos, ao seu avesso normativo. Passei a estudar o “mun- do do crime”, a violéncia ea emergéncia do PCC como instancia de “justica” nesses mesmos territérios. Este percurso tematico, a principio irrefletido, Ievou-me mais recentemente a considerar a emergéncia de modos de conflito social e politico distintos dos anteriores, irreconcilidveis nos marcos univer- salistas dos direitos da cidadania. Pois meu trabalho nao fez mais do que seguir as pistas das transformagées de prdticas internas e discursos sobre as periferias da cidade, que também abandonaram, na tiltima década, a énfase descritiva centrada na figura do “trabalhador”, integravel pelo direito, para privilegiar aquela mais recente da violéncia urbana e da proliferacio dos “bandidos”, a serem idealmente apartados do convivio social. Nessa nova figuracio dominante de territério e populacées, nao se trataria mais de pau- tar os direitos da cidadania e seus potenciais de extensio universal, mas de figurar publicamente a cis4o essencial entre “trabalhadores” e “bandidos”, que organiza a percepeao da fratura social contemporinea e solicita admi- nistragdo de suas fronteiras. O esforgo deste texto é refletir sobre esse deslocamento, a partir das transformag6es fundamentais das dinamicas sociais e politicas das periferias da cidade. Se a perspectiva inicial era vislumbrar como a emergéncia dos movimentos politicos impactava a dinamica social das periferias e influen- ciava a transformacao de suas praticas cotidianas, rumo a um horizonte de democratizac&o, agora trata-se de vislumbrar os reflexos sociais, de rumos indeterminados, da emergéncia do “mundo do crime” como uma owtra ins- tncia normativa. Nesse percurso, foi-se evidenciando que o diagrama ana- litico do direito e da cidadania nao havia sido pensado para aquelas trans- formacées, nao as previa, ¢ portanto nao dava conta de explica-las. Foi preciso modificd-lo e, para tanto, procurei partir da descrigao dos novos contextos de relagao entre as esferas cotidianas dos bairros estudados, suas aces coletivas e suas figuragdes puiblicas, em seus conflitos constitutivos. As distingdes marcantes entre “trabalhadores” e “bandidos”, em diferentes si- tuagoes e perspectivas, funcionam neste texto como objeto heuristico da descrigao ¢ andlise desses conflitos. Parto do argumento de que os usos ¢ os significados do par de categorias “trabalhador” ¢ “bandido”, no Brasil contemporaneo, sio miltiplos e se distinguem a depender da perspectiva ou situagao em que a classificacao é formulada. Na tentativa de demonstrar 0 argumento, entretanto, nao parece ser produtivo escolher uma perspectiva dentre outras (clas s40 miiltiplas 350 Gabriel Feltran também na pesquisa de campo), ¢ disseca-la; parece-me ser preciso, a0 con- tratio, colecionar perspectivas do uso dessas categorias com o maximo de rigor etnografico para, a partir dai, organizar a reflexdo sobre elas ¢ seus sos. A intencao central de fazé-lo, aqui, € em primeiro lugar assinalar a forca semantica crescente, nas iltimas décadas, que a oposigao “trabalhador” © “bandido” passa a ter nas periferias da cidade (¢ fora delas)s em segundo ugar, trata-se de demonstrar empiricamente as distingdes de sentido que as, categorias ganham quando utilizadas de um lado ou outro da fronteira cog- nitiva que aparta territ6rios e sujeitos especificos da legitimidade necessaria aos considerados dignos de reivindicar direitos. As categorias “trabalhador” ¢ “bandido” tém me instigado ha algum tempo,!” e para tratar delas atualmente, em Sao Paulo, gostaria de partir de tama caracterizacao do tertitério que estudo nos tiltimos anos, ¢ das familias gue vivem ali. A ocupacio desse territério possui particularidades que me permitem abordar o percurso de énfases que as categorias “trabalhador” e “bandido” sofreram e softem, ao longo das tltimas quatro décadas. Estive em Sapopemba pela primeira vez em 1999, e passei a fazer pesquisa sistema- tica ali no inicio de 2005. Sapopemba é um dos 96 distritos do municipio, situado num cinturdo que os urbanistas costumam chamar de “periferia consolidada” da cidade de Sao Paulo. O distrito esta situado na porco sul da Zona Leste da cidade, fazendo divisa com a regiéo conhecida como ABC, composta pelos municipios de Santo André, Sio Bernardo e Sao Caetano. Dos bairros em que fago pesquisa, avista-se por exemplo o polo petroquimi- co de Santo André, e os moradores de Sapopemba deslocam-se a0 ABC, € nao a0 centro de S40 Paulo, quando necessitam de servicos que seus bairros no dispdem. A regido de Sapopemba foi toda urbanizada para servir de moradia operéria, sobretudo a partir dos anos 1960 e, mais intensamente, nos anos 1970. Todos os distritos vizinhos, da Zona Leste da cidade, tinham urbanizagdo muito reduzida até o comeco dos anos 1960. Familias passavam férias em chacaras no territdrio de Sapopemba, até gntdo, algo impensavel hoje, quando a urbanizagéo do distrito j4 se apresenta inteiramente conso- lidada, com toda infraestrutura urbana fundamental instalada hd décadas (exceto nas favelas). A narrativa geral desse periodo fundador da urbanizagao dos bairros é conhecida: “milagre econémico”, crescimento do emprego 10 Trabalhei sobre elas, por exemplo, em Feltran (2008, 2009). As relagdes entre esse mesmo par de categorias j4 foram formuladas, ha 25 anos, por Zaluar (1985). Os contextos despesquisa sio muito diferentes dos apresentados aqui, mas ha muitas ideias da autora das quais me sirvo neste texto, ‘Transformagées sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 351 industrial, expectativa de contrapartida social para o assalariamento opera- rio e expansSo da fronteira urbana, num cendrio de intensa migragao inter- na e especulacdo imobilidria, A mancha urbana se expande de modo concén- trico, agressivamente. Sao Paulo é um exemplo modelar desse cendrio. No polo melhor estabelecido economicamente, chegavam ao distrito muitas familias j4 moradoras de S40 Paulo, mesmo que fossem de origem migrante, que pagavam aluguel em regides mais centrais da cidade. Essas familias, de modo geral, compravam um terreno um pouco mais distante do centro porque conseguiam precos mais baixos, e pela proximidade do ABC, onde muitos provedores trabalhavam. Na virada para os anos 1970, quando era simples conseguir trabalho, ¢ relativamente simples obter um posto na indiistria, estes trabalhadores chamavam seus parentes para também se mu- darem. As fabricas estavam “ajustando” trabalhadores, eles poderiam se ajudar na migragio, no inicio da vida, e a familia melhoraria de vida, Entre aqueles que ocuparam o distrito, entretanto, havia outros arranjos familiares de migrantes. E no polo pior situado economicamente, estavam os migrantes entio recém-chegados, dos estados do nordeste, de Minas Gerais e do norte do Parana. Alguns deles conseguiam comprar um terreno mas, mais comu- mente, suas familias se instalavam em ocupasées irregulares e favelas. Todos levantavam suas casas com sua propria forca de trabalho, mais ou menos precariamente, em regime de autoconstrucao. Familia e vizinhos se ajudavam em momentos decisivos da construcao.!! Os primeiros loteamentos comecaram a receber, entao, uma populagao que, embora heterogénea, compartilhava algumas representagdes comuns do que seria a vida em Sao Paulo e, mais importante, do que se poderia esperar dela. Se nem todo mundo era operario, quase todo mundo queria ser — a perspectiva de ter um trabalho estavel era central para a realiza¢ao do pro- jeto de mobilidade, e a industria entao oferecia essa perspectiva. Se nem todo mundo conseguia um trabalho com “carteira assinada”, todo mundo queria que os filhos 0 tivessem. Se nem todo mundo era catélico praticante, a teo- logia catélica € a moral do trabalho eram aceitas como legitimas entre qua- se todos. O centro da mudanga de vida estava, portanto, fincado num plano de mobilidade ascendente da familia, a longo prazo, muito adequado a uma teologia e a uma figuragio do trabalho — ¢ do “trabalhador” como hori- zonte moral de quase toda essa populacio. 11 A extensa produgao de Liicio Kowarick é referéncia fundamental na descrigao andlise dessas dindmicas urbanas, sobretudo em Sao Paulo. Os processos em questio esto em destaquc, por exemplo, em Kowarick (1993). 352 Gabriel Feltran Durham (1973, 1980, 2005) trata muito bem desse cenario, em textos que se tornaram clissicos dos estudos das periferias de Séo Paulo: 0 projeto de mobilidade ascendente era um norte de estruturagao familiar que, pela difusio da promessa de contrapartida salarial, tornava-se representa¢ao coletiva dominante nas periferias de Sao Paulo. © eixo da dindmica social desses territérios era, portanto, o trabalho. Por isso cabia tao bem, na pers- pectiva dessa populagio, o rétulo de trabalhadores, Ser trabalhador evitava que esses recém-chegados, em busca de integraco, fossein figurados como vagabundos, marginais ou bandidos. Alba Zaluar (1985) demonstra como 0 “trabalhador” sempre foi pensado em oposi¢o ao “bandido”, o par de relacdes mutuamente excludentes é constitutive de ambas as categorias. [Assim era e segué sendo, porque “trabalhador” e “bandido” sempre foram, inas periferias das cidades, um par de possibilidades de subjetivacao em ten- sdo latente. 'A comunidade!2 era composta de trabalhadores e como no havia mui- ta garantia publica de seguranga para seus moradores, era tarefa dessa pro- pria comunidade trabalhadora minimizar a violencia nos locais em que vivia. © “mundo do crime” ja comecava a aparecer nesses mesmos territérios, ¢ como a figuracdo era de que ele era o “outro” diametral dos trabalhadores, deveria ser expurgado por eles mesmos. A propria “comunidade” — enten- da-se aqui grupos muito minoritérios de moradores dos tertit6rios, em agao que se legitimava entre parcelas mais significativas deles — organizava for: mas de “justica popular” conhecidas nos anos 1970 ¢ 1980, em diversas metropoles brasileiras: os linchamentos e o pagamento de grupos de “justi- ceiros” (ou “pés de pato”, como eram conhecidos, sobretudo na Zona sul da cidade), que cuidavam de promover a “limpeza” do nome publico desses baitros, assassinando sumariamente aqueles a quem se atribufa a categoria “bandido”. A disposi¢ao da violencia, organizada por “trabalhadores”, mantinha entio a figura dos “bandidos” como oposta 4 sua “comunidade”. No interior da familia trabalhadora, além disso, a sucesso geracional era central para 0 projeto de mobilidade, Havia significativa expectativa dos pais no “futuro dos filhos”, era preciso que eles estudassem ¢ valorizassem aida, A primeira medida necessaria da educacdo, portanto, era expurgar 0 risco de eles serem tratados, confundidos, ou mesmo de virarem “bandidos”. 2 O termo “comunidade” auxilia a conformagio de uma sepresentagio de unida- de interna homogévea, e 6 muito usado nas periferias, desde 0 contexto de alta da Teo- Togia da Libertacdo, nos anos 1970 e 80, época das Comunidades Eclesiais de Base, até hoje. “Transformacées sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 353 Criangas e adolescentes deveriam trabalhar e estudar, dois antidotos entéo infaliveis a0 dcio que engendra vagabundos, ladrdes e marginais. Estudar, sobretudo, era a formula para conseguir um bom trabalho. Os cursos do SENAI (Servico Nacional de Aprendizagem Industrial), por exemplo, surgem voltados para essa populacao, e nao por acaso sio muitissimo valorizados naquele contexto: realizariam a continuidade da linha ascendente do proje- to familiar de “integracdo social” via trabalho. A carteira assinada — os “direitos” — garantia a dignidade individual. Um adolescente que voltava para casa no fim da tarde de macac4o, protétipo do operirio, era o orgulho da familia. Nem a policia, nem os “justiceiros”, se preocupavam com ele. ‘Tanto pela forca dessa figuracao coletiva, em que é fundado, quanto pela baixissima expressividade dos interesses dessa populagao no regime autoritario, o projeto operdrio vai constituir atores politicos de representagao ja na segunda metade dos anos 1970. O que sio 0s movimentos sociais que pipocaram nas periferias de Sao Paulo, naquele periodo, sendo a manifesta- cdo publica, depois politica, desse projeto de integragio social? Nao foi a toa que os sindicatos apareceram como atores centrais desses movimentoss nao foi A toa que a Teologia da Libertagao se difundiu pautando 0 trabalho ea familia como algo que dignificava essa gente; no foi a toa que a figura publica de Lula — nordestino migrante, operario e morador das periferias — ganhou tamanha legitimidade popular. Lula, os sindicatos e os movimen- tos de base simbolizavam a entrada dessa populacao no rol daqueles que poderiam participar do “novo” Brasil, em construcio. O principal ator po- litico programatico que surge desse universo, também nao por acaso, se chama Partido dos Trabalbadores. Em Sao Paulo, diferente do que ocorreu em outras metropoles brasilei- ras, o PT conseguiu uma hegemonia marcante entre os movimentos sociais de base. Dai a forca de sua expansao ao longo dos anos 1980, a eleigdo de Luiza Erundina para a Prefeitura j4 em 1988, ea expressividade de sua co- nexdo com os movimentos sociais até, pelo menos, meados dos anos 1990. Em Sapopemba, essa conexao foi forte até muito recentemente. © PT seria funcionalmente, na perspectiva dessa “comunidade trabalhadora”, 0 ator mais legitimo para a representacdo de seus interesses no espaco publico. A perspectiva politica formulada em torno da dignidade do trabalho — e dos direitos a ele associados — oferecia assim um diagrama de inteligibilidade a0 projeto de integracao do trabalhador dessas periferias. Foi essa inteligi- bilidade nova que fez com que os movimentos populares pudessem naquele contexto ser percebidos como atores politicos legitimos, a despeito de toda a tradic&o brasileira de deslegitimagao publica dos pobres e do conflito de 384 Gabriel Feltran classes, e fundarem arenas ptiblicas renovadas (Costa, 1997). Dessas arenas se irradiariam, segundo as expectativas populares do perfodo, as promessas de integragdo social ¢ democracia politica que o Brasil acalentaria nas déca- das seguintes. ENTRE “TRABALHADORES” E “BANDIDOS” E agora posstvel estabelecer um corte nesse cendrio, para contrasté-lo com as configurages contempordneas da dinamica social nas periferias da cidade. Ao fazé-lo, percebe-se que tudo isso mudou muito. Em 2010, 0 ce- nério social e politico em questao é radicalmente diferente desse que narrei até aqui. Os quarenta anos que nos separam de 1970 foram um periodo de transformagées de intensidade fora do comum para quem vive nas periferias da cidade. Todos esses pardmetros costurados até aqui — trabalho, familia, religido, projeto de mobilidade social, gest’io da violéncia, relagbes com a politica e com um projeto de nacdo — permaneceram vilidos, mas se modi- ficaram intensamente em contetidos e relagGes internas. No mundo do tra- balho, a chamada reestruturagdo produtiva, que toda a sociologia do traba- Iho estuda nos tiltimos vinte anos, modificou inteiramente 0 patio industrial, ecom ele as relagées ¢ mercados de trabalho populares; Sapopemba, que foi muito marcada pela industrializagio do ABC ¢ pelo sindicalismo, é cenario ‘em que se pode notar com detalhe como as transformagdes no mundo ope- rario impactam as trajet6rias familiares. Havia pleno emprego na entrada dos anos 1970, cerca de 6% de desemprego em 1986, na cidade de Séo Paulo, ¢ mais de 20% em 2000. Na década de 1990, portanto, a expansio do desemprego foi muito significativa e o mercado de trabalho muito mais exigente. Com a reestruturagio das plantas industriais, just-in-time, robds, producao por demanda, flexibilidade, enfim, com a “revolugao toyotista”, passou-se a exigit uma qualificagio muito mais intensa do operdrio. As fa- milias operdrias que estudei em Sapopemba, nos tiltimos anos, traduzem com clareza essas transformagoes. O senhor que mal tinha o “primeiro grau” € conseguiu ter um emprego industrial durante duas décadas foi demitido, aos 40 anos de idade, no comego dos anos 1990; nao retornou mais as fabricas, exceto para vender espetinhos de churrasco na saida dos turnos.'* O filho daquele operario, que como tantos estudou no SENAL, tampouco encontrou 13 Para a trajetoria especifica de uma familia que viveu essas transformages, ver Feltran (2008, capitulo 2). a “Transformagdes sociais ¢ politicas nas periferias de Sao Paulo Lene Eee emprego nas montadoras da regio, sua trajetéria é toda feita no setor de servicos, terceirizados, precarizados. A reestruturagao do mundo operario, portanto, ja seria fator suficiente para explicar uma série de percalgos encon- trados pelas familias, instaladas nas periferias da cidade entre os anos 1970 e 1980, em seu projeto de mobilidade de classe sustentado pela aposta no trabalho estavel e em suas contrapartidas sociais. Houve, entretanto, mui tas outras-esferas de transformagio igualmente decisivas para a compreen- sao das dinamicas sociais desses tertitérios, e de seus rebatimentos politicos mais visiveis. A familia, que os trabalhos fundadores de Eunice Durham (1973, 1980), Alba Zaluar (1985) e Teresa Caldeira (1984) estudaram, que na representa- a0 dominante ajudava-se mutuamente desde © processo de migragao, para depois construir a moradia em colaboracio — 0 tio, o primo eo cunhado ajudando a “bater a laje”, a fazer um quartinho no fundo, a cunhada aju- dando a cuidar das criangas etc. — é obrigada, com o passar das décadas na cidade, a modificar suas relagGes internas. Pois se antes, no campo, a unida- de produtiva era doméstica € os bragos contavam-se mais que as bocas, a situagao se invertia em época de desemprego estrutural. Se ja na cidade, nos anos 1970, ainda conseguia-se emprego (ou trabalho) para todos os membros produtivos, ¢ dai fundamentava 0 auxilio métuo numa espiral positiva, com a crise do emprego dos anos 1980 e 1990, ea reducao das contrapartidas do assalariamento a partir da chamada “Reforma do Estado”, a familia exten- sa se tornava aquela em que duas pessoas trabalhavam e sete ou oito eram sustentadas por eles,/Os que trabalham, por isso, sao obrigados a distribuir seu salério por todos da familia, 0 que gera conflitos dos mais diversos: a diviso sexual do trabalho deve ser revista, a sensagao de precariedade mina a confianga na mobilidade ascendente, os conflitos geracionais se acirram. Essas dindmicas s4o muito recorrentes em minha pesquisa, so descritas com regularidade nas narrativas de meus interlocutores em campo. Essas moda- lidades de conflito familiar, com 0 passar dos anos, vao produzindo uma tendéncia maior a arranjos familiares mais proximos do nuclear, ou do ma- trifocal, e mais distantes do arranjo extenso antes predominante nas repre- sentagdes da familia popular. O jovem adulto desiste de viver com os pais, tenta se sustentar alugando outro lugar para viver, a presenca do agregado torna-se menos frequente etc. O processo é caracteristico do ambiente urba- no, ja a principio marcado por maior escassez de recursos de sobrevivéncia e maior pressio por manutengao de status, mas foi acelerado nas margens da cidade por todos esses fatores. Nas familias operdrias que estudei, a mae teve de sair para Strabalhar fora” quando 0 provedor perdeu o emprego, na 356 Gabriel Feleran entrada dos anos 1990; a filha mais velha parou de estudar para cuidar dos irmaos, os filhos alternaram empregos instaveis e, inclusive, aproximaram-se na juventude dos mercados ilfcitos, em franca expansao nos seus territ6rios de moradia, Nao sio raras as histérias de filhos, amigos € parentes assassi- nados nos anos 1990. Outros conflitos se colocam nessas passagens, eviden- temente. As transformagées em questo produzem deslocamentos, 0 que € preciso ressaltar, néo apenas no ambiente familiar mas nas dindmicas sociais em seu conjunto: desde o plano mais privado da organizagao das vidas até ‘os modos de conformacao dos discursos publicos ¢ das acées politicas. / A migracho, que caracterizava a populagio das periferias da cidade, compondo uma espécie de populacdo de mediagio entre o rural eo urbano, diminuiu progressivamente nos anos 1990 ¢ estancou nos 2000,/Os nascidos nas periferias das cidades nas dltimas décadas so paulistanos, mas nao paulistanos quaisquer; sio individuos nascidos e crescidos a periferia. Quando iniciei uma pesquisa mais sistemadtica com a geracao dos meninos nascidos nos anos 1990, hoje adolescentes, o mundo do migrante que vinha trabalhar em Sao Paulo ja era muito distante deles, alheio a seus significados. ‘Os meninos com quem converso em pesquisa de campo sao do Jardim Elba, sao do Parque Santa Madalena, do Planalto, eles sao “da periferia”, tm seus territérios de moradia inscritos em seus modos de se vestir, de conversar, & também nos contetidos que enunciam. As marcas da periferia também esto em seus corpos: técnicas corporais, tatuagens, brincos, piercings ¢ acessérios compéem uma estética propria/Se © projeto de mobilidade permanece como pano de fundo, a0 qual se recorre em discursos voltados ao exterior, entre eles mais do que nunca o lugar é aqui e o tempo € hoje. Essas transformagées rebatem, entao, no complexo das moralidades em disputa nos territorios, que organiza os parametros de distribuigéo da legi- timidade dos sujeitos. No plano religioso, a populagao das periferias que se declarava quase integralmente cat6lica transita significativamente ao pente- costalismo, nas tiltimas décadas. A expansao pentecostal sugere relagao com a ctise do projeto operdrio, de ascensdo social paulatina ¢ ao longo de gera- ges. Se agora o tempo é mais curto, a prosperidade deve ser tentada em golpes mais precisos, mais rapidos; a teologia pentecostal é, entdo, muito melhor situada: a conversdo encerra uma vida e inicia outra, a prosperidade se obtém na terra, os valores e narrativas se conectam mais adequadamente a essas transformacées.!4 O projeto de ascensao social familias, nese con- 4 Almeida (2009) € texto obrigatério sobre a expansio do pentecostalismo no Brasil, a partir de estudo etnografico em Sao Paulo. Transformagoes sociais ¢ politicas nas periferias de Sao Paulo 357 oe texto de transformacio intensa, tende a maior individualizagéo, quando permanece vivo: a filha da familia operdria encontra opgoes distintas das dos pais, retarda a0 méximo 0 casamento para poder voltar a estudar, depois dos irmaos mais novos terem crescido.'5 O pressuposto é 0 de que, caso repro- duzisse uma familia tal como fez sua mée, casada aos 18 anos de idade, seu horizonte de previsibilidade j4 nao poderia incluir a ascensao social. Essas transformagées expressam algumas tendéncias, embora evidente- mente nao sejam absolutas, nem homogeneamente distribuidas no tecido extremamente heterogéneo das periferias da cidade. Em Sapopemba, uma parcela dos operdrios instalados ali nos anos 1970 consegue efetivamente fazer a ascensio social esperada, outra parcela segue remediada, ¢ eles repre- sentam juntos, hoje, parcela majoritaria entre os fundadores dos bairros como Sapopemba. Mas eles nao sao todos, nem quase todos os moradores do distrito; e mais significativo do que isso, nao so mais eles que pautam a figuracio dominante no senso comum, ¢ nos debates puiblicos, acerca dos tertitétios onde vivem. fa franja mais pobre das periferias da cidade, aquela que adensa as favelas ¢ suas margens, durante as dltimas décadas, a que vai aparecer pu- blicamente como a tipica habitante desses territérios. E a partir dessa cama- da da sua populacao que vai se construir, principalmente a partir dos anos 1990, a imagem publica das periferias de Sao Paulo.!® Muitas trajet6rias pessoais ¢ familiares que pude acompanhar, nos tiltimos anos, auxiliaram- -me a compreender esse proceso; estive em contato com diversas familias que melhoraram de vida ou que permaneceram como estavam, mas estudei também outras tantas que no conseguiram patamares minimos de estabili dade social e econdmica em suas trajetdrias depois da migracao, seja pela sua baixa qualificagio para o mercado de trabalho, seja pela instabilidade 15 Eu era mulher, entao ndo fiz o SENAI. O que me sobrava, entao? Casar, ter filhos, esas coisas, Estudar foi uma opgo minha. Fui estudar porque tinha algumas inquietagoes e fui estudar.[...] Eu me achava muito estranha porque desde quando eu era pequena cu gostava de musica classica, gostava de ler, gostava de um monte de coisa que nao tinha nada a ver coma minha familia (Juliana, 36, psicdloga, solteira). 16 Besa transformagdo pode se notar, inclusive, comparando-se as expresses cul- turais marcantes das periferias da cidade nos anos 1980 (a estética punk, a xenofobia dos “carecas do ABC” oi as letras politizadas do rock nacional, todas emanadas de filhos de operarios denunciando a incompletude da promessa de integracao), aquelas que marca- ram esses territ6rios nos anos 1990 (o rap e 0 funk, cantados agora nao pelas elites ope- rérias dos territérios, mas por aqueles que nasceram nas favelas dali, e seu desenvolvi- mento em vertente gangsta, nos anos 2000). 358 Gabriel Feltcan das crises econdmicas, seja por tragédias ou casos de yioléncia extrema a que foram submetidos os percursos de seus integrantes, Frustrado o projet de melhoria de vida na cidade, essas familias se distribuiram desigualmente pelos territ6rios das periferias, mas em todos eles sua presenga gerou des- conforto, e criou clivagens reconhecidas internamente por estigmas ¢ este- re6tipos. No distrito de Sapopemba, ha hoje num polo uma elite operaria bem estabelecida, que mora em sobrados com dois carros na garagem, com 98 filhos na universidade ou ja formados, ¢ no polo oposto as casinhas de madeira que desmoronam todo janeiro, na favela do Madalena. Entre eles ha o motorista de énibus, a manicure, a senhora que trabalha numa entida- de social, a que abriu uma lojinha para consertar eletrodomésticos, gente de carne e 0580 cujas trajetérias demonstram imensa heterogencidade. Essa configuragio muito heterogénea do distrito € marcada internamente tam- bém nos cotidianos, pelas categorias de nomeagao: ha o pessoal que se considera de “classe média” (chamados de “playboys” por quem nao se considera assim); ha os moradores das “casas”, do “bairro”, mais proxi- mos das avenidas que das favelas; h4 0 pessoal que vive nos “conjuntos” habitacionais, produzidos por politicas pablicas; ¢ finalmente ha o “pessoal da favela”. Ea partir desses iltimos, em minha hipétese, que se funda a conflitivi- dade social contempordnea, que pretendo tratar adiante, Por ora, cabe ainda ressaltar algumas outras linhas de transformagio marcantes desses territ6- ios. Nos tltimos trinta anos, nos intersticios dos loteamentos legalizados ou grilados de Sapopemba, quase sempre autoconstrufdos para moradia, foram brotando equipamentos priblicos — pracas, parquinhos, escolas, postos de satide, dois CEUs (Centros Educacionais Unificados), os CRAS (Centros de Referéncia de Assisténcia Social) etc. — e favelas, que ja sto 37 no distrito, segundo dados oficiais. O cendrio urbano do distrito, em 2010, tem muito pouco a ver com aquele de décadas atras. As pessoas gostam de dizer, em entrevista: “quando eu cheguei aqui era so mato, a gente carregava agua na cabeca, depois a gente fez isso, aquilo, conseguimos asfalto, fizemos abaixo- vassinado e tal”, Essa narrativa é recorrente e necessdria, na perspectiva de quem a enuncia, porque a geracio nascida ali a partir dos anos 1990 nao a reconhece como prépria; os jovens das periferias vivem num territério urba- no consolidado, bastante conectado a outros bairros e regides da cidade e, sobretudo, a esfera do consumo global. As estatisticas de crescimento do consumo das classes D e E no Brasil sio impressionantes nos tiltimos anos, aumentam quase 20% ao ano. Os jovens tém celulares de ultimo tipo, com- prados a prestagio; e 0 crédito popular funciona desde as Casas Bahia até Transformagées sociais e politicas nas periferias de Sa0 Paulo 359 os hipermercados e shopping centers. A internet também é acessada em lan- -houses, no trabalho ou mesmo em casa. Nesses deslocamentos, é evidente que os atores politicos nascidos nos anos 1970 com a funcao de representar publicamente as periferias da cidade — 0s movimentos sociais populares — tém sua representatividade duramen- te questionada. Nascidos para representar uma populagao migrante, opera- tia e catélica, e inseritos na acao politica voltada a construgio democratica, esses atores tém dificuldades para se legitimar frente a uma geracao ja nas- cida nas periferias, em boa parte pentecostal ¢ com trajetérias acidentadas de trabalho ¢ desemprego. Essa dificuldade é ainda mais forte entre os seto- res marcados pela economia informal e, sobretudo, pelos mercados ilicitos — por definicao alheios a esfera do direito como alternativa de melhoria de vida. As narrativas dos movimentos, fincadas no esquerdismo militante, na teologia da libertagdo € no sindicato operdrio vao dizer pouco aos novos moradores das periferias. Até porque esses atores — 08 ent&o “novos movi- mentos sociais” — jé haviam sido muito bem-sucedidos em seu transito ao aparato estatal e j4 estavam mais distantes do trabalho de base nas perife- rias, em processo chamado pela bibliografia especifica de “insergao institu- cional”.1” Nesse processo, 0s movimentos sociais de base, nos anos 1980, migraram tendencialmente para administragdes € governos, mas ndo ocupa- ram ali espacos decis6rios centrais; eles se constitufram como uma espécie de “burocracia de base”!® das politicas sociais, materializada hoje numa miriade de associagdes, projetos, entidades e ONGs espalhadas pela maha urbana. Entre outros fatores, a capacitagao técnica mais fragil do que a dos burocratas formados em escolas de elite, e a rede de relages privadas mais ligadas a periferia do que aos centros de poder, explicam porque essas asso- ciagdes e entidades, formadas por quadros dos antigos movimentos sociais, ocupam quase invariavelmente espacos subalternos nos governos e no Esta~ do, nos trés niveis da federacao. Um resultado dessa dinamica de transformagdes é uma tendéncia, mais notada recentemente, a inversio no vetor normativo da relacdo desses atores 17 As iiltimas trés décadas so, nfo hé como esquecer, o periodo da construgio institucional de canais de relagdes entre Estado e sociedade, espacos participativos, con- selhos, orcamentos participativos, féruns de discussao e deliberacao de politicas sociais. Sio referéncias dessa bibliografia Dagnino (2002, 2006) e Dagnino e Tatagiba (2007). 18. rermo & emprestado de Eduardo Marques, que o utilizou para se referir a esse processo de cristalizagao da posicao institucional subalterna dos movimentos sociais ur- banos, em comunicagao pessoal no ano de 2006. 360 Gabriel Feltran com 0 Estado e os espacos ptiblicos. Pois se, nos anos 1980, esses movimen- tos de base organizavam demandas da favela e as procuravam publicizar, hoje € mais comum que, conveniados a projetos, programas e politicas pti- blicas, esses atores utilizem boa parte do seu tempo implementando as de- mandas (editais, portarias etc.) oriundas de esferas centrais da decisio do Estado, quando nao do chamado “Terceiro Setor”. Sua atuacdo é, assim, funcionalizada prioritariamente na intermediagao da execugao de politicas estatais junto da “populagao atendida”, ou do seu “publico-alvo”.!? Simpli- ficando muito o argumento, é possivel entao notar, a essa altura, que se 0 conjunto de atores duramente construfdos para representar as periferias tem dificuldades para fazé-lo atualmente, e no surgem outros atores com legitimidade politica para substitui-los, estabelecem-se uma série de frontei- ras de,tensdo entre as periferias da cidade e os espacos ampliados de agao social ¢ politica. Essa lacuna de representagio é, definitivamente, mais radi- cal entre a parcela mais pobre dos jovens das periferias e, sobretudo, dos moradores de favela. A narrativa politico-partidéria, ou mesmo movimen- tista, Ihes é desinteressante. Caracterizado esse cendrio de deslocamentos do trabalho, da familia, da religiao, da infraestrutura urbana, do consumo, do acesso a politicas sociais e das dimensées de sua representacao e atores politicos, parece-me ser preciso recolocar o foco analitico na relagao entre “trabalhadores” ¢ “bandidos”. Pois evidentemente, nesses deslocamentos, essa relacdo também se altera. Todas essas esferas tradicionalmente legitimas nas periferias da cidade — a familia, a religiao, 0 trabalho, o consumo, a representagao poli tica etc. — passa a se relacionar mais diretamente com essa esfera de socia- bilidade conhecida como “mundo do crime”, que expande-se em torno dos mercados ilegais ¢ ilicitos transnacionais, cujas pontas de varejo estao cra- vadas nesses territérios. © argumento que apresento a seguir ampara-se na constatacio de que, nessas transformacées nada triviais, abriu-se espaco para que o “mundo do crime” disputasse legitimidade com toda essa série de instituigdes e atores tradicionalmente legitimos nas periferias da cidade. Em 2010 ja nao é possivel conceber o “crime” como uma esfera alheia aquela comunidade trabalhadora coesa em torno da representacao operdria, ou ria, como se fazia nos anos 1980,2° como algo passivel de repressao comuni 19 Analiso essa tendéncia, com mais detalhe, em Feltran (2007). 20 Por isso os “justiceiros” praticamente desaparecem na virada para os anos 1990, em So Paulo, ea gestiio da seguranga passa a ser feita, em muitos territ6rios, pelo pr6. prio “crime”, cujo senso de justia esteve em franca expansio ¢ legitimacao, lastreadas ‘TransformacGes sociais e politicas nas periferias de So Paulo 361 Como diversos pesquisadores vém notando,! esse “mundo do crime” passa progressivamente a tensionar outros sujeitos e instancias legitimas das periferias da cidade. Tensiona o mundo do trabalbo, porque gera muita renda para os jovens, e simbolicamente é muito mais atrativo para eles do que descarregar caminhao o dia todo, ou entregar panfletos de farol em farols tensiona a religiosidade, porque é indutor de uma moralidade estrita, em que cédigos de conduta sdo prezados e regras de honra sao sagradas; tensiona a familia, porque nio se sabe bem o que fazer com um filho “na droga”, ou com outro que traz RS 500 por semana para casa, obtidos “da droga”; ten- siona a escola, porque os meninos “do crime” séo malvistos pelos profes- sores, mas muito bem-vistos pelas alunas mais bonitas da turma; tensiona demais a justica legal, porque estabelece outras dinamicas de punigao e re- paracio; tensiona 0 Estado em seu cerne, porque reivindica para si o mono- pélio do uso da violencia (legitima entre a populagéo) em alguns territorios. Ou seja, todos esses atores: a escola, a familia, a religido, 0 trabalho, a jus- tica, 0 Estado, esses atores tradicionalmente “legitimos”, comegam a ter de lidar com a presenga e a atratividade do “mundo do crime”. Passa a se esta~ beleces, de fato, uma disputa pela legitimidade entre essas esferas, ¢ os atores tradicionais dos territérios passam a se pensar mais radicalmente em oposi- Gao ao “crime”. Hé muitissimos relatos de campo me contando dessa dispu- ta, dessa “guerra contra o crime”, travada por professores, assistentes sociais, psicélogos, educadores, militantes e pais de familia. Quando argumento, como em Feltran (2008), pela “expansio do mundo do crime” nas periferias da cidade, é especificamente a esse processo de disputa de legitimidade a que me refiro (e ndo a um aumento das atividades ilegais ou agdes criminais). O que estd em jogo nessa expansio € que o “mundo do crime”, antes visto por todos como o oposto diametral do “trabalhador”, paulatinamente passa a concorrer como ator e instancia normativa nas periferias da cidade, ocupan- do terrenos mais amplos ¢ solicitande, inclusive, reagdes de demarcacao mais clara de fronteiras da legitimidade.?” pela acumnlacao decorrente da conex4o dos mercados nacional e internacional de dro- gas ¢ armas. Ver Feltran (2010, 2010b).. 21 Marques (2007); Telles (2009); Biondi (2010); Hirata (2009); e meu préprio trabalho (Feltran, 2008). 22.S¢ Michel Foucault afirma que “la onde ha poder ha resisténcia” (Foucault, 1988: 91), a necessidade de resistit a essa expansao do “crime” denora as relagbes de poder que Ihe so constitutivas e, nessa chave, a questo politica que se desprende delas. 362 Gabriel Feltran Essa expansao gera formas de identificagao com o “crime”, especial- mente entre parcelas minoritérias das camadas mais jovens, que j4 nao im- plicam vinculagdo a atividades ilegais ou ilicitas, mas se Fundam em modos cotidianos de se relacionar com essa instancia de autoridade efetivamente presente nos territ6rios. A existéncia do “mundo do crime” nas periferias, é de dificil compreensio; ela desarranja as categorias previamente pensadas para descrever as agées morais ¢ as organizagdes coletivas nesses territ6rios. © “crime” é uma existéncia que ndo cabe na rubrica do “crime organizado”, porque se espraia para muito além das atividades criminais; tampouco suas facc&es, empenhadas em criar para si um discurso politico, podem ser des- critas pela nocao de “movimento social”, pois néo se propdem a produzit um “sujeito politico” no sentido que a literatura especifica conferiu ao termo (ver Sader, 1988; Paoli, 1995). A proposta de vida inscrita nessa subjetivagao afasta-se muito da proposta critica ¢ integradora dos movimentos sociais, sendo traduzida mais criteriosamente pela expresso vida loka, fantastica- mente difusa entre adolescentes.?? Essa vida intensa em prazer e dor, adre- nalina ¢ tisco, de curto prazo, quando vista como horizonte de relaco social, sugere uma chave analitica muito distinta daquela perspectiva integradora que o direito propunha, Nota-se em sua difusio como a narrativa de um pais que vai ser democrético, que incluiria suas massas trabalhadoras na esfera do direito, perdeu forca nesses tertitsrios. ‘A “guerra contra o crime”, que todas as instituicdes sociais tradicional- mente legitimas vao travar nos anos 2000, nas grandes cidades, figura mai a assungio da fratura social do que a integracdo. Essa fratura solicita também ‘uma cisdo discursiva (e cognitiva) mais profunda. O que essa “guerra” faz notar é que esse “mundo do crime” nio pode ser extinto, contemporanea- mente, porque goza de status suficiente para seguir resistindo na disputa de legitimidade social. Essa disputa pela legitimidade tem conformado, mais recentemente, novos padrées de interacao entre as politicas estatais de re- presso ao crime, 08 policiais de base e grupos inscritos nos mercados ilicitos. Os padrdes de interacao que se processam nos cotidianos das periferias com certa autonomia, nos tiltimos anos, dao origem também a novas instdncias de justica nas periferias da cidade, pela emergéncia de sujeitos coletivos ali legitimados, com destaque para o Primeiro Comando da Capital. De prises 23 A expresso dé titulo a um album duplo do grupo Racionais MC's, icone do género em Sio Paulo. Daniel Hirata (2009) produz ensaio em que procura relacionar a representagio de “vida loka” ao conceito de “vida nua” que 0 filésofo Giorgio Agamben (2002) tomou emprestado de Hannah Arendt (2000: 333). TransformagGes sociais ¢ politicas nas periferias de S20 Paulo ¢ favelas brotam 0s “irmaos”, integrantes batizados do PCC, que reivindicam para si o monopélio de dispor e gerir a violéncia (legitima, em contraposi¢ao a violéncia policial) nesses territérios. Passagens nada simples, dificeis de compreender: € 0 “crime” quem aparece reivindicando para si o papel de instancia normativa da justiga (Feltran, 2010, 2010b) entre grupos sociais e territérios das periferias, e sobretudo entre aqueles mais proximos social- mente da operagao de varejo dos mercados ilicitos (que se expandem, como se sabe, para muito além das periferias). Esse “mundo do crime”, entretanto, nao domtina os territérios ou as populagSes tiranicamente. A posse de armas ¢ a disposi¢ao para utilizé-las é, evidentemente, a fonte tiltima da legitimidade e autoridade do “mundo do crime” e dos “irmaos” nas periferias da cidade. Entretanto, cotidianamente esses grupos manejam componentes muito mais sutis de disputa pelas normas de convivéncia, como a reivindicacao de justeza dos comportamentos, am- parados na “atitude”, “disposicdo” e “proceder”, e na oferta de “justiga” a quem dela necessita; a ajuda para solucdo de problemas de moradia; o am- paro para pagamento de advogados; subsidio para a visita de parentes presos etc. Se nao se trata de um jugo ou de uma dominacao autoritdria, tampouco trata-se de um movimento democrético: a questo é que “o crime” emerge noutra chave de compreensdo, como resultante de trocas sociais complexas travadas entre instdncias reconhecidas e legitimas nos territérios, obtendo dessas trocas consentimentos ativos ¢ legitimidade para ali se estabelecer. Assim, 0 “mundo do crime” aparece como uma entre outras instancias de geracio de renda, de acesso a justiga ou protegao, de ordenamento social, de apoio em caso de necessidade, de pertencimento e identificagio. Nao se afirma aqui, portanto, que “o crime” se espraia indistintamente pelo tecido social das periferias, manchando 0 tecido social, nem que os jovens dali sejam ou estejam se tornando “bandidos”; a questao é outra: trata-se de um uni- verso de relagées em disputa pela legitimagao social, pelos critérios de sub- jetivagao social e politica, que trava relagdes tensas |e intensas) com uma série de outras instancias sociais mais tradicionais. Se essa constatagao faz sentido, é imperativo modificar os modos de abordar analiticamente 0 conflito nas fronteiras entre, de um lado, a esfera da democracia formal, cristalizada nos tiltimos anos no Brasil, ¢ de outro as dindmicas de subjetivacao politica nessas periferias que, em certa medida, se fundam em dimensao alheia aos marcos do projeto de “integraco social” anterior, Se ha yinte anos essas fronteiras ainda podiam ser vistas como linhas a serem superadas pela “democratizagio”, pelo “crescimento”, pela “inclu- sio”, pela “cidadania”, elas sio figuradas hoje, nas relagoes efetivas entre 364 Gabrie! Feltran Estado e organizagoes sociais das periferias da cidade como divisio ircecon- cilidvel que é preciso conter, gerenciar. O projeto normativo de faro — nao de direito, claro — das instancias estatais empenhadas em lidar com essas fronteiras, nos anos 2000, parece deixar de pautar a integracio, e portan- to 0 empenho em produzir subjetivagao politica entre individuos € grupos hierarquizados subalternamente, ¢ passa a atuar no registro da administra- go das fronteiras do direito, mantendo o quanto possivel fora delas a po- pulagdo figurada como causa dos conflitos que, por demais incivis, ameagam a democracia.*4 As politicas sociais voltadas para as periferias da cidade, que se expan- dem jé no final dos anos 1990, traduzem esse cendrio. Ao mesmo tempo que ampliam a cobertura de servigos e se fazem em marcos legais cada vez mais progressistas, 0 que é inegével, so implementadas de modo bastante distin- to a depender do lado.da fronteira que se esteja. Nas periferias, sua funcio imediata é minimizar os conflitos que emergem das relages com territérios © populagdes marginais. Nao se trata de “construgao de cidadania”, mas sobretudo de gerir as franjas da cidade, acionando um dispositive assistencial claramente associado a outras formas de controle. Pois entre espacos € gru- pos que nao podem ser administrados a contento, ou se negam a sé-lo, a politica essencial que se acopla A assisténcia ¢ a repressiio — muitas vezes realizada fora dos marcos legais ou “democraticos”, vale dizer. Nao (ape nas) a burocratizagao das relacées entre governos ¢ entidades sociais de atendimento,25 mas sobretudo a alta do encarceramento em Sao Paulo, es- tado que passa de cerca de 45 mil presos em 1996, para mais de 150 mil, em 2009, € expressiva dessa tentativa gerencial. Nao so apenas as prisdes, entretanto, que contribuem para essa politica publica de contengao do con- flito social ensejado pelas periferias contempordneas: ha também a internacao 24 44 toda uma bibliografia socioantropolégica que pauta, recentemente, a “gestio diferencial dos ilegalismos” proposta por Michel Foucault (1975) para analisar esse ge- renciamento (Telles, 2009; Marques, 2009; Biondi, 2010). A ideia de que a lei serve para demarcar um espago de gestdo da fronteira legal-ilegal ja aparecia em Whyte (2005, ca- pitulo 4). Para uma andlise de fronteira acerca dos modos dessa sujei¢o no Brasil, em diélogo critico com as “teorias do sujeito” e especificamente tratando da categoria “ban- dido”, ver Misse (2010). O problema da subjetivagao politica dos mais pobres anima a teoria democratica ha tempos, c a critica de Jacques Ranciére aos modelos deliberativos de democracia (mais centealmente a Habermas), nesse ponto, pode ser lida em Ranciére (1996a, 1996b). 25 Discuto as transformagGes nos modos de relagao entre entidades de atendimento {que crescem muito nos anos 1990 e 2000) e governos, via convénios em politicas socials, em Feltran (2008, parte Ill). ‘Transformacées sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 365 na Fundagao Casa (antiga Febem), as clinicas de recuperagao para viciados em drogas, os espagos destinados a tratamentos de satide mental, os albergues para moradores de rua, os abrigos para adolescentes, e muito mais.2¢ Em suma, € todo um dispositivo bastante complexo de gestdo associado a uma mesma populagéo, que quando nao esta internada,-estd nas periferias e, principalmente, nas favelas. Em pesquisa de campo em favelas, por isso, nao 6 incomum encontrar trajetorias individuais que tracam circnitos pratica- mente ininterruptos entre a cadeia, o “crime”, a clinica de internacio, a si- tuagio de rua, 0 albergue, a clinica de desintoxicagiio ete. E esses circnitos comegam a ser mais frequentes (Feltran, 2007b). Ha contemporaneamente, portanto, muita tens&o nas relagdes multifa~ cetadas entre Estado e periferia, ou Estado ¢ favela mais radicalmente — porque a favela é um exemplo radical do universo das periferias. Politicas de acesso a direitos, assisténcia ¢ represso associam-se de modo distinto do diagrama anterior. Os conflitos latentes nessas interagdes, quando nao en- contram canais de tradugio publica na chave politica do direito, da cidada- nia, invariavelmente se manifestam como coniflito privado e, nao raro, vio- lento. © argumento é arendtiano: quando a nogao de direito nao dé mais conta de descrever 0 mundo social das periferias da cidade, a equacio da conflitividade social transborda para dinamicas violentas. Nessa perspectiva € que elaboro a teflexo, anunciada no inicio deste artigo, acerca das causas dos deslocamentos tematicos aos quais a pesquisa de campo me conduziu, a0 longo dos tiltimos dez anos. A porta de entrada inicial no registro dos movimentos sociais, articulados em torno das nogbes de direito, cidadania e democracia, encontrava limites para descrever ¢ explicar as formas do con- flito social ensejado nas configuracées sociais com que me deparava em campo. As transformagées narradas pelos meus interlocutores necessitavam, também, de outros diagramas de compreensao. ConstDERAGOES FINAIS Neste sentido, talvez. seja pertinente introduzir alguns exemplos empi- ricos acerca da conformagao contemporanea da conflitividade social enseja- 26 Sobretudo o urbanismo securitario (exemplar nas rampas “antimendigo” do centro de So Paulo} que concentra técnicas de seguranga em algumas regides, limitando assim os territdrios urbanos plausiveis para que 0 confflito social ensejado pela presenca dos pobres se manifeste. 366 Gabriel Feltran da nos contatos das esferas da lei e do direito estatal com as periferias urba- nas. Retomo, para isso, algumas situagGes em que as categorias “trabalha- dores” ¢ “bandidos” operam em situagées de campo. Trés situagées, muito relacionadas umas com as outras, me auxiliam a demonstrar como essas categorias sao situacionais ¢ polissémicas, transitando entre significados ¢ construindo grupos populacionais distintos a depender das modalidades de interagdo em questao. A partir desses exemplos, nota-se ainda como as fron- teiras entre esses marcadores é gerenciada plasticamente pelas politicas esta- tais, em operacdo que guarda analogia aos distintos regimes estatais descritos e analisados por Veena Das (2007) entre grupos “marginais” na India. E a plasticidade dos modos de agir nesse conflito, e o privilégio estatal na defi- ni¢do do regime em que esse conflito se desenvolve a cada situag&o, que ca- racteriza o tipo de gestdo contemporanea da tensio latente nas relagdes entre aesfera legal e dos direitos ¢ as periferias da cidade. Os exemplos se referem a trés formas distintas de repressao policial que coexistiram nas favelas do “Madalena” e do “Elba”, em Sapopemba, duran- te os anos de minha pesquisa de campo. A primeira delas é cotidiana, roti- neira, caracterizada pelas rondas realizadas por policiais que conhecem bem © territério patrulhado. Sabem h4 tempos onde se situam os pontos de ven- da de droga, conhecem quem faz parte das “quadrilhas”, cumprimentam as pessoas pelo nome, sabem onde moram, ¢ que muitas vezes mantém acordos financeiros ilegais com individuos ¢ grupos inscritos no “mundo do crime”. Essa relagao cotidiana entre policiais e “bandidos”, embora sempre marca- da por acordos instaveis ¢ desconfianga reciproca, é praticamente desprovi- da de violéncia. Trata-se de relacdo muito préxima daquela que Whyte (2005) descreveu nas esquinas de Boston, jf nos anos 1940, entre policiais ¢ operadores de atividades ilegais. Os policiais dio seguranga ao funciona- mento dos negécios ilicitos, e recebem contrapartidas financeiras por isso. ‘As dindmicas nao sao estdveis, nem todos os policiais fazem acordos da mesma forma, mas hd uma légica de reciprocidade que se estabelece contex- tualmente ¢ que permite que as partes sigam legitimadas em seus negécios ¢ posigdes sociais. HA, entretanto, um segundo tipo de agio policial em favelas de Sio Paulo também recorrente: as “operagées policiais”, que coordenadas cen- tralmente atuam em légica distinta dessa primeira. As “Operacoes Satura- 0” tornaram-se conhecidas em $40 Paulo nos anos 2000: trata-se de ope racdes em que muitos policiais ocupam um territério de favela, as vezes por meses. Chegam de surpresa, integrando ages de policia civil, militar, federal, com tropas da cavalaria, descendo de rapel de helicépteros, para fazer 0 que Transformacdes sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 367 se chama, informalmente, de “quarentena” na favela. Nesses casos os poli- ciais vém de fora, 0 evento de ocupacao é evidentemente marcado por mui- ta tensio para todos os envolvidos, ¢ os policiais de acéo de base devem “tomar 0 controle” da favela. Para isso, 0 método utilizado € invadir todas as casas, abordar quase todos os moradores, para daf comegar a triagem que delineard quem “é do crime” e “quem nao é”. Ha muitas dentincias de tor- tura nesses primeiros momentos de atuagao, porque os policiais precisam ter acesso as informagées acerca do funcionamento do “crime” no local, ¢ por vezes os métodos para consegui-las ndo so os mais democraticos. Essas agées tém grande efeito miditico, ¢ invariavelmente, nelas, os policiais de base esto ainda pressionados por seus superiores, € pelo poder politico, a “mostrar servigo”. Uma operagao como essa em Sapopemba, em 2005, gerou forte reagao da parte dos moradores e das associagées locais, ao contrario das que ocorrem cotidianamente, do primeiro tipo. Por uma razdo muito simples: nao se reclama quando a repressio policial € direcionada aos “ban- didos”, isso faz parte do jogo; mas recebe-se muito mal a repressao voltada indistintamente a “trabalhadores” ¢ “bandidos”. Finalmente, existe um terceiro tipo de ago policial voltada as periferias, que também pude acompanhar em pesquisa de campo, durante os eventos de maio de 2006, que ficaram conhecidos publicamente como “Ataques do PCC”, e ressignificados na expresso “Crimes de Maio” pelos ativistas de direitos humanos. Nesses eventos, como se sabe, houve uma ofensiva do PCC que matou mais de 40 policiais em uma noite, a maioria da Policia Militar. A imprensa entrou em alarde, a cidade passou dias em tensao permanente € todos os servicos pararam de funcionar numa tarde. A palavra “guerra ur- bana” foi a melhor descrigio dos jornais para o que acontecia, Como reta- liagdo, e demonstrando sua capacidade de restabelecer a ordem, 0 comando da policia de Sao Paulo langou uma “ofensiva” voltada as periferias da ci- dade. Nessa situagao de “guerra”, executaram-se jovens que tinham antece- dentes criminais, que andavam em grupos ou que poderiam se parecer com “bandidos”. O saldo dos eventos foi de, ao menos, 493 mortos em uma semana, no Estado de Sao Paulo. Durante 0 més seguinte, com a “ordem publica” garantida, foram executadas mais 500 pessoas. Em um més, por- tanto, foram mortas quase mil pessoas na reacio da policia aos “Ataques do PCC”. Adorno e Salla (2007) contabilizam esses dados a partir de pesquisa em 23 Institutos Médico-Legais, mas a grande imprensa praticamente silen- ciou sobre esses homicidios. Cinco das pessoas assassinadas nessa ofensiva policial viviam em Sao Mateus, distrito vizinho a Sapopemba. Um deles era sobrinho de um interlocutor importante de minha pesquisa de campo. O 368 Gabriel Feltran Centro de Direitos Humanos de Sapopemba acompanhou 0 caso, 0 que me favoreceu o acesso a muitas informagoes desse caso. "Ao colocar em relago essas trés situagbes repressivas, que coexistiram no tempo durante meus trabalhos de pesquisa em Sapopemba, salta aos olhos a plasticidade da clivagem entre “trabalhadores” ¢ “pbandidos”. O conjunto “je moradores inscritos como piilico-alvo daquele primeiro tipo de operas4o, rotineira, é restrito Aqueles inscritos no “mundo do crime”, ov rotulados pela etiqueta de “bandido” mesmo entre seus pares, na favela. Nao se repri- ve nenhum “trabalhador” nessa primeira forma de aco policial. A a¢3o é praticamente desprovida de violéncia, voltada a manter os negocios funcio- hando eo conflito social admainistrado — nao se intenta minimizar 0 trafico de drogas ou os assaltos, espera-se manté-los em niveis aceitaveis, de modo a que nio se tornem assunto péblico. No segundo tipo de operagio assina- Jada, as forcas da ordem consideram como “suspeitos”, ou “bandidos”, odes os moradores da favela. A categoria “bandido” abarca todo o territ6- tio ocupado, espraia-se pelos corpos de seus moradores, ¢ para 0$ policiais aque chegam até ali, pressionados por seus superiores hierdrquicos ¢ c™ risco Srativo durante as operacoes, as fronteiras entre as casas de “trabalhadores” « “bandidos” nao sio visiveis, Dai 0 desacordo dos “trabalhadores” que siveen na favela frente a esse tipo de operacio; eles no aceitam ser confun- “Fidos com “bandidos”. O carter gerencial da iniciativa torna-se ainda mais claro quando se percebe que as favelas de Paraisopolis ¢ Heliépolis, em Sao Paulo, vivenciaram essa “Opera¢do Saruragao” imediatamente aps os le vantes violentos, separados por poucos meses, que cada uma delas viveu em 2009, amplamente noticiados na imprensa paulista. No terceir HPO de operacio policial elencado, de confronto guerreiro e altamente letal, no qual cletivamente o “mundo do crime” as policias esto “batendo de frente”, 0s significados da categoria “bandido” sao ainda mais ampliados. De ime- diato, é preciso acalmar a opiniao publica e, como a representaca0 dominan- tc neta situa os “suspeitos? ou “bandidos” como jovens moradores das pe- tiferias, é imprescindivel apresentar 0 saldo dos mottos entre eles. Os cinco imeninos assassinados em Sao Mateus, situacio que pude acompanhar mais de perto, foram executados no caminho do trabalho, no sibado que se seguiu a primeira noite da ofensiva do PCC. Eles nao eram “bandidos”, eram tipi- cos jovens “trabalhadores”, seguiam para uma fabrica em Santo André. Jamais seriam importunados por policiais eonhecidos no bairro. Mas eram imeninos da periferia e, naquela situaco, ndo importava o que faziam, mas © que “eam”. O carro deles passou, e policiais os mandaram parar, eles saizam do carro, As mios deles foram a parede ¢ todos foram fuzilados, “Transformagbes sociais e politicas nas periferias de Sao Paulo 369 sumariamente. A morte deles, atribuida a policiais por todas as testemunhas, contou entre os “suspeitos” no noticidrio televisivo. Foi traduzida, portanto, como recuperacao da ordem democratica, que oferece seguranga aos cida- dios. As instituig6es da democracia seguiam protegidas. ‘Analiticamente, portanto, fica patente a plasticidade da categoria “ban- dido” ¢ os sentidos propriamente politicos do conflito inscrito em sua utili- zagio contempordnea. As situagées demonstram como, em cada uma das trés modalidades de repressdo, a definicdo de quem é “bandido” a repri- mir tem em sua base um impulso por gerenciar o conflito social (e politico) que emana das periferias da cidade. No primeiro caso, mantém-se 0 conflito latente, ¢ as partes em negociacao direta ganham com isso; no segundo, a tensio extravasa mas [é-se publicamente que 0 Estado combate o “crime” das favelas, 0 argumento de justificacao do “combate ao crime” legitima-se publicamente, deslegitimando-se nas periferias; no terceiro, mata-se jovens favelados e moradores de bairros periféricos para restabelecer os controles democraticos. A ilegalidade constitutiva de todas as situagdes € mais ou menos letal a depender da intensidade do conflito politico que a presenca publica das periferias podem causar. As formas plasticas de utilizagao social do par de categorias “trabalhador” e “bandido” expdem, quando enxerga- dos na etnografia, distintos modos de gerenciamento de um conflito poli- tico, ainda que muito distinto daquele que os movimentos sociais dos anos 1970 ¢ 80 tentaram produziz, No declinio da perspectiva universalista do direito como referéncia normativa para essa marcagao, e da legitimidade desses atores entre suas “bases”, parece ser hoje a violéncia 0 modo funda- mental de contengao desse conflito politico, sobretudo nas situagGes-limite em que ele se mostra. As transformag6es fundamentais nas dindmicas sociais das periferias da cidade, percorridas nesse artigo, pelas formas de interpreté- las nessa etnografia, parecem conduzit, portanto, a problemas tedricos, analiticos e politicos conectados. Sugerem que podem estar situadas num mesmo diagrama analitico as esferas do “crime”, do trabalho, da familia, da religiao, da politica e do Estado. Legitimidade, ago politica, gestio ¢ vio- Iéncia aparecem como operadores situacionais das relagGes entre essas esfe- ras, em transformacdo radical nas tiltimas décadas. Ainda que nao seja nada simples equacionar analiticamente os modos de operacio desse diagrama, extremamente complexo, a pesquisa de campo e as formas do conflito poli- tico contemporaneo no Brasil vem demonstrando que nao devemos deixar de tentar. 370 Gabriel Feltran BIBLIOGRAFIA ADORNO, Sérgio; SALA, Fernando (2007), “Criminalidade organizada nas prisdes e 98 ataques do PCG”. Estudos Avangados, vol. 21, n° 61, Sao Paulo, IEA-USP, pp. 7-29. AGAMBEN, Giorgio (2002). Homo sacer: 0 poder soberano ea vida nua, Belo Horizon- te: UFMG. ALMEIDA, Ronaldo (2009). A Igrejia Universal e seus deménios: um estudo etuogrdfico. Sao Paulo: Terceiro Nome/Fapesp. ARENDT, Hannah (2004). La tradicién oculta. Barcelona: Paidés, (2003). “Reflexdes sobre Little Rock”. 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