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Questées da Nossa Epoca Leda Verdiani Tfouni Volume 15 Se ee cane peemene per LETRAMENTO E seen ALFABETIZACAO 9 edicdo | GSEsiaRs LuereasesTo © ALEARETIZAGAO cope ernest pratt ign: Slage Marin Compote: Lines Lor, candor etna Danle A 8 Moree enw pare dot a pad er episodic em serio Diets pra et eto “Lu e640 Fa (1) 286480 erat cneascormedios come Sumario Apreseniagto & 9 edict 7 Protogo ° 1, Escrita alfabetizacao e letrament, n 2, Perspectivas historicas ¢ s-histéricas do letramenta 5 3. Autoria ¢ letamento: andlise das narratives orais de ficgdo de uma mulher analfabeta “a 4. Letramento ¢ atvidade discursiva.., 65 5, Sujeito da escrita e sujeito do letramento: ‘coincidenctar . 85 Referénciasbiblograticas 7 Deime conta, como consequéncia, de uma lacuna linguisticodiscursiva, que se resumia no seguinte: a falta, ‘em nossa lingua, de uma palavra que pudesse ser usada para designar esse processo de estar exposto aos usos sociais da escrita, Sem no entanto saber ler nem escrever. Foi dessa constatacdo que surgiu o neologismo letramento CGreio que nos capitulos que compéem este livro os Ieltores encontrardo justificativas mais do que suficientes para a adocao do termo, Linguistas, educadores, psiélogos, onoaudislogos, pedsgogos, todos aqueles que tém interes. se ou curiosidade pela natureza da linguagem encontrardo aqui, espero, motivos para uma reflexio critiea sobre estas questoes tao atuais que slo 0 letramento, a alfabetinacio © analfaberismo, Leda Verdiant Tfount Ribeirdo Preto, janeiro de 1995. Escrita, alfabetizacao e letramento* Como deiarpletngraras de ht desl anos se hr se cor minha cra trior? ‘carlos Drummond de Andrade, 0 out” Apesar de estarem indigsolavel e inevitavelmente ligados entre si, eserita, alfabetizagao e letramento nem sempre tém sida enfacados como um canjunto pelos est- ‘diosos. Diriainicialmente que arelagao entre eles @ aquela do produto e do processo: enquanto as sistemas de escrita ‘s40 um produto cultural, #alfabetizagao co letramento sa0 processos de aquisi¢ao de um sistema escrit. ‘A alfabetizacio refere-se a aquisicdo da escrita enquan- to aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as ‘chamadas préticas de Linguagem, Iss0€ levado a efeito, em eral, por meio do processo de escolarizagao e, portants, Tenecapasceinaimene tenon sfonde aipo no penis 4a instrugao formal. A alfabetizagao pertence, assim, 40 Ambito do individual © letramento, por sua ver, focaliza os aspectos sécio- shistoricos de aquisicio da escrita. Entre outros eas06, pro ‘cara estudare descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneiza retrita ou ge- neralizada, procura ainda saber quais praticas psicossociais ‘substituem as préticas “letradas" em sociedades agrafas, Desse modo, o letramento tem por objetivo investigar nio somente quem 6 alfabetizado, mas também quem nao é alfbetizado,e, nesse sentido, desliga-se de verficaro indi- Vidal e centralia-se no social. A seguir, fei comentarios mais especificos sobre os trés componentes desse tema Adianto, no entanto, que a questa nio se esgota ai; pelo ‘contririo, ela apenas se inicia Escrita A escrita € 0 produto cultural por exceléncia* £, de fato, o resultado to exemplar da aividade huma- nasobre o mundo, que 0 ivro, subproduto mais acabado da cscrite, € tomado como uma metafora do corpo human, falase nas ‘orelhss" do live; na sua pagina de *rosto", nas notas de ‘rodapé", ¢ 0 capitulo nada mais é do que a *cabe- ‘ca em latin. eco emus mcg comic avace ee) Post ‘cio, ropooto de fades pean, Harvade conse ¢ aon ‘mice de mnrne emo tnmaeascto » Historicamente, a escrita data de cerca de 5,000 anos antes de Cristo, © processo de difusio e adogio dos siste ‘mas escritos pelas sociedades antigas, no entanto, foi lento e sujeito, 6 dbvio, a fatores politico-econdmicos. O mesmo se pode dizer sobre 0s tipos de cédigos escrtos criados pelo hhomem: pictograficos, ideograticos ou foneticos, todos eles, quer simbolizem diretamente os referentes concretos, quiet “representom* o *pensamento" (oi “ideias"), ow ainda os sons da fala, no slo produtes neutros; sao antes resultado das relacies de poder e dominacio que existem em toda sociedade, Falarei mais detalhadamente sobre esse aspecto a seguir. Costumase pensar que a escrita tom por nalidade ais, cultura e psicologicas as vezes radicais. Para Vygotsky (1984), o letramento representa 0 coroa- mento de um processo historico de transformagio e dife- renciacdo no uso de instrumentos mediadores, Representa também a causa da elaboragao de formas mais sofisticadas {do comportamento humano que s30 0s chamados ‘processos ‘mentais superiores’,tais como: raciocinio abstrato, meméria ativa, resolugao de problemas etc. [Em termes socials mais ampios, o letramento 6 apon ‘ado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, a diversificagio dos meios de produgao e da complexida de crescente da sgricultura. Ao mesmo tempo, dentro de uma visdo dialética, toma-se uma causa de transformages Ihistéricas profundas, como o aparecimento da maquina a vapor, da imprensa, do telescépio, eda sociedade industrial ‘como uum todo, E preciso terem conta, no entanto, que, conforme air- ‘ma Ginzburg, ‘08 instrumentos linguisticos e conceituais™ gue o letramente coloea 8 aisposigie dos indi ‘s80 ‘neutros nem Inocentes" (1987, p. 132). © mesmo Ginzburg, narrando o caso fascinante eemo- cionante de Menocchio, um moleito italiane que no século XVT foi perseguido, torturado e condenado pela Inguisicao por suas ideas “heréticas’, faz implicitamente uma anélise {as influéncias do Tetramento sabre os individuos perten- ‘centes as classes subalternas naquela época. B, ao mesmo ‘tempo, um estudo das relacbes entre letramento e poder que deixa aparecer claramente que a condenagio de Me- nocchio nio foi devida ao fato de saber les, mas sim porque antepbs aos textos sagrados (considerados coma indiscut- vels, ¢ possiveis de interpretagao apenas através da ‘chave" dos representantes da Igreja catdlica), a sua cosmogonia pessoal. Desse modo, aleitura pessoal que Menocchfo faria os principais livros sobre a histéria sagrada e a religilo, ‘que circulavam na Europa na época, nlo he tera sido fatal, se essa leitura nio estivesse impregnada do *materalismo ‘clementar, instintivo, das geragbes de camponeses" (1987, p. 132). Continua Ginzburg sua andlise afirmando que ‘Menocchio *viveu pessoalmente o salto histérico, de peso {ncalculével, que separa a linguagem gesticulada, murmu- rads, grtads, da cultura oral, para a linguagem da cultura escrita, desprovida da entonacao e cristalicada nas paginas dos livros |..JNa possibilidade de emancipar-se das situagaes particulares esta raiz do eixo que sempre ligou de modo inextrcavel escritura e poder" (id, p, 128). E Menacchio, diz Ginzburg, “compreendia que a escritura ¢ a capacidade ‘de dominar etransmitir a cultura escrita era uma fonte de poder (ibid). Por isso era *perigoso" Ginzburg, a meu ver, trazao centro do debate aquestio do letramento e sua infuéncia, mio nagueles que detém o poder (as classes dominantes), mas naqueles que s30 mar ginalizados e dominados (as classes subalternas) (© que a historia de Menocchio mostra, principalmen- te, que 0 terma “letrado” nfo tem um sentido tnico, nem doscreve um fendmeno simples. uniforme, Pelo contrdrio, td intimamente ligado & questo das mentalidades, da cultura e da estratura social como um toda, ‘Minha argumentaZo val mais Ionge que isso: proponho mostrar que o termo “iletrado" no pode ser usado come anttese de “letrado’ Isto €, no existe, nas soctedades mo- dernas, 0 Tetramento “grau zero", que equivaleria a0 “le- {tramento* Do ponto de vista do processo sdcio-historico, 0 ue existe de fato nas sociedades industriais madernas si0 “graus de letramento, sem que com isso se pressuponha ‘sua inexistencia, emma asnseasgho » A visio etnocéntrica acerca dos grupos sociais nao alfa- Detizados, que esta presente em vatiosestudos de psicologla ‘ranscultatal, etnolinguistca, psicologia cognitiva e antropo- logia, precisa ser revista urgentemente, Eo primeizo ponto dessa revisdo deve centralizar-se om esclarecer a comfusdo ue ¢ feita entre *ndo alfabetizado’ ¢ “letrado". Do mex onto de vista,olletramento nto existe, enquanto auséncia total, nas sociedades industralizadas modernas, Segundo a perspectiva etnocéntrica, somente com a aquisicdo da escrita as pestoas conseguem desenwvolver raciocinio Tégicodledutive, a capacidade para faser int: rencias, para solucao de problemas ete. Arma ainda que 0 pensamento dos afabetizados é “racional’, © por um dest zamento preconceituoso coloca também que os individuos nfo afabetizados sio incapazes de raciocinar logicamente, e fazer infertncias, de efetuar descentracies cognitivas tc, bem como que seu pensamento é “emocional’, “sem contradigbes", “pré-operatério® ete. ‘Malinowski (1976, p: 132), por exemplo, diz que ‘os ‘membros analfabetos de uma comunidade civilizada tratam «© consideram as palavras de um modo semethante 20s sel- vagens’ Ou sea, para o autor, tanto os *selvagens" em goral ‘quanto os nao alfabetizados em particular, no dominam a fFungdo intelectual da inguagem, fungao esta que apareceria ‘nas obras de cléncia e flosofias* em que “tipos altamente \esenvolvides de fla so empregados para controlar ideias © ornislas propriedade comum da humanidade civilizada’ ‘Uma forma de acabar com 0 etnocentrismo parece ser ‘comecar a considerar alfabetizagio e letramento como pro ‘cessosinterligados, porém separados enguanto abrangéncia fe naturezs. Outro modo é passar a considerar letramento ‘como um “continaum” Desse modo estaremmas evitando as ‘lassificapSes preconceituosas decorzentes da aplicagto das catogorias “letrado" e “letrado*, bem como a confusio que uusualmente se faz com essas categorias.e,respectivamente, ‘alfabetizado" endo alfabetizado" Estaremos ainda separan- 440 0fendmeno do letramento do proceso de escolarizagio, ‘que, como ja foi visto, comumente acompanha o proceso

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