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CORSARO, W. A.

Sociologia da infância

GIDDENS & SUTTON


Sociologia
Esta consagrada antologia de leituras essenciais foi criada para fornecer ao
LAHIRE, B.
leitor uma base sólida em teoria sociológica, reunindo o pensamento dos Retratos sociológicos
autores mais influentes nas eras clássica, contemporânea, modernista e
pós-modernista. Com introduções que explicam e contextualizam os temas SCHAEFER, R. T.
Fundamentos de sociologia – 6.ed.*
tratados, o autor apresenta textos que permitem ao estudante compreender
em profundidade os principais conceitos da teoria social. SCHAEFER, R. T.
Sociologia – 6.ed.

WITT, J.
Sociologia – 3.ed.
PRINCIPAIS AUTORES
NESTE LIVRO
*Livro em produção, mas que em breve estará à disposição
dos leitores em língua portuguesa.
Karl MARX Peter BERGER
Frederick ENGELS Herbert BLUMER
Émile DURKHEIM Herbert MARCUSE
Max WEBER Jürgen HABERMAS
Georg SIMMEL Jean-François LYOTARD
George Herbert MEAD Patricia Hill COLLINS
Robert K. MERTON Steven SEIDMAN
C. Wright MILLS W. E. B. du BOIS
Peter BLAU Joseph E. STIGLITZ
F223l Farganis, James.
Leituras em teoria social : da tradição clássica ao pós-
modernismo [recurso eletrônico] / James Farganis ;
tradução: Henrique de Oliveira Guerra ; revisão técnica:
Alexandre Barbosa Pereira. – 7. ed. – Porto Alegre : AMGH,
2016.
e-PUB.

Editado como livro impresso em 2016.


ISBN 978-85-8055-561-5

1. Sociologia. I. Título.
CDU 316
Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094

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Karl Marx:
Alienação, luta de classes
e consciência de classe 1
Introdução mundo, instando que examinássemos as coi-
sas como elas são e seu potencial futuro. As-
Por que se importar em ler Marx, alguém
sim como a plântula dá origem à árvore, tam-
poderia se perguntar, em especial após o co-
bém indivíduos e sociedades têm o potencial
lapso do comunismo na Europa Oriental e
de se desenvolver e se realizar sob condições
na União Soviética? Argumenta-se que esses
adequadas. Marx tinha como objetivos narrar
eventos históricos puseram um ponto final
as condições do desenvolvimento humano
na Guerra Fria, e, com isso, um Ocidente vi-
sob o capitalismo e, logicamente, projetar as
torioso foi capaz de estabelecer uma ordem
mudanças dinâmicas que sucederiam, levan-
mundial liberal, capitalista e democrática.
do as pessoas a uma realização mais plena de
Entretanto, Marx continua a suscitar interes-
suas potencialidades livres e criativas.
se, menos por suas previsões fracassadas do
Em 1843, Marx deixou a Alemanha rumo
que por sua análise estrutural do poder nas
a Paris, onde trabalhou como jornalista e es-
sociedades capitalistas e sua visão abrangen-
te sobre a íntima inter-relação entre domina- creveu os ensaios que acabaram coligidos e
ção econômica de classes, poder político e publicados com o título Manuscritos filosóficos
ideologia. Alunos de sociologia têm muito a e econômicos de 1844. Foi em Paris que Marx
aprender com essas relações estruturais, pois conheceu Frederick Engels, que se tornou seu
elas apontam para questões significativas maior amigo e colega. Em 1845, Marx visitou
do poder econômico, social e político e nos Londres, onde ele e Engels trabalharam jun-
fornecem uma visão histórica que explica tos na obra A ideologia alemã. Mais tarde, em
como, e sob quais condições, essas relações 1847, um grupo socialista, chamado “A liga
mudam. Embora Marx tenha afirmado seu dos justos”, encarregou Marx e Engels de re-
comprometimento com o estudo científico digirem o Manifesto comunista.
da sociedade, sua ímpar abordagem dialéti- Levantes revolucionários contra a velha
ca permitiu-lhe fundir suas visões filosóficas ordem monárquica varriam a Europa inteira
sobre a emancipação humana com suas aná- em 1848, ano em que o Manifesto foi publica-
lises sociológicas e históricas sobre a mudan- do. Marx retornou a Londres após essas fra-
ça social e a revolução. cassadas revoluções e passou a maior parte
Marx nasceu em Trier, em 1818, em uma de sua vida restante exilado na capital britâ-
família judaico-alemã de classe média. Fre- nica. Ele era sustentado principalmente pelo
quentou a Universidade de Bonn e depois a seu rico amigo Engels e ganhava uma peque-
Universidade de Berlim, onde participou de na renda como correspondente europeu do
um grupo de intelectuais, os Jovens Hegelia- New York Daily Tribune.
nos, que aplicou a abordagem filosófica de O período entre 1848 e 1863 foi particu-
Hegel a uma crítica radical da política alemã. larmente difícil para Marx. Com o fracasso
A abordagem dialética de Hegel tentava cap- das revoluções de 1848, Marx ficou sem pú-
turar a realidade da mudança dinâmica do blico para sua obra. No entanto, ele conti-

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30 Parte I A tradição clássica

nuou escrevendo sua obra-prima, O capital, trolam o processo produtivo. Embora Marx
incentivado por Engels e impulsionado por considerasse que a determinação do que a
sua visão de progresso histórico e transfor- labuta produz, de como a labuta produz e
mação revolucionária. Em 1863, Marx des- de como os produtos da labuta são distri-
cobriu novamente um público para sua obra buídos deveria ser feita pela classe operária,
com a fundação da Internacional, organiza- no capitalismo a burguesia paga um salário
ção que contava com representantes de di- aos trabalhadores e então se apropria do que
versos partidos dos trabalhadores europeus eles produzem e utiliza esses produtos. Em
e se dedicava a acabar com o sistema vigente outras palavras, as condições sob as quais a
de dominação econômica. Marx envolveu-se labuta produz são condições alienantes, na
ativamente com a organização, escrevendo medida em que os trabalhadores perdem
discursos e panfletos e, por fim, tornou-se o controle sobre o objeto de sua labuta, ou
líder, à medida que trabalhava incansavel- seja, seu produto. Todas as determinações
mente para forjar uma frente unida a partir importantes são feitas por outras pessoas.
dos diversos pontos de vista ideológicos Sem permissão para desempenhar as fun-
que eram representados. Quando o primeiro ções inerentes de um ente-espécie, ou mes-
volume de O capital foi publicado em 1867, mo para ver a força de seu trabalho como
foi bem recebido pelos socialistas russos e sua própria, o trabalhador sente-se desmo-
alemães e por todos os membros da Interna- ralizado e desumanizado.
cional, que celebraram Marx e sua obra como O capitalismo, na condição de modo
socialismo científico e lhe concederam posi- de produção, implica relações estruturadas
ção canônica. entre trabalho e capital que resultam na alie-
Conflitos internos ocasionaram a dis- nação dos trabalhadores dos aspectos mais
solução da Internacional em 1876, e Marx importantes de sua labuta. Primeiro, são
concluiu poucos trabalhos intelectuais de alienados de sua atividade produtiva. A for-
importância nos anos seguintes. Ele morreu ça de trabalho industrial é organizada na
em 1883 e está enterrado no Cemitério de linha de montagem, em que tarefas específi-
Highgate. cas, repetitivas e tediosas devem ser executa-
Marx acreditava que, por meio da labu- das. O trabalho torna-se um meio mecânico
ta (labor), a espécie humana seria capaz de para alcançar um fim, não exigindo inteli-
realizar seu “ente-espécie”, ou seja, seu po- gência nem imaginação, e o trabalhador é re-
tencial para as atividades criativas e signifi- vertido a uma condição sub-humana em vez
cativas por meio do trabalho (work). A labuta de ser elevado a realizar seu “ente-espécie”.
humana não era apenas energia gasta por Os trabalhadores também são alienados dos
subsistência, embora claramente isso aconte- produtos que eles produzem. Sua energia
cesse no capitalismo. O que Marx concebeu é congelada nesses produtos, mas os traba-
foi a utilização da labuta para o aprimora- lhadores não possuem o que produzem. Por
mento da vida humana além das necessida- fim, os trabalhadores são alienados de seus
des materiais, para a criação de uma socie- colegas de trabalho, à medida que os capi-
dade em que as necessidades estéticas, bem talistas promovem a competição entre eles
como as materiais, pudessem ser satisfeitas. para os postos de trabalho disponíveis com
A labuta tinha o potencial de fornecer essa salários de subsistência. Em vez de solidarie-
oportunidade, por isso permitia que as pes- dade e camaradagem surgidas no trabalho
soas exibissem atividades criativas e signifi- conjunto em um projeto coletivo, a força de
cativas, por meio de seu trabalho sob condi- trabalho é deliberadamente mantida em sa-
ções apropriadas. lários de subsistência, gerando grande medo
No capitalismo, porém, os proprietários nos trabalhadores de que não conseguirão
dos meios de produção, a burguesia, con- sobreviver caso percam seus empregos para

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Capítulo 1 Karl Marx: Alienação, luta de classes e consciência de classe 31

outros trabalhadores. O exército de reserva e de nossa orientação ideológica em rela-


de mão de obra, como Marx chamou a mas- ção ao mundo dependem da base material,
sa dos desempregados, atua como ameaça ou produtiva, da sociedade. As mudanças
constante para os trabalhadores que podem na infraestrutura econômica produzem
tentar organizar-se e exigir melhores salá- mudanças na superestrutura ideológica
rios. Assim alienado e mecanizado, o traba- e política. Em A ideologia alemã, Marx rela-
lhador se sente desumanizado na atividade ta sua concepção materialista da história e
que mais naturalmente deveria expressar desenvolve plenamente suas ideias sobre a
humanidade. inter-relação da economia com a política e
Marx encarava a história como um regis- a sociedade.
tro de opressão e dominação em que mem- Em sua visão da sociedade capitalista,
bros das classes superiores eram capazes de Marx revela uma teoria da estrutura de clas-
explorar aqueles das classes mais baixas. No ses. A classe que controla os meios de produ-
entanto, a história também é progressiva e ção é também a força política e ideológica do-
aponta no sentido da melhoria das condições minante na sociedade. Marx nos afirma que
e maior liberdade. O capitalismo é apenas as ideias dominantes são as ideias da classe
uma fase nesse desenvolvimento histórico. dominante. O conteúdo da consciência sob o
Assim como o feudalismo deu lugar ao ca- capitalismo centra-se nas ideias liberais dos
pitalismo quando as condições econômicas direitos individuais, principalmente os direi-
estavam propícias, também o capitalismo tos de propriedade. O poder é mantido pela
cederá lugar ao socialismo e, mais tarde, ao classe dominante, pelo menos em parte, por-
comunismo, como a forma suprema de uma que o proletariado não tem, nas fases iniciais
existência emancipada. Como isso acontece- do capitalismo, a “verdadeira consciência”.
ria é contado nas páginas seguintes do Mani- Só depois de miséria e sofrimento prolonga-
festo comunista. dos e sem alívio que o proletariado começa
As categorias de Marx para a análise a se enxergar como classe, gradativamente
social ainda têm validade considerável. Na mobiliza-se e desenvolve uma ideologia al-
tentativa de analisar uma sociedade, Marx ternativa que postula as relações objetivas
questiona como a ordem social chegou a ser entre trabalho e capital.
o que é, quais estruturas de poder a mantêm Marx acreditava que a história era im-
e qual é a relação entre riqueza e poder. Essas pulsionada pela luta de classes e que im-
perguntas devem pautar a mente do leitor ao portantes mudanças sociais resultavam dos
estudar os conteúdos deste capítulo. inevitáveis conflitos entre interesses irre-
A teoria de Marx sobre a sociedade ti- conciliáveis. O capitalismo desmoronaria,
nha um ponto de vista fulcral: a maneira em à medida que a luta entre a burguesia e o
que a produção se organiza é a chave para proletariado já não pudesse mais ser contida
compreender as relações importantes em pelo arcabouço das leis e instituições sociais.
qualquer ordem social. O modo de produ- O Manifesto comunista oferece uma breve aná-
ção, seja uma economia de escravidão, um lise histórica de como surgiu a classe burgue-
sistema feudal, uma ordem capitalista ou sa, mostra como a burguesia não tem mais
um sistema socialista, deve ser analisado controle sobre seus domínios e delineia as
em termos das relações básicas que definem doutrinas básicas da classe usurpada: o pro-
esse sistema. Além disso, percebia-se que a letariado. Marx acreditava que o socialismo
base econômica da sociedade, a sua subes- substituiria o capitalismo e que o triunfo do
trutura, influenciava ou até mesmo deter- proletariado inauguraria uma ordem nova e
minava a superestrutura, ou seja, as ideias, progressista que cumpriria a mais nobre as-
os valores, as leis e as instituições sociais e piração da humanidade por uma ordem so-
políticas. Os conteúdos de nossa consciência cial livre e criativa.

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32 Parte I A tradição clássica

Karl Marx e Frederick Engels: O manifesto do partido comunista


Um fantasma assola a Europa – o fantasma Nas épocas remotas da história, encon-
do comunismo. Todas as potências da velha tramos em quase toda parte uma complicada
Europa firmaram uma aliança sagrada para organização da sociedade em várias ordens,
exorcizar esse fantasma: o papa e o czar, Met- uma gradação múltipla do ranque social.
ternich e Guizot, os radicais franceses e a po- Na Roma Antiga temos patrícios, cavaleiros,
lícia secreta alemã. plebeus, escravos; na Idade Média, senhores
Qual partido de oposição não foi execra- feudais, vassalos, artesãos, aprendizes, ser-
do como comunista por seus adversários no vos; em quase todas essas classes, novamen-
poder? Qual oposição não atribuiu a partidos te, havia gradações subordinadas.
de oposição mais progressistas e também a A sociedade burguesa moderna que bro-
oponentes reacionários o estigma insultuoso tou das ruínas da sociedade feudal não aca-
do comunismo? bou com os antagonismos de classe. Mas ela
Duas coisas resultam desse fato: estabeleceu novas classes, novas condições
de opressão, novas formas de luta no lugar
I. O comunismo já é reconhecido por todas
das antigas.
as potências europeias como um poder.
Nossa época, a época da burguesia, tem,
II. Chegou a hora de os comunistas torna-
no entanto, esta característica distintiva: ela
rem públicas, diante do mundo inteiro,
simplificou os antagonismos de classe. A so-
suas opiniões, seus objetivos e suas ten-
ciedade como um todo está cada vez mais se
dências e confrontar essa fábula sobre o
separando em dois grandes campos hostis,
fantasma do comunismo com um mani-
em duas grandes classes em confronto direto
festo do próprio partido.
– a burguesia e o proletariado.
Para isso, comunistas de várias naciona- Dos servos da Idade Média surgiram os
lidades se reuniram em Londres e esboçaram habitantes das cidades mais antigas. A partir
o seguinte manifesto, a ser publicado nos desses citadinos desenvolveram-se os pri-
idiomas inglês, francês, alemão, italiano, fla- meiros elementos da burguesia.
mengo e dinamarquês. A descoberta da América e o contorno
do Cabo da Boa Esperança abriram novos
horizontes para a burguesia nascente. Os
I – Burgueses e proletários mercados orientais da Índia e da China, a co-
A história de toda a sociedade até hoje exis- lonização da América, o comércio com as co-
tente é a história das lutas de classes. lônias e o aumento dos meios de troca e das
Homem livre e escravo, patrício e ple- mercadorias em geral deram ao comércio, à
beu, nobre e servo, artesão e aprendiz, em navegação e à indústria um impulso nunca
suma, opressor e oprimido, estabeleceram antes conhecido e, assim, um rápido desen-
constante oposição um ao outro, travaram volvimento ao elemento revolucionário na
uma luta ininterrupta, ora oculta, ora escan- sociedade feudal cambaleante.
carada, luta que sempre culminou seja com O sistema feudal de indústria, que mono-
a reconstituição revolucionária da sociedade polizava a produção industrial em corpora-
em geral, seja com a ruína comum das classes ções fechadas, deixou de atender às crescentes
em luta. necessidades dos novos mercados. O sistema
de manufatura tomou o seu lugar. Os artesãos
De Karl Marx e Frederick Engels, The Manifesto of foram substituídos pela classe média indus-
the Communist Party (New York: International Pu- trial; a divisão do trabalho entre as diferentes
blishers). Direitos autorais de 1948. Reproduzido corporações desapareceu em face da divisão
com permissão. do trabalho em cada oficina única.

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Capítulo 1 Karl Marx: Alienação, luta de classes e consciência de classe 33

Nesse meio-tempo, os mercados conti- A burguesia, sempre que alcançou o po-


nuaram crescendo, a demanda sempre cres- der, pôs fim a todas as relações feudais, pa-
cente. Até mesmo a manufatura já não era triarcais e idílicas. Destroçou sem pena os
mais suficiente. Então, o vapor e as máqui- laços feudais heterogêneos que ligavam o ho-
nas revolucionaram a produção industrial. mem a seus “superiores naturais” e não man-
A posição da manufatura foi tomada pela teve nenhum outro vínculo entre homem e
gigantesca indústria moderna, e a posição da homem além do autointeresse desnudo, além
classe média industrial, por milionários in- do insensível “pagamento em moeda viva”.
dustriais – os líderes de verdadeiros exércitos Afogou os êxtases mais celestiais do fervor
industriais, os burgueses modernos. religioso, do entusiasmo cavalheiresco e do
A indústria moderna estabeleceu o mer- sentimentalismo filisteu nas gélidas águas
cado global, para o qual a descoberta da do cálculo egoísta. Transformou a dignida-
América preparou o caminho. Esse mercado de pessoal em valor de troca e substituiu as
deu um imenso desenvolvimento ao comér- inúmeras e irrevogáveis liberdades por aque-
cio, à navegação e à comunicação por terra. la única e inescrupulosa liberdade – o livre
Essa evolução, por sua vez, reagiu sobre a comércio. Em suma, substituiu a exploração
ampliação da indústria; e na mesma propor- encoberta por ilusões religiosas e políticas
ção em que indústria, comércio, navegação pela exploração nua e crua, desavergonhada,
e ferrovias se ampliavam, a burguesia se de- direta e brutal.
senvolveu, aumentou o seu capital e alijou ao A burguesia despojou de sua auréola
segundo plano todas as classes retransmiti- todo e qualquer ofício até então honrado e
das desde a Idade Média. admirado com reverência. Converteu o médi-
Percebemos, portanto, como a burguesia co, o advogado, o padre, o poeta e o homem
moderna é o produto de um longo curso de da ciência em trabalhadores assalariados.
desenvolvimento, de uma série de revolu- A burguesia rasgou o véu sentimental
ções nos modos de produção e de trocas. da família e reduziu a relação familiar a uma
Cada etapa no desenvolvimento da bur- mera relação monetária.
guesia foi acompanhada por um correspon- A burguesia revelou como a brutal de-
dente avanço político dessa classe. Uma classe monstração de força na Idade Média, tão
oprimida sob a influência da nobreza feudal admirada pelos reacionários, encontrou seu
tornou-se uma associação autônoma e arma- complemento na mais preguiçosa indolên-
da na comuna medieval; aqui república urba- cia. Foi a primeira a mostrar o que a ativida-
na independente (Itália e Alemanha) e acolá de do homem é capaz. Realizou maravilhas
“terceiro Estado” tributável da monarquia que ultrapassaram as pirâmides do Egito, os
(França); depois, no período de manufatura aquedutos romanos e as catedrais góticas;
propriamente dito, servindo tanto à monar- conduziu expedições que superaram todas
quia semifeudal quanto à monarquia abso- as migrações antigas de nações e cruzadas.
luta como contrapeso contra a nobreza e, na A burguesia não pode existir sem revo-
verdade, como a pedra angular das grandes lucionar constantemente os instrumentos de
monarquias em geral – enfim, desde o estabe- produção e, assim, as relações de produção e
lecimento da indústria moderna e do merca- com elas todas as relações da sociedade. Ao
do global, a burguesia conquistou, no Estado contrário, a conservação dos antigos modos
representativo moderno, exclusiva influência de produção em forma inalterada era a pri-
política. O executivo do Estado moderno não meira condição de existência para todas as
é nada além do que um comitê para gerenciar classes industriais anteriores. A constante
os assuntos comuns de toda burguesia. revolução da produção, a perturbação inin-
A burguesia desempenhou um papel ex- terrupta de todas as condições sociais e as
tremamente revolucionário na história. eternas incertezas e agitações distinguem a

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34 Parte I A tradição clássica

época burguesa de todas as anteriores. Todas meios de comunicação imensamente facilita-


as relações engessadas e petrificadas, com dos, atrai todas as nações, até mesmo a mais
seu rastro de antigos e veneráveis preconcei- bárbara, para a civilização. Os preços baratos
tos e opiniões, são varridas do mapa, todas das suas mercadorias são a artilharia pesada
as recém-formadas tornam-se antiquadas an- com a qual ela derruba todas as muralhas da
tes de conseguirem ossificar. Tudo que é sóli- China, com a qual ela força o intenso e obs-
do derrete-se no ar, tudo que é sagrado é pro- tinado ódio dos bárbaros contra os estran-
fanado, e a humanidade enfim é obrigada a geiros a capitular. Compele todas as nações,
encarar com sobriedade suas condições reais sob pena de extinção, a adotar o modo bur-
de vida e suas relações com a sua espécie. guês de produção; as compele a inserir o que
A necessidade de um mercado em cons- chama de civilização em seu meio, ou seja, a
tante expansão por seus produtos persegue tornar-se burguesa também. Em resumo, cria
a burguesia por toda a superfície do globo. um mundo à sua própria imagem.
Deve aninhar-se em todos os lugares, insta- A burguesia submeteu o país ao domínio
lar-se em todos os lugares, estabelecer cone- das cidades. Criou cidades imensas, inflou
xões em todos os lugares. bastante a população urbana em comparação
Explorando o mercado global, a burgue- com a rural e, assim, resgatou uma parte con-
sia deu um caráter cosmopolita à produção e siderável da população da idiotice da vida
ao consumo em todos os países. Para gran- rural. Assim como tornou o país dependente
de desgosto dos reacionários, ela removeu o das cidades, também tornou os países bárba-
solo nacional sobre o qual pisava a indústria. ros e semibárbaros dependentes dos civiliza-
Todas as indústrias nacionais há tempos es- dos, as nações de camponeses dependentes
tabelecidas foram destruídas ou estão sendo das nações do burguês, o Oriente dependen-
destruídas diariamente. São desalojadas por te do Ocidente.
novas indústrias, cuja introdução se torna Cada vez mais, a burguesia continua
uma questão de vida ou morte em todas as eliminando o estado disperso da população,
nações civilizadas, por indústrias que já não dos meios de produção e da propriedade. Ela
transformam matéria-prima local, mas sim aglomerou a população, centralizou os meios
matérias-primas extraídas das zonas mais de produção e concentrou a propriedade em
remotas; indústrias cujos produtos são con- poucas mãos. A consequência necessária dis-
sumidos não só no mercado doméstico, mas so foi a centralização política. Províncias in-
em todos os cantos do globo. Em vez das ve- dependentes ou pouco conectadas, com inte-
lhas necessidades, satisfeitas pela produção resses, leis, governos e sistemas de tributação
do país, encontramos novas necessidades, diferentes, agruparam-se em uma só nação,
exigindo para sua satisfação os produtos de com um governo, um código de leis, um in-
terras e climas distantes. Em vez do antigo teresse de classes nacional, uma fronteira e
isolamento e autossuficiência locais e nacio- uma alfândega.
nais, temos relações em todas as direções, A burguesia, durante seu domínio de
interdependência universal das nações. E o apenas um século, criou forças produtivas
mesmo acontece com a produção intelectual. mais maciças e mais colossais do que todas
As criações intelectuais de nações indivi- as gerações anteriores juntas. A sujeição das
duais tornam-se propriedade comum. Men- forças da natureza pela humanidade, a ma-
talidade tacanha e unilateralidade nacional quinaria, a aplicação da química na indús-
tornam-se cada vez mais impossíveis, e das tria e na agricultura, a navegação a vapor, as
numerosas literaturas nacionais e locais sur- ferrovias, os telégrafos elétricos, o desmata-
ge uma literatura universal. mento de continentes inteiros para o cultivo,
A burguesia, pela rápida melhoria de a canalização de rios, povos inteiros brotados
todos os instrumentos de produção e pelos do chão como que por encanto – que século

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Capítulo 1 Karl Marx: Alienação, luta de classes e consciência de classe 35

anterior teve sequer um pressentimento de -se de novo em um estado de momentânea


que essas forças produtivas dormitavam no barbárie; é como se uma fome, uma guerra
colo da labuta social? universal de devastação tivesse cortado o
Percebemos então que os meios de pro- fornecimento de todos os meios de subsis-
dução e de troca, que serviram como a base tência; a indústria e o comércio parecem
para o crescimento da burguesia, foram ge- estar destruídos. E por quê? Porque há um
rados na sociedade feudal. Em determinado excesso de civilização, um excesso de meios
estágio no desenvolvimento desses meios de subsistência, um excesso de indústria, um
de produção e de troca, as condições sob as excesso de comércio. As forças produtivas
quais a sociedade feudal produzia e fazia à disposição da sociedade já não tendem a
trocas, a organização feudal de agricultura promover o desenvolvimento das condições
e de indústria manufaturada, em suma, as da propriedade burguesa; ao contrário, elas
relações feudais da propriedade tornaram- se tornaram muito poderosas para essas
-se incompatíveis com as forças produtivas condições que as restringem e, ao superarem
já desenvolvidas. Criavam entraves à pro- essas restrições, logo vão causar transtorno
dução, em vez de fomentá-la; tornaram-se para toda a sociedade burguesa, pondo em
múltiplas amarras. Tinham de ser rompidas perigo a existência da propriedade burgue-
e foram rompidas. sa. As condições da sociedade burguesa são
Em seu lugar entrou a livre concorrência, demasiado estreitas para abranger a riqueza
acompanhada por uma constituição social e criada por elas. E como a burguesia supera
política que se adaptava a isso e pela influên- essas crises? Por um lado, pela destruição
cia econômica e política da classe burguesa. forçada de uma massa de forças produti-
Um movimento semelhante está acon- vas; por outro lado, pela conquista de novos
tecendo diante dos nossos próprios olhos. mercados e pela exploração mais profunda
A sociedade burguesa moderna, com as dos antigos. Ou seja, abrindo caminho para
suas relações de produção, de trocas e de crises mais amplas e mais destrutivas e, ao
propriedade, uma sociedade que concebeu mesmo tempo, diminuindo os meios pelos
gigantescos meios de produção e de trocas, quais as crises são prevenidas.
é como o feiticeiro que já não é mais capaz As armas com as quais a burguesia jogou
de controlar os poderes do outro mundo que o feudalismo ao chão agora se voltam contra
ele invocou pelos seus feitiços. Há várias dé- a própria burguesia.
cadas, a história da indústria e do comércio Mas a burguesia não forjou apenas as ar-
é apenas a história da revolta das forças pro- mas que trazem a morte para si mesma; ela
dutivas modernas contra as condições mo- também criou as pessoas que devem empu-
dernas de produção, contra as relações de nhar essas armas: a classe trabalhadora mo-
propriedade que forjam as condições para a derna – os proletários.
existência da burguesia e de sua dominação. À medida que a burguesia (ou seja, o
É suficiente mencionar as crises comerciais capital) evolui, o proletariado (a classe traba-
que, pelo seu retorno periódico, colocam a lhadora moderna) evolui na mesma propor-
existência de toda a sociedade burguesa a ção – uma classe de trabalhadores que vive
perigo, de modo cada vez mais ameaçador. apenas enquanto encontra trabalho e que
Nessas crises, grande parte não só dos pro- só encontra trabalho enquanto sua mão de
dutos existentes, mas também das forças obra aumenta o capital. Esses trabalhadores,
produtivas antes criadas, é periodicamente que devem se vender aos poucos, são uma
destruída. Nessas crises irrompe uma epide- mercadoria, como qualquer outro artigo de
mia que, em todas as épocas anteriores, teria comércio e, por isso, estão expostos a todas
parecido um absurdo – a epidemia da su- as vicissitudes da concorrência, a todas as
perprodução. Súbito, a sociedade encontra- flutuações do mercado.

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36 Parte I A tradição clássica

Devido ao amplo uso de maquinaria e à Assim que o trabalhador recebe seu salá-
divisão da mão de obra, o trabalho dos prole- rio em dinheiro, naquele átimo escapando da
tários perdeu todo o caráter individual e, por exploração pelo fabricante, então se depara
conseguinte, todo o encanto para o trabalha- com as facetas da burguesia: o dono do imó-
dor. Ele se torna um apêndice da máquina, vel, o lojista, o agiota, etc.
e dele se exige só a habilidade mais simples, Os estratos inferiores da classe média –
mais monótona e mais facilmente adquirida. pequenos comerciantes, lojistas e, em geral,
Portanto, o custo de produção de um traba- negociantes aposentados, artesãos e campo-
lhador é restrito, quase inteiramente, aos neses – todos se afundam gradativamente no
meios de subsistência de que ele necessita proletariado, em parte porque seu diminuto
para sua manutenção e para a propagação de capital é insuficiente para a escala em que a
sua raça. Mas o preço de uma mercadoria, e, indústria moderna é realizada e se atola no
portanto, também da mão de obra, é igual ao lodaçal da concorrência com os grandes capi-
seu custo de produção. Proporcionalmente, talistas, em parte porque sua habilidade es-
então, quanto mais repulsivo o trabalho, me- pecializada torna-se inútil devido aos novos
nor o salário. E não é só isso. À medida que métodos de produção. Assim, o proletariado
aumentam o uso da maquinaria e a divisão do é recrutado de todas as classes da população.
trabalho, o fardo da labuta também aumenta O proletariado passa por vários estágios
em igual proporção, seja por ampliação da jor- de desenvolvimento. Com seu nascimento
nada de trabalho, pelo aumento do trabalho começa sua luta com a burguesia. Primeiro,
exigido em determinado momento ou pelo a luta é conduzida por trabalhadores indivi-
aumento da velocidade das máquinas, etc. duais, depois pela força de trabalho de uma fá-
A indústria moderna transformou a pe- brica, depois por agentes de um comércio, em
quena oficina do mestre patriarcal na grande uma localidade, contra o burguês individual
fábrica do industrial capitalista. Massas de que diretamente os explora. Investem seus
operários, amontoadas na fábrica, são orga- ataques não contra as condições burguesas de
nizadas como soldados. E, na condição de produção, mas contra os próprios instrumen-
soldados do exército industrial, são coloca- tos de produção; destroem o equipamento
dos sob o comando de uma perfeita hierar- importado que concorre com o seu trabalho,
quia de oficiais e sargentos. Não são apenas despedaçam máquinas, incendeiam fábricas,
os escravos da classe burguesa e do Estado procuram restaurar à força a condição desapa-
burguês; eles são escravizados, todos os dias recida do trabalhador da Idade Média.
e todas as horas, pela máquina, pelo fiscal e, Nessa fase, os operários ainda formam
acima de tudo, pelo próprio fabricante bur- uma massa incoerente espalhada por todo o
guês individual. Quanto mais abertamente país e dividida por sua concorrência mútua.
esse despotismo proclama o lucro como seu Se em qualquer lugar eles se unem para for-
fim e objetivo, mais mesquinho, mais odioso mar grupos mais compactos, isso ainda não
e mais angustiante ele se torna. decorre de sua própria união ativa, mas da
Em outras palavras, quanto menores a união da burguesia, classe que, a fim de atin-
habilidade e a força aplicados ao trabalho gir seus próprios fins políticos, é compelida a
manual, mais se desenvolve a indústria mo- desencadear ações de todo o proletariado e,
derna, mais o trabalho dos homens é suplan- além disso, ainda é capaz de fazê-lo durante
tado pelo das mulheres. As diferenças de algum tempo. Nessa fase, portanto, os prole-
idade e sexo já não têm qualquer validade tários não combatem seus inimigos, mas os
social distintiva para a classe trabalhadora. inimigos dos seus inimigos, os remanescen-
Todos são instrumentos de trabalho, mais ou tes da monarquia absoluta, os proprietários,
menos caros de se usar, de acordo com sua os burgueses não industriais, a pequena bur-
idade e sexo. guesia. Assim, todo o movimento está con-

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Capítulo 1 Karl Marx: Alienação, luta de classes e consciência de classe 37

centrado nas mãos da burguesia; cada vitória tido político sofre contínuas e novas pertur-
assim obtida é uma vitória para a burguesia. bações pela concorrência entre os próprios
Porém, com o desenvolvimento da in- trabalhadores. Mas sempre se ergue nova-
dústria, o proletariado não só aumenta em mente, mais forte, mais firme, mais podero-
número; concentra-se em massas maiores, sa. Obriga o reconhecimento legislativo dos
sua força cresce, e essa força é sentida, cada interesses particulares dos trabalhadores,
vez mais. Os variados interesses e condições aproveitando-se das divisões entre a própria
de vida dentro das fileiras do proletariado burguesia. Assim foi aprovada a lei que li-
são cada vez mais equalizados, à medida mitava a jornada de trabalho de mulheres e
que a maquinaria oblitera todas as distin- crianças a 10 horas diárias.
ções de trabalho e reduz, quase em todos os No cômputo geral, os conflitos entre as
lugares, os salários ao mesmo nível inferior. classes da velha sociedade promoveram o
A crescente concorrência entre os burgueses curso do desenvolvimento do proletariado
e as crises comerciais resultantes instabili- em muitas maneiras. A burguesia encontra-
zam cada vez mais os salários dos trabalha- -se envolvida em uma batalha constante.
dores. A melhoria incessante da maquinaria, A princípio, com a aristocracia; posterior-
com evolução cada vez mais rápida, torna a mente, com aquelas parcelas da própria
subsistência dos trabalhadores cada vez mais burguesia cujos interesses se tornaram an-
precária; os conflitos entre os trabalhadores tagônicos ao progresso da indústria; e, em
individuais e o burguês individual assumem, todos os momentos, com a burguesia dos
cada vez mais, o caráter de conflitos entre países estrangeiros. Em todas essas batalhas,
duas classes. Por causa disso, os trabalha- a burguesia vê-se compelida a apelar ao pro-
dores começam a formar organizações (sin- letariado, a pedir sua ajuda e, assim, arrastá-
dicatos) contra a burguesia; eles se associam -lo à arena política. Portanto, a própria bur-
a fim de obter melhorias salariais; fundam guesia fornece ao proletariado seus próprios
associações permanentes a fim de programar elementos de educação política e geral; em
antecipadamente essas revoltas ocasionais. outras palavras, fornece ao proletariado as
Aqui e ali a luta irrompe em rebeliões. armas para combater a burguesia.
De vez em quando os trabalhadores são Além disso, como já vimos, camadas
vitoriosos, mas apenas por um tempo. O ver- inteiras das classes dominantes são, com o
dadeiro fruto de suas batalhas não reside no avanço da indústria, precipitadas ao prole-
resultado imediato, mas na união cada vez tariado, ou pelo menos ameaçadas em suas
maior dos trabalhadores. Essa união é apri- condições de existência. Essas camadas tam-
morada por melhores meios de comunicação, bém fornecem ao proletariado elementos re-
criados pela indústria moderna, que colocam novados de Iluminismo e progresso.
os trabalhadores de diferentes localidades Por fim, quando a luta de classes se apro-
em contato uns com os outros. Justamente xima da hora decisiva, o processo de disso-
esse contato era necessário para centralizar lução que acontece no seio da classe domi-
as numerosas lutas locais, todos do mesmo nante, na verdade no seio de toda a gama da
caráter, em uma luta nacional entre as clas- velha sociedade, assume um caráter tão vio-
ses. Mas toda luta de classes é uma luta po- lento, tão gritante, que uma pequena parte
lítica. Para atingir essa união, os burgueses da classe dirigente se desprende e se une à
da Idade Média, com suas estradas miserá- classe revolucionária, a classe que tem o fu-
veis, precisaram de séculos; por sua vez, os turo em suas mãos. Portanto, assim como em
proletários modernos, graças às ferrovias, a um período anterior parte da nobreza passou
alcançaram em poucos anos. à burguesia, agora parte da burguesia passa
Essa organização dos proletários em ao proletariado e, em particular, uma parce-
uma classe e, por conseguinte, em um par- la de ideólogos burgueses que se alçaram ao

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38 Parte I A tradição clássica

nível capaz de compreender teoricamente o podem se tornar mestres das forças produti-
movimento histórico como um todo. vas da sociedade, exceto abolindo o seu pró-
De todas as classes que hoje se opõem prio modo anterior de apropriação e, assim,
face a face com a burguesia, só o proletaria- também todos os outros modos anteriores de
do é uma classe realmente revolucionária. As apropriação. Eles não têm nada próprio para
outras classes decaem e por fim desaparecem fixar e fortalecer; sua missão é destruir todas
em face da indústria moderna; o proletariado as seguranças e garantias anteriores à pro-
é seu produto especial e essencial. priedade individual.
A classe média baixa, o pequeno fabri- Todos os movimentos históricos ante-
cante, o dono da loja, o artesão, o campo- riores foram movimentos de minorias ou no
nês, todos esses lutam contra a burguesia, interesse de minorias. O movimento prole-
para salvar da extinção sua existência como tário é o movimento autoconsciente e inde-
frações da classe média. Portanto, não são pendente da imensa maioria, no interesse
revolucionárias, mas conservadoras. E ain- da imensa maioria. O proletariado, o estra-
da mais: são reacionárias, pois tentam retro- to mais baixo da nossa sociedade atual, não
ceder o curso da história. Se por acaso elas pode mexer, não pode se levantar, sem man-
forem revolucionárias, elas o são apenas em dar pelos ares todos os estratos superiores da
virtude de sua iminente transferência ao sociedade oficial.
proletariado; defendem, portanto, não seu Embora não em substância, mas em for-
presente, mas seus interesses futuros; elas ma, a luta do proletariado com a burguesia
abandonam seu próprio ponto de vista para é inicialmente uma luta nacional. Claro, o
adotar o do proletariado. proletariado de cada país deve, em primei-
A “classe perigosa”, a escória social ro lugar, ajustar as contas com sua própria
(Lumpemproletariat), essa massa em passiva burguesia.
putrefação descartada pelas camadas mais Ao descrever as fases mais gerais do de-
baixas da velha sociedade, pode, aqui e ali, senvolvimento do proletariado, rastreamos a
ser arrastada ao movimento por uma revo- mais ou menos velada guerra civil que fer-
lução proletária; no entanto, suas condições vilha no seio da sociedade existente, até o
de vida a preparam muito mais para o papel ponto em que a guerra eclode em revolução
de uma ferramenta subornada de intriga rea- aberta e em que a violenta derrubada da bur-
cionária. guesia estabelece as bases para a influência
As condições sociais da antiga socieda- do proletariado.
de deixarão de existir para o proletariado. Até então, todas as formas de sociedade
O proletário não tem propriedades; sua rela- baseiam-se, como já vimos, no antagonismo
ção com a esposa e os filhos já não tem nada das classes opressoras e oprimidas. Mas, para
em comum com as relações familiares bur- oprimir uma classe, certas condições devem
guesas; o trabalho industrial moderno, a mo- lhe ser asseguradas para que, ao menos, ela
derna sujeição ao capital, igual na Inglaterra consiga continuar a sua pródiga existência.
e na França, nas Américas e na Alemanha, O servo, no período da servidão, conseguiu se
despiu-lhe de todos os traços de caráter na- tornar um membro da comuna, tal qual o pe-
cional. Para o proletário, a lei, a moralidade e queno burguês, que, sob o jugo do absolutis-
a religião são múltiplos preconceitos burgue- mo feudal, conseguiu se tornar um burguês.
ses, atrás dos quais espreitam em emboscada O operário moderno, ao contrário, em vez
múltiplos interesses burgueses. de melhorar com o progresso da indústria,
Todas as classes anteriores que estiveram afunda-se cada vez mais abaixo das condições
no poder procuraram fortificar seu status já de existência de sua própria classe. Torna-se
adquirido, submetendo a sociedade às suas pobre, e a pobreza cresce com mais rapidez do
condições de apropriação. Os proletários não que a população e a riqueza. E aqui se torna

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Capítulo 1 Karl Marx: Alienação, luta de classes e consciência de classe 39

evidente que a burguesia já não é mais ade-


quada para ser a classe dominante na socieda-
de e para impor suas condições de existência
na sociedade como um direito fundamental.
É inadequada a dominar porque é incapaz
de garantir uma existência a seu escravo em
sua escravidão, porque não pode impedir de
afundá-lo a essa condição, que tem de ali-
mentá-lo, em vez de ser alimentado por ele.
A sociedade já não pode mais viver sob essa
burguesia; em outras palavras, sua existência
não é mais compatível com a sociedade.
A condição essencial para a existência e
a influência da classe burguesa é a formação
e o aumento de capital; a condição para o
capital é o trabalho assalariado. O trabalho
assalariado repousa exclusivamente na con-
corrência entre os trabalhadores. O avanço
da indústria, cujo promotor involuntário
é a burguesia, substitui o isolamento dos
trabalhadores, devido à concorrência, pela
sua combinação revolucionária, devida à
associação. Assim, o desenvolvimento da
indústria moderna elimina de sob os seus
pés os próprios alicerces sobre os quais a
burguesia produz e se apropria dos bens.
Portanto, o que a burguesia produz, acima
de tudo, são os seus próprios coveiros. Sua
queda e a vitória do proletariado são igual-
mente inevitáveis.

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Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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