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2. HOMENS VERSUS FOGO: DOUTRINA OFENSIVA EM 1914 Michael Howard* Quando estourou a guerra na Europa em 1914, cada uma das principais poténcias beligerantes assumiu de imediato a ofensiva. 0 exército austro-hungaro invadiu a Polénia. Os russos atacaram a Prussia Oriental. Os alemaes assaltaram a Franga pela Bélgica; e os franceses tentaram reconquistar as provincias perdidas na Alsacia e Lorena. No fim daquele ano, todas as ofensivas tinham sido barradas ou rechagadas, resultando cerca de 900 mil desaparecidos, prisionei- ros, feridos ou mortos. Os ataques continuaram ao longo de 1915, quando a Italia invadiu a Austria, com resultados igualmente desas- trosos; ao longo de 1916, quando os alemaes assaltaram Verdun, e os novos exércitos britanicos entraram na guerra com a grande ofensiva no Somme; e s6 comegaram a arrefecer em 1917, quando, depois da calamitosa ofensiva de Neville de abril, as tropas francesas se recusa- ram a atacar de novo e 0 Império Russo entrou em colapso devido as agruras da guerra. Tais desastres, combinados com 0 fracasso da ofensiva inglesa de quatro meses em Paschendaele, de agosto a se- tembro de 1917, deixaram uma imagem histdrica de cegueira tatica e estratégica sem paralelo na histéria, imagem que as bem-sucedidas ofensivas alems no front oriental e os ataques aliados finais no oci- dental pouco concorreram para redimir. & Todavia, os lideres militares que planejaram tais operacées e ideres politicos que as sancionaram, embora pare¢am insensi- luz de padrées posteriores, nao estavam cegos quanto as quéncias de seus ataques nem mal-informados sobre o poder 64 | defensivo do armamento do século XX. Nenhum deles acreditava que a guerra pudesse ser ganha sem perdas muito pesadas, “Quem quer que pense que grandes sucessos taticos podem ser Conseguidos na guerra moderna sem colocar em risco muitas vidas humanas, acho eu, esta muito enganado’, escreveu o general Friedrich yon Bernhar. di, em 1912. “O temor das perdas é 0 caminho certo do fracasso, en- quanto podemos supor, com certeza, que aquelas tropas que nag 1 ceiam as baixas tém tudo para usufruir de enorme superioridade sobre as indulgentes quanto ao derramamento de sangue.”® Qs os. pecialistas militares das outras nagées nado pensavam de forma dife- rente. “O éxito no assalto depende totalmente de como se treina os soldados de antemao ‘para saber como morrer ou Para evitar a mor- te”, escreveu 0 coronel inglés F. N. Maude; “se a instrugao for para evitar a morte, vocé estara desamparado, e o melhor a fazer é nao entrar em guerra’.*” Citadas com frequéncia eram também as som- brias palavras de Clausewitz: 0 fato de a carnificina ser um espetdculo horroroso deve nos levar a encarar a guerra de forma mais séria e nado nos proporcionar uma desculpa para que deixemos que nossas espadas percam o corte em nome da humanidade®. A crescente letalidade das armas vinha sendo estudada e le- vada em consideragao pelos especialistas militares desde as gran- des matangas ocorridas na metade do século anterior nos dois lados do Atlantico: Antietam e Fredericksburg, na Guerra Civil Ame- ricana, Gravelotte-St. Privat, na Guerra Franco-Prussiana. 0 problema se complicou ainda mais com os desenvolvimentos tecnoldgicos das décadas de 1880 e de 1890, A substituigao da pélvora pelo alto explo” sivo como propelente das munig6es das armas portateis e da artilha- ria modificou tanto o alcance como a precisao dessas armas. 0 maior poder de explosao possibilitou 0 aparecimento de rifles de meno" calibre com trajetérias mais tensas e alcances de até 2.000m, muito mais eficientes nao sé contra a infantaria atacante, como tambem contra os velhos canhées de campanha que, de uma distancia de ¢” ca de 1.000m, apoiavam os assaltos. Os calibres menores, por sua vel) Homens versus foga: Doutrina ofensiva em (914 | 65 permitiram que os infantes transportassem mais muni¢do para o combate, enquanto os estojos metalicos e os carregadores de muni- ¢ao para armas portateis aumentaram a cadéncia de tiro. No entanto, 0 alcance, 0 calibre e a precisao da artilharia também cresceram. A artilharia de campanha estendeu seu alcan- ce até 6.000m, com “carretas sem recuo” que tornaram possivel o fogo rapido e continuo, e entrou em operagao a artilharia pesada mével com alcances de 10.000m ou mais. Aumentou dessa forma aescala da batalha de alguns quilémetros para dezenas deles e, na realidade, com a capacidade de as ferrovias carrearem tropas para © campo de batalha, ela pulou para centenas de quilémetros; e como os novos explosivos entravam em combustao quase sem emitir fumaga, os combatentes, desde que permanecessem im6- veis, quedavam-se praticamente invisiveis. Se os novos desenvolvimentos favoreciam a defesa ou 0 ata- que foi a grande celeuma surgida entre os especialistas militares. De um lado, argumentava-se, com especial fervor no La guerre fu- ture, estudo de muitos volumes de Jan Bloch publicado em 1898, que os ataques frontais no futuro seriam nao apenas proibitiva- mente caros como estatisticamente impossiveis: “A dividir os com- batentes existira sempre uma intransponivel zona de fogo, mortal Para os dois inimigos.’® Mas Bloch era civil, e 0 peso da opiniao militar era de que a nova tecnologia favorecia tanto a defesa quan- to o ataque. Nenhum assalto teria éxito, concordava-se, enquanto os atacantes ndo conseguissem superioridade de fogo; mas o alcance, o calibre e a precisdo da artilharia permitiam que tal superioridade fos- se obtida; a tarefa da infantaria atacante era a de progredir sob a pro- tecdo desse fogo, de posigao em posi¢ao, até que pude: despejar seu poder de fogo sobre os defensores e destroga-los antes que pudes- sem atuar, “E evidente’, descreveu o coronel (mais tarde, mare- chal) Ferdinand Foch nas palestras que proferiu na Escola de Guerra Francesa em 1900, [.-] que, hoje, a diregao e 0 controle do tiro tém imensa importancia. O fogo é o argumento supremo, As tropas mais entusiasmadas, aquelas cujo moral foi espicacado ao maximo, desejarao sempre conquistar terreno por Estrategia Moderna 66 | Construtores da : os sucessivos. Mas enfrentarao grandes dificulda- foe o consideraveis perdas, sempre que suas ofen- reparadas com fogo pesado. Serio tida, com perdas ainda maiores. A des e sofrera sivas parciais nao forem p -adas na linha de part a de fogo [..] se transforma no elemento mais rioridade ; em de combate da infantaria.”” importante do poder No entanto, chegava sempre 0 momento coal SEE atacante néo mais podia progredir sob a protecao ale al fogo ou da artilharia em apoio. “Diante dela’, como escreveu Foch, ‘apresenta-se uma zona quase intransponivel; nao mais existem as de acesso Dae tegidas; uma chuva de chumbo cai sobre o terreno’.”! Cee deveria ser atravessada tal “zona da morte’, se é possivel a travessia? Desde os dias das Guerras Napoleénicas, a infantaria atacan- te, tradicionalmente, progredia em trés ondas. Primeiro, ocorriam as escaramugas, com formagées dispersas, fazendo uso da cober- tura disponivel, abrindo caminho para a ocupag¢ao de posi¢Ges de tiro de onde pudesse ser apoiado o avango daqueles que vinham logo atras. Depois, avan¢ava o grosso da infantaria em formagao cerrada, com os oficiais a frente para insuflar o Animo nos solda- dos e os sargentos a retaguarda para intimid4-los, tambores ru- fando, clarins soando com clangor, estandartes regimentais des- fraldados para serem fincados nas posi¢6es conquistadas. Por fim, vinham os apoios, reservas a empregar de acordo com a vontade do antes Tratava-se de dispositivo pratico que se revelou valioso até 1870, quando os rifles franceses estaquearam quase lit 6 a eralmente 08 batalhdes alemaes atacantes nas vias de acesso; 0 ex€rcito alemao jamais reverteu as vez disso, os germanicos aceitaram avangar, naoem formagao cerrada, m; sua missao nao seria mais de assalto, a linha de tiro, desbordando gradual S defesas estivesse formac6es tradicionais. Em que a segunda linha deveria as dispersa como a primeira; mas de engrossar e estender mente os flancos do inimig® desbordadas pelas formagées fl m desorganizadas pelo fogo & Ser cada vez mais vistas ae ietinadoras (que comegaram ? como apropriadas Para a cavalaria) 6 qU® SUaS Posicgdes q, everi | ladas. Era uma doutrina tatic@ i iam ser aniqui a iqui que Schlieffen, ampliou para Reaieins Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em 1914 | 67 Na esteira de 1870, os franceses também adotaram tais proce- dimentos. Seus manuais de infantaria de 1875 proibiram o emprego de formag6es cerradas dentro do alcance de fogo do inimigo, advoga- ram a dispersao para tirar proveito das cobertas e abrigos e prescre- veram nao ser a linha de escaramugas apenas para preparar o ataque principal, mas para conduzi-lo: Porém, a doutrina experimentou fe- roz oposi¢ao tanto no exército francés como em todos os outros. Nao apenas houve o sentimento generalizado de que evitar 0 ataque a baioneta nao era “viril’, ponto de vista eloquentemente defendido pelo general Dragomirov; mais especificamente, houve bem funda- mentada incerteza se a infantaria, dispersa e contando com seus pr6- prios recursos, nao aproveitaria a ocasiao para “se perder”: jogar-se ao terreno e nao levantar mais. As analises cuidadosas das operagoes alemas em 1870 tinham revelado diversas oportunidades em que isso ocorrera. Nos campos de batalha mais amplos, que 0 novo arma- mento tornara possivel, e ante a ameaga invisivel que ele agora repre- sentava, tal comportamento, em exércitos constitufdos em sua maior parte de recrutas com pouco tempo de servi¢o, ameagava tornar-se a regra, nao a exce¢ao. O coronel Charles-Ardent du Picq, que foi morto em ac¢ao em 1870 e cujo Etudes sur le combat é um dos poucos grandes classicos da literatura militar, observou essa tendéncia mesmo nos campos de batalha de seus dias, em que o soldado 6, com frequéncia, pouco conhecido de seus companheiros mais proximos. Deles se perde na fumaga e na confusdo desorientadoras do combate em que estd engajado, a bem dizer, por si s6. Nao mais se pode garantir a coesao pela observagao mutua " La solidarité n’a plus la sanction d'une surveillance mutuelle: este passou a ser, desde entao, 0 problema do moral no campo de batalha. O préprio du Picq acreditava que, para enfrentar essas novas condigées, seria necessario cultivar uma elite militar muito diferente dos exércitos de massa que iriam se desenvolver no ulti- mo quarto do século XIX. As autoridades militares da Terceira Re- publica, contudo, nao viam esperanga de solugdo nesse modo de anstrutores da stratégia Moderna Ql trutores da E mais uma veZ prescreveram, para um ex ituido por jovens camponeses das proyin, Pes cabe¢as erguidas, independ eo aie ae 0 fogo mais violento, mesmo contra en iene e- mente defendidos, e conquista-los”. Dez anos m » 0S Co. nhecidos regulamentos de 1894 ainda reco especifica- mente, que a infantaria progredisse no Se ombro a ombro, em formagées emassadas, ao som dos clarins e tambores@ Parece absurdo; mas de que outra forma poderiam eles conseguir que os “ 0 fi 1973 recrutas atravessassem a “zona da morte final? Foch, em suas palestras seis anos depois, iria prescrever a mes- 68 pensar. Em 1884, que continuava consti ma solugao para o problema: Os lauréis da vitéria estao pendurados nas baionetas inimigas e tém que ser de la arrancados, pela luta corpo a corpo, se necessario. [...]. Fugir ou avangar é tudo o que resta. Avangar, mas avangar em quantidade, como uma s6 massa, ai repousa a seguranca. Isso porque os grandes efetivos, se os soubermos empregar, nos permitem, pela superioridade material com que passamos a contar, sobrepujar o fogo inimigo. Com mais canhées, poderemos silenciar os dele, e isso pode ser dito dos rifles e das baionetas, se soubermos utiliza-los.”* Muita énfase tem sido dadaa importancia e a influéncia de Foch como tedrico militar. Mas ele nada mais fez do que eco para opinides largamente difundidas, nao sé no exército francés, como também em outros. O coronel G. F. R, Henderson, talvez ° ae mais inteligente e letrado do exército inglés no final do século, anotou com satisfaga0 0 modo pelo qual, nos Manuais britanicos de ee de 1880, © valor da baioneta foi m ; ais uma vez ressaltado. A segunda linha, valendo-se a i enas do ago frio, como nos dia f pana 60 Frio, a eet © confiada a tarefa de levar a batalha ore ki pao, L..]. A confusao nas batalhas e cveu'se, em larga escala, 4 negligencia quanto aos principios imutaveis da tatica e [.-] portant, Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em (914 | 69 em termos taticos, elas constituem um mau exemplo para ser por nés seguido.’® 0 modelo que Henderson preconizava para as tropas ingle- sas era 0 dos exércitos americanos da Guerra Civil, que sempre atacaram em forma¢ées emassadas; com eles aprendeu que para evitar que a batalha degenere em uma luta prolon- gada entre dois exércitos fortemente entrincheirados e para conseguir resultados rapidos e decisivos, 0 mero emprego do fogo é insuficiente.”* Era verdade que as armas tinham mudado bastante durante os ultimos vinte e cinco anos, porém, afirmava Henderson convictamente, nem a pOlvora sem fumaga nem os rifles com carregado- res necessitaraéo qualquer mudanga radical. Se a defesa ganhou, como tem sido asseverado, com essas invengoes, 0 tiro vertical dos obuseiros de alma raiada adicionarao poder mais do que proporcional ao ataque. E, se o rifle com carregador trouxe um elemento novo e formidavel para a batalha, o elemento moral permanece idéntic 0 elemento moral permanece idéntico: este foi o tema que fre- quentou a maior parte da literatura militar na virada do século, e ain- da iria se fazer mais presente na década que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. As palavras de Clausewitz foram estudadas com tan- ta avidez nos exércitos francés e russo quanto no alemao, e as passa- gens mais citadas foram aquelas em que ele enfatizou a importancia avassaladora dos fatores morais na guerra ¢ a relativa insignificancia dos elementos materiais. Os trabalhos mais sintéticos e elegante- mente expressos de Ardent du Picq, com incursdes profundas na Psicologia militar, ganharam popularidade na Franga e ensinaram a mesma licdo. As batalhas, escreveu Du Picq, nado eram ganhas pelas armas, e sim pelos homens, e nada poderia ser efetivamente Planejado em um exército “sem o conhecimento exato do elemen- to primordial - o homem - e de sua condi¢ao moral no mo- mento “crucial (cet instant définitif) do combate”.”* Na batalha, arrazoou du Picq, 70 | Construtores da Estratégia Moderna duas atividades morais, € nao So materiais, se con. frontam, e a mais forte prevalecera ae ae fianga que se deposita na SO ata ade do ‘materia, incontestavel para manter 0 inumigora distancia, é con. frontada pela determinagdo do inimigo em chegar : contato direto, enfrentando bravamente meios supe. riores de destruicao, 0 efeito moral resultante ira sendo cada vez mais sentido a medida que aquela confianga fo, sendo perdida, e a atividade moral do inimigo acabarg preponderando Portanto, a carga Gow baionetas ca. ladas [...], em outras palavras, a progressao sob fogo, terg sempre, em correspondéncia, um efeito maior” Du Picq prosseguiu qualificando tal afirmagao em uma passa- gem bem menos citada. Nao se deve negligenciar a agao destrutiva antes do em- prego da a¢ao moral; logo, o fogo deve ser implementa- do até o tiltimo momento possivel; de outra forma, em fungado das cadéncias de tiro hoje existentes, nenhum ataque atingira seu objetivo.” E esse era exatamente o argumento de Bloch: em vista das cadén- cias de tiro existentes, nenhum ataque deveria, ou poderia, ser vitorioso. Tl No ano seguinte A publicagao do La guerre future, de Bloch, a Guerra dos Boers, na Africa do Sul, proporcionou o primeiro teste no qual 0 novo armamento foi empregado pelos dois lados. Como Vi mos, 0 exército inglés havia concluido que as vantagens que a pol pe sem fumaga e os rifles com carregadores trariam para as defe- ortho aaa pelo emprego da nova cadéncia de tiro da = his. a ‘anges shrapnel, explodindo no ar, destruiria™ ee eed estivessem entrincheirados e as de alto CN a em bem dentro do solo, desentocariam os abt Sequéncia, os britanicos retornaram As forma¢oes valendo-se apenas do ago frio, [recebendo] cerradas, “a segunda linha a tarefa : [de] levar a batalha auma rapida conclusio”®! 0 resultad? Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em 1914 | 7 foi, no rio Modder, em Colenso, em Magersfontein e em Spion Kop, as for¢as inglesas ficaram paralisadas, dizimadas e, em alguns lo- cais, obrigadas a rendi¢ao pelo fogo das defesas dos boers, as quais nao podiam ver e muito menos sobre elas cerrar para efetuarem um ataque. Os observadores do continente europeu atribuiram tal resultado ao treinamento inadequado de um exército desacostu- mado a lutar contra oponentes “civilizados”, e o coronel Henderson, um tanto agastado e que observara a campanha do quartel-general de Lord Robert, reagiu com ira as criticas. “E com algo mais do que surpresa’, escreveu ele, “que notamos uma recusa obstinada em ad- mitir que a trajetoria tensa dos rifles portateis, com a invisibilidade dos homens que os utilizam, forjou uma revolu¢ao completa na arte de travar batalhas’.** Formag6es cerradas sob fogo, afirmou, eram agora impossiveis. O ataque da infantaria em terreno aberto deve- ria progredir por linhas sucessivas de escaramucas com largos in- tervalos entre elas, enquanto “a cavalaria, armada e equipada como a cavalaria do continente, era tao obsoleta como os cruzados”. Quanto ao argumento de que as formagées cerradas eram necess: Trias para a manutengao do moral, ressaltou: “Quando o corpo prin- cipal das tropas sofre baixas enormes; quando sente, como acabara sentindo, que existem outros meios menos custosos que poderiam ser adotados para se chegar ao mesmo objetivo, o que acontecera com seu moral?”® Foi uma observacao bastante presciente. Em decorréncia das experiéncias de guerra, 0 exército inglés Teescreveu seus manuais de infantaria aproveitando as ideias de Henderson. O exército alemao nao precisou rever uma doutrina que ja sublinhava a vantagem do envolvimento das posi¢des inimigas em relagdo ao ataque frontal. O francés, algo surpreendentemente, imi- tou o inglés. Os regulamentos da infantaria francesa, que entraram em vigor em dezembro de 1904, abandonaram, explicitamente, as formagées coude d coude de 1894 e adotaram taticas mais alinhadas com aquelas dos exércitos revolucionarios franceses: infantaria pro- gredindo em pequenos grupos, fazendo 0 maximo aproveitamento do terreno, com cobertura miutua pelo fogo e pelo movimento, e ini- ciativa delegada aos escalées mais baixos possiveis da cadeia de co- mando. Tais reformas extraordinariamente liberais, todavia, parec: ram a muitos oficiais franceses antigos uma trai¢ao a influéncia radical, 72 | Construtores da Estratégia Moderna quig socialista, dos Dreyfusardos, que estavam comecando a assy. mir 0 controle do exército, na esteira do infeliz affaire. O general Langlois fundou uma nova publicasao) a Revue ma em grande parte para combater a transvaalite eeu a’, termo que cunhou para descrever “esse medo anormal das baixas ng campo de batalha”, Tal dispersdo, argumentou ele, era estranha as tradicdes militares francesas, porquanto privava 0 comandante do “direito e mesmo da possibilidade de conseguir um resultado decisivo por meio dos esforc¢os combinados das for¢as morais e materiais a sua disposi¢ao.’** Porém, de qualquer forma, os novos regulamentos ti- veram impacto pequeno sobre a pratica real de um exército muito confuso e internamente dividido, no qual o consenso sobre o que quer que fosse estava, aquela época, dolorosamente ausente. Essa reagao contra a “transvaalite aguda” iria receber forte re- forgo com as li¢ées do préximo conflito importante travado com ar- mamento moderno - a Guerra Russo-Japonesa de 1904-05. Foi uma campanha conduzida com grande interesse nao sé pelos espe- cialistas navais e militares da Europa e dos Estados Unidos como também pelos governos a que eles serviam, todos muito preocupa- dos com as mudangas no equilibrio de poder no Extremo Oriente e seu consequente impacto na Europa. Os leitores de jornais nos dois continentes foram mantidos totalmente informados por meio de seus correspondentes, secundados de guerra, sobre de conflito de um muito pacifico. O Por fotégrafos e artistas os desenvolvimentos naquele primeiro gran- novo século que ninguém esperava que fosse embate na Africa do Sul podia ser descartado ores da Europa, eo japonés fora na ae emaes, da mesma forma que 4 ‘a 0 fora pelo: - Ambas as forcas estavam equi- Homens versus fngo: Doutrina ofensiva em 1914 | 73 posi¢ées em Port Arthur e Mukden com linhas de trincheiras protegidas por arame farpado e por ninhos de metralhadoras, cobrindo suas frentes com campos de minas detonadas eletri- camente e usando refletores para ilumind-los 4 noite. Os dois exércitos possuiam também telégrafos e telefones de campanha. Na realidade, as tinicas armas nao disponiveis em 1905, e que os exércitos europeus iriam empregar em 1914, foram os avides pri- mitivos que, nos primeiros meses da guerra mundial, comegaram aassumir as miss6es de reconhecimento da cavalaria. A principal lig¢ao que os observadores europeus tiraram da Guerra Russo-Japonesa foi, a despeito de todas as vantagens que o novo armamento conferia as defesas, a ofensiva ainda ser total- mente possivel. Os japoneses assumiram de imediato e vitoriosa- mente a iniciativa e, com uma série de ataques cuidadosamente planejados e executados, expulsaram as for¢as russas, ligeiramen- te maiores em efetivos do sul da Mongolia. O custo foi alto, mas, com ele, o Japao graduou-se como grande poténcia; e qualquer na¢ao que desejasse continuar sendo grande poténcia, observa- ram os comentaristas europeus, deveria estar preparada para ar- car com custos comparaveis. As lig6es técnicas foram atentamente estudadas. A artilha- ria foi usada eficazmente por ambos os lados, mas apenas com baterias desenfiadas que empregaram 0 tiro indireto. Suas grana- das shrapnel e 0 tiro dos rifles de infantaria tornaram impraticavel qualquer movimento dentro do raio de visao e de alcance de tiro do inimigo e deram um fim a ideia das formagoes cerradas manobran- do no campo de batalha. Sobre a infantaria bem abrigada, no entan- to, a artilharia mais leve se mostrou pouco eficiente, e sé as grandes concentragées da artilharia pesada conseguiram quebrar aquela resisténcia. Nenhum ataque da infantaria pode aspirar a qualquer sucesso a menos que fosse nao apenas preparado, mas acompanha- do até o ultimo momento por barragens de artilharia; contudo, com preparagao adequada, os ataques da infantaria japonesa alcangaram repetidos éxitos. Os nip6nicos também demonstraram que a melhor resposta para a defesa invisivel era o ataque invisivel: realizavam progresséesanoite, cavavam abrigos no terreno antes do amanhecer e 14 permaneciam iméveis durante o dia; nos Ultimos estagios do 74 | Construtores da Estratégia Moderna avango, preparavam sapas, metro a metro, ue dire¢ao do inimigo, como na guerra de cerco; depois, empreendiam 0 assalto, As baixas ainda foram terriveis: nos ataques a Port Arthur, os japoneses per- deram 50 mil homens, e na batalha de 10 dias em Mukden, 70 mij, Mas eles mostraram que, com uma combina¢ao de Preparacio e ca, o problema do ataque no campo de batalha mo- coragem far derno podia ser resolvido. Um comentario inglés, escrito nas vésperas da Primeira Guerra Mundial por influente oficial de estado-maior, major-general E. A. A]- tham, sintetiza a reacao generalizada na Europa: Existiam aqueles que deduziram da experiéncia na Africa do Sul que o assalto, ou pelo menos a carga com baionetas caladas, era coisa do passado, uma manobra imunda [...] a campanha na Mong$lia evidenciou, repe- tidas vezes, que a baioneta nao era em absoluto uma arma obsoleta e que apenas o fogo nem sempre se mos- trou suficiente para desalojar um inimigo disciplinado e determinado de uma posi¢ao [...]. 0 ataque tem ainda maior importancia do que a conquista da superioridade de fogo que o antecede. E o momento supremo da bata- Iha. Dele depende a solugao final.® A ligdo real da Guerra Russo-Japonesa, largamente percebi- da, foi o elemento verdadeiramente importante na guerra moder- na néo ser a tecnologia, e simo moral; e o moral nao s6 do exército, mas da na¢do de onde ele provinha. Essa era uma questdo sobre a qual os lideres militares das nacdes industrializadas da Europa Ocidental estavam comegando a experimentar graves dtividas. 0 coronel alemao Wilhelm Balck, no seu maci¢o livro de texto sobre tatica, alertou: Os padrées de vida crescentemente aprimorados dem a aumentar o instinto de autopreservacao e minuir 0 espirito de autossacrificio [...] 0 ritmo acele! do da vida dos dias Presentes tende a minar o sistel nervoso; o fanatismo eo entusiasmo nacional e religioso épocas passadas esté faltando; e, finalmente, a condi¢a® Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em (914 =| 75 fisica da espécie humana esta também parcialmente diminuindo [...]. Devemos [portanto] enviar nossos sol- dados para a batalha com uma reserva de coragem mo- ral suficiente para evitar a depreciagdo moral e mental prematura do individuo.* Dentro do exército alemAo, instalou-se uma reagao, liderada pelo eloquente e respeitado general Von Bernhardi, contra a tatica cautelosa e a estratégia do envolvimento da era Schlieffen, descrita pelo general como “uma declaragao de faléncia da arte da guerra’. A énfase de Schlieffen nos fatores materiais e sua confian¢a na su- perioridade numérica, afirmava Bernhardi, pecavam por nao levar em conta o fato de que as tropas superiores serao aquelas que se mostrarem capazes de suportar grandes perdas e de avangar mais vigorosamente do que as outras; ou que a audacia, a coragem e a genialidade na lideranca desempenham papel preponderante na guerra.” As criticas a Schlieffen no exército germanico continuaram sen- do esposadas por uma pequena porém ativa minoria. Os que pensa- vam da mesma forma no exército francés tornaram-se mais podero- sos quando o general Joffre assumiu a chefia do estado-maior em 1911. Joffre passara a maior parte de sua carreira no exército colo- nial, 0 qual se via como uma elite audaz, capaz de concretizar con- quistas mais pela iniciativa individual e forca de carater do que pelo poder das armas. Seus oficiais desprezavam 0 exército da metropole, por eles considerado letargico, ineficiente e (depois do caso Dreyfus) altamente politizado - narealidade, uma caracteristica da Fran¢a.** Nada menos do que uma cruzada moral, acreditavam eles, seria ne- rcito francés e cessaria para restaurar a grandeza e 0 espirito do exé da prépria nagao, as portas de uma confrontacao com 0 velho inimi- go, confrontacdo essa que, a partir de 1911, passou a ser considerada ineyitavel. Para tanto, seria preciso, na opiniado de Joffre, “dotar o exército de uma doutrina de guerra clara, conhecida por todos e una- nimemente aceita’: a doutrina da ofensiva. 76 | Construtores da Estratégia Moderna Depois da guerra na Africa do Sul, Joffre escreveu: Toda uma série de doutrinas falsas [...] come¢oua solanay até mesmo o débil sentimento ofensivo Ce ame: surgir em nossas doutrinas de guerra, em detrimen espirito do exército, da confianca em seus chefeseem sen, regulamentos [...] um estudo incompleto dos eventos de um sé conflito levou a elite intelectual de nosso €XErcity a acreditar que os aprimoramentos no armamento ¢ na acao do poder de fogo tinham aumentado tanto a capacidade defensiva que uma ofensiva para sobrepuja. la perdera todas as virtudes |... [depois da campanha na Mong6lia] nossa jovem elite intelectual finalmente livrou-se da praga dessa fraseologia, que transtornou 9 mundo militar, e voltou a uma concep¢ao mais Saudaye| das condi¢ées gerais que prevalecem na guerra. ‘agou Ito do A “concepgao mais saudavel” consistia em um destaque para o “espirito da ofensiva’, Isso, admitiu Joffre em suas mem6orias, reu “um cardter algo ilégico”, especialmente co: nel De Grandmaison, Teque- m0 exposto pelo coro- 0 diretor de operagées militares, em duas famo- nunciou em fevereiro de 1911. Ele nao levantou Na batalha, deve-se sem que serj, Tome-se pre ser capaz de fazer coisas am quase impossiveis A luz da racionalidade. ‘ © exemplo: progredir sob fogo [...]. Nada é mals diffeil de conceber om nosso estado mental presen? L..]. Temos que nos autoinstruir para fazé-lo, e treina! também Outras. Pessoas, cultivando, apaixonadament® tudo o que leve a marca do espirito ofensivo. £ necessa” chegar até a0 exagero: talvez nem isso baste. i iu os Regulam® Dois anos mais tarde, De Grand: ‘on redi us , mais dig: 913, 4° nduta das Grandes Formagies, de ou Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em 1914 © | 77 contém as famosas palavras: “O Exército da Franga, voltando as tradi- des, nao reconhece outra lei que nao a da ofensiva’.° Essa doutrina casava com o estado de animo de entao. Era palata- vel para as elites que acreditavam, como Ardem du Picq, que tal espirito sé poderia ser cultivado dentro da moldura de um exército profissional dedi- cado; seus pontos de vista foram expressos pelo novelista Ernest Psichari, cujo livro L'appel aux armes, que pregava a necessidade de “um exército orgulhoso e violento’, desfrutou de popularidade enorme as vésperas da guerra.” Mas era do agrado também da esquerda radical, que sempre de- clarou ser o moral militar uma questao de paixdo patristica popular, a qual nao necessitava de anos de servico nas armas para ser forjado.” E, em termos mais gerais, foi muito divulgado pelas popularissimas palestras que o filosofo Henri Bergson pronunciava na Sorbonne, que repassavam, para audiéncias enormes, conceitos nietzschianos da Vontade Criativa,em uma formulac¢ao mais elegante do I’élan vital. De Grandmaison, como Foch, foi por demais exposto ao ridiculo por historiadores e criticos subsequentes, porém, descontada cer- ta bravata gaulesa, os mesmos sentimentos podem ser vistos nas obras de escritores ingleses e alemaes da época. Na Inglaterra, o general Sir lan Hamilton, um dos mais sensiveis e inteligentes, bem como influentes, soldados profissionais ingleses, argumen- tou na mesma linha de pensamento: Todo esse lixo escrito pelo Sr: De Bloch, antes de 1904, sobre zonas detiro intransponiveis por seres humanos, proclamava nada menos do que o desastre. A guerra é essencialmente 0 triunfo, nado das armas com ferrolho sobre as carregadas pelo cano, nao de linhas de homens entrincheirados por tras de emaranhados de arame farpado sobre aqueles expostos em campo aberto, mas de uma vontade sobre vontade mais fraca |...) a melhor defesa para um pais é um exército formado, treinado e inspirado pela ideia do ataque.** Nem havia qualquer divida nas mentes dos soldados, antes de 1914, sobre o custo de tudo isso em vidas humanas. “E sempre suspei- to’, escreveu Balck, “quando as tropas comegam a considerar baixas insignificantes [..] como sinal de boa lideranga. As grandes vitérias so, como regra, acompanhadas de grandes perdas’.* E Maude foi ain- da mais longe: 78 | Construtores da Estratégia Moderna As chances de vitéria pesam inteiramente sobre espirito de autossacrificio daqueles que precisam Cair para dar oportunidade aos que restarem [... » €M Outras palavras, a verdadeira forga de um exército Tepousa essencialmente no poder de cada uma ou de qualquer de suas fragées constituintes suportar com estoicismo 9 castigo, mesmo a beira da aniquilagao, se necessario [,], Com tropas treinadas apenas para julgar seus lideres pela capacidade que demonstram em Poupar vidas humanas, que esperanga de resisténcia podera existir?® Os exércitos das nagées europeias entraram, assim, na guer- ra de 1914 coma expectativa de que as perdas seriam grandes, A doutrinagao sobre os jovens nao foi apenas a de lutar pelo pais, mas a de morrer por ele. 0 conceito de “sacrificio”, acima de tudo, do “sacrificio supremo’, iria dominar a literatura, os discursos, os SermOes e 0 jornalismo das sociedades beligerantes durante os primeiros anos do conflito armado. E as listas de baixas, que uma geracao posterior iria considerar tao horrendas, foram encaradas pelos contemporaneos nao como indfcio de incompeténcia mili- tar, mas como medida da determinagao nacional, ou da aptidao do pais para figurar como grande poténcia. Tl Ao analisarem 0 curso da Primeira Guerra Mundial, os histo- riadores europeus e americanos tenderam a focalizar o front ociden- remos 0 exemplo, No Leste, as baixas nos exérc tos russo e austriaco rapidamente chegarama centenas de milhares, mas se deveram, sobretudo, a doengas, aprisionamentos e dese! g0es,endoa autossacrificios heroicos no campo de batalha. A expe tativa de Bloch de uma Suerra futura em que os exércitos oponentes acabariam aferrados a tal, e nés aqui segui ao do general Von Schlieffe S E nm - e sua espera!” era que isso também acontecesse na fre = 0 be nte ocidental. 0 pla™ Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em (914 | 79 Schlieffen, como vimos, era uma ampliagdo para a estratégia da doutrina tatica que prevalecera no exército alemao desde 1870 - ade evitar o ataque frontal e atingir 0 objetivo pelo en- volvimento, mesmo que tal desbordamento implicasse efetivos de milhdes de combatentes. Assim, os exércitos alemaes marcharam pela Bélgica e pela Franga praticamente sem oposi¢ao, e, quando aencontraram, fizeram uso intenso da artilharia, enquanto procu- ravam flanquea-la. Dessa forma, conquistaram muito terreno a prego bastante baixo, mas, em longo prazo, os criticos de Schlieffen acertaram. Sua estratégia nao levou a decisao alguma. Na Franga, entretanto, os apdstolos da ofensiva - equi- valentes aos opositores de Schlieffen na Alemanha - estavam em postos de mando, e foi por sua influéncia que o Alto Coman- do implementou o famoso Plano XVII. 0 conceito geral do plano, que preconizava a assun¢ao francesa da ofensiva estratégica em vez de esperar passivamente pelo assalto alemo, tinha méritos. Ele, apesar de tudo, deu a Joffre a flexibilidade para se recuperar dos desastres iniciais e fazer um novo desdobramento de forcas para ganhar a chamada batalha do Marne. 0 problema do exército francés de 1914 ndo era falta de espirito ofensivo, e sim ineficiéncia. Aconfusao burocratica nao permitiu que as ligdes da Guerra Russo- Japonesa fossem aplicadas. Nenhuma providéncia foi tomada para o Suprimento da artilharia pesada, e os canhées alemaes quase sem- pre ultrapassaram o alcance dos franceses. Nao havia doutrina para 4 a¢do cooperativa entre artilharia e infantaria e nao tinham sido realizados exercicios no terreno com esse objetivo, embora prescri- tos nos manuais. O resultado foi, com a chegada da guerra, os co- mandantes franceses em todos os escaldes reagirem instintivamen- te, endo de acordo com qualquer programa sistematico de treina- mento. Como disse um oficial: Antes mesmo de sermos submetidos ao castigo do fogo real, a ideia de que estavamos frente a frente com 0 inimigo colocou muitos de nossos oficiais em um alto estado de excitagao que sé os que experimentaram momentos se- melhantes podem entender. 0 homem que mantém a ca- besa fria em tais circunstancias 6 um tipo muito inusitado 30 | Construtores da Estratégia Moderna de animal. Bem mais do que uma questao de doutrina, ¢ 9 um problema de temperamento.” Em consequéncia, do milhao e meio de combatentes france. ses que entraram na campanha no infcio de agosto de 1914, 385 mil, ou cerca de um quarto do efetivo, estava fora de ago ao fim de seis semanas de combate. Desses, 110 mil estavam mortos,7 A maioria dessas baixas nao ocorreu em ataques planejados contra posicdes preparadas, e sim em encontros fortuitos, enquanto os dois exércitos se deslocavam, e a infantaria francesa era surpreen- dida em campo aberto e dizimada pela artilharia alema. O segundo grande embate no front ocidental em 1914, o de novembro em Ypres, quando os exércitos alemao e inglés sofreram perdas pesadas, tam- bém foi inesperado e nele cada um dos exércitos procurou flanquear 0 outro na denominada corrida para o mar. S6 depois disso, os ale- maes come¢aram a fortalecer as posi¢gdes conquistadas, convertendo as trincheiras feitas de improviso em um sistema elaborado de forti- ficag6es, reforcando-as com arame farpado e utilizando, pela primei- ra vez, ninhos de metralhadoras em missio defensiva. A capacidade de defesa dessas posic6es foi testada pelos ata- ques franceses e ingleses ao longo de 1915, com resultados desani- madores. Nao que os ataques fracassassem. Muitas vezes foram vito- riosos. Mas as cabecas de ponte estabelecidas nas defesas alemas nao puderam ser mantidas por tempo suficiente, ou refor¢adas o bastan- te, para resistirem aos contra-ataques rapidos desfechados pelos ger- manicos para a reconquista das posicdes perdidas. Dessa forma, 0s Aliados se viram frequentemente rechacados para a linha de partida, a custa de muitas perdas. A tinica solugao pareceu ser 0 ataque em uma frente bem ampla para estabelecer posigdo invulneravel ao con tra-ataque e sua execucao protegida por verdadeira cortina de fog da artilharia, bastante poderosa para acabar com toda a resisténcia dos defensores, A ligdo de 1914 foi bem aprendida; a infantaria n40 mais seria empregada sem copioso apoio da artilharia. eto 0 general Sir Douglas Haig, quando lhe perguntaram se 0 pov? inglés toleraria as perdas substanciais que Ocorreriam na tentativa de quebran as linhas alemas, respondeu com otimismo injustificad® que tais perdas nao aconteceriam; “tao logo estivéssemos supridos Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em (914 =| 81 com grandes quantidades de municao de artilharia [...] [ele] achava que poderiamos penetrar nas linhas alemas em diversos pontos”.”* No entanto, quatro meses mais tarde, depois do fracasso do ataque inglés em Festubert, em maio de 1915, ele mudou de opiniao. “As de- fesas no nosso front se mostram tao cuidadosa e fortemente prepara- das”, anotou em seu diario, “e o apoio mtittuo com metralhadoras é tao completo que, para demoli-las, sera necessario um longo e metédico bombardeio da artilharia pesada [...] antes que a infantaria seja langa- da no ataque.’*” Naquele outono, na ofensiva empreendida para ali- viar a pressdo sobre os aliados russos, Joffre tentou p6r tal doutri- na em pratica. Cerca de cinco milhées de granadas de artilharia foram disparadas em apoio a infantaria, um milhdo pela artilharia pesada. Mas © ataque também foi barrado. Apesar disso, os sucessos localizados fo- ram suficientes para encorajar os Aliados a acreditarem que “era possivel, contando-se com o elemento surpresa, canhées, muni- ao e outros equipamentos em quantidade satisfatoria, e com tro- pas adequadamente preparadas, romper a frente inimiga”.*°° Na primavera de 1916, os préprios alemaes estabelece- ram um padrao para que isso pudesse ser feito vitoriosamente. Langaram uma ofensiva limitada em Verdun, precedida por um bombardeio tao pesado que toda a resisténcia foi, literalmente, esmagada. Contudo, em vez de cafrem na defensiva, como seu Alto Comando tencionava, deixando aos franceses a possibili- dade dos contra-ataques, os comandantes alemaes das opera- ¢6es continuaram no ataque e sofreram perdas enormes. Ver- dun transformou-se em um pesadelo tanto para franceses como para alemaes. Mas a técnica germanica de ataque sob fogo tao pesado, que, como esta narrado na historia oficial bri- tanica, “o homem nao lutava contra 0 homem, mas contra o material”,!°! foi tomada como modelo pelos ingleses para o pla- nejamento de sua primeira grande ofensiva no Somme, no ve- rao de 1916. Toda a mao de obra disponivel da industria britanica, sob a diregdo enérgica de Lloyd George no Ministério do Material Bélico, foi empregada para a produc¢ao de armas e munigées na escala necessdria. Pelo fim de junho, 1.437 ca- nhées foram reunidos ao longo de um front de 27km e, depois de um bombardeio que durou toda a semana, dispararam um 82 Construtores da Estratégia Moderna milhao e meio de projetis.'°? O general Sir Henry Rawlinson, comandante das tropas de assalto, apis aos eens coman. dantes subordinados que “nada poderia haver ane Coberta pelo bombardeio quando ele Se infantaria teria apenas que progredir para se apossar tele Assim,a infanta. ria saiu das trincheiras em 1° de julho, nao como uma tropa atacante, mas como uma gigantesca formagao de transporte de suprimentos, cada homem carregando cerca de 40kg de equi- pamento, esperando, na pior das hipéteses, neutralizar alguns Pas- mos sobreviventes. O resultado foi um dos dias mais terriveis da hist6ria da guerra, A barragem nao fora poderosa o suficiente para destruir os pro- fundos abrigos escavados pelos alemdes nas elevagées de calcario que dominavam o Somme. Malgrado a horrivel Provacao que ex- perimentou, a infantaria alema foi capaz de emergir a tempo de instalar posi¢Ges de metralhadoras e ceifar as sucessivas ondas da infantaria inglesa que avangava. A artilharia germanica instalou tal confusao nas linhas britanicas que decorreram alguns dias an- tes que o Alto Comando se conscientizasse da escala da catastrofe gue tinha em m4os. Dos 120 mil homens que atacaram, cerca da metade ficou fora de ag4o, 20 mil morreram.1°4 Os ataques continuaram até novembro, e os exércitos fran- cés e inglés perderam aproximadamente 500 mil combatentes nas refregas. Contudo, naquela ocasiao, 0 objetivo da batalha ha- via mudado. Nao se tratava mais de garantir terreno, mas de com- pelir a Alemanha a engajar - e exaurir -— suas tropas, o objetivo original dos préprios alemaes quando atacaram em Verdun. “Du- rante as préximas semanas, o inimigo estara desesperadamente tentando recompletar seus efetivos”, escreveu Haig em resposta a perguntas ansiosas partidas de Londres; “[...] a manutengao de : uma pressao ofensiva continuada resultara, eventualmente, sua completa derrocada”!% Q impasse tatico, em suma, Homens versus fogo: Doutrina ofensiva em 1914 | 83 pesadas perdas persistiu sendo o critério de aptidao para a sobre- vivéncia como grande poténcia, e isso fez que as nacgées mais avangadas, industrializadas e cultas da Europa continuassem lu- tando por mais dois exaustivos anos. Nos estagios finais da guerra, as taticas de ambos os lados ti- nham-se transformado. Os ingleses aperfeicoaram as técnicas cui- dadosas da guerra de cerco, que eram caracter{sticas dos exércitos de Plumer e Monash,’ e experimentaram 0 apoio de blindados e o apoio aéreo. Os alemaes exploraram novos armamentos na guerra de trincheiras - metralhadoras leves, granadas, gas - a fim de que a infantaria ganhasse flexibilidade suficiente para penetrar em frentes defendidas por adversarios mais fracos e mais pesados. Seria um erro tentar estabelecer uma conexdo muito forte entre a doutrina da ofensiva, que imperava antes de 1914, e as terriveis perdas ocorridas durante a Primeira Guerra Mundial. E verdade que, em fungao da letalidade dos novos armamentos, as muitas baixas foram aceitas como inevitaveis. E também verdade que, na atmosfera frenética de 1914 - analisada de forma tao completa pelos historiadores intelectuais -, existia uma notavel propensao para aceita-las..” Porém, a maior parte do que foi escrito, antes de 1914, sobre a importancia suprema do moral na guerra e a necessidade de se manter uma mentalidade ofensiva diante de todos os obstaculos, nada mais foi do quea reafirma¢gao de verdades que tinham sido validas em todos os periodos de guerra. A influéncia do poder de fogo sobre a tatica fora exaustivamente analisada pelos estados-maiores antes de 1914, e as tropas bem treinadas ja sabiam que a melhor resposta para 0 rifle era a pa. As piores perdas nao ocorreram por causa de doutrina errada, mas se deveram a ineficiéncia, a inexperiéncia e aos problemas monumentais para se combinar fogo e movimento na medida adequada. Desde os primeiros dias da guerra, os soldados profissionais da Europa tentaram se adaptar as novas realidades do campo de batalha. Mas levaram tempo tragicamente longo para resolver os problemas taticos com que se depararam. Atéqueo fizessem, a estratégia se viu mutilada pelo balanceamento adverso entre poder defensivo e poder ofensivo, em uma medida Tara na historia da guerra.

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