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Walter Hugo Khouri - 20 Anos Depois

— Na imagem destacada, Walter Hugo Khouri durante as filmagens de ‘As filhas do


fogo’, em 1978 (Foto: Acervo família Khouri)

No último dia 19 de junho, o cinema brasileiro completou 125 anos de uma


existência marcada pela ancestral dificuldade técnica e pelo loteamento de seu
mercado por distribuidoras internacionais, que fazem, até hoje, dessa manifestação
de nossa cultura um verdadeiro exercício de paciência e perseverança. Sem dúvida,
uma data para ser largamente homenageada.

Mesmo assim, as entidades midiáticas, mais uma vez, optaram, em sua maioria,
por reverenciar o cinema nacional recuperando um cânone estabelecido há
décadas, que parece não se alterar, a despeito dos esforços de novos
pesquisadores para resgatar momentos menos incensados e pouco valorizados
nessa história. Pergunto-me as razões pelas quais a este cânone não se pode
somar uma espécie de “paidêuma”, uma releitura sincrônica de obras e diretores
tão significativos quanto os mais conhecidos. Sem dúvida, se existe o cânone, ele
deve ser reverenciado porque encerra valores inestimáveis ao desenvolvimento da
fatura cinematográfica no Brasil. Porém, não seria hora de ressignificar algumas
poéticas que foram se perdendo ao longo do tempo?

O cineasta paulista Walter Hugo Khouri, nascido em 1929 e falecido em 2003,


forma, junto a Luiz Sérgio Person e Roberto Santos, o triunvirato do novo cinema
paulista – se quisermos usar um termo didático a exemplo do Cinema Novo, que
concentrou sua base orgânica no eixo Rio-Bahia – e é destas figuras que, ao longo
do tempo, teve sua imagem esmaecida no círculo de pesquisas e estudos sobre o
filme brasileiro. Talvez, a conhecida celeuma judicial envolvendo o filme Amor,
Estranho Amor (1982) e os representantes da atriz e apresentadora Xuxa Meneghel
tenha minado pouco a pouco a carreira do diretor em sua fase final, nos anos 1980
e 1990, mesmo que ele nada tivesse a ver com a disputa, já que o filme pertencia a
seu produtor. Creio que tal fato tenha sua cota de responsabilidade para que a
poética de Khouri, composta de 25 longas-metragens, um curta e uma codireção,
realizados entre 1953 e 1998, fosse menosprezada em muitos momentos.

Recuperemos um pouco dessa trajetória, para apontar a real dimensão de Walter


Hugo Khouri, vinte anos após sua partida.

Estranho Encontro (1958)

O cineasta nasceu em São Paulo, mas passou uma fase de sua juventude no Rio de
Janeiro, na casa de seu avô materno, onde tomou contato com a literatura, as artes
visuais, a música erudita e o cinema. No início da vida adulta, chegou a cursas dois
anos de Filosofia na USP, mas se desinteressou do que considerava raso e
reacionário tanto nos professores quanto nos colegas. Na mesma época, sendo um
cinéfilo inveterado e com sólido repertório, apesar da idade, conseguiu um emprego
como assistente de direção na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, projeto
faraônico de cinema industrial paulista. Entre as funções de segundo assistente de
direção para Lima Barreto nas filmagens de O Cangaceiro (1952) e o contato
travado com profissionais do meio que o estimulavam a debutar na direção de
longas, Khouri realizou uma experiência juvenil, O Gigante de Pedra (1953), filme
que revelava certa imaturidade estética e técnica, mas que chamou a atenção da
mídia de sua época. Quando exibido na programação do Festival Internacional de
Cinema do Quarto Centenário, em São Paulo, no comemorado ano de 1954,
algumas publicações saudavam aquele que consideravam uma promessa para o
futuro do cinema brasileiro. “Despedíamos de Walter Hugo Khouri confiantes de
que tínhamos conhecido uma das maiores esperanças da nova geração de
cineastas brasileiros”, relatava uma reportagem de Cena Muda, publicada em 3 de
março de 1954, a respeito do evento.

Daí por diante, Khouri se envolveu com o cenário profissional do cinema e da


crítica. Passou a dirigir programas do teleteatro da TV Record e a publicar artigos
no jornal O Estado de S. Paulo. Foi ele quem apresentou ao público brasileiro a obra
de Ingmar Bergman, quando o sueco passava a ganhar espaço fora de seu país. A
segunda experiência com cinema só viria em 1958, Estranho Encontro, produzido
nas rebarbas da falência da Vera Cruz, que passou a se chamar Brasil Filmes. A
obra apresentava pela primeira vez um estilo que Khouri cultivaria e aprimoraria ao
longo dos anos seguintes. A trama, que envolve relações humanas contaminadas
por interesses utilitários, fez com que o filme fosse alçado a uma das melhores
obras do cinema nacional até então e abriu caminho para que seu diretor passasse
a produzir com maior regularidade. Seguiram-se Fronteiras do Inferno (1959),
drama de ação passado num garimpo, e Na Garganta do Diabo (1960), épico
ambientado na Guerra do Paraguai, que transita entre a exuberância da paisagem
das cataratas de Iguaçu e o intimismo de personagens assolados pelo tédio em
terras inóspitas.

Noite Vazia (1964)


Em 1963, estreia A Ilha, filme que marca o início de um ciclo maduro e focado na
elite de uma São Paulo hedonista e cínica. Embora a crítica tenha apontado
problemas que o próprio Khouri reconheceu, dadas as dificuldades logísticas de
produção, o sucesso de bilheteria abriu caminho para aquela que seria sua obra
mais celebrada, Noite Vazia (1964), um drama de câmara que envolve apenas
quatro personagens trancados num apartamento em busca de prazeres que se
transformam numa torturante relação de forças que envolvem dinheiro e sexo.

Com a consagração do filme, veio a crítica. Se por um lado alguns formadores de


opinião entendiam bem a ironia do filme, que ataca a prepotência do indivíduo que
contamina uma sociedade, por outro, o núcleo duro do Cinema Novo passou a
disseminar a ideia de que Khouri era um alienado, um imitador de Bergman e
Antonioni, um cineasta pernóstico, sem consciência de classe. Não souberam, ou
não quiseram observar a fina linha que separa as mazelas sociais das ações
individuais por parte de certa esfera social.

Tal disputa pela alma do cinema nacional só fez Khouri investir num estilo pessoal,
que se intensificaria no hermético e poético O Corpo Ardente (1966) e em As
Amorosas (1968), este último baseado numa antiga ideia sobre um rapaz
deslocado de seu meio, questionador e desiludido com o mundo. O filme veio como
resposta aos discursos revolucionários e apresentou ao espectador a primeira
versão do personagem Marcelo, espécie de avatar que falaria em nome do diretor
em muitos de seus filmes futuros.
As Amorosas (1968)

É claro que a fidelidade khouriana a um cinema de atmosfera, cada vez mais


intimista e, muitas vezes, cerebral, custou ao diretor um período de baixa em sua
popularidade junto ao público. Como Khouri considerava mais importante continuar
filmando, a despeito das condições gerais, passou a realizar obras cada vez mais
pessoais e sempre com poucos personagens, prezando por uma estética do
silêncio, dos olhares ricos em discursos mudos e da beleza de suas atrizes,
fotografadas como se fossem esculturas gregas – muito diferente da nudez que
alimentava as comédias e dramas eróticos da Boca, no mesmo período. São desta
fase obras como As Deusas (1972), O Último Êxtase (1973) e O Desejo (1975),
tríade a que chamo “Trilogia do Abismo”, por investir nas relações diretas de dois
ou três personagens encerrados em espaços intimistas, questionando e remoendo
calos relacionais incuráveis. É a fase em que Khouri examina a imensa cratera
existencial da classe burguesa, expondo a hipocrisia, a alienação e as obsessões
que resumem a condição humana. Também é quando o próprio cineasta passou a
reconhecer que se tornara um “veneno de bilheteria”, já que a crítica exaltava sua
destreza estilística, mas o público não compreendia seu discurso.

Entre um trabalho pessoal e outro, Khouri se envolveu em produções de gênero,


esperando capitalizar novamente nas bilheterias. Dirigiu dois filmes de terror que
transitam entre o psicológico e o sobrenatural, O Anjo da Noite (1974) e As Filhas
do Fogo (1978). O publicou reagiu ainda de forma tímida.
As Deusas (1972)

Somente com O Prisioneiro do Sexo (1978), O Convite ao Prazer (1980) e Eros, O


Deus do Amor (1981), realizados com apoio de produtores da Boca, é que Khouri
recuperou seu prestígio nos borderôs enquanto a crítica oscilava a respeito de suas
concessões. No entanto, havia unanimidade sobre Eros. Nele, via-se sua obra mais
madura e intensa desde Noite Vazia. Um filme experimental, que colocava o
espectador na pele de Marcelo. Não mais o jovem rebelde de As Amorosas, mas
um homem de negócios, vivendo a meia-idade, assolado pelas memórias de
infância e o desejo de ascese por meio das amantes que coleciona.

Em seguida, veio Amor, Estranho Amor (1982), que se não fosse pela polêmica que
geraria anos depois, poderia ter sido visto como o que de fato é: um drama
histórico, passado às vésperas do golpe do Estado Novo, em que o sexo se torna
moeda de troca na política do Café com Leite, enquanto um garoto descobre quão
perverso é o mundo dos adultos.

Ao longo da década de 1980, o cinema brasileiro passou por uma crise crescente
que culminaria no fim da Embrafilme, na diminuição do número de filmes
produzidos e no esgotamento de velhas fórmulas. Nesse período, Khouri também
oscilou significativamente. Seu Amor Voraz (1984) não foi bem recebido e deu
margem a novos questionamentos sobre a forma da poética khouriana. Por seu
turno, Eu, de 1987, é até hoje uma das maiores bilheterias da década.
Amor, Estranho Amor (1982)

A partir dos anos 1990, entre a morte do cinema brasileiro e sua retomada, Khouri
já se encontrava física e emocionalmente fragilizado. Produziu Forever (1991) a
duras penas. O filme despertou pouco interesse. Em 1995, na aurora de tempos
melhores para o filme nacional, recuperou um antigo curta que estava pronto e
engavetado havia cerca de quinze anos e realizou As Feras. A obra só seria lançada
em 2001, após problemas de entendimento entre diretor e produtor. Infelizmente,
quando As Feras chegou aos cinemas (apenas duas salas de pouca visibilidade, em
São Paulo), o público já não aceitava um modelo considerado ultrapassado. E este
problema assolou não somente Khouri, mas outros cineastas que aguardavam
numa longa fila a oportunidade de lançarem suas obras congeladas desde 1990,
pelo menos.

Em 1998, o diretor lançou o último longa que dirigiu, Paixão Perdida. Neste trabalho,
mais intimista e minimalista do que nunca, vemos não somente um Marcelo já
mais velho e esgotado, mas também um diretor adoentado e frágil, lutando para
continuar fazendo o que sabia de melhor, sempre com as mínimas condições
possíveis. Embora melancólico, o filme é belo e, hoje, mostra que a poética
khouriana se encerrou de forma condigna, com coerência e amor pelo ofício. Khouri
faleceu, vitimado por um enfarto, às cinco horas da manhã do dia 27 de junho de
2003, deixando ao menos dois roteiros inéditos e várias ideias rascunhadas.

Paixão Perdida (1999)


Desde 2019, tenho pesquisado o acervo do diretor, hoje resguardado por sua
família, em busca de uma releitura que redima a importância de Walter Hugo Khouri
no contexto histórico do cinema brasileiro. Da vasta documentação que compõe
seu acervo, saltam registros detalhados de cada filme que realizou, anotações,
roteiros, desenhos, ideias e proposições, que em breve serão trazidas a um novo
público, que deve conhecer seu passado artístico para compreender e apreciar seu
próprio cinema.

A Cinemateca Brasileira prepara uma retrospectiva do diretor para agosto de 2023,


quando as raras imagens de O Gigante de Pedra, parcialmente perdido, serão
exibidas, mais de vinte anos depois da última mostra dedicada a Khouri. Também
serão exibidos, em 35mm, vários filmes da fase áurea do diretor. Outras ações e
exposições também estão por vir.

Assista à live do canal “Uma Teia de Ideias”, dia 28 de junho, às 19h, sobre a vida e
obra de Khouri, com informações exclusivas, no link
https://www.youtube.com/watch?v=w_6_WOtVl8k
(https://www.youtube.com/watch?v=w_6_WOtVl8k)

Donny Correia é mestre e doutor em Estética e História da Arte (USP), crítico e


professor, membro da Abraccine e da ABCA, e especialista em história do cinema
brasileiro, com ênfase na obra de Walter Hugo Khouri. É criador de conteúdo no
canal Uma Teia de Ideias, no Youtube. Contato: donnycorreia1980@gmail.com
(mailto:donnycorreia1980@gmail.com)

FILMOGRAFIA DE WALTER HUGO KHOURI

O Gigante de Pedra (1953)

Estranho Encontro (1958)

Fronteiras do Inferno (1959)

Na Garganta do Diabo (1960)

A Ilha (1963)

Noite Vazia (1964)


O Corpo Ardente (1965)

As Cariocas (2º episódio, 1966)

As Amorosas (1968)

O Palácio dos Anjos (1970)

As Deusas (1972)

O Último Êxtase (1973)

O Anjo da Noite (1974)

O Desejo (1975)

Paixão e Sombras (1977)

O Prisioneiro do Sexo (1978)

As Filhas do Fogo (1978)

O Convite ao Prazer (1980)

Eros, o Deus do Amor (1981)

Amor, Estranho Amor (1982)

Amor Voraz (1984)

Eu (1987)

Mônica e a Sereia do Rio (cenas em live action, 1987)

Forever (1991)

As Feras (1995)

Paixão Perdida (1998)

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