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180 ‘AMISERIA DA TEORIA xv Podemot tentar, agora, reunir nossa argumentacio. Eu disse, numa seco anterior, que as hipéteses do materialismo histérico e da “anti"-Economia Politica de O Capital, embora intimamente relacionadas, eram distintas, Isto foi dito claramente por Marx em seu preficio aos “Manuscritos de Paris” (1844), quando delineou seu ambicioso e imposstvel prejeto de vida: Apresentare, portanto, ume ap6s a outra, uma ertica do dieito, dé moral, da politica ete. ciferentes brochuras indepandentes@ ent, finclments, Aum trabalho 13 conclusdes do todo e 2 relacdo dos pel flora: liga da economia politica ‘com 0 estado, 0 dirsito, a moral, vida civil etc. ¢tratade apenet ne medica ‘am que. proprie economia police professaocuparsedesse asus. 160 Enquanto isso, as hipoteses do materialismo hist6rico (a relacdo das par- foram rapidamente apresentadas, entre 1845 e 1848, em A ‘ideologia alem§, Miséria de filosofia e Manifesto comunista. Friedrich Engels desempenhou um importante papel no desenvolvimento dessas hipoteses e, atrés dele, encontramos a influéncia direta das organizagées de classe @ da consciéncia de classe do movimento operério briténico. Como ‘Stedman Jones mostrou num estudo stil, Engels era muito modesto quan- ‘to a0 seu papel nessa produefo conjunta,i*! havendo assim maior razo para se ver com respeito os esclarecimentos de suas Gltimas cartas. ‘Assim, as hipoteses do materialismo hist6rico jé haviam sido apr sentadas em 1848. Essas hipdteses foram retomadas por Engels em varios de seus prefécios subsequentes as edigSes do Manifesto. Assim (na edicS0 alemg de 1883): © pansamanto bésico em todo © Manifesto — de que » producso econdmica@ 8 ‘estrutura da socledan de qualquer épocahistOrica que dela nascem necenarin: ‘mente constituem a base do histria politica intelectual dessa época que Consequentemente (...) tod histria foi uma historia de tuta de clases (=) ‘tsa pensamente bisico partance nice ¢exclusivamenta 8 Marx 162 roposigées, afirmava Engels em seu prefécio a edicdo inglesa de 1888, “‘destinavam-se a fazer pela historia o que a teoria de Darwin havia feito para a biologia”. Néo obstante, como jé vimos (pp. 78-79) essas hip6te- ses continuaram em grande parte sem desenvolvimento nos 40 anos seguin- tes; foram mais elaboradas por Engels do que por Marx e, a0 final de su vida, 0 primeiro péde ver claramente que “se havia feito apenas um pouco”. Enquanto isso, @ pelo menos durante 20 anos, Marx sa voltara para 2 luta com seu antagonista, a Economia Politica, e nessa luta, empenhou se ‘em desenvolver aquilo que, na minha opinito (pp. 71-73), pode ser considera ‘© TERMO AUSENTE: EXPERIENCIA 181 do como sendo uma “antiestrutura” Squela estrutura. Aleguei que 0 pro- prio Marx ficou preso, durante algum tempo, na armadilha dos circuitos do capital — uma imanéncia que se manifesta em “formas” — e que sb em parte escapou a essa armadilha em O Capital. € a ela (0 lado Grundrisse de Marx) que a prética tebrica retorna to ansiosamente;'® 6 do coracdo dessa armadilha que Althusser extrai sua autoridade textual, e ele quer nos fazer voltar & prisio conceptual (modo de produgio = formacio social) ‘que hevia sido imposta a Marx pelo seu antagonista burgués. Até que onto Marx teve consciéncia de sua prisSo, é uma questo complexa, e que (a meu ver) no tem muita importéncia para 0 progresso atual do conheci ‘mento. Estamos interessados em fazer avangar a historia e 0 entendimento de Marx, e ndo na marxologia. Mas devemos, pelo menos, notar que Marx, fem sua crescente preocupardo nos dltimos anos de vida com a antropolo- gia, estava retomando os projetos de sua juventude em Paris. 16 (© problema, como jé argumentei suficientemente, 6 passar dos cir- cuitos do capital para o capitalismo; de um modo de produgdo altamente conceptualizado e abstrato, dentro do qual determinismo surge como absoluto, para as determinagSes histéricas como o exerc{cio de presses, ‘como uma légica do processo dentro de um process maior (e por vezes contrabalancador). Seria ridfculo, ¢ claro, dizer que Marx, em O Capital, ‘do chegou repetidamente & linha que separa a Economia Politica da his- toria, estrutura e proceso, € no se referiu repetidamente — em muitos casos de maneira bastante esclarecedora — a presso da primeira sobre as, formas e logica da segunda. Mas as referéncias continuam hipdteses; $50 supostas, € nJo provadas; € mais ainda, as suposicBes sZ0 apoiadas pelas hip6teses anteriores do materialismo hist6rico, que precedem de muito 2 0 Capital, mas que ficaram sem desenvolvimento e sem exame. E os pro- bblgmnas surgem repetidamente no que chamei de “‘conceitos de jungao”” (p. 125): a “necessidade", que pode reaparecer na antropologia como “norma” e na “historia” como “vontades" ou “valores”; “modo de pro: dugio", que pode reaparecer como uma pressdo determinante dentro de lum complexo processo historico; “classe”, postulada como a estruturacso de um modo de produggo, ou materializando-se de maneiras que nunca podem ser predeterminadas (como os historiadores mostraram suficiente- © proprio ““determinismo", como fechamento ou como pressio. ‘Além disso, a Economia Politica, incluindo a “anti“-estrutura de Marx, nJo dispunha de termos — deliberadamente, e para os objetivos da sua cidncia analftica, exclu/ra os termos — que se tornam, imediatamente, essenciais para que compreendamos as sociedades @ as hist6rias. A Econo: ‘mia Politica tem termes para o valor de uso, 0 valor de troca, 0 valor ‘monetério e a maisvalia, mas no para o valor normativo, No tern termos para outras dreas da consciéncia: como ver em termos de valor, prego & lucro 0s rituais simb6licos de Tyburn ou do mausoléu de Lenin (ou, agora, 182 AMISERIA DA TEORIA de Mao)? Podemos formular a hipotese de que um “‘vocabulério" “reapa- receré” dentro de outro, mas ainda assim no sabemos como, por que meios ou mediag&es. E € aqui que verificamos ser a analogia de Engels ‘entre Darwin e Marx, sob um aspecto, ainda mais proxima do que ele pre- ‘tendia. Assim como Darwin propés e demonstrou um processo evolucio- nério que se desenvolveu por meio de uma transmutagio hipotética das ‘espécies — espécies que até entdo haviam sido consideradas como imutéveis fixas — ¢ ainda ‘continuou totalmente no escuro quanto aos meios _genéticos reais dessa transmissGo e transmutagio — assim também, de ma- ra andloga, o materialismo hist6rico, como uma hipdtese, ficou sem sua “genética” propria, Se fosse poss{vel propor uma correspondéncia — parte, demonstré-la — entre um modo de produggo e processo histérico, ‘como, e de que maneira, isso se faria? € uma pergunta importante: porque uma das respostas seré, simplesmente, deixar de lado 0 problema, sem solu: ‘G40. E a teologia diré que a evolucgo evidencia a manifestagdo peculiar da vontade divina, enquanto a pratica tedrica dird que a historia manifesta o “desenvolvimento das formas” do capital. A outra resposta (a tradicgo de Mendel e do materialismo histérico e cultural) deverd ser descoberta. XO que descobrimos (em minha opiniéo) esté num termo que falta: “experiéncia humana”. E esse, exatamente, o termo que Althusser seus seguidores desejam expulsar, sob injérias, do clube do pensamen- to, com o nome de “empirismo"’, Os homens e mulheres também retornam ‘como sujeitos, dentro deste termo ~ no como sujeitos autdnomos. “indi ‘v{duos livres", mas como pessoas que experimentam suas situagdes ¢ rela- ‘g5es produtivas determinadas como necessidades @ interesses e como anta- ‘gonismos, ¢ em seguida “‘tratam” essa experiéncia em sua consciéncia e sua cultura (as duas outras expresses excluidas pela pratica tedrica) das mais complexas maneiras (sim, “relativamente auténomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) ‘agem, por sua vez, sobre sua situaco determinada, Devemos ressaltar que, embora isso no seja incompattvel com as hipoteses de Engels ¢ Marx, no é exatamente @ mesma coisa que as suas ProposigSes. Introduzimos um termo, “culture” que, em sua origem ‘antropolégica, seria deplorado por Althusser, e que em sua definigio e ‘desenvolvimento subseqiiente dentro do conhecimento histérico no esta- va a disposicgo de Marx. E um termo com cuja defesa estou totdimente comprometido e, se 0s marxblogos insistirem na necessidade disso, até mesmo contra Marx, pois nio é verdade que ele tivesse inocentemente negligenciado a necessidade de proporcionar uma certa “genética” & sua teoria. Marx tentou isso, primeiro, em seus escritos sobre a alienacGo, fet chismo de mercadoria, ¢ reificago; e em segundo lugar, em sua noao do homem, em sua hist6ria, contiauemente refazendo a sua propria natureza. (Observaremos, apenas de passagem, j6 que outros criticos se detiveram (© TERMO AUSENTE: EXPERIENCIA 183 nessa questfo, que Althusser exclui toda exploracdo de qualquer serie de ogBes sugestivas de seu c&none). Sobre a primeira série de conceitos quero dizer apenas que eles se proptem a fornecer uma “genética” — a explicar ‘como a historia & determinada de maneiras que se chocam com as inten: ‘gBes conscientes de seus sujeitos — em termos de racionafidade mistificada, Os homens se aprisionam em estruturas de sua propria criacio porque se istificam a si mesmos. Embora os historiadores possam considerar ess9s, ogBes sugestivas em certas areas (como no estudo de ideologias). argu: 1m — © eu certamente argumentarei — que, numa aplicaggo mais 8 S80 0 produto de uma mente excessivamente racional; oferecem uma explicago em termos de racionalidade mistificada para comporta- Imentos e crencas ndo-racionais ou irracionals, cujas fontes no podem ser inferidas da razio. Quanto & segunda série de conceitos (0 homem fazendo sua propria natureza), embora seja importante e aponte o caminho certo, continua to mal desenvolvida que, com efeito, pouco mais faz do que repetir ® pergunta anterior em novos termos: ainda temos de descobrir "como"? ~"Woltamos assim ao termo que falta, “experitncia”, ¢ enfrentamos imediatamente os verdadeiros siléncios de Marx. Nao se trata apenas de ‘um ponto de juncdo entre “estrutura’’ e "‘processo”, mas um ponto de disjungdo entre tadigbes alternativas e incompativeis, Para uma delas, a do dogma idealista, esses “siléncios” so espacos em branco ou auséncia de “rigor” em Marx (incapacidade de teorizar plenamente seus préprios, cconceitos) e devem ser costurados aproximando 0s conceitos, gerados con: itualmente pela mesma matriz conceptual. Mas como jé vimos (p. 126), essa procura da seguranca de uma teoria perfeita, totalizada, 6 a heresia original contra o conhecimento. Essas perfeitas criacdes idealistas, magni: ficamente costuradas com um ponto conceptual invisivel, acabam sempre ‘na banca de liquidaglo. Se Marx tivesse realmente criado uma Teoria assim, ela j8 estaria no balcdo das pechinchas, juntamente com Spencer, Duhring fe Comte, de onde seria resgatada por alguma estudante em busca de um material bizarro para costurar sobre seu jeans de doutorado, Na sua presente encarna¢io como “prética tebrica™, a no¢do da Teo ria € como uma praga que se tivesse instalado na mente. Os sentidos empi- icos so obstruidos, os 6raios morais e estéticos sfo reprimidos, a curiosi- dade 6 sedada, todas as evidéncias “manifestas” de vida ou de arte so de. sacreditadas como “ideologia”’, 0 ego teGrico cresce (pois tudo 0 mais € rmistificado pelas “aparéncias"), ¢ os devotos se redinem fervorosamente em torno do Modo de ProducZo. Como os acessos a0 altar de Lakshmi num ve tho templo hindu‘sta, os caminhos so longos, escorregadios e ornados, mas finalmente 16 esté ola, a deusa da riqueza material, encrustada de ouro & jdias, envolta em guirlandas e tendo vis(veis apenas os seus enormes olhos tenigmaticos. Prestam-Ihe obediéncia, invocam seus muitos nomes, La 184 AMISERIA DA TEORIA ‘Structure 4 Dominante, 0 Modo, 0 MCP. Os ritos que cumprem sio por ‘vezes lamentéveis, por vezes cémicos. Os criticos esforcam-se por decifrar oemas como a reapresentacdo da teoria ou da ideologia em termos opacos. E sob esses termos esté © Modo, 0 MCP. Assim como, no platonismo te de sua teoria, toda cultura e toda vida social foram reduzidas 20 Modo, assim também seu vocabulirio ¢ recozido até reduzir-se & mesma pasta descaracterizada Uma dupla articulagbo GMP/GI-GIAL/LMP 4, por exemple, possivel, pele ‘qua! uma categoria GI, quando {ico de uma LMP, pode entdo ent ‘iste para reproduzi.165 E uma gentileza desse critico liter jo oferecer-nos um ““exemplo”. Mas supor que isso promova uma “‘ciéncia”” da estética materalista 6 caluniar tanto a ciéncia como o materialism. [Nem todos os ritos s80 tio sinceros. Os peregrinos s80 por vezes cr/- ticos e impertinentes. Mas como, em algum lugar de seus coracdes ainda querem adorar 0 Absoluto, nfo repudiam, mas apenas procuram corrigir (5 ritos, Assim os problemas (que de fato conseguem ver) so reduzidos a seudoproblemas dentro de um sistema conceptual destinado a repelir a solugdo que proptem. Até mesmo excelentes historiadores, que deveriam ter mais conhecimento (e talvez tenham), ponderam a falta de um “meca: rismo estrutural preciso” para “ligar” a base e a superestrutura, ¢ meditam sobre as maneiras pelas quais essa omissSo pode ser conceptualmente repa- rada.'% Mas 0 que esté errado, e sempre esteve errado, 6 a analogia com que comecamos (corpo/alma), e a nocdo de que a articulacdo pode ser reparada com um “mecanismo”. As feministas socialistas, que tém um res- sentimento sincero contra os “siléncios” do marxismo, procuram, através de drduos exercicios de teoria, inserir uma nova engrenagem (reprodugSo dda forca de trabalho) no planetério, um volante, esperando que sua inércia ‘movimente, de alguma forma miraculosa, todas as variadas “formas desen- volvidas” da repressio e expresso sexual, modos de familias ¢ papéis de ‘género, Mas 0 que esté errado néo ¢ 0 fato de terem proposto o problema, mas de o terem reduzido a um pseudoproblema, procurando inseri-lo ‘numa méquina planejada para a sua excluséo. E, a0 mesmo tempo, foram induzidas a desmantelar todo 0 cardter de desafio e a identidade de seu problema, sujeitando-o a mesma praga geral ‘Uma nuvem, no maior que a mao de um homem, atravessa o Canal {da Mancha vinda de Paris, e, num momento, as érvores, o pomar, as sebes, ‘0 campo de trigo, ficam negros de gafanhotos. Quando por fim eles le tam véo para se dirigir 8 frequesia seguinte, os burgos perderam todas as cculturas, 0s campos foram desnudados de todas as folhas verdes da aspira- ‘edo humana: e naquelas formas esqueléticas e naquela paisagem enegrecid (© TERMO AUSENTE: EXPERIENCIA 185, «8 prética tebrica, anuncia sua “descoberta”: 0 modo de produce. N5o $6 ‘0-conhecimento substantivo, mas também os préprios vocabuldrios do pro- joto humano — compaixfo, ambigo, amor, orgulho, auto-sactificio, leal- dade, taigdo, calGinia — foram devorados até os circuitos de capital Esses sgafanhotos sfo platonistas muito eruditos: 8 houvessem pousado sobre A Repdblice, a teriam desnudado de tudo, exceto da idéia de uma contradi- do entre um fil6sofo © um escravo. Por mais elaborados que sejam os me- canismos internos, as torgBes © autonomias, a prética te6rica constitui o Ponto extremo do reducionismo: uma reduc0, no da "religiGo” ou da ", mas. das disciplinas do conhecimento a apenas um tipo “bésico” de Teoria, A teoria estd sempre recaindo numa teoria ulterior. Ao recusar a investigago emplrica, a mente esté para sempre con- finada aos limites da mente. Nao pode caminhar do lado de fora. € imobil zada pela ciibra tebrica e a dor s6 ¢ suportével se no movimentar seus membros. E e182, portanto, o sistema de fechamento. E 0 lugar em que todos (08 marxismas, concebidos como sistemas tebricos auto-suficientes, auto- justificativos, auto-extrapolantes, deve terminar. No pior dos casos (no ‘qual geralmente ests) a prética tedrica 6 esse fim, e podemos agradecer a Althusser por demonstrar isso com tal “rigor”. Mas se voltarmos 8 “expe: rigncia’” podemos passar, desse ponto, novamente para uma exploracSo aberta do mundo ¢ de nbs mesmos. Essa exploracdo faz exigéncias de igual rigor tebrico, mas dentro do didlogo entre a conceptualizacSo e a confron- taco empfrica que jé examinamos (pp. 49-51). Essa exploracgo ainda pode situar-se na tradicdo marxista, no sentido de que estamos tomando as hipoteses de Marx @ alguns de seus conceitos centrais, e colocando-os fem operagdo. Mas 0 fim dessa exploracio no é descobrir um sistema con- ceptual finito (reformado), 0 marxismo. Nao hé, nem pode haver nunca, esse sistema finito. Sinto decepcionar aqueles praticantes que supdem que tudo o que é necessério saber sobre a historia pode ser construfdo a partir de um apare: tho mecénico conceptual. Podemos apenas retornar, ao fim dessas explo- ragdes, com melhores métodos e um melhor mapa; com uma certa apreen- sfo de todo o processo social; com expectativas quanto ao processo & quanto as relacdes ‘te a0 material; com certos conceitos-chave (a serem eles prOprios aplicados, testados e reformulados) de materialismo historico: classe, ideologia, modo de produgio, Nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras, do desconhecido. O que resta fazer ¢ interrogar os siléncios reais, através, do dislogo do conhecimento. €, a medida que esses siléncios sdo penetrados, ro cosemos apenas um conceito novo ao pano velho, mas vemos ser ne- ccessério reordenar todo 0 conjunto de conceitos. Nao hd nenhum mais oculto que seja sacrossanto de modo a obstar a indagacSo e a revisio. 186 AMISERIA DA TEORIA E nisto que esté a diferenca entre marxismo e tradi¢éo marxista. € possivel ter uma prética marxista mas considerar os marxismos como obs- Ccurantismos — 0 que manifestamente eles se tornaram, numa dezena de formas. Isso nada tem a ver com a admiraco que se possa ter por Marx e ‘sua obra, Pelo contrério, admirar essa obra & colocar-se como aprendiz, dela, empregar seus termos, aprender a trabalhar num dislogo do mesmo tipo. Mas a emulagdo ndo se deve basear numa reveréncia servil, e nem mes- ‘mo (como em Althusser) numa pretensa reveréncia pelo’ que Marx preten. dia dizer mas, inexplicavelmente, esqueceu-se de dizer. Deve nascar.do fentendimento da natureza provisbria e explorat6ria de toda teoria, e da abertura de espirito com que se deve abordar todo conhecimento. Isso também implica um respeito pela continuidade da cultura intelectual, que do deve ser vista como cindida em duas metades, entre 0 A.C. € 0.0. da “cesura epistemolbgica’” de Marx, e na qual todas as outras mentes © ‘conhecimentos devem ser medidos pelo padrdo da Ciéncia Marxista E na noo mesma do marxismo como “‘Ciéncia” que encontramos 3 marca registrada do obscurantismo, e de um obscurantismo copiado, como tantas outras coisas, de uma ideologia burguesa de grande longevidade. Uti litdrios, malthusianos, positivistas, fabianos e funcionalistas-estruturalistas se consideram (e se consideravam) praticantes de uma “‘ciéncia”, ¢ 0 mais descarado centro académico de ideologia capitalista brutalizada na Ingla terra contemporanea se proclama uma Escola de Economia e Ciéncia Poli tica, Quando Marx e Engels afirmavam estar aplicando métodos cientificos a0 estudo da sociedade, mostravam uma pretensdo que pode, em certos casos, ser defendida; quando supunham estar fundando uma ciéncia (mar xismo) estavam trancando os port&es da prisio sobre o seu proprio conhe- cimento, ‘A questio 6 agora mais grave do que isso. O marxismo vem sofrendo hd décadas de uma devastadora doenca do economismo vulgar. Seus movi- ‘mentos foram enfraquecidos, sua meméria falha, sua visdo esté obscurecida Entrou, agora, rapidamente no delirio final do idealismo, ea enfermidade ‘pode ser fatal. A prética tebrica ja € o rigor mortis do marxismo que se ini- cia. marxismo jé nada tem a nos dizer sobre o mundo, nem qualquer ‘maneira de fazer descobertas sobre ele. (© impulso ¢ fugir dessa cena de devastago, em prol de nossa sanida de mental. Homens honrados, como Cornelius Castoriadis, que néo aban- donou nem por um instante sua luta contra 0 capitalismo, deixaram a tradi¢do marxista desse modo: véern-na como irreparavel, inerentemente clitista, dominadora e antidemocratica (os “cientistas” e os demais) & ccondenada pelo seus frutos ortodoxos e stalinistas.'"” E concorde com boa pparte da sua critica (uma saudacio, velhos camaradas do Socialisme ou Barbarie'); 3 outra parte, eu. apresentei em meus proprios termos. Mesmo, orém, em sua acerba polémica com o “marxismo”, vemos que estd0 (© TERMO AUSENTE: EXPERIENCIA 187 ‘empregando — ¢ de mansira muito melhor ~ conceitos aprendidos inicial- mente em Marx. Pois os marxismos e a tradi¢do da investigaco empirica ‘aberta, ambos originados na obra de Marx, e empregando, deservolvendo € revendo seus conceitos, nunca foram a mesma coisa Por que, entio, lutar por um nome? Eu nfo o fara, pois lutaria de ‘conscidncia pesada, Marx errou varias vezes, ¢ om algumas delas de man ras danosas, Nem todas as autorizagées que Althusser exibe so to espd- rias quanto @ sue frase de Misria do filsofia. Uma parte de Marx sugere o sistema e a "ciéncia” de uma maneira que propicia uma incdmods conti Dwidade 20s “ismas” es ideologias estatais de nossa épaca. O “lado Gran Grisse”" de Marx, a nordo da “imanéncia”” do capital, pressagia Althusser, femora esse preisigio sea claramente contraditado em cem outros lugares. ‘Marx parttha com outros grandes e fecundos pensadores (Hobbes, Mogul vel, Milton, Pascal, Vico, Rousseau) uma ambighidade inerente ao rigor ‘meimo 4 abertura de seu pensamento. Fazendo-nos travessar um umbral, Proposigao (1): Moral = Ideologia. (2) Mas hé “fins naturais", um ““interesse préprio coletivo natural”, que pode ser determinado pela razéo. (3) A sociedade sem classes asseguraré 0 desaparecimento da moral, com uma ressalva quanto a0 dinheiro e aos prazeres de hoje, o que (é justo rnotar) seré contestado por um ou dois companheiros praticantes."™* O 198 AMISERIA DA TEORIA resto poderia, a0 que parece, ser tomado como a “posi¢ao cléssica do mar- xismo"! A moral € um mecanismo repressivo para inibir a libido natural. “Oh, ndo racionalize a necessidade ...” Poderiamos ser perdoados por supor que alguns praticantes aprendizes néo tém uma no¢io melhor da forma¢do social (e do choque) de valores do que a que poderia ser ofereci- dda pelas recordacées de estipidas regras de escola e de brigas familiares ainda mais sordidas. O “aparelho ideolbgico de Estado" (sic) da Gnica fe mila @ aparecer em seus escritos 6, na verdade, medonhamente repressivo: Na femfia nuctear mondgame, por mas liberal que sia, criancaesté & marcd e sua familia, privade de esponsobilidede lopéncie deteminadoral ou escolha {0 amigos, «Ihe & negada a oportunidade de relagSes planes, amplas e mlti- focetadas com companheiros ¢ pessoas mais velhes. S50 assim reforeades 32 estruturas de cardterifolades, provocadorss de ansiedade, competitvas, da bburguesiae tambien do proetsrio domesticedo que anseia pela le.175 AA descr talver soja um tanto moralista (e mesmo pedante) — e, uma vez que o “marxismo” (ou Althusser) demonstrou que a nogao de “respon- tabilidade” (agéncia determinadora) nos adultos & uma ilusSo humanista ‘ociva, como podem a crangas excapar a mesma proposio tebrca? Nao importa, As discusses (poder(amos ariscar giraram sobre esses fins naturais” como sexo, dinhero e bebida. € isso nos lembra que 0 pidio 2 todo “moralismo" esteve muito em moda por algum tempo: over burauesiarevoltada hé muito esté “na sua", se dealgum modo so ‘moralists, isso se revela em sua desaprovaeéo aos “pesados” dscursos dos mais-velnos sobre “deveres”. Or mais sensives entre eles néo s6 esiveram na #43", como jéest20 saindo dela, purifcadot, pa lado. Descobriram que ter "a mais satisfabria forma de satisfac” des por vezes a fonte de satistao como um trapo de coracdo partido: que os, _2925 devem ser socalizados « humanizedos (ou controlados) para que ri ‘ransformem 35 vides, uns dos outros, nu “telicidede” no acorre, como um cachorro, 20 asobio ds razi0; que os “socialists” que conseguem seu dinheiro seus prazees de determinadas maneiras também estardo em algum outro lugar, numa emergénci politica; e que até mesmo esses monstruosos aparelhos, a familia ea escola, tém uma ou duas fungBes subsdidias 3 fungdo de represso. ‘Assim — alguns desss jovens burgueses revoltados esto se saindo bom, Talvez ainda assumam seus papéis no movimento socialista, enquanto 05 outros — os egfstas que posam de “revolucionérios” como uma de suas fontes de “prazer” — sem duvida acabario sendo diretores de escola e pais tirdnicos. (Vi tudo isto, ndo s6 em mins prépria “experiéncia” empitica, ‘como tambérn, repetidamente, na pesquisa hstérica,) Muito breve, 0s me Ihores entre ees te afstardo do escrtinio moral exclusivo de seus pro Bris assuntosinterpessoais, para adotar uma vio mais ampla da socieds- (OTERMO AUSENTE: EXPERIENCIA 199 de. E entdo descobrirBo @ mesma Iégica em ponto maior. “Obter conhec mento e, portanto, poder sobre o mundo” significaré, para o egotsta sem pias, submeter outras pessoas a0 seu poder. As razBes da Razdo, desemba- rapadas da consciéneia moral, se tornam, sem demora, as razBes do interes: fe, © em sequida as razdes de Estado, e dal, numa progressio incontestada, 2 racionalzages do oportunismo, da brutalidade e do crime. No hé, nem pode haver nunca, uma moral “natural”, nem “fins na is" Certamente omaterialismohistrico e cultural jamais as encontrou. ins sfo escolhidos pela nossa cultura, que nos proporciona, a0 mesmo tempo, nosso préprio meio de escoihere de influir nesa escolha.Pensar de foutra maneira seria supor que nossas “necessidades” estdo ai, nalgum onto fora de nés mesmos e de nosta cultura, e que se a ideologia fosse tembora, a razBo a identificariaimediatamente, E eite, & claro, 6 0 momento do reconhecimento. Pois voltamos, ‘eum pasto répido, a um dos mais claudicantes momentos do lluminismo, (s “tins naturas” foram apresentados, por Adam Smith, de maneira racio- ral, como o interesse proprio; mas coube a Bentham inventar um meio de determina essas necessidades “de um modo que sua forma mais satsfaté- ria de satistardo seja posse” — 0 Céleulo da Felicidade. E 2 nosdo do “interes préprio natural coletiva"” foi proposta, de maneiraracional, por Rousteau outros {a vontade geral, 0 bem comum). Coube, porém, 2 William Godwin ascender, pela expiral da psicologia astociacionistahartley- iana, do interesse préprio 8 "benevoléncia” ~ de cujas alturas majestosas 2 ratio entronizada poderia ver através de todos 0s esprios lags ideol6g: 0s do sentimento — gratidBo, mor 20s parentes, a familia, 2 serviddo da ‘mulkido irraciona: This was the time, when al things tending fast To deprevatian, the Phiasoohy That promised to abstract the hopes of man (Out of his feelings, to be fx°d thenceforth For ever ina purer element ‘Found resdy welcome. Tempting region that For Zeal to enter and refresh herself, Where passions had the privilege 10 work ‘And never hear the sound of thet own names: ‘But, speaking more in charity, the dream Was Hlarcering to the young ingenuous mind Press’ with extromes, and not the Teast with that ‘nich makes the human Resson's naked self The object of it fervour. What delight? How glorious! im seltknowledge ond sltvle, Ta look through al the frailties of the world, ‘And, with resolute mastery shaking off The accidents of nature, ime ond place, That make up the woak being of the past, Build social freedom on Its only basi, 200 ‘AMISERIA DA TEORIA The freedom of the individue! mind, Which, to the Blind resteins of general lava Superior, maisteraly adopts One guide, the ight of circumstances, fash’ Upon and independent intllact.* Esse grande trecho de uma grande obra, The Prelude, nos lembra que ‘a mente percorreu antes esses penhascos. Em si mesmo, ole constitui — ‘quando tomado em seu contexto total — um exemplo daquela discussio de valores, daquele disciplinado “discurso da comprovacio” @ que me referi 0 marxismo também se props, com freqiéncia, a “abstrair dos sentimen. tos do homem as suas esperangas”, e fixé-las no elemento mais puro da “cigncia”. O stalinismo foi o império, ¢ a prética tebrice ¢ o vocabulério (do qual foram expulsos, em ignomini 0", 0 “humanism” (2 agéncia humana) ~ ‘hare pessions hed the privilege to work ‘And never hear the sound oftheir own names. © proprio godwinismo, que impregnou metade da jover intelectualidade da Inglaterra entre 1794 @ 1798, foi exatamente esse momento de extre mismo intelectual, diorciado de aro corelativa ou da atuapSo socal real, Como vimos na Gltima década, [Assim se mudermos um nimero de lger (1798/1976), exteremos no mesmo momento sinerBnico de tempo estruturado. Mas... da segunda vez, Como farsa, Pois aqueles godwinianos, no dnico momento em que aintel Tigensiainglesaadotou, em sua teoria, uma postura ultrajacobina tnham um certo espfrito. Questionavam tudo. Questionavam a propria Razéo. Secundades por Wollstonecraft (que vinha menos de uma tradigio raion lista que de uma tredi¢g0 de dissensfo eromantismo)fizeram dangar a ins + Fol nessa tpoca, quando todes as coises tendiam répida/h depravardo, a Filostis, ‘que promatia abstrai dos sentimentes do homem as sues expecancas, fixie a partir 1 nto, para sempre, num elemento mais puro, tove pronta sceitardo. Tentadors ‘ito, squela, pare que 0 Zeloantreneo se refresceste, onde a paixBes tinhom 0 pe Vildglo de exstr sem ouvir nunca o som de seus proprios nomes; mas falondo mals or ‘ingins, © que agradavam os extremos. ‘muito aquele que faz da propria razdo aus o abjato de seu fervor. Que dlfial Que ‘governo préprio, clhar todos os defetos do 0 tempo © do ugar, que faziam 0 ser fraco do pessado, constuit a liberdade soca sobre sua Unies bate a Tiberdade de mente individual, que, nos cogos limites da let ger, supaior. ‘2dote magitralmante um guie, 9 luz dar circunstancia, crigida para 0 intelecto Independent ‘TEORIA E "MARXISMOS™ 201 tituigdo do casamento. Atemorizaram a todos. Atemorizaram a sua propria cultura, levando-a a um vitorianismo prematuro, antes mesmo do nas ‘mento de Vitoria. Atemorizaram, acima de tudo, a si mesmos. A prética ‘e6rica, porém s6 péde proclamar uma realizacdo na Inglaterra: atemorizou © Sr. Julius Gould que, em tais assuntos, 6 sabidamente uma pessoa de raro ervosismo. Quanto 20 resto, foi uma diversBo, um recuo para a privaci- dade de um discurso interno complacente, o desengajamento das lutas po- Iiticas intelectuais reais de nossa época. Quanto 20 momento godwiniano, e suas conseqiéncias trégicas, es- pero contar essa historia em outra oportunidade. XVI Deixamos o nosso leitor “pbs-stalinista” perguntando, muitas paginas atrés: “Bem, e vocés identificaram as fontes do stalinismo? Construiram uma Teoria melhor?” Espero que a resposta a ambas essas perguntas se tenhe, agora, tor- ‘nado clara. O stalinismo nos aparecia, naqueles velhos dias, menos como um sistema te6rico coerente do que como uma mistura de préticas repres sivas, formas de dominio, retorica hipécrita, “‘teorias erréneas”, formas ¢ ‘hticas leninistas derivadas das necessidades da agitardo ilegal e transforma- das em axiomas u ‘tudo isso aliado 20 mais insensato oportu- nismo das razdes do poder estatal soviético. O stalinismo como Teoria néo Drecedeu, mas sequiu-se a0 fato. Se quiséssemos traduzir suas praticas num sistema tebrico coerente, cconceberiamos uma Teoria na qual a andlise empirica detalhada de suas préticas fosse, por uma questdo de principio epistemoldgico, desautorizada a moral fosse totalmente proibida ; na qual 2 validade universal das formas leninistas (mas de formas num estado avancado de degeneracio burocritica) fosse deciarada sem exame (0 caracteristico curto-circuito tebrico: 0 proletariado = 0 Par- tido); na qual um reducionismo estruturalista garantisse a saiide fundamen: tal do sistema soviético em sua “base” econémica supostamente socialista (afastando com isso todas as questdes politicas, juridicas e culturais para freas secundérias ov tercidrias) e rejeitasse qualquer anélise historica mate- rialista desse sistema ("historicismo”); na qual os homens e mulheres fos- sem vistos como suportes de determinardes estruturais inelutéveis, nas ‘quais sua responsabilidade e agéncia historica fossem negadas ("*humanis: mo") e na qual fosse, portanto, mais facil vé-los como “elementos degra dados” ou coisas; e tudo isto unido numa noo de Teoria como envolté: rio e como “ciéncia”, Teoria que pudesse ser apreendida em seus elementos

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