You are on page 1of 126

© Copyright 2019 Dy Silveira

Revisão: Artemia Souza


Capa: Ellen Scofield
Diagramação: Tici Pontes

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

Esta obra segue as Normas da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados a autora. São proibidos o


armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta obra, através de
quaisquer meios - tangível ou intangível – sem o consentimento escrito da
autora.

Criado no Brasil

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº


9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Sinopse
Prólogo
1. Aquele olhar azul
2. Se ela fosse minha
3. Filhinho da mamãe
4. O que estava acontecendo comigo
5. O que eu não faço por você
6. Que tipo de louco ele era
7. Eu quero você
8. Pensando em você
9. Incontáveis vezes
10. Centro do meu mundo
Epílogo
Bônus
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
A jovem Abigail conhece apenas os limites de uma criação rígida e
de um ambiente familiar severo, e ousada como ela é, está disposta a (quase)
tudo para sentir o doce vento da liberdade soprar no seu rosto de vez em
quando...

Fugir uma noite para participar de um festival de música popular era


só uma dessas coisas que ela poderia fazer. Vivia-se apenas uma vez, e
mesmo tendo uma alma romântica, ela também possuía aquela rebeldia
latente, inquieta, que a fazia desejar a diversão, a alegria, a sensação de
encantamento com o mundo... e uma paixão que poderia incendiar seus dias
monótonos.

Tudo isso, com toda a certeza não estava em Otávio, a monotonia


em pessoa, um jovem sério e disciplinado que parecia carregar o peso do
mundo nas costas, apesar do brilho intrigante daqueles olhos azuis...

Quando essa noite incomum os coloca um no caminho do outro,


Abigail recusa-se a abrir mão dos seus sonhos. Então, por que todos os seus
sentidos estavam apontando para aquele homem totalmente errado?
Rio de Janeiro, dias atuais

Depois de todos esses anos, ela ainda é a mulher mais bonita que eu
já vi, e atrai o meu olhar para ela exatamente como da primeira vez...
— Acredito que o desempenho da bolsa nos próximos dias pode ser o
ponto definitivo para os nossos planos. Então, estamos combinados?
Fixei a minha atenção na conversa que estava mantendo com Petrus
Dimitriou, um novo e difícil cliente que estávamos tentando trazer, e aos seus
investimentos, para a nossa empresa. Arisco e pouco inclinado a
investimentos de riscos mínimos, o bilionário de origem grega estava no
Brasil especialmente para negócios naquelas semanas. Como convidados
especiais para esse pequeno coquetel a bordo do seu iate, eu poderia ver a
oportunidade de atingir os meus objetivos se delineando bem à minha frente.
O que não significava que eu não pudesse ser momentaneamente
atraído pelo som único e melodioso da risada da mulher mais linda presente
no lugar.
A poucos passos de mim, entretida em uma conversa com um casal de
banqueiros, nossos amigos há décadas, Abigail parecia brilhar no seu longo
vestido azul de corte reto, os cabelos loiros recolhidos delicadamente em um
coque alto que expunha o seu pescoço longo, seu corpo esguio e o perfil
gracioso. Elegante e dócil, ela transitava com desenvoltura em praticamente
qualquer cenário, e mesmo ali, em meio a bebidas caras e entre pessoas com
mais dinheiro do que poderiam gastar em várias vidas, ela entretinha seus
interlocutores com a mesma habilidade que sentava-se descalça no nosso
jardim e brincava com os nossos netos.
Marina disse algo em seu ouvido e ela sorriu novamente, virando na
minha direção, seus olhos encontrando os meus, focados nela. Sorri
discretamente para ela e virei a cabeça para encontrar Dimitriou.
— Claro, estamos sim. Seria um prazer voltarmos a nos encontrar e
discutir sobre isso. Um jantar na minha casa, talvez?
Ele bebeu um gole do seu champanhe e ergueu a sua taça em um
gesto de concordância, mas pelo seu sorriso de canto de boca, não me
pareceu que ele tenha deixado de notar a breve interrupção do meu foco na
nossa conversa. Seu olhar seguiu a direção do meu.
— Perfeito. Tenho planos de permanecer no Brasil ainda até o final
do mês — Dimitriou assegurou, em seu português com um sotaque grego
carregado.
Ao seu lado, mantendo um braço perfeitamente atado ao seu, a bela e
altíssima jovem morena que o acompanhava inclinou-se e falou em seu
ouvido. Era uma modelo famosa, pelo que eu sabia, e há algumas semanas
estava sendo companhia constante do grego no país.
Não que eu tenha perguntado, dificilmente tinha interesse em detalhes
pessoais da vida dos meus parceiros de negócios, a não ser que isso, de
alguma forma, fosse impactar os meus planos, no entanto, as minúcias da
vida íntima de um homem como Dimitriou estavam em praticamente todos os
lugares: rico, divorciado e de férias no Brasil, eu deduzia que, com sua
fortuna, aparência e o fato de que ele parecia ter não mais do que 60 anos,
assim como eu, encontrar mulheres não era exatamente uma dificuldade.
Ainda que essas mulheres tivessem idade para serem suas filhas, mas
isso não era um problema meu, definitivamente, então, eu estava deixando
passar.
— Claro, querida, eu encontro você daqui a pouco — ele estava
dizendo para a ela, acenando em concordância e recebendo um beijo antes
que ela se afastasse e sumisse no meio dos convidados espalhados pela
imensa proa da embarcação. Ele a acompanhou com o olhar, então retirou um
estojo de charuto do bolso interno do paletó. — Ela estava ficando entediada,
eu não deveria estar surpreso.
Fiz um ligeiro sinal de assentimento apenas. Não fazia ideia do que
ele esperava que eu dissesse sobre isso, apesar de ter notado que a moça não
havia dado uma única palavra desde que iniciamos a nossa conversa.
— De certa forma, é um preço pequeno a pagar para ter uma mulher
daquelas pendurada em você por todos os lados. — Dimitriou acendeu seu
charuto, tragou lentamente e fez um sinal de oferecimento do estojo para
mim.
— Não, obrigada. Estou realmente tentando parar.
— Sorte sua — ele resmungou, com um sorriso, e eu levei o meu
copo de uísque aos lábios. Aparentemente, os assuntos sobre os negócios
estavam pausados, a julgar pela forma reflexiva com que ele soprou sua
fumaça e ficou olhando para frente. — Não posso reclamar, pensando bem.
Muitos homens não reclamariam da possibilidade de ter uma mulher linda e
jovem como ela ao alcance, eu sei disso. Mas, meu amigo, não espere alguém
que esteja interessado em seus negócios ou mesmo em outros aspectos da sua
vida que não envolvam jantares caros e presentes mais caros ainda.
Dessa vez, eu segui o seu olhar rápido na direção de onde a sua
acompanhante entediada estava agora, rindo com um grupo de outras
mulheres altas, magras e bonitas, à nossa direita.
Limpei a garganta e desviei o olhar. A amargura detectável em sua
afirmação não estava no nível de envolvimento que eu me sentia à vontade
para lidar, mas ainda assim, em nome da boa educação, eu precisava dizer
algo.
— Eu deduzo que não é um relacionamento que se poderia se chamar
de promissor, então? — perguntei, franzindo a testa. Uma parte de mim, a
parte sarcástica e realista me cutucou internamente para o fato de que, se era
aquilo que ele estava buscando em uma mulher, não tinha o direito de
reclamar, realmente, do que estava recebendo.
Minhas ponderações internas mostraram-se acertadas quando
Dimitriou riu com evidente ironia, voltando-se para mim.
— Não, não é, para dizer o mínimo. Assim que eu voltar para Atenas,
nós seremos apena bons e velhos amigos, espero. Larissa é... uma menina
adorável, claro, mas de modo algum é o que se pode chamar de material para
estável ou mesmo promissor.
— Bom, então, não seja muito duro com as suas expectativas em
relação a ela. — Sorri, afável, erguendo uma sobrancelha e tentando não
deixar transparecer o leve indício de impaciência sobre o assunto.
Dimitriou riu, assentindo.
— Touché, meu caro. Você está casado há muito tempo, Otávio, eu
imagino?
Instintivamente, meu olhar captou novamente a figura de Abigail a
alguns metros de nós, ainda entretida com o casal.
— Trinta e oito anos completos, este ano.
— Meus parabéns. Isso é incrível, principalmente hoje em dia. Eu saí
do meu terceiro casamento recentemente.
— Lamento saber disso. Planos sobre isso ainda no horizonte?
— Não creio. — Ele voltou a fumar, encolhendo os ombros. — Chega
um momento em que você simplesmente desiste e passa a viver com o que
pode. As “Larissas” da vida são o meu status atual. Seus filhos estão casados
e você tem netos, não? Lembro de ter conhecido o seu filho mais velho na
sua empresa, a semana passada.
— Sim, dois dos meus filhos estão casados, e minha filha está noiva.
Temos quatro netos, agora, e há poucos meses, nasceram as minhas primeiras
netinhas — respondi, mal podendo manter o orgulho e a felicidade fora da
minha voz ao lembrar dos meus netos e, mais recentemente, das garotinhas
fofas de olhinhos verdes e bochechas gordinhas. Um novo nível de amor e
proteção parecia rasgar meu peito quando elas sorriam e balbuciavam coisas
ininteligíveis pra mim.
Ainda viriam alguns meses pela frente até que elas começassem a
dizer as palavras, mas eu já estava me preparando para mais uma vez ouvir o
“vovô”. Era emocionante e nunca perdia a graça. Nunca.
— Um casamento de quase quatro décadas com a mesma bela mulher,
filhos e netos. Você conseguiu o pacote completo, Otávio — ele comentou,
sorrindo. Eu sorri de volta, mesmo que estivesse um pouco incomodado com
os caminhos que essa conversa estava tomando.
Provavelmente era apenas a minha velha mania de reserva e silêncio
em coisas que fossem mais pessoais. Não que eu estivesse me saindo muito
bem com isso, a propósito. Era difícil manter a fama de frio e fechado quando
agora eu era mais do que nunca o “vovô Otávio”. Tenho certeza de que
atualmente eu sabia tanto sobre investimentos e capital de risco quanto
entendia dos jogos de João Pedro, de musiquinhas e filmes de bebês.
Dimitriou me encarou, o lábio estreitado em um sorriso, os olhos
apertados.
— Fico feliz por você, de verdade. Eu tenho uma neta, também,
apenas uma, da minha única filha. Elas moram nos Estados Unidos e eu não
mantenho contato o suficiente com elas, eu acho.
— Não imagino como seria a minha vida sem os meus netos,
sinceramente.
Ele acenou com um gesto de cabeça, e nesse momento, vi quando
Abigail despediu-se do casal e veio caminhando de volta em nossa direção,
os passos leves, um sorriso e os olhos brilhando.
Quando ela chegou ao meu lado, envolvi a sua cintura com uma das
mãos, suavemente, pousando depois meus dedos na discreta faixa de pele das
suas costas que o decote deixava entrever.
— Espero não estar atrapalhando uma conversa de negócios muito
importante — ela disse, cortês, mantendo o sorriso e olhar entre mim e
Dimitriou.
— De modo algum, querida. Você nunca atrapalha — garanti,
curvando-me só um pouco em direção à sua têmpora e deliciando-me com o
seu perfume.
— Estávamos justamente aqui conversando sobre casamentos
duradouros com belas mulheres, filhos e netos maravilhosos. — Dimitriou
inclinou a cabeça em um gesto galante e um sorriso amplo, seu olhar pousado
na minha mulher. — Aliás, Abigail, acho simplesmente impossível acreditar
que você tenha netos, olhando para você.
Virei a cabeça lentamente na direção dele, enquanto o perfurava com
o olhar, analisando suas palavras e o tom charmoso do grego maldito ali ao
meu lado. Óbvio que o cara estava sendo apenas educado, mas... que porra
era aquela de “Abigail” e aquele olhar sedutor? Eu tinha pelo menos olhado
duas vezes na direção da mocinha que estava com ele?
— Ah... eu vou tomar então como um elogio, Dimitriou, obrigado. —
Abigail deu-lhe um sorriso caloroso, encostando a cabeça de leve no meu
peito e levando à mão ao topázio pendendo no seu decote, um presente meu
para combinar com o azul do seu vestido naquela noite. — Apesar de que
tenho que lhe dizer... — ela abaixou a voz um pouco como se estivesse lhe
dizendo um segredo — ... orgulho mesmo eu tenho de poder dizer que tenho
netos e estou esperando alegremente por mais alguns.
Dimitriou deu uma risada, parecendo deliciado e encantado ao olhar
para ela.
Sorri com os dentes cerrados, educadamente. Qual a porra da graça
que ele estava vendo mesmo? Envolvi o meu braço completamente em sua
cintura agora, e a puxei com delicadeza. Abigail levantou o rosto para mim,
seus olhos nos meus.
— Eu e Otávio estamos em permanente campanha para isso, não é?
— Completa e absolutamente, meu amor — concordei,
surpreendendo-a com um beijo rápido em seus lábios. Um vinco surgiu em
sua testa antes que ela sorrisse. Abigail sabia que eu era carinhoso, ainda que
fosse discreto e não muito dado a demonstrações efusivas de afeto em
público.
Quando dei mais um olhar na direção de Dimitriou, ele olhava para
longe de nós, agraciando-me com uma breve e sutil demonstração de
privacidade.
Ótimo. Eu tinha acabado de lhe dar uma breve e nada sutil
demonstração de que aquela linda mulher bem ali era doce, inteligente, sagaz,
capaz de entreter empresários do mundo todo com maestria e até receber
sorrisos e elogios melosos de gregos bilionários, mas era também a mulher
que estava ao meu lado há quase 40 anos, a mãe dos meus filhos e avó dos
meus netos, a minha “loirinha” esquentada que havia revirado o meu mundo
certinho e previsível de uma forma irreparável, décadas atrás.
Graças a Deus que ela havia feito isso, pensei, observando a ligeiras
rugas em torno dos seus olhos verdes lindos.
E ainda assim, eu não tinha dúvidas de que ela era a mulher mais
linda naquele lugar.
Rio de Janeiro
1980

O apartamento estava lotado, claro, como não estaria com aquela


quantidade de pessoas espremidas dentro dele?
Era impressionante como o dono daquele lugar conseguiu realizar
uma verdadeira festa dentro de um espaço tão reduzido assim. O proprietário
era um amigo rico do Daniel, meu namorado, e eu na verdade estava aqui há
mais de uma hora e ainda não fazia ideia de quem ele fosse. No momento,
também não fazia ideia de onde o meu namorado estava no meio daquele
povo todo, mas tudo bem.
A música Baila Comigo, de Rita Lee, que estava sendo um sucesso
aquele ano, tocava alto, abafando um pouco o som das vozes e das risadas
das pessoas lá dentro. Nada que gritar um pouco não resolvesse, no entanto,
como todos pareciam estar fazendo.
Os tons coloridos da maioria das roupas e dos acessórios que quase
todos ali usavam, faziam uma cacofonia geral no ambiente, deixando tudo
muito colorido e extravagante. E isso não me incomodava nem um pouco,
afinal, o que era um apartamento cheio perto da loucura e do frisson de um
ginásio completamente lotado, que era de onde eu tinha vindo mais cedo?
Ainda não podia acreditar que tinha realmente feito aquilo.
Movimentei-me, à procura de Daniel, no meio das pessoas reunidas
em grupos pequenos e animados, a maioria com bebidas e cigarros nas mãos.
Desviei de um rapaz que me ofereceu um copo de bebida, sorri e afastei o
meu longo cabelo loiro para apenas um dos lados, olhando em volta.
Eu havia dito que iria tomar um pouco de ar na varanda e o
encontraria depois.
Na verdade, ainda estava sentindo toda a adrenalina e a emoção de
horas atrás, quando estava no Maracanãzinho com ele, sendo espectadora de
um momento sublime da música nacional. Um momento que também seria
extraordinário para o resto da minha vida. As notas musicais de Agonia, na
voz inigualável de Oswaldo Montenegro ainda estavam de alguma forma
reverberando na minha pele, me fazendo sentir que aquela noite era especial
para mim, de alguma forma. O coro das milhares de vozes, a empolgação
com a canção, e principalmente, o calor das pessoas em volta cantando
juntas… eu tinha certeza que eu nunca iria esquecer aquilo, enquanto vivesse.
Era bom que eu não esquecesse mesmo, pensei, uma leve pontada de
apreensão me subindo pela espinha ao lembrar que eu tinha saído sem o
conhecimento total dos meus pais, que estavam dormindo e não faziam ideia
de que eu havia escapulido da cama, e muito menos de onde eu estava agora.
Bem, na verdade se você dissesse escondida, fugida, também
poderiam ser termos adequados para descreverem a forma como eu saí de
casa aquela noite. Mas o que eu poderia fazer? Mais uma vez, para variar, o
meu pai não havia permitido que eu saísse. Ele quase nunca me deixava sair,
sua rigidez e truculência pareciam pior a cada dia, e eu estava vendo a minha
vida passar por mim como uma expectadora passiva... Então, medidas
desesperadas precisaram ser tomadas.
Andréa, minha ajuizada e querida irmã mais velha, tinha me avisado
para não desobedecer ao nosso pai, coisa que ela própria nunca fazia, mas
quem poderia ficar em casa com um festival de música popular acontecendo
ali, tão perto de você? Quem não queria viver em pleno ano de 1980 os
momentos históricos daqueles lindos e antigos festivais de música da década
de 60? Quem com 21 anos de idade estaria trancada em casa com um evento
desses sendo realizado? Quer saber? Tinha valido a pena correr o risco,
deduzi, empolgada.
Daniel achou que fosse melhor que saíssemos mais cedo do ginásio,
antes que a multidão se dispersasse, mas em vez de ir para casa, que foi para
onde eu prometi a Andréa ir assim que terminasse, ele me convidou para essa
festinha na casa de um amigo, e eu aceitei. Nós não íamos demorar, e logo
ele me levaria para casa… E aqui estava eu, ainda, mas o que era uma hora a
mais ou a menos para quem tinha saído escondido e podia já estar
encrencada?
Finalmente o avistei do outro lado da sala lotada, conversando com
dois outros rapazes de costas para mim. Só fiz um aceno rápido que ele
retribuiu com uma piscadela e um beijo, disse algo para os rapazes e riu,
olhando novamente na minha direção.
Daniel e eu estávamos juntos há pouco mais de três meses, mas eu
sentia-me muito bem com ele. Seu jeito despojado, leve, tranquilo, sorridente,
era o encaixe perfeito para o meu espírito inquieto, a minha vontade de ser
livre e curtir a vida mais do que eu vinha fazendo até então. Sentia-me à
vontade com ele.
Ajustei a alça do meu longo vestido verde, e neguei com a cabeça a
bebida que uma garota me ofereceu. Não que eu não bebesse vez ou outra,
mas se pretendia chegar sóbria em casa, era melhor não cair em tentação, sem
falar que aceitar assim bebidas de estranhos… Eu podia me considerar uma
pessoa um pouco rebelde, até liberal, mas o eco da criação de um pai militar
estava sempre ali, na minha cabeça, me puxando para nunca ir muito longe.
E sair escondida já tinha sido o suficiente por uma noite.
A música ficou um pouco mais agitada agora, no perfeito estilo
dancing que não era muito a minha praia. Andréa sempre dizia que eu tinha
nascido na época errada, que tinha um espírito meio hippie. Não sei se era,
mas eu preferia a calma e a tranquilidade das músicas cadenciadas do que o
agito desenfreado das chamadas músicas de discoteca.
Fui me esgueirando entre os corpos das pessoas até parar ao lado
dele, que imediatamente me puxou pelos ombros e depositou um beijo nos
meus cabelos.
— Aby, meu bem, por onde você andava? — Daniel sorriu, e eu o
senti oscilar um pouco, causando-me uma leve sensação de preocupação.
Achava que ele tinha bebido um pouco além no festival, mas ele me garantiu
que estava bem. Agora, eu tinha quase certeza de que ele na verdade não
estava, e aquilo também me irritou um pouco.
Era nessas horas que eu pensava se no fundo não era tão solta e
despreocupada como eu queria ser, se não era um pouco careta, como ele
próprio dizia que eu era — principalmente por não ter permitido ainda que
ele “avançasse o sinal” comigo, como ele queria fazer há mais de um mês.
Meu corpo era muito importante para que eu o compartilhasse de
qualquer forma, e ainda que eu gostasse dele, não sei se o amava, se confiava
totalmente para que ele fosse o meu “primeiro”. Iria levar isso no meu tempo,
e estava pouco me lixando se ele achava aquilo careta.
— Onde você me deixou, na varanda — retruquei.
Daniel levou a mão ao peito em um gesto dramático e sorriu daquele
jeito quase infantil que costumava me aplacar quando ele fazia alguma
bobagem. E ele vivia fazendo bobagem.
Daniel era bonito de um jeito quase relaxado, possuía cabelos
escuros, ondulados e revoltos, olhos verdes e um corpo magro e elegante que
ele costumava cobrir com jeans e camisas simples, sempre despojado. Ele
havia me conquistado quase imediatamente, com aquele sorriso constante e
malicioso, e depois, com o seu estilo aventureiro e indisciplinado que me
atraiu ainda mais. Era o tipo de pessoa que gostava de levar a vida sem a
seriedade e a rigidez que eu estava acostumada na minha própria casa, e
quando ele surgiu — fomos apresentados por amigos em comum da
faculdade — foi como um sopro de leveza na minha vida.
— O que é isso, princesa? Eu só estava dando uma volta. Vem cá,
deixa eu te apresentar aos meus amigos aqui — Daniel disse, tocando o meu
cotovelo. Finalmente olhei para frente, para os dois rapazes que estavam com
ele, e sorri aguardando ser apresentada.
— Vini, essa é a minha namorada, Aby. Gata, esse é o meu amigo
Vini.
— Oi, Vini, como vai?
Trocamos apertos de mãos e beijinhos rápidos no rosto.
— Aby, e aí? Tudo bem? Deixe-me apresentar meu primo — Vini
disse, apontando para o cara alto e moreno ao lado dele. — Esse aqui é o
Otávio.
Eu me vi sendo observada detidamente por esse rapaz de cabelos
pretos e intensos olhos azuis, muito sério e com uma expressão que parecia,
se não distante, mas entediada no rosto de traços retos e bem marcados.
Otávio não se parecia em nada com ninguém que estivesse por ali, e
até a suas roupas destoavam do ambiente ao redor. Ele usava uma jaqueta
jeans de mangas longas, camisa branca e calça escura, roupas, aliás, que
pareciam não ter um único vinco. O cabelo preto liso e grosso também
parecia tão organizado quanto tudo o mais na sua aparência em geral. Seus
olhos, no entanto, eram de um azul impressionante, mas pareciam quase frios
demais em seu rosto sério.
Dei um largo sorriso simpático na sua direção, mas ele não moveu
um músculo, muito menos retribuiu o sorriso.
Eu hein, que pessoa mal-humorada, pensei, franzindo as
sobrancelhas. O tal Otávio, na verdade, me pareceu um “chato de galochas”,
principalmente por causa da forma que olhou para mim. Sabe aqueles olhares
reprovadores? Esses olhares. Foi assim que ele me encarou e depois olhou
para Daniel, o motivo eu não fazia ideia, mas não gostei dele quase
imediatamente. Até o nome dele era chato e enfadonho: Otávio.
Ele estendeu a mão para mim, mas não me beijou no rosto como o
Vini fez.
— Aby? — Estreitou os olhos azuis, olhando para mim com um
mais ínfimo sinal de cordialidade. Já era alguma coisa.
— Abigail — respondi, antes que Daniel o fizesse por mim. — Mas
pode chamar de Aby, se quiser.
— Prazer, Abigail, então. — Ele enfatizou meu nome completo, para
contrariar, só pode. Como a gente antipatizava com alguém assim logo de
cara? E eu não era assim, era uma pessoa super da paz, tranquila, detestava
julgar as pessoas sem conhecê-las, mas esse cara tinha algo que me irritava
um pouco... não sei. Não que ele não fosse bonito, porque ele era, muito
bonito com aquele jeito sério. Mas era aquele tipo de beleza fria, distante, e
aqueles lábios pareciam não sorrir muito...
Que coisa, para alguém tão jovem e que estava em uma festa
daquelas, por que aquela cara de velório?
Mas por que eu estava me importando com isso?
Provavelmente nunca mais iria vê-lo na vida, era só não encostar
muito nele para não “pegar” aquele mau humor, decidi. Voltei o rosto para
Daniel, depois encostei a cabeça em seu peito, mas por algum motivo que me
desconcertou, senti que aquele olhar azul ainda estava sobre mim.
Se havia uma coisa que eu não poderia deixar acontecer nunca mais
na minha vida, era permitir que meu primo Vinícius me convencesse a
embarcar nas aventuras furadas dele.
Aquela festa barulhenta demais, com aquela sala entupida de gente
falando alto, esbarrando uns nos outros e derramando cerveja em mim, era
um ótimo exemplo desse tipo de programa infernal que eu, infelizmente,
havia deixado ele me convencer a fazer. Isso não poderia se repetir, aquilo
estava me dando nos nervos e ainda não tinha meia hora que eu estava ali.
Tudo bem que era sexta-feira e eu achei que poderia relaxar da
semana estressante, infernal, que eu tinha vivido. Parecia uma oportunidade
perfeita para esquecer um pouco das horas de estudos intermináveis e do
“treinamento” intensivo que o meu pai estava me submetendo para o novo
cargo na empresa da nossa família. Não apenas para o novo cargo, eu sabia,
mas para em muito pouco tempo assumir muito mais responsabilidades e ter
mais poder de decisão do que eu já tinha hoje, nos negócios familiares.
Eu sabia que era muito jovem para aquilo tudo, tinha acabado de
completar 22 anos, ainda que em alguns momentos da minha vida eu achasse
que tivesse mais de 50. Aquele momento, por exemplo, onde muitos jovens
da minha idade estavam bebendo, fumando, rindo, divertindo-se, eu só
pensava em sair dali porque realmente a fumaça dos cigarros e o som
estridente estavam me incomodando.
O problema poderia não ser a festa e as pessoas. Eu estava me
transformando em uma pessoa chata e tediosa, concluí, com um suspiro
frustrado.
Pensando bem, eu admitia que nos últimos dias estava pensando
muito sobre o que estava fazendo da minha vida, de verdade; sentia o peso de
coisas que eu não sabia se deveria estar sentindo, tão jovem, se aquilo tudo
não seria demais para mim. Se toda aquela responsabilidade não estava
tirando a alegria da melhor fase da minha vida.
Eu não costumava pensar muito sobre aquilo, ter esse tipo de
pensamentos inquietantes, mas de repente, me sentia assim. Inquieto.
Contestando decisões dos meus pais, contrariando o meu espírito geralmente
cordato.
O que eu estava fazendo com a minha vida? Vivendo, certamente
não. Estava seguindo ordens e me preparando para assumir o que era
esperado de mim, ainda mais agora, que o casamento dos meus pais estava
literalmente ruindo por causa da descoberta da infidelidade dele. Franzi ainda
mais a cara de irritação ao lembrar disso.
Uma merda que ele fazia, e como de praxe, uma tonelada a mais de
preocupação recaía sobre os meus ombros.
Então Vinícius apareceu com os pais dele para um jantar com os
meus mais cedo e praticamente me arrastou para uma festa na casa desse seu
amigo, alegando que era uma boa oportunidade de beber alguma coisa e
quem sabe relaxar. Na hora, a ideia me pareceu atraente, eu precisava mesmo
relaxar. Muito. O outro argumento dele, de que eu poderia conhecer alguém
legal e até namorar um pouco, eu não levei muito em consideração.
Quase ri disso, na verdade. Conhecer alguém... como se eu estivesse
precisando de mais confusão e distração naquele momento da minha vida.
Tudo que eu não queria, era algo para me distrair ou tirar o meu foco dessa
nova fase que incluía assumir a empresa, mas também significava resolver de
uma vez por todas a minha situação com a Ellen.
Os pais de Ellen estavam impacientes com a minha demora em
noivar, depois de mais de três anos de namoro, e os meus estavam me
pressionando do mesmo modo, tentando me convencer de que Ellen era
exatamente a moça ideal para a minha imagem e futura posição no mundo
dos negócios. Ela era tudo isso sim, era bonita, inteligente, eu gostava dela,
mas tinha algo, eu não sabia o quê, que me impedia de dar logo aquele
passo... e estava mesmo ficando constrangedor para ela e a família. Talvez eu
devesse só acabar com aquilo logo de uma vez e pedi-la em casamento.
De qualquer modo, por ter ouvido Vini, aqui estava eu, com os meus
tímpanos quase estourando e olhando agora para a cara de imbecil daquele tal
de Daniel.
Eu já tinha ouvido falar dele e da família, sabia da sua fama de bon
vivant, do seu estilo alternativo, o típico “riponga” de condomínio com falas
vazias e dinheiro para gastar. Muito fácil, na minha opinião, dar uma de
desapegado de coisas materiais e sair dizendo “eu não me importo com nada”
quando você tinha os ditos bens materiais para usufruir e alguém estava
trabalhando para você curtir a vida de modo despreocupado.
Não era o meu caso, eu não tinha essa opção, e nem queria que fosse
diferente. Só estava desejando uma carga menor. A minha família tinha um
dinheiro quase indecente, e quem tinha que tomar a frente era eu mesmo. O
meu outro único irmão, Rui, fruto do caso que estava abalando os alicerces de
um casamento até então perfeito, era uma criança, e as chances de ele assumir
o controle de nossos negócios ou mesmo chegar perto do nosso dinheiro,
eram quase nulas enquanto minha mãe vivesse, disso eu tinha certeza. De
qualquer forma, tudo estava definido para mim há anos e eu não podia me dar
ao luxo de pairar pela vida como se não tivesse deveres e encargos pessoais e
profissionais. Como se as pessoas não dependessem de mim.
Droga, eu estava mesmo especialmente amargo hoje, isso sim. Era
aquela situação caótica em casa, e o problema com Ellen, claro.
Meus olhos voltaram mais uma vez para a namorada do tal Daniel
abraçada a ele. Abigail, a garota loira com cabelos ondulados e longos, e
aquele vestido verde que destacava suas curvas suaves — eu percebi assim
que ela chegou, tinha que admitir — e que combinava com os seus lindos
olhos, quase grandes demais para o seu rosto.
Eu na verdade nem queria estar notando esses detalhes nela, aquela
era a namoradinha “riponga” do menino ali do lado, e digo menino porque
aquele cara, mais velho do que eu, certamente tinha um comportamento de
moleque, não de homem, a julgar pelo que estava dizendo sobre a própria
namorada, antes que ela chegasse ali. Idiota total. Como essas meninas
encontravam e ficavam com esse tipo de cara babaca e os achavam
interessantes, perguntei-me, levemente irritado, voltando a observar cada
detalhe de Abigail.
Ela era mesmo linda e tinha um jeito doce, um tom de voz afável e...
Perigo, cara. Recuar. A moça nem era o meu tipo e estava com outro cara
bem na minha frente.
— Você ainda vai demorar muito aqui, Daniel? — ela perguntou ao
sujeito ajeitando uma mecha do cabelo loiro atrás da orelha. Notei como seus
traços eram delicados, como tudo o mais nela. Mesmo me recriminando,
prestei atenção ao diálogo. Daniel tocou o seu queixo com carinho e
aproximou o rosto do dela, e eu senti um desconforto fora de propósito, uma
sensação desagradável e desviei a vista por um momento, irritado. Agora, ao
lado dela, o cara fingia que era o namoradinho carinhoso e não estava sendo
um cretino há poucos minutos? Hipócrita de merda, isso sim.
— Meu amor, calma, a festa está só começando, não se preocupe
que o papai milico deve estar dormindo feito um anjinho agora, relaxa aí,
gata.
— Não é só isso, eu te avisei.
— Então o que é?
— Você me prometeu que não iríamos demorar, e a Andréa deve
estar preocupada comigo a uma hora dessas.
Voltei a fixar o meu olhar em ambos, curioso agora.
— A sua irmã está sempre preocupada, Aby, ela e aquele noivo
deveriam transar mais e relaxar também. — Ele riu da própria piada,
abraçando-a pelos ombros. A loirinha ficou visivelmente tensa e fechou a
cara pra ele. Isso me deu uma estranha satisfação.
— Não seja um idiota, e se você for demorar muito ainda, me avisa
que eu vou embora sem você, estou logo avisando — ela disse baixo na
direção dele, mas eu ouvi nitidamente. Estava mais entediado do que
pensava, se estava tão concentrado assim em uma conversa de namorados por
causa de uma garota bonita que estava acompanhada.
Ela permaneceu no lugar, olhando em volta, e eu não conseguia
afastar o olhar.
O namorado de Abigail e Vinícius engataram uma conversa sobre
carros, e eu contribuía com um comentário rápido ou no máximo leve aceno
de cabeça, de vez em quando. Até tentei continuar ouvindo e demonstrando o
mínimo de interesse educado no assunto, mas meus olhos iam parar em
Abigail, que não parecia estar muito entretida também com o que eles
estavam conversando, a julgar pela forma como ela mexia em uma bolsinha
de couro atravessada entre os seios pequenos que se destacavam naquele
vestido e... merda, eu estava ficando louco? Daqui a pouco teria que esconder
evidências bem visíveis do rumo dos meus pensamentos.
Lá estava eu de volta a notar o corpo dela, talvez fosse o fato de o
idiota praticamente ter dito a Vini e eu, mais cedo, que a menina era virgem e
que ele provavelmente teria o “paraíso” naquela noite, finalmente. Isso me
irritou profundamente, mesmo que eu não a conhecesse. Quem falava assim
da própria namorada na frente de estranhos? Que tipo de homem expunha a
virgindade da sua mulher assim? Rangi os dentes de raiva, olhando fixamente
para ela, analisando-a.
Em certo momento, Abigail pareceu ter consciência do meu olhar e
olhou diretamente para mim, e nossos olhos ficaram fixos um no outro por
segundos. Intensos estranhos segundos. Eu apertei os lábios, me
recriminando mentalmente enquanto sentia uma faísca esquentar a minha
pele.
Por que droga eu estava olhando para ela mesmo?
Ela era bonita, linda na verdade, não havia como negar, mas não era
o tipo de garota que me chamava atenção, ainda mais com aquele tipo de
companhia com a qual ela estava. Talvez fosse também porque seu namorado
nem estava notando que eu a estava quase devorando bem ali na sua frente.
Pensando bem, não duvidava nada que ele não estivesse apenas bêbado, pela
forma como suas pupilas estavam dilatadas, mas isso não era um problema
meu.
Ela devia saber onde se metia, não? Nem deveria estar pensando
nisso, nela, e sim em ir embora dali o mais rápido possível.
Minutos depois Abigail saiu dizendo que iria ao banheiro, e aquele
idiota que ela chamava de namorado nem mesmo se tocou que ela estava
saindo, quanto mais que eu estava olhando para ela quase insistentemente. Se
ela fosse minha... eu notaria aquele tipo de coisa a quilômetros de distância, e
não a deixaria caminhar no meio de um monte de bêbados e drogados por aí
daquela forma. Mas ela não era minha, e estava longe de ser, mesmo que
fosse linda, mais linda do que qualquer uma que estivesse ali naquela noite.
Pena que tinha um gosto de merda para namorados.
— Otávio…?
Eu tinha perdido parte da conversa e olhei para Vini meio perdido.
— O Daniel estava me dizendo que tem a intenção de investir em
algumas casas de shows, isso está dando muito lucro na cidade hoje em dia.
Talvez você pudesse dar a ele algumas dicas? — ele esclareceu, e o tal Daniel
olhou para mim em expectativa, sorrindo. Como eu poderia querer
absurdamente arrebentar a cara de uma pessoa que eu nem conhecia direito?
— Muito interessante, mas realmente não é a minha área. Talvez
você deva procurar uma ajuda especializada sobre isso.
Vini franziu o cenho e olhou para mim sem entender a minha recusa,
já que era nisso que eu estava me especializado e a empresa da minha família
lidava justamente com esse tipo de negócio. Mas ele não disse nada, ainda
bem. Que se foda, ora se eu iria dar dicas de investimentos para aquele
babaca. Eu estava de saco cheio daquele lugar e daquele cara, mas algo
estava me retendo ali, me deixando inquieto...
E a namoradinha do cara estava demorando muito a voltar, não
estava?
Pronto, que sorte a minha. Eu tinha geralmente muita sorte para
aquele tipo de coisa mesmo.
— Eu estou acompanhada, eu já disse, por favor, você poderia sair
da minha frente agora? — Suspirei, entediada.
Aquele rapaz tinha começado a me importunar assim que saí do
banheiro, e parecia não entender um “não” quando ouvia um. Era
impressionante. Tentei ir para o outro lado, contornando-o, e ele me
acompanhou, tentando pegar o meu queixo; eu virei o rosto, um pouco
irritada agora. Eu acho que já o tinha visto antes em algum lugar, talvez fosse
o mesmo que me ofereceu a bebida quando eu cheguei, mas não estava
lembrada de onde e não queria saber agora.
Detestava aquele tipo insistente e que se fingia de idiota para
importunar mulheres sozinhas.
— Calma, linda, eu só quero saber se você não está a fim de um
papo legal.
— Eu estou a fim de voltar para onde eu estava antes de ser
interrompida por você — informei-o, prestativamente. Ele riu, achando graça
da minha indignação, e tentou mais uma vez tocar em mim. Eu dei um tapa
em sua mão, rápido.
Um casal que estava bem ao nosso lado olhou para mim, o cara
sorriu, e então voltaram aos amassos, encostados na parede, como se nada
tivesse acontecendo. Mais à frente, um grupo de três meninas conversavam,
mas o som naquela parte com certeza não as deixaria ouvir o que estava se
desenrolando ali na saída do banheiro, no corredor mais escuro e afastado.
Eu não estava exatamente com medo dele, tinha muita gente ao
redor, mas estava começando a ficar muito irritada e com uma vontade maior
de ir embora dali, na verdade.
— Você está muito tensa, moça..., mas nada que a minha companhia
não resolva.
Ele riu novamente e tentou tocar no meu cabelo. Esse louco estava o
quê, drogado? Nem percebi a pessoa que se aproximava quando dei um novo
tapa na mão dele e tentei passar mais uma vez, toda a minha paciência indo
embora completamente.
— Você não ouviu a moça, amigo? — Ouvi uma voz masculina
grave dizer, de modo educado, atrás do imbecil insistente. Surpresa, inclinei a
cabeça na direção do dono daquela voz, e fiquei boquiaberta, parada no lugar
ao reconhecer a quem ela pertencia. Era o “chato de galochas”, com uma
expressão mais irritada agora, mantendo as mãos nos bolsos da calça em uma
postura aparentemente relaxada, mesmo que tivesse perguntado aquilo em
uma voz ameaçadora.
Olha só quem estava aqui, pensei, surpresa.
Otávio realmente não parecia ser talhado para brigas e confusões,
tudo nele gritava elegância quase fria, como se nunca tivesse sequer ter
levantado a voz para alguém na vida para ser obedecido, mas o jeito que ele
estava ali agora era realmente intimidante. Fiquei olhando para ele em
silêncio e quase esqueci do idiota entre nós, que agora virou de costas para
mim para falar com ele.
— Ela está com você? — ele quis saber, curioso.
— Sim, está comigo.
Eu não o contradisse, só fiz uma cara de deboche para o imbecil e
ele se foi, com um pedido de desculpas mudo para Otávio, não para mim,
claro. Outro homem precisou aparecer para que ele entendesse o “não” que
eu estava dizendo. Ele foi acompanhado por “olhos azuis” até que sumiu na
direção da sala, entre as pessoas.
Quando Otávio voltou sua total atenção para mim, parecia mais
irritado, e eu controlei a vontade de torcer os lábios para ele. Mas antes disso,
eu precisava agradecer, óbvio. Não sei o que aquele cara tinha que fazia
primeiro a minha irritação vir à tona, depois eu lembrava que não estava
sendo uma pessoa legal, como eu geralmente gostava de pensar que eu fosse.
Suspirei audivelmente e me aproximei mais dele, para ser ouvida.
— Obrigada, Otávio. Agradeço por ajudar a me livrar dele.
Ele ficou em silêncio olhando para mim de forma avaliativa,
deixando-me desconfortável e autoconsciente sob o seu olhar que parecia me
queimar. Sim, e ele não ia retribuir o agradecimento?
— O que você está fazendo aqui? — Foi o que ele finalmente disse,
ignorando a minha fala educada, a testa franzida como se a questão fosse de
suma importância. Como assim? Esse cara era doido? Ele não estava falando
do banheiro, claro, então eu abri as mãos em um gesto amplo.
— O mesmo que você: curtindo a festa. — Verdade seja dita, eu não
estava curtindo nada, mas o jeito que ele perguntou me fez responder assim.
— Eu não estou curtindo festa alguma, na verdade estou indo
embora agora mesmo disso aqui. O que eu estou perguntando é: o que você
está fazendo aqui nesse lugar com um imbecil irresponsável como Daniel
Motta?
Fiquei olhando para ele, mal acreditando no que estava ouvindo.
Esse cara era inacreditável mesmo, concluí, totalmente esquecida da gentileza
anterior que ele havia feito. Era por isso, talvez, que eu estava reagindo assim
a ele, o cara era um babaca mal-humorado e estava literalmente falando mal
do Daniel na minha cara!
— Você ouviu a parte em que eu fui apresentada como namorada
dele?
— Sim, o que só me deixa com a impressão que você é uma lástima
para escolher suas companhias.
Eu abri a boca, perplexa com o que ouvi. Ele tinha dito mesmo
aquilo?
Enquanto eu ficava lá olhando para ele, Otávio tirou as mãos dos
bolsos e cruzou os braços sobre o peito, e eu fui distraída momentaneamente,
percebendo que ele era forte, na verdade. Forte e estúpido, pelo jeito.
— E o que diabos você tem a ver com isso? Eu nem te conheço!
— Se você me conhecesse, não estaria em uma festa dessa aqui, isso
eu posso te garantir.
Mas o sujeito era abusado mesmo.
— E eu posso te garantir que eu mesma decido aonde vou ou deixo
de ir, e com quem faço isso, era só o que me faltava mesmo!
Ainda com a cara fechada, ele balançou a cabeça de modo sarcástico
e resmungou algo que poderia ter sido “meninas cabeça de vento”, se eu
entendi bem. Aquele cara dava uma de príncipe encantado salvador e depois
vinha me passar sermão como se fosse o quê, o meu pai? Não mesmo seu
imbecilzinho de uma figa.
Ele ia se virar para sair, mas eu puxei a manga da sua jaqueta,
tocando em seu bíceps e surpreendendo-me com tão firme ele parecia ser sob
toda aquela roupa sem graça. Aquele jeito de filhinho da mamãe “não-me-
toque” não combinava com o corpo forte que esse tal de Otávio tinha.
Abigail, por favor, você tem um namorado lindo bem ali fora, nada de ficar
reparando em caras chatos e rabugentos mesmo que eles também fossem
lindos.
Ele olhou para onde os meus dedos puxaram a jaqueta dele, e seus
olhos permaneceram lá, antes de levantar a cabeça e me encarar de maneira
intensa. Eu retirei a mão, depressa, alarmada e envergonhada.
— Quem você pensa que é para me insultar? — Ergui o queixo para
olhar para ele, porque ele o idiota rabugento era alto mesmo. E então, uma
mágica bem ali na minha frente: “olhos azuis” curvou um pouco os lábios
para um lado em algo que poderia, com muita força de vontade, ser descrito
como um pequeno sorriso.
— Então a mocinha tem garras.
— Tenho, sim. E por favor não fique tirando conclusões sobre mim,
senão eu posso te arranhar com elas.
Que diabos eu tinha dito? Eu tinha acabado de dizer que iria
arranhá-lo?
Otávio ficou olhando para o meu rosto por segundos, em silêncio,
seus olhos profundos presos aos meus, e eu senti algo, uma coisa, um
friozinho inoportuno na barriga, misturado com um calor indesejado no peito,
enquanto ele continuava deslocando o olhar entre os meus olhos… e a minha
boca, permanecendo por segundos lá. E eu engoli em seco, sentindo o meu
coração disparar.
Eu não era tímida, apesar de ser virgem, coisa que talvez eu estaria
resolvendo nos próximos encontros com Daniel, mas aquele olhar dele era
impressionante, estava fazendo a minha pele arder de tensão. Parecia estar me
queimando e vendo coisas que eu não queria mostrar a ele. Todas essas
coisas que eu senti, na verdade, eram inadequadas para uma pessoa que tinha
um namorado. E foi ele quem me lembrou disso, que ódio!
— Volte para o seu namorado, loirinha, talvez ele sirva ao menos
para te manter segura, não muito mais do que isso, eu acho — ele disse,
antes de fazer um pequeno cumprimento com a cabeça, dar meia-volta e me
deixar ali sozinha, com o coração na garganta e sem entender bem o que tinha
acontecido ali.
Ele me ajudou, já que por coincidência estava passando, mesmo que
eu tenha notado que ele não foi ao banheiro, e depois ficava com raiva de
mim, deduzindo coisas sobre quem eu era e insultando Daniel por algum
motivo específico que eu desconhecia? Já não bastavam os olhares de pura
reprovação que ele vinha me dirigindo enquanto ficava lá calado olhando
para mim mais cedo.
Ajeitei a minha bolsinha nos ombros, tentando normalizar minha
respiração, e voltei para a sala que parecia mais cheia agora do que antes.
Daniel estava conversando com outros dois rapazes, rindo e
levantando a sua cerveja, mas eu não estava mais no clima para nada ali. Eu
gostava do jeito dele, sim, não sei se o amava, era cedo demais para aquele
tipo de coisa, mas ele parecia ser tudo que eu queria: bonito, sorridente,
levava a vida sem grandes complicações. Ele me entendia, sabia que eu havia
crescido em um lar rígido, triste, onde mal se podia conversar, quanto mais
rir, e estava sempre me acompanhando quando eu decidia que queria me
arriscar um pouquinho mais, como hoje.
Tudo que eu menos queria para o meu futuro era uma continuação
da minha vida na casa dos meus pais, e Daniel, por enquanto, era aquela
pessoa que me fazia sair desse cenário. Ele transpirava liberdade e quebra de
protocolos, pensei, acenando com a mão para ele. Eu fui em sua direção, mas
estava disposta a ir embora dali, já, e não sei bem por que olhei em volta,
procurando aquele “Olhos Azuis” carrancudo, mas ele não estava mais em
parte alguma. Melhor assim.
“Volte para o seu namorado”, repeti para mim mesmo, em um
murmúrio zangado e sarcástico, enquanto recostava-me no meu carro do lado
de fora daquele maldito prédio.
Estava tarde, eu tinha que acordar cedo para ir à faculdade no dia
seguinte, era o último semestre, um monte de coisas para fazer, estudar, um
mundo de problemas na minha casa, e eu estava fazendo o quê? Estava ali
feito um idiota esperando a loirinha aparecer para assegurar-me de que ela
estaria indo para casa com o panaca do namorado... ou se ela estaria saindo
sozinha e colocando-se em perigo.
Não adiantava enganar a mim mesmo dizendo que ainda estava ali
apreciando a noite carioca, ouvindo o som da rua, a movimentação, vendo as
pessoas passarem, deixando o tempo passar. Eu sabia muito bem o motivo de
estar ali e não iria me enganar. Ainda assim, eu estava furioso comigo
mesmo, e nenhum dos dois cenários me agradava: nem ela sair com o
namorado, nem que ela saísse sozinha.
Se Abigail saísse sozinha, eu sabia que iria até ela e me certificaria
de que ela iria chegar bem em casa, eu sei, não deveria estar fazendo isso
com uma garota que nem era a minha namorada — que por sinal, devia estar
em casa dormindo enquanto eu estava ali ainda tentando entender as minhas
reações à namorada de um outro cara. Que inferno de situação eu tinha me
metido.
E se ela saísse com ele... Eu me perguntei se o tal Daniel realmente
iria fazer o que tinha dito a mim e a Vini mais cedo, e aquilo me deixou
profundamente irritado. A menina tinha a língua grande, era teimosa e não
parecia saber aonde estava se metendo, mas pensar que ela iria acabar na
cama daquele cara era incômodo pra mim de um jeito insano. Insano.
O que estava acontecendo comigo?
Aquele tipo de atitude nunca foi o meu estilo: cobiçar a garota de
outro cara? Mas eu não conseguia pensar em outra coisa que não na sua voz
atrevida dizendo que poderia me arranhar... Eu fiquei estático, impulsos
sexuais correndo pelo meu corpo quando ela me tocou, porque o simples
pensamento de que ela me arranhasse fez com que eu começasse a imaginar
cenários em que ela fizesse isso e muito mais. Ou onde eu poderia fazer
muito mais com ela... e olhar para seus lábios não ajudou em nada com
aquilo. Então, eu a mandava voltar para o namorado? Balancei a cabeça e
quase grunhi de raiva, mesmo que eu soubesse que era isso mesmo que ela
deveria fazer.
E como eu previa e temia ao mesmo tempo, afinal eu conhecia um
imprestável quando via um, lá vinha a Abigail, saindo da frente do prédio,
enrolando os braços delgados ao redor de si mesma, para se proteger do frio
àquela hora. Sozinha.
É, maldito Vini que me trouxe aqui essa noite, deduzi, endireitando-
me e observando-a. Ela olhou de um lado para o outro, e eu concluí que ela
procurava um táxi. Xinguei-me mentalmente e fui ao encontro dela,
atravessando a rua. Assim que me viu, Abigail descruzou os braços e os pôs
na cintura, assumindo uma postura entre defensiva e irritada, e continuou
olhando para a rua como se eu não estivesse indo em sua direção.
— Posso te levar para casa — eu disse, quando parei ao seu lado.
Droga, não era para sair assim. Ela continuou me ignorando, e quase fez sinal
para um carro, mas não era um táxi. Eu suspirei e tentei novamente. —
Abigail, eu posso levar você para casa?
— Vá se danar, eu nem te conheço — ela retrucou, irritação em seu
tom, e mesmo assim, não olhou para mim, a cabeça virada para o outro lado.
Eu senti um sorriso formando-se no meu rosto, e na mesma hora, a brisa fez
com que os longos cabelos dela se agitassem, fazendo-me sentir o aroma que
se desprendia deles. Maldição, ela era toda uma tentação.
— Você pode confiar em mim, eu sou...
— Não quero saber, e olha, afaste-se de mim, eu sou uma lástima
para escolher as minhas companhias. Não, melhor: você se adequa à
definição de lástima então, pode ficar aí. — Abigail devolveu acidamente as
minhas palavras de mais cedo, dignando-se a virar o rosto na minha direção,
agora.
E ela estava com raiva, as sobrancelhas lindas e delicadas franzidas,
e eu me perguntei se algo tinha acontecido lá dentro, com o namorado
paspalho. Passei a mão no meu cabelo e respirei fundo. Certo, ela tinha vindo
com as garras de fora também, e agora eu era o vilão da história toda, pelo
visto. Mas eu iria aceitar isso, apenas daquela vez.
— Escuta, peço desculpas pelo que disse antes, eu não queria
ofender você.
Silêncio. Fiquei mais próximo, perdido nos tons dourados dos seus
cabelos, em como eles ficavam sob as luzes da rua.
— Talvez eu tenha me expressado mal, e julgado você, mas estava
apenas tentando alertar você sobre os perigos de um lugar como esse aqui —
continuei, dando-me conta que eu dificilmente pedia desculpas por algo tão
rapidamente assim, como estava fazendo com ela, mas uma sensação absurda
de não querer vê-la irritada ou chateada estava tomando forma, e eu estava
indignado comigo mesmo por sentir-me assim, mas não pude evitar. Rangi os
dentes, frustrado. Ela ficou parada um instante, olhando para mim, então
resmungou algo, e eu não pude compreender o que ela disse. — O quê?
Novo resmungo, e dessa vez eu entendi claramente. Ela disse “chato
de galochas de merda”. Sim, ela tinha acabado de dizer que eu era
desagradável e inconveniente, no mínimo, se eu estava lembrando bem o que
aquela expressão significava. E eu senti uma vontade absurda de rir e... de
beijá-la. Olha o tamanho da merda na minha vida agora. Tive que refrear
aquele meu ímpeto, claro. Aquela garota era mais perigosa para a minha
estabilidade do que eu pensei que ela seria.

— O que aconteceu com o seu namorado, por que você desceu


sozinha? — eu quis saber, literalmente testando a minha sorte, depois que ela
finalmente entrou comigo no carro e aceitou que eu a levasse em casa.
Por um momento, achei que ela não viria comigo. O endereço que
ela deu não era exatamente uma parte da cidade em que eu costumava me
deslocar, a Tijuca, mas sabia onde era. Abigail — porque eu me recusava a
chamá-la daquele apelido ridículo de Aby — estava muito quieta, e eu notei
que ela estava olhando para o relógio discretamente, talvez preocupada com o
horário. Lembrei que o namorado havia dito algo sobre o “papai milico”.
— Ele resolveu ficar mais um pouco, mas eu já estava farta daquela
festa e tinha que vir embora de qualquer jeito. Ele quis ficar, eu quis sair. Só
isso — ela respondeu, quando eu pensei que ela não o faria mais.
Notei que Abigail, quando não estava com raiva, gostava de falar, o
que era bom para mim, mas era o meu completo oposto, já que eu apreciava
horas de silêncio e só me comunicava quando absolutamente necessário. Mas
era bom ouvi-la, e a curiosidade sobre ela vencendo a minha reserva
comunicativa habitual, também.
— Pensei que o seu... Daniel viria deixar você. É o que ele deveria
ter feito, trazer você para casa em segurança — teimei, entrando no agora no
bairro dela.
— Eu estou acostumada a andar sozinha, e se ele queria ficar lá, que
ficasse — ela retrucou, e eu tive certeza de que houve uma briga. Ótimo.
Bom, ótimo não, eu não tinha nada a ver com aquilo, mas era bom que ela
tivesse brigado com o idiota e saído sozinha. Por um momento, imaginei o
que ela diria se soubesse o que ele tinha dito mais cedo, mas aquilo soaria
como algo mesquinho de um cara querendo arruinar o relacionamento de
outro. Eu não faria aquilo.
— Tem alguma coisa a ver com o seu horário de chegar em casa?
Ela suspirou, olhando para fora, como se estivesse pensativa.
— Tem, mas eu não acho que terei problemas.
Aquilo chamou a minha atenção.
— Seus pais estão esperando você? — questionei, dando uma olhada
rápida para ela. Abigail não respondeu imediatamente. Apontou para à
esquerda, já na sua rua, eu fui me aproximando e diminuindo a velocidade.
Quando parei, virei-me para ela, em busca da resposta. Abigail tirou o cinto e
me encarou.
— Eles esperariam, se soubessem que eu saí — ela disse,
despreocupadamente.
— Você saiu o quê? Escondida dos seus pais?
Ela ergueu uma sobrancelha, e eu notei, tarde demais, que usei um
tom repreensivo e duro na pergunta. Merda. Era difícil evitar.
— Você nunca fez nada escondido dos seus pais? — ela revidou,
torcendo os lábios em uma expressão desdenhosa, como se achasse a mera
possibilidade daquilo impossível. Irritação e algo mais, inquietante,
estimulante, estavam correndo por meu corpo ao olhar para ela. Mas também
quis provocá-la.
— Acho que sim, talvez, quando eu tinha uns 12 anos de idade.
Ela fez uma expressão exasperada, mas sorriu muito de leve, como
quem sabia que estava sendo provocada, mas então tomou uma respiração
profunda e olhou para frente, como se perdida em pensamentos, e quando
voltou a me encarar estava séria.
— Vai me dizer que nunca quis fazer algo, sei lá, que fosse proibido,
que você sabe que não deveria fazer, mas não pode se impedir de burlar as
regras, de passar por cima do que é o certo, e simplesmente fazer, porque vale
a pena?
— Sim, nesse exato momento eu estou lidando com uma questão
assim — respondi, minha voz baixa, grave, meus olhos fixos em seus lábios,
como eu não pude impedir de fazer mais cedo, quando afastei aquele idiota
dela na porta do banheiro.
Ela empurrou uma mecha dourada para trás de uma orelha.
— Então, você deve saber que tem coisas que nós simplesmente
precisamos fazer.
— Você realmente acredita nisso? Acha que essa ideia é válida para
todas as circunstâncias?
Abigail ficou com os lábios entreabertos, olhando para mim como se
pensasse na questão, e eu senti a atmosfera no carro mudar.
Percebi que estava quase inconscientemente movendo-me na sua
direção, atraído para ela de uma forma que eu nem iria começar a tentar
entender naquele momento. E então ela afastou-se, como se estivesse com a
respiração ofegante, e fez um movimento para a porta do carro, com a
intenção de sair. Droga, a garota tinha um namorado. E eu também, claro,
não podia esquecer disso.
Rápido e sem pensar bem, estendi a mão e toquei seu ombro, e
Abigail parou, mas não se virou. Mais uma vez eu questionei as minhas
ações, o meu código moral era muito rígido para que eu estivesse fazendo
aquilo, mas a ideia de vê-la sair do meu carro e não ter a oportunidade de
nunca mais falar com ela, era angustiante naquele momento. Retirei a mão e
passei no meu cabelo, recostando a minha cabeça no banco do carro e
soltando um suspiro resignado.
— Obrigada, Otávio. Eu realmente agradeço a sua gentileza — ela
disse, virando-se rápido e saindo. E naquele momento, eu fiquei dividido
entre admirá-la por ter sido fiel e lamentar que ela não tenha cedido
exatamente a mesma ânsia que me dominava naquele instante. Eu abri a
minha porta e a segui.
A casa que ela tinha apontado era grande, mas parecia modesta,
pintada de branco, com um portão de ferro, e a frente estava às escuras. Eu só
estava me certificando que ela chegaria perfeitamente bem até as escadas que
eu vislumbrei antes da porta de madeira escura. Encontrei Abigail a meio
caminho do portão e ela parou.
— Não precisa agradecer, está tudo bem. Veja como um pedido de
desculpas pelo meu comportamento de "chato de galochas de merda" — eu
disse, as mãos nos bolsos, e se não tivesse um pouco mais escuro ali, eu
poderia dizer que ela tinha ficado um pouco envergonhada.
— Você está esperando um pedido de desculpas? Só para lembrar,
você começou a ser desagradável comigo gratuitamente.
Eu assenti, sabendo muito bem por que e sentindo-me um idiota. Ia
responder, mas ouvimos um barulho vindo da porta da frente, e alguém
estava saindo. Franzi a testa, atento, e Abigail sorriu.
— É a Andréa, a minha irmã. Claro que eu pedi que ela dormisse,
mas pelo jeito, ela resolveu me esperar entrar.
— Imaginei que pudesse ser o seu pai. Você não avisou que sairia,
não foi?
— De novo isso? O papai toma um remédio para dormir e
dificilmente... — O portão rangeu, e nós dois olhamos para a figura alta e
magra que estava se delineando lá.
— Abigail? Onde você estava até agora e quem está aí com você?
Bem, aquela não era a voz de uma irmã, e a expressão de puro terror
que tomou conta do rosto de Abigail me fez imediatamente aproximar-se
mais dela. Muito bem, eu tinha acabado de entrar em uma confusão maior do
que eu havia imaginado, e enquanto o homem de cara fechada e pijamas
azuis olhava para nós dois, desconfiado e irritado, eu concluí que o jogo
acabara de mudar, e talvez para algo bom... porque não importava como essa
noite fosse terminar, aquela garota seria minha.
Rio de Janeiro, 2018

— Você vai continuar sem falar comigo até quando, Abigail?


Eu parei por um segundo de massagear levemente a minha coxa,
onde eu estava passando hidratante agora, em movimentos lentos, sentada na
cama e olhando para frente, onde um quadro imenso tomava quase a metade
da nossa parede.
Era uma belíssima tela em tons de azul, com delicados salpicos
brancos e entremeadas de pontinhos quase lilás. Eu nunca cansaria de olhar
para aquela pintura, e era exatamente por isso que ela estava ali, no nosso
quarto. Olhar para ela sempre me emocionava de um jeito que eu quase não
saberia explicar.
Aquele quadro belíssimo e impactante, chamado Explosão de Cor,
havia sido pintado por uma linda menina de 4 anos na época que vivia no
Reino Unido e era portadora de um autismo severo[1]. Incapaz de falar ou de
se relacionar com outras pessoas, ela expressava-se através das pinceladas
dos quadros que pintava no quintal de casa. E que quadros!
Quando eu li sobre isso pela primeira vez, fiquei emocionada e
estarrecida, como o resto do mundo, afinal, aquelas telas possuíam uma
sensibilidade tão peculiar, ao mesmo tempo em que eram tão fortes, e não era
por menos que vários especialistas ao redor do mundo comparavam aquelas
pinturas às telas de Monet[2].
Quando completamos 37 anos de casados, Otávio havia me
presenteado com uma dessas telas, justamente a que eu achei mais linda,
aquela, em tons de azul. Enquanto eu chorava, abraçada a ele e murmurava
que o amava e o amaria para sempre, ele havia dito que eu me impressionara
com ela porque era azul, e que eu sempre havia sido balançada por tons de
azuis, como a cor dos seus próprios olhos. Agora, em silêncio olhando para
aquela tela, me permiti sorri levemente ao ouvir o tom exasperado e um
pouco triste da sua voz ao entrar no quarto.
— Eu estou falando com você. Não sei de onde você tirou isso —
respondi, voltando a pôr uma grande quantidade de hidratante nas mãos e
massageando os meus ombros e braços. Ainda assim, não me virei em sua
direção.
— Você está monossilábica e mal me dirige a palavra desde que
Diego saiu daqui depois da nossa... conversa na biblioteca. — Ouvi quando
ele soltou o ar longa e pesadamente, e percebi que agora ele estava mais
próximo de mim. Eu continuei a minha tarefa, não me dando ao trabalho de
responder. — O mais interessante de tudo é que eu tenho todos os motivos do
mundo para estar profundamente irritado com você, que simplesmente omitiu
de mim algo tão importante como a existência do filho de Diego. Meu Deus,
eu ainda estou atordoado com isso, para falar a verdade.
— E eu já te pedi desculpas por isso, e disse que eu não poderia
dizer nada já que nosso filho pediu, era uma questão de dias, Otávio, até que
ele estivesse pronto para te dizer. O que você queria que eu fizesse? Que me
recusasse a atender ao pedido dele e viesse correndo falar para você?
— Em nenhum momento você pensou que poderia estar traindo a
minha confiança? Você estava lá brincando com o menino enquanto eu não
sabia de nada, por favor. — A sua voz saiu chateada, mas controlada, como
da primeira vez que ele disse aquilo, assim que Diego, Diana e João haviam
ido embora e eu entrei para falara com ele, encontrando-o silencioso,
pensativo e zangado, bebendo uísque e ainda sentado na sua cadeira na
biblioteca.
Virei-me para ele, finalmente.
— Sim, eu pensei que poderia estar traindo a sua confiança. Mas
existem coisas na vida, decisões, escolhas, Otávio, que o peso delas na
balança da nossa consciência não é assim tão certo, concreto, como você acha
que é, principalmente quando isso envolve os nossos filhos. O que você teria
feito se eu viesse dizer? Como teria reagido quando visse a Diana entrar
aqui?
Ele ainda estava usando as roupas que havia chegado, eu não sabia
de onde e não tinha perguntado: uma camisa branca social e jeans escuro, e
estava em pé, as mãos nos bolsos da calça, olhando para mim com os olhos
azuis franzidos, as rugas ao redor dos seus olhos mais evidentes ainda.
— Eu talvez tivesse reagido como você.
Voltei a pegar o creme, bufando de descrença.
— Com certeza, porque é assim que você age, exatamente igual a
mim. Você teria procurado a moça e teria agido de uma forma que criaria um
problema maior com o nosso filho, você não percebe isso? Diego queria dizer
para você, eu não tinha o direito de passar por cima disso, mas... — Suspirei,
cansada. — É claro que isso não me fez bem, eu detestei, não gosto de
esconder coisas assim de você, mas, mais uma vez, há coisas que não são
preto e branco, existe um monte de sombra e nuances de cinza que nós temos
que levar em conta para tomar as nossas decisões.
— Eu percebi como você estava diferente esses dias.
— Então você sabe que não foi fácil esconder isso de você. A
existência do nosso neto... — Dizer aquilo ainda me fazia sorrir e me causava
emoções que eu estava só começando a entender. — Mas foi necessário, eu
precisava respeitar a forma como Diego queria fazer as coisas. E você não
pode culpá-lo por deduzir que você não reagiria bem.
Otávio sentou-se ao meu lado na cama, em silêncio por uns
instantes.
— Eu sei. E ainda assim você está com raiva de mim, como se eu
fosse o culpado da situação toda, quando eu deveria estar com raiva por ter
sido deixado de lado, enganado. O que você queria que eu fizesse?
Voltei a passar o hidratante na outra perna, agora mais
freneticamente, irritação surgindo.
— Não sei. Você está certo, nós somos diferentes, eu não posso te
obrigar a entender e ver as coisas da mesma forma que eu vejo. Mas de uma
coisa eu sei... — Engoli em seco e fechei o vidro com força. — Talvez ir
conhecer o seu neto lá fora, falar com ele, vê-lo, antes do seu filho sair daqui
levando-o, em vez de priorizar questões que dizem respeito a dinheiro, fosse
um bom começo.
Eu sei que estava sendo dura, e percebi pela forma que seu corpo
ficou tenso ao meu lado que Otávio tinha sido atingido pelo que eu havia
dito.
Sempre havia sido assim, eu amava aquele homem, muito, depois de
todos aqueles anos, e nunca havia encontrado um único motivo para duvidar
que fosse amada da mesma maneira, contudo, Otávio mantinha a sua
personalidade, assim como eu mantinha a minha, e amor, respeito e
companheirismo em quase 38 anos de casamento não queria dizer que os
conflitos, as brigas, as teimosias, não estivessem lá. Não nos afetasse.
De vez em quando uma queda de braço surgia no nosso caminho, e
ainda que eu ganhasse muitas — muitas mesmo — não significava que
aquele jeito dele não me deixasse louca. Ou que o meu jeito não o deixasse
louco vez ou outra. Casamento era isso, se alguém disse que era um mar de
rosas e uma beleza o tempo todo, mesmo quando havia amor, esse alguém
estava mentindo.
— Eu não esperava que Diego fosse embora logo em seguida — ele
admitiu, passando as mãos nos cabelos. — Pensei que ainda fôssemos nos
falar.
— Era uma festa, Otávio, vocês haviam discutido, Diego não sabia o
que você poderia dizer a Diana, ele está protegendo-a, está apaixonado por
ela, óbvio, só ainda não viu isso, e provavelmente como os dois cabeças
duras e teimosos como vocês dois são, nem você pediu que ele ficasse e nem
ele achou que deveria ficar. Que diabos, vocês são terríveis!
Respirei fundo e enfiei os dedos nos meus cabelos, fechando os
olhos.
— Não é todo dia que se descobre algo assim. Eu também estou... —
Ele cruzou os braços, depois retomou. — Eu também estou protegendo-o, é
assim que eu faço isso. Pode ser errado, mas é assim que eu sou. Alguém
precisa se preocupar com essas coisas.
— E que tal ele próprio? Diego tem 37 anos, outro dia você estava
me recriminando por querer me envolver na vida amorosa dele, agora acha
perfeitamente plausível achar que ele não é capaz de saber se uma mulher
está sendo sincera ou dando o golpe do baú nele?
— Você conversou com ela, não foi?
— Foi, e talvez nada do que ela tenha me dito, ou do que eu disse
para ela, importe para a forma como as coisas mais serão, para como o
mundo dos negócios ou do dinheiro funcione, mas eu sei que são importantes
para ela. Para mim. Para o meu filho e para o nosso neto. Se um dia você
quiser saber, eu posso te contar.
Otávio ficou calado, olhando para os sapatos pretos nos próprios pés.
— Tudo bem, eu sinto muito, você sabe o que faz, existem coisas
que eu não entendo no funcionamento da empresa, você não é obrigado a
confiar em Diana, claro, o próprio Diego está vivendo uma situação
complicada com isso, então, leve as coisas ao seu modo, eu entendo —
murmurei, e levantei-me para deixar o robe sobre a cadeira, ficando apenas
com a minha camisola branca e fina.
Eu entendia, claro, e talvez estivesse errada em ficar chateada por ele
não ter visto as coisas como eu via, mas ainda doía que ele não tivesse tido a
experiência que eu havia tido com João Pedro, e que Diego tivesse isso
embora sem que eles pudessem resolver aquilo. Tudo bem, o tempo existia
para aquilo mesmo, mas eu não podia deixar de ficar angustiada com isso.
— E ainda assim, você não está falando comigo, Abigail.
— Pelo amor de Deus, eu acabei de falar com você!
— Não é a mesma coisa, você continua chateada. Não gosto de te
ver assim.
Eu queria negar, dizer que não, mas estava com a emoção à flor da
pele, tensa, preocupada que aquela história toda pudesse afastar meu marido e
meu filho. E o pequeno João no meio de tudo. Naquele momento, talvez até
egoisticamente, eu estava com medo que Diana e Diego brigassem e se
afastassem um do outro. A ideia de que ela pudesse afastar-se novamente
com o meu neto revirava o meu estômago, causando-me uma sensação de
medo totalmente nova para mim.
Voltei-me, me curvei e afastei os cabelos que caíam um pouco sobre
a testa do meu marido teimoso, passando os dedos sobre as linhas de
expressão e as rugas charmosas que vincavam a sua pele ali. Como aquele
homem era bonito, e sexy, e a idade o deixava ainda mais charmoso, pensei.
E como eu o amava, também.
— Eu estou bem. Vou ficar bem — garanti, com sinceridade.
Ele fez que sim, segurou meu pulso e depositou um beijo ali, antes
de levantar-se e ir em direção ao banheiro. Só quando ele havia entrado, eu
finalmente me dei conta do que era que estava martelando a minha mente, um
detalhe ínfimo, pequeno, que o meu cérebro sempre atento havia registrado,
mas que só agora ficou claro para mim.
Onde diabos estava o relógio com o qual ele havia saído de casa?

Quando Otávio voltou para o quarto, eu estava deitada de lado,


quieta, e podia ouvir os sons que ele fazia ao movimentar-se por ali. Abrindo
o closet, talvez vestindo-se, mas a maioria dos seus passos eram abafados
pelo espesso tapete creme que recobria o ambiente.
Eu me mantive assim, até que ouvi a porta bater e soube que ele
havia saído do quarto. Suspirei, calmamente, pensando em tudo que havia
conversado com ele, e em como tudo aquilo também estava sendo para ele.
Talvez ele estivesse revivendo a nossa própria história, apesar de todas as
diferenças que existiam, e estivesse achando que nem sempre tudo acabava
como acabou para nós dois?
Momentos depois, notei que ele estava de volta, e estava quase
levantando-me para falar com ele, afinal, se eu não começasse as conversas,
ele nunca diria nada, quando ouvi as primeiras e inconfundíveis notas
daquela música espalhando-se pelo ambiente, saindo do sistema de som do
nosso quarto.
Na mesma hora, senti o meu peito acelerar, e um sorriso espalhar-se
pelo meu rosto. Saudades, nostalgia, e mais do que nunca, as razões pelas
quais eu o amava, apesar de tudo, apesar das nossas diferenças, alcançaram-
me e me aqueceram.
É, só tinha de ser com você: aquela música era a nossa música, e a
cadência, a melodia, tudo remetia aqueles momentos, o nosso início, quando
eu redimensionei o que queria da vida, e ele também, e tomamos a melhor
decisão que poderíamos ter tomado. Ele gostava mais da versão na voz de
Tom Jobim, e eu preferia com a voz de Elis Regina. Claro que agora, o som
que tomava o nosso quarto estava sendo a voz de Elis. Os versos tão
conhecidos tocaram a minha alma, e eu me vi cantarolando junto.
Quando eu me sentei na cama, Otávio estava de pé, duas taças de
vinho nas mãos, a garrafa no aparador ao lado. Ainda úmido do banho, ele
estava usando apenas a calça do seu pijama, o peito forte e coberto de pelos,
alguns cinzentos, como os seus cabelos, a barriga ainda muito firme, afinal,
ele mantinha um estilo e ritmo de vida absolutamente saudável e estava em
ótima forma para os seus 59 anos — eu que o diga, já que tinha muitas e
intensas provas da sua ótima forma ainda hoje.
— Eu não gosto de te ver assim, meu amor. Nunca suportei que você
estivesse com raiva de mim, você sabe — ele disse, bebendo um gole e
fazendo um gesto com a outra taça para mim. — Eu não sei o que é, mas isso
aconteceu desde a primeira vez.
— Eu lembro diferente. Acho que você me fez raiva, se me recordo
bem... algo como dizer que eu não sabia escolher minhas companhias, eu não
lembro mais das palavras exatas, já se foram tantos anos — revidei, sentando
na cama e me apoiando nos travesseiros, enquanto ele vinha ao meu
encontro. Seu cheiro imediatamente invadiu as minhas narinas, e eu suspirei,
recebendo a bebida das suas mãos.
— Ok, pode ser que eu tenha sido um pouco, vamos dizer, brusco.
Mas eu só estava com raiva porque você estava com aquele paspalho hippie.
De quem nós não iremos falar agora, a propósito. Nem nunca, esqueça que eu
sequer o mencionei. — Otávio determinou, sério, me fazendo rir. — E, além
disso, eu também fui chamado de chato e de outras coisas ofensivas que não
lembro mais.
— E mesmo assim...
— E mesmo assim, nunca mais consegui ficar longe de você,
loirinha.
— Certo, e agora você está tentando me conquistar com vinho e a
nossa música.
— Eu vou tentar te conquistar sempre, meu amor, mesmo quando
nós estivermos velhinhos, com nossos filhos e netos à nossa volta. Sempre.
Eu te prometi isso, não foi?
Olhamos um nos olhos do outro, solenemente, e rapidamente toda a
diversão foi embora, eu vi quando seus olhos ficaram subitamente sérios.
Ele esperou eu tomar um outro gole, então pegou a taça da minha
mão, e depositou ambas, a minha e a sua, sobre a mesinha ao seu lado. Estava
mais sério agora, quando me pegou pelos ombros, virando-me de frente para
ele, suas mãos grandes afagando minha pele na altura dos ombros.
— Abigail, eu...
— Antes disso, meu amor, só me responda uma coisa: onde está o
seu relógio? Aquele que você tanto gosta e que saiu usando hoje mais cedo?
Por que voltou sem ele?
Ele sorriu, passando um dedo pelo meu queixo.
— Pensei que estivesse com raiva de mim, não achei que fosse notar
esse detalhe.
— Coitado de você, querido. Quando eu estou com raiva, eu fico
mais atenta ainda aos pequenos detalhes. Onde está o seu relógio, Otávio?
Ele não perdeu o sorriso, e eu ergui uma sobrancelha, aguardando,
então ele afastou a alça da minha camisola do meu ombro, e aproximou-se
para depositar um beijo ali.
— Está com o nosso neto. Acho que ele pode ter herdado o gosto
dos Avellar de Barros para relógios caros e exclusivos — ele explicou, e eu
segurei seu rosto, espantada com a informação.
— Com o João? Onde você...
— Eu fui visitá-la, Abigail. Estive com a Diana mais cedo. E antes
que você ache que eu fiz uma merda, eu aviso logo, talvez tenha feito, mas
acho que foi melhor assim. No fim, foi uma visita muito proveitosa e
esclarecedora. Acho que posso dizer que agora estou tirando as minhas
próprias conclusões sobre essa moça.
— É sempre melhor assim, eu não disse isso a você?
— Sim, você me disse. Eu falei com Diego, está tudo bem, e conheci
o João... — Otávio sorriu, de um jeito deliciado e tão amplo como era raro
vê-lo fazer. Memórias antigas dele reagindo ao nascimento dos meninos,
décadas atrás, tomaram minha mente, e eu encostei a minha testa na dele, de
olhos fechados, emocionada. — Ele é maravilhoso, inteligente, fica tímido,
no início, mas depois ele fala tanto, de um jeito tão impressionante. Ele é tão
parecido com os meninos, claro que parece com o Diego, fisicamente, claro,
mas algo nele também me lembrou o Marcos, Abigail.
— É mesmo? Como assim? — Eu achei aquilo curioso.
— O jeito que ele fala, como parece ter facilidade para convencer as
pessoas do que ele quer, o charme, como se não estivesse fazendo aquilo,
sabe?
— Meu amor, você se deu conta que ele tem cinco anos? — Eu ri.
— Eu espero que você não já esteja maquinando planos para o futuro do
garoto.
Ele deu de ombros, e eu percebi que ele não negou, só sorriu.
— E claro, quando ele me disse que gostava de relógios, eu não
resisti.
— Otávio, seu doido, dá para o João abrir uma poupança com o
valor daquele relógio, ainda bem que Diego sabe disso!
— Eu espero que ele nunca venda. Se bem que, algo me diz que ele
não vai fazer isso — ele murmurou, e sorriu, afastando a outra alça, do outro
lado, meus seios quase expostos agora. — De todo modo, eu achei que
precisava fazer isso. Por mim mesmo, e por você, afinal, o que eu não faço
por você?
Sorri, e fechei os olhos enquanto ele segurava o meu rosto e tomava
meus lábios, ansioso, sua língua buscando a minha, depois beijava meus
ombros, meu pescoço, seu corpo pesando sobre o meu na cama macia,
quando ele deitou-se sobre mim, minha camisola descendo para a cintura.
Seu hálito morno no meu pescoço, aliado aos seus cabelos úmidos,
estavam deixando-me lânguida, meus sentidos entorpecidos. Seu cheiro era
tentador, delicioso, e Otávio manteve as mãos firmes nos meus quadris e
desceu com a boca molhada e experiente por meus seios, sugando de modo
lento, sem pressa, daquela forma devotada e paciente que ele sabia, adorando
o meu corpo e me excitando de formas que me surpreendiam. Aqueles pelos
da sua barba por fazer me arrepiavam, aumentando o meu desejo.
Senti sua ereção entre as minhas pernas abertas, pelo tecido fino da
sua calça, e isso me fez gemer e adentrar ainda mais naquele estado de desejo
e necessidade que eu estava. Depois de décadas, e na nossa idade, o sexo,
como todo o resto da nossa vida, foi algo que precisou ir adequando-se a
tudo: aos nossos corpos, às nossas novas disposições físicas e mentais, à
forma como o nosso desejo um pelo outro ia se transformando.
Desejo, aliás, passou a ser muito mais do que pressa, a urgência às
vezes foi sendo substituída por preliminares poderosas, a exploração
detalhada, com lábios, dentes e mãos era tão satisfatória hoje quanto uma
rapidinha forte e dura — nós ainda tínhamos daquilo, claro — mas a
excitação rápida e potente que antes poderia ser conseguida muito facilmente,
com os anos foram aperfeiçoadas para a busca de um clima de sensualidade,
a confiança e o conhecimento do nosso corpo nos dando alternativas a tudo
que a juventude que ia ficando para trás pudesse ter modificado.
De todo modo, sexo é muito mais que apenas penetração, ainda que
isso seja maravilhoso e essencial, a sexualidade é muito mais do que isso, o
nosso erotismo e excitação hoje era diferente, e tão bom quanto em outras
fases da nossa vida.
A excitação precisava ser construída de forma menos urgente, às
vezes... E as mãos e os lábios de Otávio estavam fazendo exatamente aquilo,
devorando e lambendo meu corpo, meus seios, minha barriga, como se
estivesse faminto por mim, como sempre... Arranhei as suas costas, devagar,
sentindo seus pelos na minha pele sensível, excitando-me ainda mais.
Ouvi quando ele gemeu, puxando a minha camisola para baixo
totalmente, de modo brusco, e de olhos fechados eu sorri. Ainda hoje, aquele
jeito impetuoso na cama estava ali, completamente diferente do seu habitual
jeito tranquilo. Senti quando sua língua me invadiu, em círculos lentos, e
puxei seus cabelos, contorcendo-me. Sem qualquer pressa, o que era ótimo
para mim, Otávio usava a sua língua para me conquistar, assim como a
música e o vinho, e ele era tão bom naquilo...
Nossas respirações estavam ofegantes, e eu arqueei o corpo,
sentindo-me ser deliciosamente lambida, cada vez mais perto de orgasmo.
Quando eu não aguentava mais, e ele sabia, subiu novamente pelo meu corpo,
voltando a beijar-me com paixão enquanto usava uma mão para livrar-se das
suas calças, movendo sua ereção de encontro a mim, seus beijos continuando
na minha mandíbula, uma mão enterrada nos meus cabelos. A música
tocando, a mescla de gostos e sabores nos meus lábios, do vinho, de Otávio, o
meu próprio gosto, me inebriaram, e quando ele me penetrou, firme,
segurando meu rosto, eu gemi em seus lábios, acompanhando as suas
investidas.
Logo eu estava ofegante, e segurei sua orelha com os dentes,
enquanto ele aprofundava o ritmo, levando-nos a novos níveis de excitação.
Apertei seus ombros ao sentir o orgasmo lentamente construído aproximar-
se, e quando senti o impacto poderoso, pude perceber que ele fazia aqueles
sons roucos ao meu ouvido, que me indicavam que ele também estava
perdendo o controle logo em seguida.
E então, ficamos assim, trêmulos um nos braços do outro, e eu abri
os olhos, sentindo seu peso e o seu olhos sobre mim, sua respiração ofegante.
— Eu amo você, loirinha — ele disse, a voz grave, afastando os
cabelos suados da minha testa. — Não sei por que, de repente estou
lembrando do dia que nos conhecemos, de quando enfrentei o seu pai, e
decidi que, dane-se tudo, você tinha que ser minha.
— Eu sei por que você está lembrando disso, meu amor, é porque
seus filhos são mais parecidos com você do que você imagina, ainda que
você não se dê conta disso sempre. Mas eu estou aqui para te lembrar dessas
coisas.
Ele não disse nada, mas apoiou a cabeça na minha testa.
— E eu também te amo — sussurrei, observando a tela à frente, seus
respingos brilhantes e azulados, suspirando de puro contentamento e
felicidade.
Rio De Janeiro, 1980

— Pai...
Merda... Não acredito, e agora? Como assim ele estava acordado
àquela hora, e ainda por cima, ali fora? O meu pai tomava um remédio por
causa de problemas de insônia, dormia muito cedo e acordava mais cedo
ainda todos os dias, por que diabos ele estava acordado agora? Justo hoje?
Respira e organiza o pensamento, Abigail, pensa... Pensa. Senti o
meu coração acelerar e engoli em seco, medo subido pela minha espinha
enquanto imaginava os cenários que poderiam surgir daquela situação,
tentando pensar rápido enquanto o meu pai, bem lentamente, vinha para fora,
para perto de nós dois.
Olhei para Otávio, que parecia ter se aproximado um pouco mais de
mim, e respirei fundo, tentando articular uma resposta boa o suficiente para
explicar aquilo para o meu pai.
— Eu realmente precisei sair, pai, e...
— Precisava sair? E está chegando agora? — o meu pai atalhou,
firme, mas olhava diretamente para Otávio, provavelmente tentando enxergar
melhor na luminosidade não tão boa assim da porta de casa, ao mesmo tempo
em que tentava descobrir quem ele era. — E acompanhada, pelo que vejo.
Não ia ser nada bom, aquilo ia dar uma merda das grandes, e eu
estava tentando pensar em milhões de coisas para sair daquela situação, mas
parecia que nada se encaixava. Eu era boa para sair de situações complicadas,
acabava me saindo bem e de algum jeito conseguia revertê-las. Havia
aprendido aquilo como um mecanismo de defesa, principalmente por conta
do meu pai e da forma como eu parecia estar sempre com problemas perto
dele, à medida em que eu crescia. Como eu ia me livrar daquilo?
Estava começando a pensar em simplesmente dizer a ele que havia
saído e enfrentar as consequências que eu sabia que viriam — a última vez
que desafiei uma ordem direta dele, ele quase havia me batido, o que não
aconteceu porque mamãe e Andréa interviram a meu favor — quando notei
que Otávio, sabe-se lá Deus por que, deu um passo à frente na direção do
meu pai.
— Boa noite, senhor.
— Pai, eu posso falar com o senhor lá dentro e explicar tudo — falei
quase ao mesmo tempo que Otávio, olhando entre um e outro. Além de tudo,
um pouco de vergonha estava me consumindo naquele momento por ter que
passar por aquela situação justamente na presença dele, que havia me
recriminado e tido uma imagem ruim de mim.
Mas parece que o meu pai não estava tão disposto assim a abrir mão
de saber quem era aquele rapaz ali comigo, como eu deveria ter imaginado.
— Abigail, falamos quando eu achar necessário, não se preocupe,
você vai me explicar tudo depois, sim. Agora, eu gostaria de saber quem é o
seu acompanhante.
Lancei um olhar alarmado para Otávio, tentando fazer por telepatia
com que ele olhasse para mim e eu pudesse tentar fazê-lo entender que ele
não precisaria passar por nenhum interrogatório desnecessário, aquele
problema era meu e ele só me dera uma carona, no entanto, ele simplesmente
focou em meu pai e me ignorou.
— Meu nome é Otávio, senhor, e gostaria de pedir desculpas pelo
horário em que a sua filha está chegando. — Ele então me encarou
rapidamente, e percebi que sua postura mudou, antes de retornar para o meu
pai. — A culpa é minha.
Olhei para ele em completo assombro, e eu fiquei lá encarando-o
boquiaberta, tentando entender o que ele pretendia com aquilo. Mas estava
muito claro, contudo, ele estava tentando claramente me ajudar ali,
envolvendo-se em algo que não lhe dizia respeito para não me deixar em uma
pior com o meu pai.
Um quase desconhecido, pensei, enquanto uma parte do meu cérebro
apontava que eu tinha um namorado, ainda que eu tivesse brigado com ele,
mas foi “aquele quase desconhecido” que havia me trazido em casa e estava
agora ali, encarando o meu pai e tentando me defender, e não Daniel.
Obriguei a minha mente a voltar para a questão seríssima ali na
minha frente e esquecer que por um momento, no carro, eu tive a nítida
impressão de que ele me beijaria... e eu me questiono se teria coragem de ter
permitido.
Meu pai cruzou os braços e assumiu aquela postura intimidante que
ele costumava usar com seus subordinados no quartel e inclusive conosco
dentro de casa.
— Se a culpa é sua pelo horário que a minha filha está chegando em
casa, meu rapaz, eu preciso saber os motivos, e também preciso saber mais
do que o seu primeiro nome — meu pai retrucou, agora definitivamente
dando um passo em direção a Otávio. Em seu favor, podia ser dito que ele
não recuara, apenas fizera aquilo que eu já o tinha visto fazer algumas vezes
naquela noite incomum: pôr as mãos nos bolsos da calça, e fazer um
assentimento curto com a cabeça, mais como de respeito do que de medo.
— Eu deveria ter trazido a Abigail mais cedo, ela pediu, mas eu tive
uns problemas com o carro e nos atrasamos. Ela não podia fazer nada quanto
a isso, sinto muito, não vai acontecer novamente — ele explicou, sucinto, sua
voz soando natural naquela mentira tão descarada. Ele não parecia o tipo de
mentir assim, e eu suspirei, ajeitando a minha bolsa no ombro e
aproximando-me um pouco mais dos dois.
— Ela poderia não ter saído sem o meu consentimento, para
começar — meu pai retorquiu, com a voz dura, olhando para mim, eu parei,
sentindo a raiva na sua voz. Fez-se silêncio repentino, pesado, e nem Otávio
disse nada. Eu precisava tirá-lo daquela situação urgentemente, mesmo que
ele estivesse sendo, novamente, um cavalheiro.
— Otávio, você não precisa... por favor, eu posso...
— Está tudo bem — ele me garantiu.
— Entre agora mesmo, eu falo com você amanhã, Abigail.
— Pai, você não está entendendo, o Otávio não é, quer dizer, ele só
me trouxe, ele não... — Jesus do céu, em que momento aquela noite tinha se
transformado naquele pesadelo? E por que ele não dizia nada? Olhei para
Otávio de olhos arregalados e ele só deu de ombros. Que tipo de louco ele
era? Meu pai podia muito bem achar que ele meu namor... espera aí. Será
que...?
— Você me ouviu, Abigail? Ou vou ter que repetir para você entrar?
Isso nem mesmo é hora de uma moça estar na porta, não me faça perder a
paciência com você!
Eu sabia reconhecer quando devia acatar a autoridade dele, ainda
mais estando errada, e por mais que não concordasse com sua postura ou seus
métodos, ele era meu pai e eu o amava, mesmo que vivesse a maior parte do
tempo ressentida com ele.
Respirei fundo, tentando imaginar o que aconteceria quando eu
saísse e passei pelos dois, não sem antes lançar mais um olhar para aquele
cara que de repente tinha atravessado a minha vida e eu não sabia por que
tudo estava indo de uma maneira completamente diferente quando eu saí de
casa aquela noite.
Enquanto eu atravessava o portão da minha casa, a contragosto,
curiosa, inquieta, preocupada e sim, impressionada com a atitude protetora de
Otávio, lembrei que meu pai nem mesmo conhecia Daniel, nós nos
encontrávamos quando eu saía para estudar na maioria das vezes. Ok, era um
namoro praticamente escondido, e ele sempre dizia que iria falar com o papai,
mas nunca realmente aconteceu e eu não me importava.
Eu estava começando a achar que se fosse o Daniel sob o foco da
atenção dura do meu pai agora, ele provavelmente teria ido embora o mais
rápido possível. Eu sempre achei que não ligasse muito para aquele tipo de
coisa, mas ao subir correndo as escadas para o quarto que dividia com a
minha irmã, notei que estava sorrindo feito uma boba, o coração acelerado,
apesar do medo do que poderia acontecer ali fora.

— Você ainda não me disse o seu nome — o pai de Abigail, que eu


nem mesmo sabia o nome, inclusive, manteve a expressão fechada ao me
questionar.
Estava escuro, a rua estava deserta, e eu não precisaria estar ali
sendo alvo do interrogatório de um pai furioso porque tinha sido enganado
pela filha simplesmente porque eu resolvi levá-la em casa. Respirei profunda
e pesadamente, porque eu ainda estava ali porque queria, simplesmente não
conseguia sair sem saber o que aconteceria com ela. Eu era um idiota, tinha
sido atingido por um raio ou algo do tipo, mas definitivamente não iria
analisar aquilo agora.
— Meu nome é Otávio Avellar de Barros, senhor.
Ele ficou quieto por uns segundos, como se absorvendo a
informação que eu lhe dera sobre a minha família, e eu aguardei. Era quase
impossível que ele não reconhecesse o nome, eu sabia, mas ele não fez
perguntas adicionais sobre isso. Em seus olhos, no entanto, eu percebi a
centelha de reconhecimento.
— Foi com você que a minha filha saiu daqui hoje mais cedo?
Porra, e agora? Se eu dissesse que sim, estaria antecipadamente
queimando-me com o homem, e eu não queria isso, foda-se tudo, eu não
queria, e se eu dissesse que não, a situação de Abigail poderia ficar muito
pior depois que eu saísse.
— Desculpe, mas queria saber se você pretende castigá-la de alguma
forma, antes de lhe dar essa informação. Não é necessário, ela não teve a
intenção de desobedecê-lo, apenas agiu sob impulso. — Certo, agora eu tinha
me transformado, além de em um mentiroso, em um idiota da boca grande e
sem controle, mas tinha que me inteirar daquilo.
— Eu conheço muito bem as filhas que tenho, meu jovem, e Abigail
com toda a certeza tinha a intenção de me desobedecer. Ela faria isso muito
mais, se eu permitisse. Mas sua preocupação é interessante, já que eu não te
conhecia e você continua sem me responder se levou ela daqui hoje.
Tomei a minha decisão naquele momento de uma forma que sempre
julguei que não faria nada na vida até ali, e como tinha acabado de dizer que
Abigail havia feito: sob impulso. Depois eu daria um jeito de lidar com ele. E
com ela.
— Sim, mas não sabia que ela não havia tido tempo de comunicar a
você. Quando ela contou do seu deslize, nós viemos imediatamente.
Tenho a ligeira impressão que menti mais naqueles minutos do que
nos últimos meses da minha vida, no mínimo.
— Então, você está me dizendo que é seu namorado e a levou
escondido de casa, em vez de vir me pedir para sair com a minha filha? É
isso?
Bom, aquilo só melhorava. Mas eu não era um mentiroso tão
descarado assim, e quando lembrei do verdadeiro namorado dela, irritação me
atravessou, mas eu não diria ao seu pai que quem a levou dali, o tal Daniel
era um escroto irresponsável que nem se deu ao trabalho de saber se ela
chegaria bem. Por ela, e por mim, eu não faria aquilo, mas também não
mentiria sobre.
— Não, não sou namorado dela. — Eu por pouco não disse “ainda”.
Era loucura demais, eu sabia disso.
— E se interessou apenas como amigo ao vir deixá-la em casa?
Seu tom era perigoso, mas eu disse que não mentiria mais aquela
noite.
— Não, não apenas como amigo, tenho que confessar. Eu ainda
estou aqui falando com o senhor, não estou? Acho que isso quer dizer alguma
coisa. — Resolvi testar a minha sorte, e tenho que admitir que engoli em seco
enquanto olhava para o rosto meio encoberto pela fraca luminosidade, já que
eu não podia distinguir todos os seus traços nitidamente.
Ele fez um som que soou como uma mistura de impaciência e
incredulidade, pelo menos foi o que achei, e começou a virar-se para entrar.
— Quer dizer alguma coisa, rapaz. E se eu voltar a ver você em
outra hora, não aqui no escuro no meio da rua, quer dizer que eu posso tentar
entender o que isso quer dizer — ele retrucou, baixo. Então, antes de
atravessar o portão, parou, mas nem chegou a virar-se. — Abigail está
proibida de sair de casa pela próxima semana, no mínimo, então, se você é o
jovem responsável que quer mostrar que é, vai achar um jeito de me
convencer que ela pode voltar a te ver. Se isso não lhe interessar dessa forma,
não quero mais ver você na minha porta, e nem perto dela, estamos
combinados?
E ele se foi deixando-me sozinho ali parado na rua e me
perguntando, mais uma vez, o que eu estava fazendo e o que aquela noite
implicaria no restante da minha vida. De uma coisa eu sabia, aquela não seria
a última vez que eu veria Abigail.
Eu estava no lucro.
Na verdade, fiquei terrivelmente surpresa pela reação do meu pai
não ter sido muito pior do que havia sido.
Na manhã seguinte, na mesa do café, ele falara duramente comigo,
praticamente cuspindo as palavras, e antes mesmo de começarmos a comer,
me dera um sermão que eu imaginei durar mais de uma hora: sobre a minha
rebeldia e falta de respeito às regras que ele estabelecia na casa dele, sobre
como eu não procurava o meu lugar de “moça de família”, e pretendia
começar a ficar falada pelos vizinhos. O de praxe. Além do mais, era sempre
assim: a casa dele, como se nós fôssemos apenas hóspedes indesejadas
morando ali. Apertei os lábios, doida para revidar, mas me mantive quieta
silenciosa, e ouvindo.
Ele destrinchou, então, um longo sermão sobre os valores morais e
como uma moça de família deveria efetivamente se comportar, o que eu
estava longe de ser, pelo visto; ameaçou me bater na próxima vez que algo
como o que acontecera voltasse a ser feito novamente e, por fim, me avisara
que além de ir às aulas do meu curso de Artes — que ao custo de muita briga
ele permitiu que eu fizesse, e vivia ameaçando me fazer abandonar — eu
estava terminantemente proibida de sair de casa naquela semana inteira. Nem
mesmo com a minha mãe Marta ou com Andréa.
Na verdade, ele passara bons minutos direcionando a sua raiva
também para a minha irmã, culpando-a por ter me deixado sair e alegando
que estava terrivelmente decepcionado com ela, o que era raro, visto que
Andréa era o exemplo de perfeição e comportamento irrepreensível que ele
sempre me indicara seguir e eu nuca consegui.
Nem conseguiria. Eu o interrompi alegando que a culpa não tinha
sido dela e ele quase teve um troço de raiva, as bochechas vermelhas, por
isso, proibindo-me de interrompê-lo e reiterando que Andréa me ajudasse a
“criar juízo”. Ela ficou calada, de cabeça baixa, e não emitiu um único som
de protesto, e eu me senti culpada por minhas ações serem despejadas sobre
ela assim.
Quando finalmente ele permitiu que comêssemos, não demorou três
minutos, minha irmã levantou, pedindo licença, rápido, e correu da mesa.
Antes que qualquer um tivesse qualquer reação, eu corri atrás e a encontrei
vomitando violentamente no banheiro. Ela disse que era só um mal-estar, e
depois voltamos à mesa, mas algo me dizia que vinham tempos nebulosos aí
pela frente.

Eu não pude evitar pensar em Otávio naqueles dias.


Curiosa, intrigada, já que meu pai não deu uma única palavra sobre o
que eles conversaram naquela noite, e eu não tinha coragem de perguntar,
não ia testar a minha sorte. A única coisa que perguntou, na verdade, foi onde
eu tinha conhecido o único filho de um dos homens mais ricos da nossa
cidade, talvez do Brasil. Não sei por que fiquei surpresa, ele tinha mesmo
toda a pinta de ser rico, e aquele carro que eu nem sabia o nome que ele já
dirigia, sendo tão jovem. Mas tão rico assim?!
Não era como se Daniel fosse um pobretão, muito pelo contrário,
mas mesmo ele não tinha um carro daqueles. Pensei que fosse um tipo de
teste do meu pai, que ele já havia perguntado a Otávio, e não sabia o que
responder, mas finalmente disse que o conheci na saída do festival — o que
era parte da verdade, já que eu não ia dizer que tinha ido a uma das famosas
“festas de apartamento” e ameaçar trazer toda a ira dele pra cima de mim
novamente.
Fui às aulas normalmente, e na saída, a minha mãe estava quase
sempre me esperando. Andréa esteve doente durante a semana toda,
indisposta, mal conseguia comer sem pôr tudo para fora. Aquilo tudo estava
me deixando cada dia mais preocupada, sem falar que eu não tive notícias de
Otávio naqueles dias, mas tudo bem, não era como se eu estivesse esperando
mesmo que ele fosse ser algum tipo de amigo, ou algo assim, ou fosse de
repente querer me ver de novo depois do encontro com o Sr. Heitor Andrade
e seus interrogatórios. Quem em sã consciência iria?
Mas o silêncio me deixou um pouco chateada. Só um pouco.
Daniel deu um jeito de furar o cerco e me encontrar na saída de uma
das aulas antes que eu encontrasse com a minha mãe.
— Vamos, boneca, não precisa ficar brava assim comigo. Você
chegou em casa e deu tudo certo, não deu?
Eu olhei para ele, mal acreditando. Ele sempre fora tão idiota assim e
eu não consegui perceber isso antes?
— Você sabe como eu cheguei em casa? Perguntou-se como eu
consegui essa proeza, sozinha, depois da meia-noite nesta cidade tão
perigosa? — Recuei quando ele tentou me beijar. Daniel suspirou, cansado.
— Eu disse a você que a gente ia se divertir, Aby, você resolveu sair
com raiva, quando eu vi, você não estava mais lá. O que você queria que eu
fizesse?
Talvez vir atrás de mim, saber se eu estava bem, do jeito que um
lindo e sério estranho que nunca havia me visto na vida resolveu fazer.
Por pirraça ou não, contei a ele exatamente o que tinha acontecido.
Tudo.
De Otávio me levando pra casa, a cena com meu pai, e de como ele
havia ficado lá, enfrentando-o para me proteger. Nunca pensei que fosse ficar
tão sensível a esse tipo de coisa, mas eu estava.
Daniel riu, de um jeito insolente, irônico. Nem um pouco
preocupado.
— Ah, por favor, princesa, não vai me dizer que você achou algo
remotamente interessante naquele bloco de concreto, pelo amor de Deus. O
cara parece ter 100 anos, chato pra cacete. Sem falar que, esqueça totalmente,
ele só estava sendo educado, você é linda, mas não o tipo de garota que um
herdeiro como Otávio iria querer algo sério... ele namora as meninas ricas,
mimadas e entediantes do círculo social dele.
Eu não retruquei, mas apertei os lábios. Provavelmente ele tinha
razão, mas eu não lhe daria o prazer de concordar com ele. E eu sabia, tinha
sentido algo diferente...
Para ser sincera, a minha raiva de Daniel não tinha diminuído, e
apesar do jeito doce, carinhoso, dos pedidos de desculpas por estar bêbado e
não ter me trazido em casa, eu comecei a me questionar mais do que nunca se
ele era o namorado que eu queria.
Se eu não estava, na verdade, projetando os meus anseios de uma
vida livre, diferente, em um símbolo, em uma miragem, em uma pessoa que
não era aquilo tudo que eu pensei que fosse. Talvez o fato de não o amar, de
não me sentir apaixonada, de não ir adiante com ele na cama, tivesse mais a
ver mais com isso, com esse pequeno freio mental que eu estava me impondo
e nem mesmo estava me dando conta.
Pedi que ele me desse um tempo para pensar, que as coisas não
estavam bem em casa e o meu pai estava na minha cola, que tinha descoberto
a minha “fuga” e queria saber inclusive com quem eu tinha saído de casa
naquela noite. Resolvi jogar com ele.
E isso bastou para que ele concordasse em me dar “uns dois dias”
para que eu resolvesse as minhas coisas e depois voltaria a me procurar.
Quando Daniel me beijou, rápido porque eu não permiti que ele continuasse,
eu pensei que estava fria o suficiente para nem mesmo sentir as emoções que
eu começara a sentir com ele antes. Questionei-me se ainda queria realmente
levar aquilo adiante.
Eu estava confusa, irritada, desassossegada, e mais uma vez eu
fiquei com aquela ligeira sensação de decepção ao vê-lo ir embora. Estava
observando coisas, detalhes, atitudes em Daniel, que nem mesmo me
importavam antes. Merda, tudo por conta de Otávio e aquele jeito dele de
cavalheiro da armadura brilhante, certinho, pomposo, que me irritava e me
intrigava ao mesmo tempo, e que eu nem mesmo me sentia inclinada a achar
legal.
Mas quando eu precisei, ele tinha estado lá. Talvez fosse só
educação, e eu não voltasse a vê-lo, certo, mas era o suficiente para me fazer
questionar se Daniel era o que eu realmente queria.
A semana terminou e as coisas só complicaram, em vez de melhorar.
Andréa não tinha melhorado nada da “indisposição”, pelo contrário, estava
pior, e um dia eu cheguei para encontrar a minha mãe gritando com ela no
quarto, desesperada, furiosa. A voz de Andréa estava alta, chorosa. O meu
instinto foi imediatamente ir lá protegê-la, mas mamãe fechou a porta do
quarto com violência na minha cara, alegando que nada daquilo era conversa
para mim.
Antes que ela fechasse, no entanto, eu vi que Franz, o noivo da
minha irmã, estava sentado à beira da cama, segurando a cabeça entre as
mãos. Eu não era nenhuma idiota, claro, e comprovei o que já desconfiava.
Andréa estava grávida, antes de casar-se, e aquilo seria uma bomba atômica
sobre ela. Sobre eles dois. Sobre todos nós, de algum jeito, porque o meu pai
ficaria transtornado.
Talvez ele ficasse furioso se fosse comigo, mas com ela... ah, com
ela seria um golpe muito mais profundo na alma dele. Tentei falar com
Andréa, mas naquela tarde ela e Franz ficaram sozinhos, e eu não quis
interromper.
Desse modo, minha cabeça estava um turbilhão quando eu vinha
saindo no dia seguinte àquela cena, segurando meus livros, distraída,
pensando que era só uma questão de tempo até o meu pai descobrir e tudo
que poderia acontecer. Então, quando eu virei o corredor que levava aos
portões do lado de fora da Fundação, tomei um susto imenso ao topar com
alguém parado bem na minha frente. Um homem.
Otávio.
Foi quase ridículo como o meu coração quase saltou pela boca
quando eu o vi ali parado à minha frente. Descobri que o impacto de olhar
para ele durante o dia era talvez até maior do que da última vez que o vi.
Aqueles olhos impressionantes estavam fixos em mim, ele me encarava com
o mínimo de sorriso nos lábios, enquanto eu levava a mão ao peito.
— Você quer me matar? Que susto!
— Olá, Abigail. Tudo bem com você?
A voz dele... Que saco. Por que tinha que ser tão macia e gostosa?
Observei-o enquanto ele também parecia me observar detidamente, daquele
jeito sério, concentrado. Eu sempre gostei de caras sorridentes, joviais, e
agora estava com o coração acelerado por aquele cara todo sisudo?
— Oi, tudo bem... O que você está fazendo aqui? — desconfiei, mas
eu sabia exatamente o que ele estava fazendo ali, de outro modo, por que eu
estava sentindo meu estômago revirando-se de ansiedade e a minha pulsação
acelerada? E a resposta dele fez essas sensações aumentarem.
— Eu vim ver você — Pessoas passavam por nós, conversando,
rindo, mas ficamos lá parados olhando um para o outro, até que ele
aproximou-se um pouco e apontou com um aceno curto de cabeça para os
poucos livros que eu trazia nas mãos. — Posso?
Ofereci os livros, lentamente, e ele pegou-os, tocando nas minhas
mãos no processo. Eu estava pensando em todas as implicações daquele “eu
vim ver você”.
— Como descobriu que eu estudo aqui? — Respirei fundo e
afastei-me um pouco para sairmos da passagem das pessoas, e ele me
acompanhou.
— Eu tenho meus meios, mas não foi difícil.
— E você levou uma semana inteira para isso? — retruquei, e quase
mordi a língua ao perceber como aquilo soaria. Como se eu estivesse
cobrando que ele viesse antes, que me procurasse antes... a minha língua,
Deus do céu, enorme como sempre. — Quer dizer, demorou para...
— A minha vontade era ter procurado você logo no dia seguinte —
ele interrompeu, uma leve sugestão de sorriso outra vez, como se tivesse
entendido exatamente o que eu queria dizer, seus olhos intensos. Então ele
pareceu suspirar. — E eu precisava resolver algumas coisas antes disso. E
tive uma semana muito, muito difícil.
Fiquei curiosa, e observei a ligeira tensão em seu rosto agora. Otávio
continuou:
— Mas de qualquer jeito, eu não gosto de iniciar nada com coisas
pela metade ao meu redor, não sei lidar com isso.
— Iniciar?
— Continuar, se você preferir. Continuar daquela noite.
— Por falar nisso, obrigada. Eu sei o que você tentou fazer.
— Eu não tentei, eu fiz. Quando eu quero, eu faço.
Eu não disse nada, mas senti meus batimentos cardíacos em
polvorosa e engoli em seco, olhando ao redor. Talvez os olhares que
estávamos recebendo, além dos óbvios femininos de apreciação, era que ele
não estava usando algo que sequer lembrasse a forma como os alunos ao
redor estavam vestidos.
Otávio vestia uma roupa formal, camisa e calça social, o que o fazia
parecer mais velho, talvez, ainda que as mangas da camisa estivessem
arregaçadas e ele não usasse gravata, era muito diferente do que eu
costumava ver. Um contraste e tanto comigo, por exemplo, que vestia jeans,
tênis e camisa de algodão vermelha simples. Ele deve ter notado meu
escrutínio, porque arqueou as sobrancelhas e olhou para as próprias roupas de
modo quase divertido.
— Eu estava no trabalho, vim direto pra cá. Você já está de saída?
— Estou. A minha mãe... está aí fora me esperando. — Suspirei,
contrariada.
Ele pareceu surpreendido.
— Sua mãe? Você costuma ser escoltada assim sempre ou... — Eu
olhei para ele, e Otávio franziu o cenho. — Ou isso é parte da punição e da
decisão do seu pai?
— Isso mesmo, estou proibida de sair de casa a não ser para as aulas,
e sempre saio com a minha mãe. Espera aí, o meu pai te contou sobre isso? O
que mais ele te disse?
— Garota curiosa... temos tempo para eu te contar tudo.
— Não temos não. A minha mãe deve estar chegando por aí, e ela
não está em um bom momento, então...
— Semana difícil também?
Por algum motivo, eu quis dizer a ele, falar um pouco.
Me encostei na parede e fechei os olhos brevemente, lembrando de
tudo daqueles últimos dias complicados, de cochichos, de sussurros da minha
mãe, de Andréa pelos cantos com o rosto vermelho e parecendo mais pálida
ainda do que o seu costumeiro tom de pele claríssimo e cabelos loiros muito
mais claros que os meus. Tinha certeza de que o meu pai achava que ela
estava gripada, ou alguma outra coisa, se não, o céu já teria desabado sobre as
nossas cabeças. E quando desabasse... Mamãe, então, estava mais rígida e
controladora comigo ainda, se fosse possível.
— Muito, muito difícil. Uma semana complicada — repeti as
palavras dele. — Acho que outra tentativa de algo parecido com o que fiz
naquele dia resultará em consequências catastróficas.
— Você pretende repetir aquilo, Abigail? Qual a necessidade? — ele
retrucou, o semblante fechado. Eu virei-me e o encarei, os olhos apertados.
— Eu não disse que pretendia repetir.
— Sim, porque seria uma atitude impensada e não acho que...
— Obrigada, mas eu dispenso seu sermão, já tive bastante disso esta
semana. E eu não disse que pretendia fugir de casa por uma noite, não farei
mais isso — informei-o, pensando comigo mesma que se tudo que eu estava
pensando acontecesse, era provável que a minha vida virasse um inferno tão
grande que a possibilidade de fugir por mais do que uma noite não seria uma
ideia tão absurda assim.
Respirei fundo, subitamente cansada de tudo. Ele aproximou-se e
tocou o meu rosto, arrependimento em suas feições.
— Eu não quis dizer que você faria isso, na verdade, prefiro que não
faça. Só complicaria a sua vida com o seu pai.
— A minha vida com o meu pai já é complicada o suficiente, e eu só
estava querendo respirar. Já expliquei isso.
— Tudo bem. Só não repita, para não ter que lidar com as
consequências como a que está tendo agora.
Aproximei-me mais dele, encarando-o de muito perto agora.
— Você acha que me arrependo de ter ido? Nem por um momento
— sussurrei, sem poder evitar a irritação. — Não tenho culpa se meu pai e
vários iguais a ele acham que eu sou um tipo de peça de bibelô, uma
propriedade que tem que passar intacta de uma mão para a outra, de um
homem para o outro, e que pra isso, eu preciso viver uma vida como se fosse
uma prisioneira, sem desejos, sem aspirações, sem querer outra coisa da vida
que não encontrar um bom marido escolhido por ele e viver como a minha
mãe... Não me arrependo. Mesmo que ele tivesse me batido, mesmo que me
proibisse de sair de casa por um ano... Vou ter as lembranças daquele festival
comigo, daquele momento, e isso basta pra mim.
Virei de novo e fiquei encarando as árvores mais ao longe, além do
muro baixo à nossa frente. Não percebi que ele tinha ficado muito quieto,
silencioso, até olhar para ele novamente e ver a tensão nos seus olhos e no
aperto da sua mandíbula.
— Ele bateu em você?
— Os pais batem nas suas filhas desobedientes, rebeldes, mesmo
que elas tenham 21 anos, Otávio, você não sabe como é isso — murmurei,
com sarcasmo, depois me arrependi. — Desculpa, você não precisa ouvir
isso. Eu não estou legal, é só.
— Ele bateu em você, Abigail? — Otávio repetiu, calmamente. Eu
engoli em seco e voltei a olhar de frente para ele.
— Não, não dessa vez — admiti. — Inclusive, fiquei surpresa. Algo
me diz que foi por sua causa, é só isso que posso imaginar.
Otávio usou a mão livre e afastou uma mecha do meu cabelo do
pescoço, provocando sensações deliciosas onde a ponta dos seus dedos
tocaram a minha pele. Então, segurou o meu queixo, sua respiração tocando
na minha boca.
— Eu posso não ser o cara mais mente aberta do mundo, e nem
achar que a vida se resume a sorrisinhos e andar despreocupado por aí, mas
eu te digo uma coisa: eu não acho que uma mulher tenha que ser uma
prisioneira, e mais importante de tudo, você acha que sabe o que a minha
aparência diz ao meu respeito, mas você não sabe. Eu sou muito mais do que
você vê. E Abigail — sua voz ficou mais baixa, muito mais próxima, seus
dedos agora em volta do meu pescoço. Eu quase fechei os olhos —, não acho
que uma mulher deve apanhar, nem do seu pai, nem do marido, nem de
ninguém. Não se deixe enganar pelo que vê na superfície, eu não compartilho
dessas ideias asquerosas.
— Tudo bem..., mas você fez isso comigo, olhou a superfície... não
foi? — Tentei soar menos séria e sorri para ele. Ele olhou para a minha boca,
e traçou com o dedo o contorno, fazendo-me estremecer.
— Só no primeiro momento... é justamente porque eu quero mais do
que isso, olhar sob a superfície, que estou aqui.
— O que você quer? — sussurrei, e ele, mais perto ainda, usou a
ponta da língua para lamber lentamente o meu lábio inferior, e eu
praticamente derreti, sentindo aquele toque molhado em várias partes do meu
corpo.
— Você. Eu quero você. Estou aqui, e não vou embora, porque esta
semana inteira, tudo que fiz, tudo que... tudo que mudei, foi porque não
conseguia me afastar da ideia de que quero você — Otávio disse, antes de
tomar a minha boca em um beijo que nada tinha de convencional, sério ou
frio. Foi escaldante.
Fechei os olhos e estremeci com a sensação da sua boca me
devorando. Ele degustou os meus lábios e provou a minha língua, enquanto
eu gemi abafado em sua boca, segurando o seu pescoço com as duas mãos,
tateando seus cabelos da nuca, ansiosa, a pressão do seu corpo firme, forte,
pressionado no meu...Senti meus livros deslizarem ao nosso lado e as suas
mãos apertarem a minha cintura, sua boca ainda firmemente sobre a minha
em um beijo abrasador.
Ouvi um burburinho ao nosso redor e algumas risadinhas de quem
passava, e Otávio se afastou a contragosto, relutante, seu sabor ainda
impregnado em mim. Seus olhos buscaram os meus, pesados.
— Eu falei com o seu pai esta semana, Abigail.
— O quê? Quando?
— Eu disse que tinha cosias para resolver. E eu também disse que
queria você, não foi?
Abigail estreitou aqueles olhos verde-claros e penetrantes e fixou-os
no meu rosto. Imediatamente senti a ligeira tensão que a tomou ao afastar-se
um pouco para longe de mim.
— Você falou com o meu pai sobre mim, encontrou com ele esta
semana e ainda assim não falou comigo sobre isso? — Quando ela perguntou,
eu notei na mesma hora que tinha um problema nas mãos. Droga, poderia ter
sido o jeito certo com o velho, mas parecia que definitivamente não era o
jeito certo com ela, e eu esperava não me ferrar com isso.
— Foi algo muito rápido.
— Onde?
É, tinha dado merda mesmo. Ela se afastou, pegou os livros da
minha mão e apertou os lábios. Eu ainda estava sob o impacto daquele beijo,
excitado e encantado, minha mente enevoada de tesão e algo muito mais
profundo que me ligava a ela de um modo que eu nunca tinha sentido antes.
Era besteira ignorar aquilo, eu tinha passado a semana em uma
loucura total, aguentando as brigas dos meus pais, ameaças de separação,
venda da empresa, pressão de todo lado, e tudo tinha degringolado quando eu
resolvi não ceder à pressão da minha mãe e da sua amiga, com o
consentimento irrestrito do meu pai, claro, para que eu marcasse a data do
meu noivado. Eu não costumava contrariá-los, mas aquilo não ia mais
acontecer.
Para minha sorte, Ellen parecia tão inclinada a casar comigo quanto
eu com ela, nossos pais tinham mais ânimo naquela relação do que nós dois,
pelo visto.
Junte a tudo isso a visita da amante do meu pai levando o filho deles,
avisando que iria morar na França (provavelmente com o dinheiro que o meu
pai tinha dado a ela para manter a boca fechada) e estava deixando o pequeno
Rui com ele, na nossa casa. Tinha sido um inferno. Em torno dessa confusão
toda, ela estava lá, na minha cabeça, tomando meus pensamentos, e a
conversa com o pai dela naquela noite, na rua.
— Onde você se encontrou com o meu pai?
— Na sua casa, ontem à noite, mas saímos para conversar logo
depois.
Eu vi o momento que as emoções transpassaram o seu rosto, mas
nem precisava analisar tanto assim, ela fez questão de dizer o que pensava na
minha cara.
— Por que isso? Por que tentar buscar a aprovação do meu pai antes
mesmo de falar comigo? — A forma como ela falou aquilo exalava aversão.
— Não foi assim, Abigail, não era essa a intenção. — Claro que não,
mas agora que eu via da perspectiva dela, era exatamente isso que parecia.
Respirei profundamente e tentei organizar as ideias. — Naquela noite, depois
que você entrou, ele disse que eu deveria procurá-lo e conversar novamente
com ele se quisesse ter alguma chance de me aproximar de você.
— Claro, e você simplesmente acatou, e lá vamos nós de novo
naquele velho ciclo de viver em função do que o meu pai quer e da forma
como ele decide a minha vida. Ele gostou de você? Aprovou você para mim?
— Ela deu um sorriso meio irônico, quase decepcionado, e eu estendi a mão
e toquei seu queixo, fazendo-a encarar-me novamente.
— Eu só estou fazendo as coisas de modo a não trazer problemas
para você, o que você preferia, que eu simplesmente fosse covarde o
suficiente para não encará-lo e não deixar claro o que eu pretendo com você?
Não quero que você ache que estou levando a opinião dele mais em conta,
mas é o jeito correto de fazer as coisas, é assim que eu ajo.
— E se ele negasse? E se dissesse que não quer você a dois passos
de mim, o que você faria, ainda iria querer convencê-lo ou simplesmente iria
embora e desistiria de falar comigo?
Franzi o cenho, muito sério.
— Esta não era uma opção.
— Mas e se fosse?
— Eu passaria por cima da opinião dele.
Ela lambeu os lábios, parecendo pensativa.
— Ele me perguntou onde eu o conheci, disse que você era filho de
um dos caras mais ricos desta cidade. — Ela parecia estar me testando,
provocando, olhando fixamente nos meus olhos. Aquilo era algo que me
encantava nela, aquela coragem que muitas jovens pareciam não ter, ainda
mais sendo criada da forma que eu imaginava bem que ela tinha sido. — Ele
te aprovou, então, se você está aqui, já que você só faz as coisas do modo
certo.
Parecia que ter a aprovação do pai de Abigail tinha acabado de me
jogar em uma categoria nada lisonjeira e eu precisava mudar aquele quadro.
— Eu não vou fingir que não estou feliz que ele tenha, de algum
modo, achado que eu poderia ver você. Se foi o nome da minha família, que
seja, não me importo, mas quero...
— Ele quer, você quer... só tome cuidado porque acho que você tem
que saber o que eu quero antes de tudo — Abigail avisou, e então olhou ao
longe, para fora, depois trouxe seus olhos novamente para mim. — A minha
mãe chegou, eu preciso ir, Otávio.
Desânimo parecia tomar conta dela, eu senti meu peito apertar.
Naquele momento, eu sabia, teria que adequar a minha forma de
agir, a minha inclinação a fazer o que eu imediatamente entendia como
“certo” para fazer o que fosse necessário, e mostrar a Abigail que apesar do
meu jeito, eu não era o seu pai, nunca seria. Algo me dizia que era
exatamente por isso que ela estava inclinada a tipos como Daniel.
— Podemos conversar novamente? Precisamos disso, falar mais com
você. E não esqueça, é a sua opinião que me importa sim, é o que você quer,
o que você precisa, eu só estou fazendo tudo de modo a não dificultar as
coisas para você na sua casa. Fingir que o seu pai não existe também não é
uma alternativa viável para mim — concluí, acariciando seu queixo com o
meu polegar, enquanto olhava em seus olhos.
Aquela conexão imediata, que me deixava desnorteado, eu não tinha
sentido com ninguém, e iria casar-me com uma garota que não fazia aquilo
comigo? Não agora que eu conhecia Abigail, não mesmo.
— Desculpe se foi a forma equivocada de agir, mas eu passei a
semana inteira pensando em você, querendo te ver, mas preferi respeitar o
que o seu pai disse, é diferente de fazer apenas o que ele quer.
Abigail respirou fundo, depois deu um ligeiro sorriso que pareceu
tocar o fundo da minha alma. Eu estava muito, muito ferrado com aquela
garota.
— Eu acho que você falou mais agora do que nos últimos meses da
sua vida, não?
E eu sorri, realmente sorri de verdade em uma mistura de alívio e
assombro com o que ela estava me fazendo sentir.
— Acho que sim.
— E sorriu também, estamos tendo progresso aqui, Sr. Chato de
Galochas.
— Você gosta de me provocar, não é?
— Alguém precisa fazer isso, senão você vai sempre achar que o
mundo gira ao seu redor... — Mais séria, ela continuou: — E não esqueça,
Otávio, eu também quero ter parte no que é discutido sobre mim, sempre.
Eu assenti, e pretendia levar aquilo como uma promessa. Gostei de
ouvi-la dizer “sempre”.
— Eu sei, farei isso. Sempre.
— E eu também posso ter pensado em você uma vez ou outra nesta
semana.
Quando ela se foi, depois que eu a beijei novamente, mal me
importando com quem estava ao redor, eu estava sorrindo, mais leve depois
de todos os problemas daquela semana, e nós decidimos que eu iria
novamente à sua procura. O fato de o seu pai ter me dado permissão para isso
era só um detalhe, acredito que convencer Abigail talvez fosse mais difícil.

Eu voltei a encontrar Abigail nas semanas seguintes.


Na verdade, fui à sua casa no mesmo dia à noite e de lá recebi
“autorização, termo que o seu pai fez questão de usar ao olhar para mim, para
levá-la para sair comigo sempre que podia, e apesar das nossas arestas
iniciais, a convivência, as conversas, iam aos poucos nos aproximando mais.
Eu estava certo. O seu jeito, a sua busca, a sua ânsia por quebrar as
regras e empurrar os limites era fruto justamente da maneira como era
tratada. Em todos os momentos, nós parecíamos divergir em tudo. E ela
nunca, nunca, ficava passiva e aceitava o que eu estava dizendo.
Era encantador, exasperante, irritante, maravilhoso. Me deixava
louco.
Eu sabia que não era o tipo de namorado que ela parecia preferir,
que não tinha as características do tipo que ela tinha resolvido definir para si
própria, mas eu estava empenhado em mostrar a ela que eu poderia ser muito
mais do que a minha aparência mostrava, eu poderia ser aquele cara que ela
sonhava.
Eu era, na verdade.
Ela parecia realmente me sacudir, me tirar do meu eixo, alargar as
minhas concepções. E me provocava, me fazia rir de mim mesmo, coisa que
raramente já tinha feito na vida. Bem, eu me levava a sério demais, nunca
tinha realmente rido de mim mesmo. Mas com ela, isso era fácil, fluía.
Abigail era um tornado, um farol de alegria e indisciplina ambulante, mas
estranhamente, estava se transformando no meu porto seguro.
Eu deixava de ser, com ela, aquele cara entediado com a vida que eu
sempre achei que fosse, e passei a iluminar-me a partir do seu brilho.
O clima na sua casa, no entanto, não era diferente do que havia se
instalado na minha própria, e o momento em que nos aproximamos não era
dos mais favoráveis. Meus pais ainda estavam chocados e furiosos pela
impossibilidade de juntar a nossa fortuna com a dos pais de Ellen, e ficaram
mais ainda quando descobriram que eu estava vendo outra pessoa. Eu disse a
eles que a apresentaria quando fosse conveniente para ela, não antes.
Um dos dias em que cheguei na casa de Abigail, o noivo da sua irmã
estava em uma discussão acirrada com o sogro, ânimos exaltados e
argumentos acalorados. Eu sabia, agora, que a irmã mais velha de Abigail,
que já iria se casar, estava grávida e isso enfureceu o pai de uma forma
terrível. Os dois decidiram morar juntos, e Abigail me disse que havia mesmo
a possibilidade de que eles fossem embora para a casa dos pais de Franz em
outra cidade.
E isso estava destruindo-a: ficar longe da irmã e do bebê, seu
sobrinho ou sobrinha, que estava vindo.
Naquela noite, eu voltei para casa para que ela pudesse ficar com
Andréa, e imaginava que a situação dela seria muito complicada se tivesse
que enfrentar, sozinha, a ira e o ressentimento do pai pelo que aconteceu com
a filha mais velha. Meu instinto de proteção estava a mil, e eu dividia meus
dias entre tomar de conta da empresa praticamente abandonada nas minhas
mãos pelo meu pai, e cair aos pés de Abigail a cada vez que eu a conhecia
mais.
E isso estava acontecendo em um ritmo vertiginoso.
Na minha casa, eu continuava sob fogo cerrado. De um lado,
enfrentando a animosidade da minha mãe, e do outro, a sobrecarga de
responsabilidades que o meu pai atribuiu a mim em função dos seus
problemas conjugais. A presença do garoto, meu meio-irmão Rui, não ajudou
em nada na retomada da paz entre eles. De certa forma, tudo isso pareceu nos
atrair ainda mais um para o outro, e quando eu a encontrava ao final de um
dia tenso, era como se tudo aquilo evaporasse e o meu mundo parecesse fazer
mais sentido.
— Ele não voltou a procurar você? — questionei, em uma noite em
que estávamos voltando para casa. Aquilo ainda martelava na minha cabeça,
o fato de que aquele cara pudesse estar de alguma forma interessado nela
ainda. Porque ele não a teria, nunca mais, não se dependesse de mim.
Abigail deu de ombros, parando um pouco antes de chegar ao portão
da sua casa e virando-se de frente para mim. Ela estava linda, como sempre,
com um dos seus vestidos um pouco mais curtos e os cabelos loiros soltos
pelos ombros. Era difícil manter as minhas mãos longe dela... e a boca, e tudo
o mais, mas eu tentava me controlar um pouco e ganhar a sua confiança antes
de avançar. Mas era difícil.
— Não, acho que ele cansou.
— Se ele cansou, não merecia você.
Ela pôs os braços em torno do meu pescoço e ficou na ponta dos pés,
sorrindo e encostando o seu corpo no meu, todas as suas curvas e
sinuosidades prensadas em mim. Era sempre assim, mesmo que ainda não
tivéssemos ido muito mais longe do que toques, carícias e beijos intensos,
Abigail não parecia tímida e nem recatada demais, como a própria Ellen era.
Às vezes eu simplesmente cerrava os dentes, e me obrigava a manter o meu
tesão sob um manto de comedimento, ou surtaria.
— Sempre dizendo a coisa certa, moço... — ela sussurrou de
encontro aos meus lábios, encostando o nariz ao meu e acariciando a minha
nuca.
Ainda não era tão fácil para Abigail acostumar-se comigo, e nos
pegávamos sempre discordando por quase tudo, tendo opiniões contrárias
sobre aspectos os mais diversos possíveis, inclusive música e política. Ela me
acusava de ser “metido”, conservador e de ver as coisas apenas sob o meu
ponto de vista privilegiado. Eu neguei muito no início, mas depois tive que
concordar com algumas coisas que ela dizia. Eu, por outro lado, a acusava de
ter uma visão excessivamente romântica e ingênua da vida, e ver as coisas
apenas sobre esse prisma. E às vezes ela também concordava comigo.
Ainda assim, desde o nosso primeiro beijo, ambos parecíamos entrar
em combustão quando nos tocávamos, e apesar da minha paciência, cada dia
mais eu a sentia relaxar e confiar em mim, sempre que estávamos prestes a ir
cada vez mais longe.
— Sempre dizendo o que eu realmente penso sobre você —
respondi, abraçando-a mais junto a mim e enfiando o rosto entre o seu ombro
e pescoço. Adorava o seu cheiro, adorava, droga, eu adorava tudo nela.
Mesmo quando ela me deixava louco, quando era teimosa e provocativa, e
quando me deixava morto de medo de não ser o suficiente para ela, de que de
repente, ela cansasse do meu jeito, me considerasse entediante demais e
buscasse alguém que pudesse ser mais parecido com o seu jeito alegre e
esfuziante.
O mero pensamento já me fazia estremecer. Beijei-a, como sempre
parecendo faminto por seu gosto, seu toque, e ela retribuiu a altura, ansiosa,
movendo as mãos pelo meu rosto e pelo meu cabelo.
Interrompi o beijo e busquei o ar. Estávamos na porta da sua casa,
protegidos pelo portão e pela noite, mas eu queria muito mais privacidade do
que aquilo com ela, e estava esperando a oportunidade certa. Abigail
encostou a testa no meu peito, muito quieta, depois de segundos em que eu
tentava controlar a respiração e domar a minha ereção latejante, ela levantou
a cabeça para mim.
— Eu não te disse antes, mas... os meus pais foram para a casa do
meu tio, e não voltam mais essa noite. Você quer subir comigo?
Se eu dissesse que passei todas as últimas horas das últimas semanas
pensando sobre quando dar aquele passo, sobre o momento certo, se já
confiava ou não em Otávio o suficiente para prosseguir com aquilo que
estava atormentando a minha mente (e outras partes do meu corpo também)
com toda a certeza eu estaria mentindo.
As sensações, os instintos, eram muito mais influentes comigo. Eu
poderia até pensar, raciocinar um pouco, mas na “hora h”, se algo me
dissesse, “não faz”, eu não fazia. Tinha sido assim com Daniel, chegávamos a
um ponto em que eu estava prestes a transar com ele, mas eu sempre parava,
encontrava um jeito de não prosseguir.
Eu mal estava conseguindo me segurar com Otávio.
Desde aquele primeiro beijo, eu sentia que estava quase pegando
fogo quando ele me tocava. Lembro que depois de algumas saídas e de um
tempo maior juntos, depois de uma sessão particularmente excitante de beijos
e toques, o tema da minha virgindade veio à tona. Qual não foi a minha
surpresa quando ele informou que sabia desse detalhe, e que havia descoberto
por um comentário cretino de Daniel naquela noite em que nos conhecemos.
Realmente, a sensação que eu tinha agora era de ter me livrado de
um falso e irresponsável que eu via sob uma capa de aventura e ousadia.
Claro que eu dei uns tapinhas em Otávio por não ter me contado antes, e ele,
para minha surpresa, revidou com um beijo sedento, forte, que me deixou
molhada e quente que só reforçou a decisão que eu já estava tomando...
Meus sentimentos, no entanto, eram outra questão... À medida em
que eu ia conhecendo-o, eu me pegava pensando se era o que eu queria. Se
aquela atração não era só porque ele era muito diferente dos meus poucos
namorados anteriores, o fascínio pelo desconhecido, pelo diferente. Mas os
dias foram passando... e seu toque, sua companhia, sua voz calma quando eu
sentia meu mundo girar, seus beijos, foram me mostrando que não era só
isso.
As coisas que ele me disse naquele dia na faculdade, a forma como
me tratava, como se eu fosse a coisa mais importante para ele, o modo como
vinha me apoiando com tudo na minha casa, e mesmo aquele jeito sério que
me irritava e me fazia querer sacudi-lo para tirar um pouco daquele ar de
nobre dos romances de época que a minha irmã lia... tudo isso em conjunto,
me atraía e me fazia ter mais certeza do que eu tive com o meu ex.
Não era lógico, mas fazia todo o sentido pra mim.
— Você acha que é prudente? E se eles voltarem antes? — ele
perguntou agora, em resposta ao meu convite ousado, bem baixinho, depois
de respirar profundamente e segurar o meu rosto com ambas as mãos,
acariciando minhas bochechas com seus polegares. Eu sentia a evidência da
sua excitação, sabia que ele estava sempre se segurando, controlando,
entendendo e respeitando o meu tempo, e isso me fazia ter mais certeza do
que eu estava propondo. Eu queria, e era com ele.
Fiquei novamente na ponta dos pés e apoiei-me completamente em
seu corpo para sussurrar em seu ouvido:
— Não é prudente, mas... — Passei a ponta da minha língua pelo
contorno do lóbulo da sua orelha, e depois segurei entre os lábios
rapidamente, antes de me afastar de novo. — Você só faz o que é prudente?
Observei quando Otávio fechou os olhos com força, cerrou os
punhos e sussurrou coisas como “minha perdição” e “loucura”, e eu sorri,
afastando-me um pouco mais quando ele quis me segurar novamente.
— Abigail... não me tente.
— Podemos apenas conversar.
— Eu não vou querer apenas conversar se eu for para o seu quarto.
Por que você acha que eu nunca quis ir lá?
Engoli em seco e me afastei mais um passo, excitação e um
pouquinho de medo percorrendo a minha pele. Ele ficou parado, olhando para
mim, imóvel, como se estivesse lutando uma batalha interna.
— Eu vou entrar, e vou para o meu quarto. Você vem aqui quase
todos os dias, acho que encontra o caminho... se você quiser — retruquei,
dando as costas para ele e indo abrir o portão.
Sentia o meu coração aos pulos, acelerado, mas não podia evitar o
sorriso em meus lábios. Será que ele viria? Não precisei olhar para trás, senti
quando Otávio encostou o corpo no meu, e eu suspirei, sentindo-me arrepiar
quando ele espalmou a mão na minha barriga de modo firme e falou com os
lábios colados ao meu ouvido, como eu tinha acabado de fazer com ele.
— Eu vou com você.

Assim que ele fechou a porta e ficou encostado nela, eu senti a


minha provocação e coragem vacilar por um momento. Olhei para Otávio de
pé ali, e por mais que ele fosse apenas um ano mais velho que eu, já era
muito mais experiente, eles quase sempre eram, não?
Ignorando o retumbar constante do meu coração, tirei as minhas
sandálias e tentei ficar mais à vontade, como se eu simplesmente não tivesse
convidado o meu namorado — porque ele era o meu namorado agora — para
vir ao meu quarto quando os meus pais não estavam em casa. E nem a minha
irmã, que tinha ido para casa do noivo e não voltaria o final de semana
inteiro.
Ele estava olhando em volta, um sorriso discreto no rosto, e
enquanto eu sentei-me na cama e pus o queixo nas mãos, Otávio foi até o
canto, onde em uma mesinha eu guardava um toca-discos, uma raridade,
levando-se em conta que meu pai não queria que nós ouvíssemos algumas
músicas. Eu, Andréa e mamãe o convencemos, a muito custo, afirmando que
ouviríamos o que ele comprasse, se nos deixasse ter o nosso.
Otávio pegou um desses discos comprado pelo meu pai, um
fascículo de uma revista que vinha com um LP dentro.
— Mozart? — Ele ergueu uma sobrancelha de modo inquisitivo.
— Sim, você acha que eu não tenho cara de quem ouve música
clássica? — provoquei, fingindo seriedade. E também porque eu sentia um
prazer especial em provocá-lo, era inevitável. Eu descobri que amava mexer
com ele.
— Não é isso, meu bem...
— Eu estou provocando você, seu bobo. Mozart é muito bom, aliás,
o meu pai nos deu para ouvir, mas... por via das dúvidas, Elis, Raul, Chico e
Caetano estão escondidos bem aqui, onde ele não pode ver — cochichei, e
dei batidinhas no meu colchão, piscando para ele, que deu uma risada alta e
veio ao meu encontro.
Quando Otávio sentou-se ao meu lado, bem devagar, nós viramos
para ficar de frente um para o outro, e nesse encontro de olhares, a
brincadeira se foi. Ele afastou os meus cabelos para trás, tocando meus
ombros, seu olhar firme me aquecendo, me dando confiança e me fazendo
estremecer de antecipação, tudo ao mesmo tempo.
— Você é fascinante. É toda a alegria que estava faltando na
minha vida, eu já te disse isso? — ele perguntou, solenemente, e eu fiz que
não, sem conseguir falar, tocada com a forma como ele me encarava e seu
olhar me dizia que ele estava sendo sincero. Eu podia sentir que sim. Estendi
a mão e toquei seu rosto, passei os dedos por seus lábios, toquei seus cabelos.
Havia uma necessidade de tocá-lo despertando em mim, e eu apenas segui os
meus instintos e fiz exatamente isso: deslizei os dedos por seu pescoço e
desci em direção aos primeiros botões da sua camisa.
E ele me beijou.
E diferente dos outros beijos, este parecia queimar meus lábios e
espalhar-se por todo o meu corpo ao mesmo tempo, como um rastro de
pólvora. Era uma mescla de desejo sexual que eu reconhecia bem, e uma
emoção intensa e desconhecida que me fazia simplesmente atender aos apelos
desenfreados do meu corpo. E do meu coração.
Nossos lábios estavam conectados, e a intensidade do beijo mudou,
de uma ânsia quase desesperada para um toque de desejo e calma. Senti
quando suas mãos afastaram o meu vestido pelos ombros, delicadamente, e
ele separou nossos lábios para respirar pesadamente.
— Você tem certeza? — Otávio murmurou. — Eu não quero...
— Shhhh... — Pus o indicador em seus lábios, silenciando-o. —
Você me prometeu levar em conta o que eu quero, lembra? — Ele assentiu,
e eu ignorei o martelar alucinante do meu coração, a apreensão misturada
com o desejo, e eu mesma desci o restante do meu vestido pelos braços, sem
desviar o olhar do dele. Tive que me esforçar para que minha voz saísse. — E
eu quero você. Se eu sou toda a alegria que estava faltando na sua vida... você
é toda a força e equilíbrio que estava faltando na minha.
Otávio manteve os olhos fixos no meu rosto, até que ele desceu o
olhar escaldante e varreu meus seios sob o sutiã branco simples que eu usava.
E então, palavras foram desnecessárias. Nossas bocas voltaram a unir-se,
nossas línguas procurando uma a outra, enquanto ele me puxava e me
carregava no colo, levantando e me depositando no meio da minha cama, que
agora me parecia pequena demais para nós dois. Mas não importava. Nada
mais passou a importar enquanto ele beijava, murmurava que eu era linda e
pedia que eu confiasse nele.
Quando nos livramos do meu vestido, do meu sutiã e sua boca
alcançou meus seios, eu não pude evitar os gemidos que me escapavam, e
nem deixar de notar os sons roucos, excitados, graves e muito masculinos, de
apreciação que ele fazia à medida que explorava a minha pele.
Eu o tocava, também, buscava sentir seus músculos sob os meus
dedos, sondando, descobrindo-o como eu queria descobrir há dias... Sem a
camisa agora, seus pelos macios provocavam sensações deliciosas em mim.
Seus lábios percorreram uma trilha pelo meu corpo inteiro, incendiando-me, e
eu gemi mais ainda quando senti que ele puxava com os lábios os meus
mamilos de modo delicado, depois aplicando uma pressão maior nos bicos
duros e sensíveis. E como ele era hábil nisso...
— Linda, você é linda... mais do que eu poderia sonhar — ele
sussurrava, intercalando essas palavras com seus beijos. Nossas roupas foram
sendo descartadas, mas sem pressa, Otávio agia como se estivesse me
degustando e não queria ser apressado nisso. Eu estava apreciando, mais
excitada do que já estive antes, ainda que lá na minha mente questões como:
vai doer muito? Eu vou sangrar ou não? Esses pensamentos embaralhavam-se
na minha cabeça, enquanto o meu corpo estava sendo completamente
distraído por dedos, lábios...
— Abigail... — Sua voz grave e entrecortada pela respiração
ofegante saiu abafada, já que ele tinha acabado de pousar a testa na minha
barriga. Enfiei os dedos em seus cabelos macios e escuros e arquei meu corpo
de encontro ao seu. Suas mãos seguravam firme a minha cintura, apertando
um pouco, e eu busquei seu olhar, levantando o corpo.
Com os cabelos desgrenhados e os olhos enevoados de desejo e algo
mais, preocupação, talvez, ele nunca me pareceu tão bonito quanto agora. As
próximas coisas que me disse me deram certeza de que ele também estava
tenso.
— Vou proteger você, imagino que você não use a pílula... certo?
Eu sabia que algumas mulheres tinham começado a usar, há anos, na
verdade, mesmo algumas virgens. De vez em quando conversava com
algumas colegas sobre isso, mas eu não estava entre as que usavam. A
intenção, claro, era usar assim que a minha vida sexual iniciasse, e parece que
agora uma coisa iria acontecer antes da outra, pelo visto...
Eu e Otávio tínhamos conversado um pouco sobre isso uma vez, e eu
havia confessado que sempre imaginei não ter filhos tão cedo, queria
aproveitar mais a minha vida antes de um passo tão definitivo.
Olhei em seus olhos e fiz que não, e ele assentiu, lentamente, antes
de beijar a região do meu umbigo. Voltei a segurá-lo pelos ombros, enquanto
ele continuava sua descida enlouquecedora. Eu murmurava seu nome e o
ouvia dizer palavras de conforto, elogiando meu corpo, dizendo que eu era
linda, que ele iria me amar como eu merecia... Estava tomada de emoções
que me inundavam: excitação sexual e outras coisas mais profundas, que me
faziam querer chorar, e ali, tocando-o, deixando-o retirar totalmente as
minhas roupas e abrir as minhas pernas com um cuidado quase devotado, eu
soube. Era mais do que um interesse passageiro, e aquele momento estava
sendo muito mais do que eu pensei que seria.
— Relaxa, meu amor... eu vou cuidar de você... — ele sussurrava o
tempo todo, a voz soando quase hipnótica para mim. Relaxar
completamente? Não, mas o prazer estava me distraindo e me deixando mais
receptiva, sensibilizada, ansiando por acabar com aquela agonia deliciosa. —
Vou tentar não te machucar, eu prometo, meu amor.
Senti sua língua circular meu clitóris, traçar meus contornos mais
íntimos, saborear, invadir, me torturar, e segurei firme em seus ombros, quase
saindo da cama se ele não me mantivesse presa com uma mão espalmada
sobre a minha barriga.
Nossos gemidos, sussurros e palavras entrecortadas enchiam o meu
quarto, atravessando a minha consciência apenas parcialmente, todo o resto
era uma mistura das sensações que ele provocava e do turbilhão de
pensamentos que me assolavam. A racionalidade perdeu quando ele me fez
alcançar o orgasmo em uma intensidade que me fez provavelmente arranhá-lo
nos ombros, e um som que mal associei a mim subiu por minha garganta
enquanto prazer me consumia.
Otávio voltou a subir com beijos pelas minhas costelas, parecendo
um pouco menos calmo agora, e eu percebi que ele estava tocando-se, pondo
o preservativo, e eu não podia desviar o olhar. Seus olhos pareciam mais do
que nunca me queimarem enquanto fazia aquilo e me olhava. Minha nossa...
era agora, eu tentava não pensar no tamanho que estava me cutucando, muito
duro, afinal eu não tinha tanta experiência assim, mas não se parecia em nada
com um dos pequenos, como eu e as meninas costumávamos conversar.
Engoli em seco e tentei me concentrar em seus beijos e carícias, na
sua voz me dizendo que ia ser paciente, que ia ser gentil, nas suas mãos
massageando meus seios, seus dentes raspando no meu ombro.
— Meu amor, vai doer..., mas prometo que vai melhorar das
próximas vezes.
— Olha o que você está prometendo... — Ainda tive a presença de
espírito de provocá-lo, e senti quando ele sorriu de encontro ao meu pescoço,
então deu um chupão que me fez arfar. Provavelmente aquilo deixaria uma
marca, não? Dias de blusas de gola alta, pelo jeito.
— Eu sei exatamente o que estou prometendo. Essa é a primeira de
muitas, e muitas, e muitas vezes... — Sua voz baixou e ele então fixou os
olhos nos meus, sua testa encostada na minha e sua respiração quente na
minha boca. — Muitas. Incontáveis vezes em que eu vou satisfazer você.
Completamente.
Eu gostei daquela promessa. Muito.
— Se estiver doendo muito, eu paro, até você se acostumar, tudo
bem? Me avise.
E a voz para responder agora? Acenei positivamente, engolindo em
seco, meu nariz encostado ao dele. Às vezes que eu havia me tocado, sentido
meu corpo, ajudaram a me deixar menos tensa, mas não completamente
relaxada. Aquilo era completamente diferente.
Senti que Otávio esticou a mão entre nós e começou a me acariciar,
um dedo esfregando a minha umidade, devagar, mas sem me dar trégua.
Dedos me deixando mais molhada, enquanto introduzia a língua na minha
boca e o corpo me pressionando. Respirei fundo quando ele voltou a me
olhar, buscando minha aprovação. Dei-a em forma de um beijo trêmulo em
seus lábios.
Otávio posicionou seu corpo e encostou a testa na minha, maxilar
cerrado, o peito movendo-se em respirações rápidas, curtas, e mesmo com
toda a excitação e desejo que varria o meu corpo, eu fiquei subitamente tensa.
Senti e me retesei quando ele começou a me penetrar, lentamente. Ele me
beijou, tomou a minha boca, e ao mesmo tempo em que introduziu a língua
entre meus lábios, foi afundando um pouquinho mais em mim. E eu apartei
seus ombros, olhos fechados, tentando respirar fundo.
— Calma, meu amor... calma... — Dentes cerrados, ele parou,
espalhou beijos na minha mandíbula e na minha testa, mas estava, ainda
assim, entrando mais. Céus, não tinha terminado? Eu o queria dentro de mim,
mas senti que ele estava me alargando, a queimação, a pressão. Fechei os
olhos, concentrei na minha respiração e toquei seus cabelos, e Otávio voltou
a me beijar profundamente. Mordi seu lábio e ele pareceu afundar
completamente em mim agora. Eu retesei meu corpo e ele chamou meu
nome, baixinho.
E doeu. Eu dei um grito abafado e mordi um pouco seu ombro. Era
mais como uma queimação súbita, a sensação de estar sendo alargada, cheia.
Ainda assim, a dor não era absurda como eu pensei que fosse, estava
ardendo um pouco apenas, e eu sentia uma mescla de emoções que pareciam
mais potentes. Enquanto ele estava dentro de mim, parado, sussurrando que
não queria me machucar, me beijando e me pedindo para relaxar, eu senti que
aquele momento era perfeito.
Com dor, com desejo, com ele...
Os cotovelos enfiados no colchão, seus próprios músculos retesados,
Otávio estava suando, tensão dominando seu corpo inteiro, e percebi... ele
estava realmente esperando que eu o deixasse continuar, praticamente sem
mover-se dentro do meu corpo. Eu não poderia ter encontrado alguém mais
perfeito para aquele momento, e senti meus olhos marejarem, e um sorriso
que era riso e choro aflorar no meu rosto. Passei a me movimentar, me
ajustando às novas sensações, enquanto a dor passava aos poucos, ele
também passou a mover-se, então, respirando aliviado, soltando o ar em um
suspiro quase agoniado, devagar, em um ritmo lento, mas depois foi
aumentando à medida que o meu desconforto foi ficando menor.
Passamos a nos mover em um ritmo mais harmônico, nossos lábios
juntos, a pequena dor em um tom menor no conjunto completo das sensações,
muito menos intensa que a simbologia de tê-lo dentro de mim, de ter nossos
corpos conectados da forma mais íntima que havia, nossas peles úmidas de
suor, deslizando uma na outra, nossas respirações sopradas nos lábios um do
outro, meus seios esmagados em seu peito, seus quadris estreitos movendo-se
entre as minhas pernas... e meu coração batendo forte junto ao dele, como
algo me dizia que ainda faríamos muitas, muitas e incontáveis vezes.
— Você parece ainda mais bonita aqui, no meio de todas essas obras
de arte.
Abigail olhou para mim lentamente, os olhos brilhando e um sorriso
de deleite nos lábios. Quando ela sorria assim, me fazia lembrar exatamente
porque ela havia me deixado aos seus pés com aquele sorriso, meses atrás,
quando olhou para mim pela primeira vez e sorriu ao ser apresentada. Ou
teria sido quando ela puxou a minha jaqueta e exigiu que eu deixasse de ser
um idiota mal-humorado (e ciumento, hoje eu podia admitir)?
Não importava, aquela noite tinha alterado completamente o rumo
da minha vida, já que eu havia conhecido a mulher que eu amava. Não, não
havia a menor dúvida disso. E mesmo com o meu jeito retraído, não havia
passado um único dia desde a primeira vez que eu admiti isso, que eu não a
lembrasse desse detalhe.
Ela estava encantada em meio ao conjunto de obras impressionistas.
Parecia em um tipo de névoa, olhando ao redor, para aquelas pinturas
magníficas e objetos de estilo imperial. Eu, por outro lado, não podia deixar
de sorrir embevecido e satisfeito ao observá-la ali.
— Otávio, como você pode achar algo mais bonito que isso estando
aqui? — ela sussurrou, abrindo os braços em um gesto amplo e olhando ao
redor, onde algumas das telas mais importantes e caras do mundo, de um dos
artistas mais genais de todos os tempos, estavam dispostas naquela ala.
Estávamos agora diante do quadro, Impressão, Nascer do Sol, uma das telas
mais importantes de Claude Monet, obra símbolo do Impressionismo.
Eu sabia que a visita ao Museu Marmottan Monet, uma antiga
mansão de aspecto imponente em um bairro elegante de Paris onde estavam
algumas obras do pintor impressionista, faria aquilo com ela, e estava feliz
por poder comtemplar o seu deslumbramento e felicidade em volta de todas
aquelas obras do seu pintor favorito.
Aproximei-me e toquei seu rosto com meu polegar.
— Monet que me perdoe, o Nascer do Sol é lindo, mas nem se
compara a você.
— Mon Dieu! — Ela fez um trejeito com os lábios em um biquinho
adorável, me fazendo sorrir como ela sempre fazia. — Você está mais sedutor
que o habitual. É o clima francês?
— Talvez. Ou talvez seja o fato de eu estar perdidamente
apaixonado pela mulher mais linda e exuberante do mundo. Mas digamos que
o romantismo de Paris tenha me contagiado um pouco, sim.
— Oui, monsieur, você sabe que também estou apaixonada pelo
homem mais lindo do mundo. — Ela deu uma piscadinha, e eu sabia que
vinha provocação de alguma forma. — Mesmo que ele seja mandão, mesmo
que ele deixe os funcionários do hotel loucos, e mesmo que ele encontre
motivos para reclamar de coisas em Paris, na França! Mesmo assim, eu sou
perdidamente apaixonada por ele, fazer o quê?
Abigail estava no seu período de férias, e eu tive a ideia de trazê-la a
Paris para passarmos uma semana, apenas para comemorar os quase seis
meses que estávamos juntos agora. Claro que eu já iniciei o pedido afirmando
que a nossa primeira parada seria o Louvre só para o caso de ela pensar em
recusar. Ela não recusou, graças a Deus, contudo, a nossa primeira parada
não foi no Louvre, mas de algumas horas muito proveitosas no quarto do
elegante hotel que eu reservei para a nossa estada, e por isso resolvemos fazer
a visita à noite.
Não foi fácil me desligar das responsabilidades da empresa, mas eu
tinha outras prioridades agora, e mesmo com mamãe torcendo os lábios e
papai ainda em dúvida sobre a minha escolha, era com ela que eu ficaria. E o
melhor de tudo? Abigail os enfrentou altivamente, orgulhosa, sem abaixar a
cabeça, eu já estava apaixonado por ela há tempos, mas vê-la naquele dia no
jantar na nossa casa no Leblon, linda, adorável e nem um pouco intimidada
pelo olhar escrutinador dos meus pais esnobes, me fez amá-la ainda mais.
Parece que ter um homem rígido e difícil como pai a preparou para
quase qualquer coisa, e ao final, eu podia dizer que meus pais poderiam ainda
estarem torcendo os lábios para ela, mas definitivamente a respeitavam.
E para eles, eu sabia que isso era mais importante que afeição.
Convencer seu pai a deixá-la vir comigo foi outro processo, mas
devo admitir que o Sr. Andrade confiava em mim e nas minhas intenções.
Claro que ele achava, não faço a menor ideia do porquê, que a sua linda
loirinha ainda fosse a mais pura das jovens, paciência, pensei, e quando fui
mexer no local onde deveriam estar os punhos da minha camisa, lembrei que
Abigail tinha me feito vestir algo que era uma mistura de um suéter com
alguma outra coisa que eu nem queria definir.
Ela estava particularmente sensível e eu me deixei convencer, não
que eu fosse fazer isso sempre, claro, Abigail era muito doce para me fazer
mudar de ideia sobre algo. Eu vesti só para não contrariá-la, daquela vez.
Sorrimos um para o outro, e ela aconchegou-se a mim, e olhamos os
dois para a tela. Eu ainda mal podia acreditar que era sortudo o suficiente
para tê-la comigo, e a cada vez que eu lembrava da noite que a tinha tornado
mulher, a minha mulher, ainda era assaltado por sensações tão impactantes
que me faziam ter mais certeza ainda que a queria. Para sempre.
— Obrigada.
Afaguei seu ombro e a fiz olhar para mim.
— Pelo que, exatamente?
— Por tudo, por me trazer aqui, por realizar esse sonho... Por
Andréa, por tudo mesmo — ela concluiu, envolvendo os braços ao meu
redor, emocionada, e eu beijei seus cabelos. Sabia como ela era ligada à irmã,
e como toda a situação com ela praticamente definiu os rumos do
relacionamento de Abigail com os pais. Andréa e Franz Stein realmente
foram morar juntos, mas mudaram-se para Santa Catarina para viverem
próximos aos pais de Franz, e pelo jeito, a criança, um menino, nasceria lá.
Ficar longe da irmã, morando sozinha com os pais agora, a tinha
deixado mais triste, e eu tentava fazer tudo ao meu alcance para que ela não
ficasse assim. Ela permitiu, depois de uma longa conversa de convencimento,
que eu desse uma pequena quantia a irmã para que ela levasse na viagem, e
isso fora a forma que Abigail encontrou de ajudá-la, de fazer algo, mesmo
longe.
Ainda que gostasse muito e confiasse no cunhado, ela queria se
certificar de que a irmã teria independência o suficiente para voltar e trazer o
filho se algo desse errado por lá. Eu tinha grandes suspeitas que não, a julgar
pelo modo que aquele rapaz parecia apaixonado pela moça loira linda e
silenciosa.
— Você não precisa agradecer por algo que eu tenho o maior prazer
em fazer, meu amor.
Ela não disse nada, só enterrou o rosto no meu peito e murmurou
que me amava. Apertei seu corpo junto ao meu.
— Eu também te amo...
Mais de uma hora depois, quando acabamos passeando por todas as
outras coleções de impressionistas dispostas no local, saímos para um
aconchegante bistrô para almoçar. Eu podia entender a sua euforia, e
enquanto conversávamos e comíamos ela falava com o seu ânimo habitual,
eu prestava parcialmente atenção ao que ela dizia em um ritmo vertiginoso.
Pensava em como ela era hoje, fundamental na minha vida, e como o
peso do meu trabalho e da situação familiar que só agora vinha melhorando
— e por melhorando entenda-se que os meus pai não brigavam mais, agora
simplesmente não falavam um com o outro — ela tinha surgido e se tornado
o centro do meu mundo. Novamente, aquela ideia me atormentava, fazendo-
me remexer no assento. Seria muito cedo? Eu não a assustaria com a
intensidade do que estava sentindo?
— Não é? Você concorda?
Eu não fazia a menor ideia do que ela estava dizendo. Bebi um gole
do meu vinho.
— Sim, claro que sim.
— Você estava me ouvindo, Otávio?
— Sinto muito, eu acabei perdendo o que você disse por último,
apenas.
— Ah, tudo bem. Estava apenas dizendo que preciso sair do Brasil,
juntar umas economias, visitar outro país, conhecer pessoas novas, e se não
tinha problemas pra você se a gente só mantivesse contato por
correspondências durante uns dois anos enquanto eu estiver fora, só isso. —
Ela sorriu docemente e encolheu os ombros. — Ainda bem que você está de
acordo.
— O quê?!
Olhei para ela aterrorizado, realmente aterrorizado. Porque isso
estava bem de acordo com algo que Abigail poderia querer, com o tipo de
liberdade que ela parecia almejar, com seus sonhos antes de me conhecer, e
se ela realmente quisesse isso, eu iria ter o meu coração destroçado, mas não
poderia dizer para abandonar seus ideais.
O que eu faria, então? Devo ter deixado todo esse tormento
transparecer no meu rosto, porque ela tocou minha mão sobre a mesa e ficou
séria.
— Ei, eu estava brincando. — Alívio puro percorreu as minhas veias
em vez sangue, eu tenho certeza, e fiquei em silêncio, apenas assentindo em
afirmação. — Otávio, você sabe que eu sou apaixonada por você e quero
ficar com você, não sabe?
— Sim, eu sei disso.
— Então não haja como se de repente eu fosse acordar e decidir que
não te amo mais e que quero outra vida pra mim. — Abigail inclinou a
cabeça de lado, como ela fazia muito, e continuou tocando os meus dedos.
— Às vezes, a gente vai descobrindo que o que quer, nem sempre é real,
sabe? Às vezes você está tão desesperado para fugir de algo, que acaba
pintando o extremo oposto como tudo que você deseja, que sonha. Mas não é
real.
Ela olhou ao longe, os cabelos voando e tocando o seu rosto, quando
ela virou novamente para mim, uma sombra de sorriso e um suspiro
escapando dos seus lábios, eu soube. Não, eu sempre soube. Eu decidi,
apenas, mas deixei-a continuar o que queria dizer.
— Liberdade, independência, tudo isso às vezes está em você
mesmo, na forma como você toma as suas decisões, como faz suas escolhas,
quando você pode fazer isso, claro, nem todo mundo às vezes consegue. No
meu caso, eu não vou encontrar o que quero em uma pessoa, em um lugar,
mas acho que em mim mesma. Eu amo você, mas o melhor de tudo, eu sei
que isso não me impede de fazer o que eu quero... — Ela apoiou o queixo em
uma mão, enquanto continuava me tocar com a outra. — Então, não, eu vou
tentar fazer o que eu quero aqui, perto de quem eu amo, é o que eu quero.
Vê? É esse tipo de liberdade que eu estava almejando.
Segurei seus dedos, me inclinei, meu coração em um ritmo tão louco
que eu pensei que fosse sufocar.
— Abigail, você quer se casar comigo?
O tempo pareceu ter parado enquanto eu ouvia o que parecia o eco
da minha própria voz. Mas não era, claro, era apenas a voz da minha
consciência, da minha racionalidade, reverberando horrorizada o que eu tinha
acabado de fazer. Sem planejar, sem um anel, sem nada, ali, sentado em um
pequeno restaurante em Paris, em uma conversa que tinha tudo para ser
casual.
Os segundos que ela levou olhando para mim em choque, imóvel,
foram os mais longos da minha vida, e eu concluí que fui impulsivo como
nunca era e talvez muito apressado, mas ainda assim a encarei de volta
firmemente, preparado para conquistá-la todos os dias se fosse necessário,
independente do que ela dissesse agora.
— Você não planejou isso. Paris, museu, noite ao luar, um bistrô
romântico. —Não era uma pergunta, só uma constatação.
— Não, só de repente, decidi que é o que mais quero na minha vida,
e preciso saber se você vai me conceder a honra.
Então, ela devolveu o meu coração ao meu peito, batendo rápido,
pulsando loucamente: ela sorriu. E seus olhos me disseram tudo que havia
para ser dito.
— Ah, as palavras de um cavalheiro, como eu esperara vindo de
você.
— Você vai me matar de ansiedade, nada pode ser simples com
você, não é? — murmurei, minha voz tremendo um pouco de emoção. Ela
riu, balançou a cabeça e depois abaixou, então pôs as duas mãos no rosto e
começou a chorar.
Alarmado, levantei-me e fui para o seu lado, segurando seus ombros.
— Abigail, meu amor, o que foi?
Ela escondeu a cabeça no meu ombro, e eu segurei seus cabelos e
beijei sua cabeça, fechando os meus olhos.
— Sim, eu estou feliz, é isso. Sim!
— Sim? Você aceita?
— Sim! Com certeza eu quero ter a honra de ser a sua esposa. — Ela
sorriu, enxugando as lágrimas e usando um tom solene para imitar a minha
voz. Eu a apertei de encontro ao meu peito, sorrindo e beijando-a. Assim que
segurei seu rosto e a fiz olhar para mim, esperando encontrar o seu sorriso e
enxugar as suas lágrimas, notei outra emoção no rosto de Abigail:
desconforto, a testa franzida.
— O que foi?
— Não sei, acho que o vinho me fez mal.
— O vinho? Você só provou.
— É, uma azia, uma vontade de vomitar...
— Como ontem pela manhã...?
Nossos olhares se encontraram, e muitas coisas não ditas se
passaram ali. Então, como era Abigail, ela riu, mesmo que eu visse a
incerteza, o medo em seu olhar. Não era o que ela pretendia agora, mesmo
que eu não achasse nada ruim, na verdade, e esse olhar demonstrava
exatamente isso. Mas nós iríamos ficar bem. E logo, estávamos rindo feito
dois bobos, ainda que uma súbita vontade de chorar também tenha me
invadido, e não, não era o vinho.
Rio de Janeiro, 1990

— Mãe! — Eu identifiquei a vozinha e já imaginava o que seria, e


escondi o meu sorriso ainda mais no livro que estava lendo, fingindo que não
tinha ouvido. Seria bom que Otávio resolvesse a questão pra variar. Alguns
metros de distância, os três estavam sentados do lado de fora no jardim, com
alguns brinquedos espalhados ao redor, e uma hora ou outra, aquilo ia
acontecer, eu sabia. E ele ia gritar de novo, claro, ele estava sempre berrando
pela casa. Às vezes eu pensava que aqueles ditados antigos, de que se você
não passou com um filho vai passar com outro, são realmente verdadeiros.
Minha nossa, como são. — Mãaaae!
Pus o livro de lado e olhei para o meu lindo, arteiro e adoravelmente
manhoso filho caçula, que vinha caminhando com um boneco grande de um
robô nas mãozinhas miúdas, os olhinhos daquele jeito meigo que ele sempre
fazia quando queria atenção, ou seja, cem por cento do tempo. Aos quatro
anos, Marcos estava sempre sob os holofotes em casa, não tinha como ele
estar em um lugar, e meio mundo não saber daquilo, na verdade. Sorri, meu
peito enchendo daquele tipo de amor especial que transbordam pelos seus
olhos e sorrisos quando você olha para os seus filhotes.
— O que foi, meu amor? Fala pra mamãe. — Fiz um sinal com a mão
e ele fez um beicinho, vindo sentar-se ao meu lado, mexendo na perna do
robô. A que estava intacta no corpo do coitado, porque a outra estava fora. Os
cabelos lisos e muito pretos, porque ambos tinham saído praticamente cópias
do pai, mesmo que o trabalho tenha sido todo meu, veja só, estavam caindo
um pouco na testa.
— Diego! Ele não quer colocar a perna do meu Megazord! — ele
reclamou, cruzando os braços. Suspirei e o pus no meu colo, beijando sua
cabeça cheirosa, afastando os cabelos da sua testa e criando uma nota mental
para mandar cortar. Aquela leitura sobre a vida de Velásquez, pelo visto,
seria adiada para outra hora.
— E foi o seu irmão quem tirou a perna do Megazord? — perguntei,
delicadamente, apesar de já saber a resposta. Ele parou um pouquinho, então,
bateu de leve com a perna solta do boneco no resto do corpo.
— Não.
— Quem tirou fora a perna do seu boneco, Marcos?
— Eu estava vendo como era, mãe... e saiu.
— Humm. Saiu. Sei. E por que você quer que seu irmão ponha no
lugar, você não sabe?
Seus olhos azuis muito claros, com mais tons de verde que os de
Diego, por exemplo, talvez uma única concessão que a genética tenha
resolvido fazer pra mim, ergueram-se em súplica e eu segurei o sorriso mais
uma vez. Aquele menino era tão pequeno e um mestrezinho naquela arte.
— Ele já colocou a perna, mas eu tirei de novo e ele não quer colocar
— reclamou, olhando para onde Otávio e Diego estavam concentrados
montando um enorme conjunto de peças de Lego, graças a Deus do lado de
fora, porque se eu pisasse em uma pecinha daquela mais uma vez dentro de
casa, eu iria gritar. Otávio olhou de volta para nós dois e sorriu, fazendo um
gesto com as mãos.
— Vem, filho, o papai põe a perna do boneco pra você, vem — ele
disse, e eu mais uma vez, apesar do passar dos anos, derretia de amor ao ver
aquele homem quase sempre tão sério, que tão jovem já comandava negócios
em todo o país, sem camisa e descalço, sentado na grama com os nossos
filhos. Eu olhava aquela cena, e várias outras ao longo daqueles anos, e me
convencia a cada vez mais, com mais certeza, de que eu tinha feito a escolha
certa. O meu marido, amigo, pai dos meus filhos, meu amor, era a pessoa
que, ao meu lado, tinha me ajudado e apoiado em cada detalhe e em cada
curva do caminho.
Levantei-me, e de mãos dadas com Marcos, fui andando em direção
onde ele estava com o Diego, nosso filho mais velho, e como sempre, aquela
sensação de amor infinito, absoluto, me tomava ao olhar para aquele serzinho
responsável por me proporcionar a primeira experiência como mãe. E eu
tinha amado, mesmo achando, anos atrás, que era algo que eu não iria querer.
Aquela lembrança me causava risos e bufadas hoje, ao olhar para os meus
dois preciosos filhos.
Diego, aos nove anos, estava sentado, de pernas cruzadas, uma mão
apoiando o queixo, a testa franzida em concentração, olhando para o tabuleiro
das pecinhas coloridas, onde ele e o pai já haviam construídos várias coisas.
Seu cabelo era tão preto quanto o de Otávio, e ao contrário do de Marcos, que
era mais liso, era mais espesso e levemente ondulado, igualzinho ao do pai. E
não era só naquilo, não. No caso de Diego, não apenas a genética me sabotou,
meu filhinho lindo e sério era uma xerox até da personalidade de Otávio. Não
raro eles passavam longos momentos assim, em jogos de memória,
tabuleiros, em silêncio, até que o meu caçulinha chegava... e acabava tudo.
Quando eu cheguei à sua frente com o irmão mais novo, ele levantou
a cabeça e olhou para mim, então deu um sorriso discreto, pequeno, os olhos
muito mais azuis brilhando de entusiasmo. Meu amorzinho lindo e sempre
tão quieto.
— Olha só o que eu e o papai montamos, mãe — ele disse, então
torceu os lábios quando Marcos enfiou o boneco quase em seu rosto para que
ele visse. — De novo? Quantas vezes eu vou colocar isso e você vai tirar?
Eu tinha profundas desconfianças que o nosso garotinho fazia aquilo
de propósito, para chamar a atenção do irmão, mas juntei a minha saia e
sentei-me, enquanto Otávio puxava Marcos para o seu colo. Curvei-me e dei
um beijo nos cabelos macios de Diego.
— Saiu de novo! — Marcos retrucou, apelando com aquele olhar para
o irmão.
— Você tira toda hora porque está sempre quebrando os seus
brinquedos — Diego acusou, voltando a franzir a testa e olhar para as suas
peças, pegando algumas para montar. Com certeza, a ideia de quebrar um
brinquedo era absurda para o nosso filho mais velho, mesmo da idade de
Marcos, ele nunca havia sido um menino de quebrar as coisas. Alguns
brinquedos, inclusive, estavam até hoje intactos e tinham sido utilizados por
Marcos. Utilizados e quebrados, diga-se de passagem.
Diego sempre fora fascinado por quebra-cabeças e jogos de montar,
enquanto o nosso caçula era apaixonado por heróis, robôs, carros, e tudo que
ele visse na TV. E ele gostava de desmembrar, desarticular, descobrir como
funcionava e depois colocar no lugar. Nem sempre dava certo, no entanto...
Diego geralmente era muito paciente com o irmão, e apesar da diferença de
cinco anos entre eles, havia sempre tratado o mais novo com carinho e
paciência. Marcos, por outro lado, bom, só podia dizer que ainda bem que ele
tinha um irmão mais velho paciente.
— Não estou não — Marcos teimou. — E eu não quero brincar com
ele sozinho!
Viu? Ele queria a atenção total de Diego, eu sabia. O irmão mais
velho era o seu farol, e a diferença de idade estava fazendo com que Diego,
crescendo, visse cada vez menos graças nas brincadeiras com um menino de
quatro anos. Eu e Otávio nos entreolhamos, sorrindo por cima da cabeça de
ambos, e vi quando ele deu um beijo na lateral da cabeça de Marcos.
— Me deixa ver esse robô aqui, eu vou pôr pra você — prometeu,
pegando o boneco que estava prestes a fazer um arraso na cidade que Diego
estava montando. Com alívio, eu vi que as mãos de Otávio chegaram antes
que a catástrofe acontecesse.
— Mãe, eu vou ter o quarto que pedi? — Diego perguntou, parando e
olhando entre nós dois. Aquela conversa de novo, e parece que a gente não
tinha mais como fugir. Mesmo com a casa imensa em que morávamos,
presente dos pais de Otávio quando nos casamos, os meninos dormiam juntos
desde que nasceram, claro. O problema era que quase aos dez anos, Diego
estava alegando que Marcos quebrava seus brinquedos e deixava tudo
espalhado, e como ele era uma criança espantosamente organizada naquela
idade, queria um espaço só seu para suas coisas. Mas Marcos tinha medo de
dormir sozinho.
— Diego, nós já falamos sobre isso — Otávio lembrou, firme. —
Tenha paciência com o seu irmão.
— Eu tenho, pai, mas você já viu o que ele faz com os brinquedos?!
— Tente brincar mais com ele, filho — sugeri, apesar de saber que ele
brincava muito.
— Ele é um bebê e só sabe brincar de bagunçar tudo, mamãe. Qual a
graça disso?
Otávio sorriu, tossindo para disfarçar e entregou o boneco com a
perna no lugar para Marcos, que obviamente não deu a mínima e já estava
mexendo nas pecinhas coloridas mais próximas a ele, animado.
— Meu amor, ele é pequenininho, mas vai crescer e aprender, você
também cresceu e não faz mais o que fazia antes, não é? — tentei argumentar
em nome da paz fraternal.
— Eu não era assim — ele retrucou, fazendo as sobrancelhas
formarem uma linha, a testa vincada, exatamente como Otávio fazia. Meses
de enjoos, vômitos e mal-estar para ver uma xerox do pai dele sair de mim.
Suspirei.
— Quem disse que não? — Otávio passou uma mão na cabeça de
Diego, seu olhar cálido em mim. — Talvez você fosse.
— Meus brinquedos estavam inteiros até ele quebrar— ele disse, e
Otávio sorriu, derretendo-se com a forma como o filho era arguto, tão jovem
e impressionantemente inteligente. A nossa atenção foi desviada dessa
argumentação válida quando Marcos deu uma risadinha, as suas bochechas
gordinhas avermelhadas, ao ver o robô destruindo um prédio da cidade à sua
frente. Diego passou a mãos nos cabelos, exasperado. — Viu só, mãe?
Eu peguei o boneco de Marcos e então o segurei no colo, puxando-o
um pouco mais longe das construções do irmão, e Otávio sorria abertamente,
olhando entre os dois. O nosso amor, tão inesperado e intenso, só se
fortaleceu ao longo dos anos. As diferenças entre nós ainda existiam, estavam
lá, mas eram cada vez mais ajustadas pelo consenso, com o quanto cada um
cedia, respeitava o espaço do outro. Com a chegada dos meninos, esse
sentimento pareceu se multiplicar em mil, nos unindo e nos conectando de
uma maneira única, singular. Em alguns momentos, os desafios ainda
estavam lá, mas nós fomos superando um a um. Não podia dizer que a minha
sogra me amasse do fundo do coração, por exemplo, apesar de termos
construído uma relação de respeito mútuo ao longo daqueles anos, e isso já
era o suficiente.
O pai de Otávio, por outro lado, foi muito mais fácil de lidar, e posso
dizer que aprendi a entendê-lo e conviver bem com ele à medida que o tempo
passava. O casamento dos dois, no entanto, nunca mais foi o mesmo, e
desconfio que a presença do seu filho com essa outra mulher, agora um
adolescente, contribuía e muito para aquilo. Nos últimos anos, nós sabíamos
que ele estava cada vez mais dando plenos poderes a Otávio, e agora, vivia
entre o Brasil e Paris, com certeza em busca da mulher que era a mãe do seu
filho.
Meus pais não foram empecilho algum, apesar de que Otávio teve que
praticamente aplacar a fúria do meu pai com um casamento rápido e
suntuoso. Andréa e Franz só casaram depois que o filho deles, meu lindo
sobrinho, Teo, nasceu, e todos nós viajamos para a cerimônia lá,
presenciando um casamento simples e discreto, como Andréa era, mais feliz
do que nunca, em meio da família do marido. Era bom saber que nossos
filhos iriam crescer com idades muito próximas. Já a suntuosidade do meu
próprio casamento ficou por conta da minha sogra e da minha mãe, que não
abriram mão disso, e eu acatei, daquela vez, algumas coisas você
simplesmente deixava acontecer, seguir seu curso, e focava em outras. Eu
foquei em apreciar a minha gravidez, a felicidade que me consumia, e
desfrutar do amor sublime, forte, incomparável, que eu havia encontrado.
Voltei dos meus pensamentos ao ouvir a risadinha de Diego, não mais
zangado com o irmão agora, mas rindo da forma como Marcos, com o
pedacinho da língua de fora, tentava encaixar uma peça e não conseguia.
Talvez, quando Teo chegasse para passar as férias conosco, em alguns meses,
Diego voltasse a ter mais paciência com o irmão, já estaria ocupado com
brincadeiras com alguém da sua faixa etária. Otávio pareceu sentir o meu
olhar e desviou a atenção dos meninos, o seu profundo olhar azul aquecendo
o meu, o meu coração, a minha alma, e algo me dizia que ele ainda faria
aquilo por longos e longos anos. Pra sempre, eu esperava.
O som do choro, baixo e dolorido, penetrou na névoa de sono em que
eu estava. Quando identifiquei a origem daquele som, a consciência disso me
despertou completamente, sentei-me na cama de súbito com o coração
agitado.
A luz do abajur ao meu lado da cama estava acesa, deixando o quarto
parcialmente iluminado como era o nosso costume agora. Levantei-me
silenciosamente e fui o mais rápido que podia em direção à cama infantil que
tinha sido colocada no canto do nosso quarto, provisoriamente. Parei,
surpresa, quando, mesmo na pouca luminosidade, a cena à minha frente fez
sentido: Otávio estava sentado na grande poltrona branca ao lado da cama
infantil, as pernas cruzadas na altura dos tornozelos sobre um puff... e nossa
filha Iza estava sobre o seu peito nu, com a cabeça cheia de cachos negros
bagunçados recostada em seu ombro.
Enquanto murmurava alguma coisa que eu não conseguia identificar,
ele dava leves e ligeiras palmadinhas nas costas dela, sua mão grande em
contraste com o corpinho diminuto e ainda agitado dela. O som que me
acordou, os resquícios do choro da nossa pequena Izabel, estavam
diminuindo, no entanto, à medida em que ela se aconchegava mais no pai,
emitindo uns resmungos infantis, mesmo claramente cedendo aos apelos do
sono.
Fiquei ali de pé, completamente encantada com a cena, observando-os.
Não que Otávio não tivesse sido sempre presente enquanto nossos
filhos mais velhos cresciam, pelo contrário, ele era o tipo de pai que
participava ativa e dedicadamente de tudo que tivesse a ver com as nossas
crianças: dos estudos à diversão. E isso, às vezes, causava um sentimento de
incredulidade em quem não o conhecia tão intimamente.
No que se referia à Iza, no entanto, parecia que todo o amor, carinho,
devoção e proteção que ele sempre teve com os meninos haviam
simplesmente dobrado. Não, se multiplicado. Era emocionante vê-lo assim,
tão enlevado por uma criaturinha linda que já havia passado por tanto
sofrimento.
Quando Vilma morreu, vítima de um acidente no trânsito quando
estava indo para casa da irmã, toda a nossa vida mudou radicalmente de
rumo. Ela já morava conosco mesmo antes de Iza nascer, e quando o seu
namorado e pai da sua filha foi morto pela polícia, ela passou definitivamente
a viver conosco, já que desde muito novinha, tomava conta de Marcos, mais
diretamente, que era menor, nessa época.
Vilma tinha apenas uma irmã, Maria, uma moça batalhadora que
morava com mais cinco filhos e um marido quase sempre ausente. Como
parente mais próxima, mas sem condições mínimas de criar mais uma
criança, ela abriu mão da guarda da sobrinha em nosso favor; e a mãe,
morando no interior, em uma situação financeira difícil, em outro estado,
também não ofereceu resistência a que tivéssemos a guarda provisória de Iza,
e que depois caminhássemos para um processo de adoção. As coisas foram
menos difíceis do que seriam, sem os contatos de Otávio.
Mesmo assim, o medo ainda rastejava por nossas peles, como naquele
momento, quando pensamentos sombrios de um parente, alguém, um dia,
quisesse tomar a nossa menina de nós. Claro que iríamos lutar, e tínhamos
todas as possibilidades para tal, mas era algo que nos assustava um pouco.
O que importava, realmente, era que Iza havia entrado nas nossas
vidas de uma forma tão impressionante, uma menina doce, sorridente, com
covinhas adoráveis como a sua mãe, uma criança com quem não
compartilhávamos o nosso sangue, mas compartilhávamos o nosso mais
profundo amor, e para tudo que realmente importava, era a nossa filha mais
nova.
O processo de adoção fora duplamente doloroso, não tão longo, difícil
e desgastante quanto seria se não tivéssemos a nosso dispor o nome e o
dinheiro que acompanhava a família Avellar de Barros, eu tinha a mais plena
consciência disso; no entanto, não eliminava o percurso cheio de dor,
lágrimas, temores que de não poderíamos ficar com ela, lembranças em
relação à mãe biológica de Iza, minha querida Vilma, pensei, com aquele já
conhecido nó de emoção na garganta, quando eu lembrava dela, quando eu a
via perfeitamente no rostinho de Iza como uma cópia do seu.
Minha filha. Nossa filha.
Mesmo hoje, meses depois que assinamos a papelada e oficializamos
tudo, e que ela poderia ser considerada legalmente nossa, eu ainda era tomada
por uma atordoante sensação de medo. Não havia dúvidas sobre a nossa
decisão, não, mas eu ainda era assolada por um desagradável questionamento
da minha capacidade de ser a mãe que ela precisava que eu fosse. De alguma
forma, tinha medo de não estar preparada para proporcionar tudo que a
própria mãe teria dado a ela se estivesse aqui... E ela teria dado tanto se
pudesse, pensei, melancolicamente, tocando a minha garganta.
Desde que Vilma morreu, nós estávamos mantendo-a no nosso quarto,
perto de nós, e não no quarto dela. Fomos aconselhados pelos especialistas
que consultamos, que deixá-la acordar sozinha à noite, chorando, chamando
pela mãe, não era o ideal. Era um processo delicado, mesmo na idade dela, já
que um bebê de três anos não compreendia, claro, o que estava acontecendo,
porque a sua mãe não estava mais ali, e constantemente chamava como se ela
fosse voltar a qualquer momento...
Deus do céu, essas horas doíam profundamente na minha alma. Os
choros, a saudade... talvez ela não lembrasse mais da mãe quando crescesse, a
psicóloga havia nos dito que era muito provável, mas eu estava determinada a
não permitir que a mulher maravilhosa que Vilma sempre foi não estivesse
presente, de alguma forma, na vida da sua filha. Da nossa menina.
A sensação que eu tinha era que, quando você adota uma criança,
quando ocupa um espaço físico e emocional que seria de outra pessoa, a
responsabilidade e o comprometimento são tão intensos, ou mais, do que com
filhos do seu próprio sangue. Era assim que eu me sentia em relação àquela
pequena e brilhante estrela que agora fazia parte das nossas vidas, e dos
meninos, claro, que estavam tão apaixonados por ela quanto nós, desde que
ela havia nascido, e mais apegados ainda, agora que sabiam que ela era a
irmãzinha. Belinha, como Marcos passou a chamá-la.
Dei mais alguns passos e sentei-me silenciosamente ao lado de Otávio
na outra poltrona, e ele virou o rosto lentamente na direção do meu. Iza dava
apenas alguns gemidinhos de contrariedade, mas parecia já estar dormindo.
— Ela está acordando assustada cada vez menos agora — ele disse,
em uma voz baixa para não acordá-la. Concordei com um aceno.
— Em pouco tempo ela vai estar bem melhor — afirmei, passando a
mão levemente por seu antebraço, confortando-o. Otávio respirou fundo.
Ficamos os dois em silêncio, pensativos, o único som vindo da respiração
agora calmamente ritmada de Iza. A mão de Otávio ainda permanecia sobre
as suas costas, apenas um toque delicado dos seus dedos.
Quando percebeu que Iza estava realmente ressonando tranquilamente,
Otávio levantou-se e a pôs na cama com delicadeza. A transição para o seu
próprio quarto seria feita com calma, nenhum de nós dois sequer cogitávamos
a mera possibilidade de que ela acordasse sozinha, gritando, com medo,
desnorteada. Assim que a ajeitamos sobre as cobertas, voltamos para cama,
mas não dormimos imediatamente. Ficamos os dois juntos, silenciosos, a mão
de Otávio acariciando as minhas costas, e a minha passeando pelo seu peito.
Eu tinha certeza de que estávamos pensando a mesma coisa: em como não
saberíamos mais viver sem a nossa pequena Belinha.

Cinco anos depois

— Eu não gosto daquela sua namorada — Iza declarou do alto de toda


a sua imponência e experiência de vida, aos oito anos de idade, jogando-se no
sofá ao lado de Marcos, os braços cruzados sobre o peito em uma postura
desafiadora.
Eu desviei por breves segundos os meus olhos do livro que estava
lendo, então cruzei as pernas, escondi meu sorriso e voltei a fingir que não
estava prestando atenção no diálogo deles.
Aquilo ia ser interessante, deduzi, me aprumando e preparando os
meus ouvidos. Com quase dezenove anos agora, Marcos estava no auge de
uma vida de que incluía garotas, festas e carros... — bom, pelo menos eu
esperava que fosse o auge, porque se aquilo estivesse caminhando para
piorar, meu Deus, eu não sei o que faria com ele... —, e ainda assim,
precisava lidar com a irmãzinha que sempre passou a vida inteira colada nele.
Isso era mais fácil antes, quando ele era adolescente. Agora, mesmo tendo a
paciência de um monge com ela, era mais difícil pra ele ter que fazer Iza
entender que ele tinha algumas outras “prioridades” na vida, além de entretê-
la.
Marcos deu um profundo suspiro de cansaço sem desviar o olhar da
TV. Era raro, na verdade, que ele estivesse ali na sala, e não no seu quarto,
mas assim que a referida “acompanhante” tinha ido embora, ele sentou-se ali
e ficou vendo TV.
— Ela não é minha namorada, “olhinho de jabuticaba” — ele disse,
em um tom monótono, escondendo um sorriso. Aquele era outro nome
carinhoso que ele a chamava, de vez em quando. E ele tinha vários.
— Não é? Como não é se você estava beijando ela e...
— Ei! Acho que você devia brincar com as suas bonecas em vez de
ficar espiando por aí, certo, mocinha? — Marcos interrompeu, me lançando
um olhar preocupado. Eu estreitei os olhos para ele, que sabia que devia
tomar muito cuidado com as suas “demonstrações públicas de afeto” quando
trouxesse suas “amigas” para passear pelo jardim ou para conhecer a piscina.
Como se ele me enganasse com esses artifícios.
Por isso aquela criatura, nessa idade, já era um frequentador assíduo
de motéis pela cidade.
— Eu não estava espiando por aí, eu vi vocês na piscina. — Iza deu
de ombros, as longas tranças balançando com o gesto. — E eu não gosto dela.
— Sim, você já disse isso.
— E eu não quero que você namore com ela! — Iza decidiu, franzindo
as sobrancelhas e apertando mais os bracinhos no peito, encarando o irmão
com os olhos escuros brilhando e o lábio inferior tremendo um pouco. Eu
abandonei o livro e fiquei observando, intrigada, atenta. A menina, que tinha
acabado de entrar na faculdade de administração, junto com Marcos, era
bonita e educada, e era a segunda vez que era convidada para visitar a nossa
casa, o que, no repertório do meu amado filho, era quase um noivado.
Eu me preparei para intervir, perguntar o que tinha acontecido, mas
antes que eu pudesse abrir a boca, Marcos estava abandonando a postura
relaxada e inclinando-se na direção da irmã, o rosto sério e preocupado.
Ele passou o polegar na bochecha gordinha dela e Iza abaixou ainda
mais a cabeça.
— Ei, Jabuticaba, o que foi?
— Filha, está tudo bem? — perguntei, agora verdadeiramente
preocupada. Iza amava os irmãos, era absolutamente mimada e paparicada
por ambos, além de pelo pai. A diferença de idade entre eles — quase 11
anos entre ela e Marcos, e 16 anos entre ela e Diego — só tinha contribuído
para que eles a tratassem como uma princesinha que era dona da vida de
ambos. Principalmente Marcos. Enquanto Diego já estava concluindo a
faculdade de direito e praticamente saindo de casa, Iza passara a vida entre as
pernas do irmão mais novo, e não era incomum que ela demonstrasse
ressentimentos e certo ciúmes ao ver que eles dedicavam uma atenção cada
vez mais especial a mulheres.
Eu já havia, inclusive, conversado com ela sobre isso. Mas não devia
ser fácil para uma menininha crescendo com dois irmão muito mais velhos,
eu sabia.
Talvez esse agora fosse um caso de ataque de ciúmes por causa da
moça? Pétala, o nome dela.
— Eu só não gosto dela — Iza teimou, mas então uma lágrima
escorreu pela bochecha infantil e eu me levantei. Marcos já estava puxando-a
para o seu colo, a expressão zangada.
— Não é isso não, Iza. Aconteceu alguma coisa? — Sua voz, no
entanto, estava cheia de ternura. Iza continuou calada, mas outra lágrima
desceu e eu limpei, perto dos dois agora. — Ei, olha pra mim — ele pediu, e
com relutância, ela ergueu o rostinho molhado e o encarou, mordendo o lábio
inferior. Meu coração apertou, ainda que eu não soubesse o que era, ou
mesmo que fosse apenas uma saudável crise de atenção e ciúmes do irmão.
— O que a gente combinou? Você lembra? O que você sempre prometeu pra
mim?
— Que eu nunca vou esconder nada de você — Iza disse, baixinho.
— E o que mais? Vamos, me diga — Marcos insistiu.
— Que eu não vou deixar ninguém me machucar, bater em mim, nem
me magoar, e se eu não puder bater no idiota, eu vou chamar você, o Diego e
ou papai. Ou os três juntos — ela disse, em um tom límpido, como se tivesse
decorado aquilo.
Era bem provável que ele a tivesse feito decorar mesmo.
— Ótimo, então, você vai esconder coisas de mim agora?
Ela fez que não e fungou. Eu imaginava que sabia aonde aquilo ia dar,
e já estava sentindo a raiva me consumir antes que a minha filha abrisse a
boca.
— Não, não vou.
— Eu fico muito feliz que você prometeu isso aos seus irmãos, meu
amor, mas eu gostaria de pleitear uma vaga nesse time que você acabou de
dizer. A mamãe também é forte, e sempre vai estar aqui pra te proteger, você
sabe disso, não é?
Nesse momento, eu ouvi as vozes de Diego e Otávio, que estavam
vindo da empresa, onde o meu filho mais velho estava fazendo um estágio na
área jurídica. Eles estavam falando sobre algum tipo de contrato e cláusulas
diversas, mas pararam assim que nos viram no sofá, com Iza sentada no colo
de Marcos, o rostinho brilhando de lágrimas.
— O que aconteceu aqui? — Otávio pôs a pasta lentamente no sofá e
se aproximou. Diego ajeitou os óculos e seguiu o pai. Apenas isso, essa cena
de intenso sentido de proteção em torno de nossa menina me fez engolir um
nó de emoção, e eu balancei a cabeça, dizendo-lhe que não sabíamos. Ainda
não sabíamos.
Otávio sentou-se à nossa frente, e Diego ao seu lado. Iza olhou entre
os dois, sorriu em meio às lágrimas, uma covinha linda surgindo nas
bochechas, e depois olhou pra mim.
Marcos segurou o queixo de Iza a fez olhar fixamente para ele.
— O que aconteceu, por que você não gostou da Pétala, Jabuticaba?
— ele perguntou, com a voz abatida, baixa, mas eu percebi o sinal de dureza
e frustração. Iza olhou entre todos, como se estivesse envergonhada, mas
então abaixou a cabeça e disse:
— Ela vive sendo boazinha comigo quando você está perto, mas hoje
eu cheguei na piscina, você tinha saído, aí ela me disse para sair de lá, pra
não ficar olhando pra ela. Eu disse que ia ficar sim porque aqui é a minha
casa e a piscina também era minha — ela disse, erguendo o queixo como eu
sempre a ensinei a fazer, a minha pequena gatinha com garras afiadas. — Aí
ela riu de mim e disse que eu tinha sorte de ser adotada, pra eu me olhar no
espelho e ver que vocês não eram a minha família.
Eu ofeguei, furiosa. Maldita! Vinha a minha casa ofender a minha
filha!
Marcos disse um palavrão, Diego rangeu os dentes e Otávio olhou pra
mim, verdadeira fúria brilhando no azul dos seus olhos.
Iza olhava entre nós, preocupada.
— Eu sei que é mentira dela, mamãe, eu sei que vocês são a minha
família, mas eu não gosto dela mesmo assim. Não quero que ela seja a sua
namorada, Marcos.
— Ela não vai ser nada minha, meu amor, na verdade, ela nunca mais
na vida vai chegar a dois passos de você, e muito menos de mim — Marcos
prometeu, com um sorriso tranquilizador, mas seu olhar traía qualquer
diversão. — Eu prometo a você, minha Jabuticaba. E quando você se olhar
no espelho, tudo que vai ver é uma menina absolutamente maravilhosa, feliz
e que é amada, combinado?
Ela fez que sim, aliviada. O irmão voltara a ser o seu super-herói
preferido, pelo visto, pensei, emocionada.
— Venha até aqui, Izabel — Otávio chamou, estendendo a mão. Iza
foi e sentou-se no colo do pai, encostando a cabeça em seu peito como
sempre fazia desde que era uma bebezinha e acordava chorando no meio da
noite. — Você é a nossa filha, o nosso maior tesouro, o que de mais
importante todos nós aqui temos, ouviu bem? — Iza olhou em volta de novo,
tímida, gostando do que ouviu, um sorriso alegre desenhando-se no seu rosto.
Diego estendeu a mão e tocou seu nariz, dando um daqueles lindos e
raros sorrisos pra ela.
— Não importa o que qualquer um diga, ou faça, aja como se esse tipo
de gente fosse exatamente o que eles são: indignos de você, e nunca, nunca
esqueça disso — Diego disse, e ela concordou, acostumada com as conversas
mais rebuscadas com o irmão mais velho. Era com Diego que ela aprendia
palavras complicadas e a se comportar como uma lady. Com Marcos, ela
aprendia os palavrões e a burlar as regras. Eu fingia que não sabia.
— Você é uma criança linda, inteligente e tem uma família que te ama
muito. Infelizmente, filha, você vai encontrar com pessoas como essa moça o
tempo todo na sua vida: eles estão em todos os lugares. São pessoas que vão
tentar te diminuir por causa da cor da sua pele e vão dizer absurdos como o
que você ouviu hoje. Eu gostaria de te proteger de tudo isso e dizer que nunca
vão chegar até você, mas não posso, então... — segurei suas mãozinhas nas
minhas e olhei bem pra ela — ... não abaixe a cabeça, mesmo que te
machuque, reaja, se defenda, mostre que você é linda, forte, e se precisar, nos
chame. Nós vamos sempre te proteger.
Ela já estava sorrindo de novo, como sempre fazia, brincando com a
gravata de Otávio.
— Tá bom, mamãe. Eu vou lembrar disso também — ela prometeu,
olhando para Marcos, que sorriu de volta pra ela e piscou. Nós, os adultos,
nos entreolhamos, compartilhando aquele sentimento de amor e proteção em
relação a nossa menina, algo que nos unia, como uma família, onde laços de
sangue eram um componente importante, sim, mas não o principal, não o
único, para que os nossos corações estivessem profundamente conectados uns
nos outros.
OUTRAS OBRAS DA AUTORA

TEO

SINOPSE:
Teo

Quando fez uma proposta ousada para Malu, e ela aceitou, Teo Stein
concluiu que era um cara de sorte. Ela era uma mulher linda, sensual, e que
sabia apreciar as vantagens de "uma noite e nada mais". Divorciado e com
uma filha adolescente, tudo que ele não queria era um relacionamento sério e
toda a complicação que eles traziam para a vida de um cara. Mas uma noite
de sexo alucinante com aquela mulher? Pode apostar que ele queria.

Malu

Quando um cara loiro, sexy, com um corpo e um sorriso matador, te


diz em uma boate que quer "uma noite e nada mais", e você tinha saído
justamente para tirar o atraso, o que você faz? Se você é Malu Martins, uma
professora de dança ousada e bem-resolvida, você aceita, é claro. Porque é
isso que ela estava buscando no momento: diversão, sexo descomplicado.
Relacionamentos estavam superestimados mesmo, e ela já havia tido
decepção o bastante no último em que estivera envolvida. Ele é um homem
controlador e possessivo. Ela está lutando cada dia por sua independência. E
entre eles ainda existiam as barreiras, sociais, raciais e... o amor, envolvendo-
se na história, ainda que ambos não estivessem interessados. Era para ser uma
noite de sexo, apenas, mas planos eram alterados o tempo todo.

LINK: https://amzn.to/2Yq8C5A
DIEGO

SINOPSE:

Diego é um homem discreto que gosta de seguir regras. Tudo que ele
não quer são complicações... ou que as coisas saiam de um jeito diferente do
qual ele as estabeleceu para si próprio. Quando encontra Diana, uma jovem
que parece ter confusão e indisciplina inscritas em cada parte do corpo, ele
sabe que não deveria se deixar levar. O problema para Diego é que às vezes a
vida te empurra para quebrar algumas regras, e os resultados podem ser bem
catastróficos... ou te trazer coisas maravilhosas que você nem sabia que
queria, mas precisava. Em uma única noite, suas vidas tomam um rumo
inesperado, que irá ligá-los de uma maneira especial, para sempre, apesar das
suas inegáveis diferenças. Uma trama de sexo, escolhas, erros, perdão e
amor. Venha conhecer a história de Diego e Diana, o segundo livro da Série
Avassaladores.

LINK: https://amzn.to/2PX3aVj

[1]
A informação refere-se à garotinha britânica Íris Grace, hoje com 7 anos de idade.
[2]
Claude Monet, pintor francês, um dos maiores nomes do Impressionismo.

You might also like