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O Sequestro Da Independencia
O Sequestro Da Independencia
e vinculou a figura fardada do príncipe 1816, preparava-se para ser sagrado rei
Pedro I aos uniformes do Exército. A de Portugal, do Brasil e Algarves, com
obra ajudou a criar, assim, um projeto o título de d. João VI, tudo em plena
de passado: um passado fardado. colônia tropical (Lima, 1997, p. 21).
O objetivo deste artigo é, pois, rever No entanto, em pouco tempo a situa-
essa “lenda dourada da Independência”, ção mudaria completamente. No Brasil,
que toma o final pelo começo: a saída insurreições como as de Minas em 1789,
conservadora e monárquica como se fosse a da Bahia em 1798 e a de Pernambuco
um dado inevitável. Não era, e vale a em 1817, entre outras, revelaram como
pena estruturar as bases dessa interpre- os anseios por emancipação animavam
tação muito calcada na experiência do modelos que começavam a ganhar um
Sudeste – em especial Rio de Janeiro colorido local, a despeito das propostas
e São Paulo – e na elaboração de uma serem profundamente diferentes. A essas
tela que foi, na verdade, um presente de alturas, a América inglesa estava pra-
filho para pai; uma tentativa de elevar a ticamente independente, afora as ilhas
monarquia num momento de crise e que do Mar das Caraíbas, a Guiana equato-
resultaria no seu final. rial e o domínio gelado do Canadá. Na
América espanhola, com exceção das
Antilhas, a Independência já se deli-
ECOS DO ATLÂNTICO neava como realidade.
Ares revolucionários começavam a
Em 1814 a periclitante situação polí- soprar também na própria metrópole por-
tica europeia, tão marcada por anos de tuguesa. Nos primeiros tempos da invasão
guerra, parecia finalmente normalizada: francesa, em 1807, e sobretudo após o
foi nesse ano que se deram os últimos momento em que d. João declarara guerra
confrontos entre forças aliadas e francesas a Napoleão, em 1º de maio de 1808, uma
e a derrota de Bonaparte. Tudo indicava série de manifestações populares revelou
o retorno da “velha e boa ordem” com o adesão à monarquia dos Braganças, no
redobrado poder das realezas e o comando lugar do jugo francês. A instabilidade
político da Santa Aliança, sobretudo nos política em Portugal foi agravada por
territórios continentais europeus. Porém, mais duas invasões napoleônicas: uma
na contramão das tendências da época, em 1809 e outra em 1810, gerando mais
estava o domínio português no além-mar. aversão aos franceses. Todavia, após a
O príncipe D. João, teoricamente apenas última expulsão das tropas napoleônicas,
de passagem pelo Brasil, optou por pos- no final da década de 1810, com a reto-
tergar sua estada, até porque ia criando mada da soberania lusa nada explicava
raízes em seu território americano. Afi- a permanência do soberano na América.
nal, o monarca português abrira os portos Diante disso, as antigas demonstrações
da colônia em 1808, elevara o Brasil à de fidelidade irrestrita ao monarca por
condição de Reino Unido em 1815, assim parte da população portuguesa deram
como, após a morte de d. Maria I em lugar à indignação geral.
pela transferência para Lisboa das prin- ano de 1822, o regente receberia carta
cipais repartições instaladas no Brasil; de José Bonifácio pedindo que permane-
novos contingentes de tropas foram des- cesse e “não se tornasse escravo de um
tacados para o Rio de Janeiro e em 29 pequeno número de desorganizados”. No
de setembro é assinado decreto exigindo mesmo dia 9 de janeiro, d. Pedro recebeu
o retorno do príncipe regente. As Cortes no paço – numa audiência do Senado da
também determinaram que as diferentes Câmara – um requerimento tomado por
províncias do Brasil se transformariam mais de 8 mil assinaturas, que pediam
em províncias ultramarinas de Portugal, para que ele não deixasse o Brasil.
desaparecendo o lugar político do Rio Apesar da força dos atos, é preciso
de Janeiro e a necessária permanência lembrar que boa parte das elites ainda
de d. Pedro (Martins, 1987, p. 185). desejava manter-se unida a Portugal,
O ano de 1822 começou com muitas guardando-se, porém, as franquias já
dúvidas e raras certezas. Não à toa o alcançadas. Essa posição advogada pelo
Partido Brasileiro concentrava esforços no ministério conservador, que defendia uma
sentido de assegurar a permanência de d. saída moderada e se aglutinava em torno
Pedro no Brasil 9. Com o tempo, também de Bonifácio, contava com a oposição
a princesa se converteria em uma das dos grupos radicais, que imaginavam
grandes influências favoráveis à emanci- um modelo diferente de representação
pação e à desobediência do regente para mais republicano. A despeito das divi-
com as Cortes: Leopoldina parecia temer sões entre os grupos, um processo mais
o constitucionalismo português, permane- estrutural e profundo ia se afirmando. É
cendo fiel aos princípios do absolutismo. por isso que a contenda foi sendo deci-
Mas faltava o Partido Brasileiro sensi- dida em duplo sentido – de dentro para
bilizar o regente com um ato simbólico. O fora, mas também de fora para dentro.
movimento partiu de Rio de Janeiro, São Há quem diga que a essas alturas Por-
Paulo e Minas, e no dia 9 de dezembro, tugal é que pretendia se livrar do Brasil
quando chegaram os decretos portugue- e de suas provocações. O certo é que se
ses exigindo a volta imediata, criou-se começava a escrever, então, uma espécie
o “Clube da Resistência”. Foi Gonçalves de lenda dourada da Independência, na
Ledo, do Partido Brasileiro, quem orien- verdade construída sobretudo por Rio
tou o então presidente da Câmara para de Janeiro e São Paulo.
que entregasse a d. Pedro uma solicitação
formal para que ficasse no Brasil. Ao UMA INDEPENDÊNCIA
mesmo tempo, logo no primeiro dia do
MONÁRQUICA E CONSERVADORA
ções, trazendo as rotineiras más notícias num lugar chamado Moinhos. O major
de Lisboa: ordenavam a volta imediata do e irmão de Domitila legaria um relato
príncipe, o final de uma série de medidas engrandecedor sobre o 7 de setembro15,
que consideravam ser privilégios brasilei- centrando detalhes na figura do príncipe
ros e acusavam de traição os ministros e na sua própria. Diante da notícia, d.
que cercavam o regente. Pedro teria saído em disparada em direção
Sob a presidência de Bonifácio, o con- a São Paulo. No sentido oposto vinham
selho de ministros reunira-se no Rio de os mensageiros de José Bonifácio, que o
Janeiro e a conclusão era que chegara a alcançaram “no alto da colina próxima
hora. Tamanha era a pressa, que Boni- do Riacho do Ipiranga”16 . Foi, então,
fácio recomendou ao correio, Paulo Ber- dizem os relatos, em cima de um pequeno
gero, que juntasse quantos cavalos fossem declive de onde se podia avistar a pacata
necessários. A partir daí, o que é lenda e cidade de São Paulo, mais ou menos às 16
o que é verdade fica difícil de resolver; horas, que recebeu a correspondência das
melhor nos fiarmos nos documentos. mãos do major Antonio Ramos Cordeiro.
As missivas não encontraram o prín- As cartas eram muitas: missivas de José
cipe, porém, em local nobre. O regente, Bonifácio, de Antônio Carlos, da princesa
que tinha vencido a serra de Cubatão Leopoldina (uma de 28 e outra de 29 de
montado numa besta baia gateada, enver- agosto). D. Pedro teria, então, lido em voz
gava uma farda comum. Para piorar, lá alta os documentos que determinavam o
pelo dia 7 de setembro, d. Pedro apre- final de seu ministério e a convocação
sentava um estado de saúde que, embora de um novo conselho17.
não tivesse maior gravidade, era por certo Fez-se o ato. A cena aparece narrada
desconfortável uma vez que não encon- em qualquer manual de história do Brasil,
trava suas funções intestinais normali- mas vale a pena recriar sua teatralidade.
zadas, e de forma intermitente era obri- Convocado pelo momento, d. Pedro for-
gado a apartar-se da comitiva, alterar o malizou o que já era realidade: arran-
ritmo da marcha e parar a fim de aliviar cou a fita azul-clara e branca (as cores
a dor repentina. Precisava “prover-se”, constitucionais portuguesas) que osten-
conforme definia um dos companheiros tava no chapéu, desembainhou a espada
de viagem, o coronel Manuel Marcon-
des de Oliveira Melo14 . O momento não
era o mais indicado, mas o destino nem
sempre escolhe hora certa.
15 “Memória sobre a Independência do Brasil pelo Major
Logo que soube da chegada dos emis- Francisco de Castro Canto e Melo, gentil homem da
sários, Francisco de Castro Canto e Melo Imperial Câmara”, 1864, IHGB, lata 400, doc.8.
apressou-se a dar a notícia ao príncipe, 16 “Memória de Canto e Melo”, 1864, IHGB, lata 400,
doc.8. Ver também: “Fragmento de uma memória
sobre a Independência do Brasil, onde se encontram
alguns trechos sobre os serviços do Conselheiro José
Joaquim da Rocha”, Arquivo Nacional, Códice 807,
volume 3.
14 Citado por Sousa (1988, 2º vol., p. 36). 17 Citado por Sousa (1988, 2º vol., p. 33).
REFERÊNCIAS