Professional Documents
Culture Documents
Thomas Altman - A Noiva Da Maldição - Ðøøm Scans
Thomas Altman - A Noiva Da Maldição - Ðøøm Scans
A NOIVA DA MALDIÇÃO
Thomas Altman
Tradução de
Clélia Regina Ramos
2
Título original: The True Bride
Copyright © 1982 by Ink Creations Inc.
Copyright © da tradução brasileira:
Livraria Francisco Alves Editora S.A.
ISBN 85-265-0205-0
1990
Livraria Francisco Alves Editora S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 ― Centro
20050 ― Rio de Janeiro ― RJ
Telefone: (021) 221-3198
3
“Olhe para trás, olhe para trás,
há sangue no sapato.
O sapato é pequeno demais,
não é a noiva certa que vai sentada atrás.”
Primeira Parte
O Sétimo Mês
Prólogo
Faca.
Afiada, reluzente. Sua face refletida na lâmina.
Como em um espelho. Um espelho de parque de di-
versões, distorcido. Sua face.
Seu vestido branco estufa, incha na água quen-
te da banheira. Você sente a água penetrando atra-
vés das roupas, pressionando contra sua pele. A
água quente escorrendo pelo tecido. Você olha
para a faca e pensa...
Pensa nas coisas perdidas, na música silencia-
da, em flores caindo. Violetas, cravos e rosas.
Pensa em amor e perda, e o pensamento cresce
e se expande, até que enche seu cérebro e o empur-
ra fortemente contra o crânio, dando a sensação
de que está caindo num abismo de dor, de uma dor
terrível. Você pensa: Ele não quis o bebê. Você
4
pensa: Algo deve ler acontecido com ele. Não é
possível, ele perdeu o senso das coisas. Ele confun-
diu o tempo. Nada. Nada mesmo.
Explicações.
Você olha fixamente para seus lábios vermelhos
refletidos na lâmina da faca.
Lábios vermelhos. Você abre sua boca, empur-
ra a língua contra os dentes e escorrega mais fun-
do na água quente da banheira para tentar aliviar
a dor em seu cérebro. Mas a pressão cresce dentro
da cabeça e não adianta nem mesmo chorar.
Lágrimas não são respostas, não são soluções. O
mundo parece quebrar-se em mil pedaços. Como
uma casca de ovo esmagada por um pilão.
Você move a mão, deslizando até os joelhos e
depois subindo até o ventre. Empurra o vestido
molhado contra a barriga. Move as pernas, e sua
calcinha branca flutua como um pensamento per-
dido. Você poderia afogar-se agora, é a sua chan-
ce. Você esfrega a palma da mão sobre o ventre.
Mas nada aparece ainda. Nada aparece. Nada.
Você pensa em amor. Seu pobre amor, está tão
perdido... Alguma coisa aconteceu com ele. De re-
pente vem à sua mente um som parecido com músi-
ca fúnebre e você começa a golpear repetidamente
o estômago submerso na água, e o som que agora
ecoa em seus ouvidos é o de vozes cochichadas em
um salão imenso, e os sussurros vão aumentando
de intensidade até que você coloca as duas mãos
5
sobre os ouvidos, tentando em vão parar o baru-
lho, porque não consegue pensar em mais nada; a
pressão aumenta.
Um barulho. Você ouve vozes no andar de bai-
xo da casa e de repente vem uma lembrança estra-
nha à sua mente. Você não sabe onde se encontra,
você existe apenas como uma angustiante pressão,
a pressão da dor e da perda. Você pega a faca e a
coloca com a ponta voltada para o seu corpo. Um
corte. Um insignificante corte na coxa. Mas a faca
é bem afiada, e logo uma pequena mancha verme-
lha flui pela água. Seria mais fácil... fazer um corte
nos pulsos. Mas não. Não é bem isso. O bebê. Ele
queria você, não o bebê. Ele não queria o...
Pobre amor, você imagina que ele voltará, re-
lembra as promessas, as palavras e os sussurros de
amor, e como o amor é uma coisa eterna. Sua me-
mória se preenche com o cheiro dos cabelos dele e
com a maneira de ele sorrir e olhar para o vazio
depois de fazerem amor. Naquele momento mágico,
você consegue trazer de volta tudo que estava pre-
sente naquele sorriso. Você não esqueceria. Você
não esqueceria aquele sorriso, nunca. Olha agora
para baixo e fixa o olharem seu pelos pubianos
imersos n’água. Oh! amor! Você sabe que ele vol-
tará. Você sabe que ele voltará. Sua ausência e o
vazio...
Você quer saber por que está deitada nesta ba-
nheira. Por que seu vestido branco está levantado
6
até acima do estômago com uma faca pousada so-
bre o umbigo? Lembre-se. Você faz um coite. Um
corte como se estivesse traçando uma linha entre
dois pontos.
Agora sabe onde fazer o corte.
Vozes novamente. De outra parte da casa. Elas
ecoam.
Onde ela está? Alguém a viu sair?
Você ouve passos nas escadas. Rápidos. Tem
que fazer a coisa depressa. Faça, faça o corte, em-
purre a lâmina bem fundo, olhe o sangue. Você
pressiona a ponta da faca contra o umbigo, empur-
ra com força e, então, sangue e pedaços de carne
começam a descer em direção ao osso pubiano. Ali
você tenta fazer uma linha rela, uma incisão. Mas
você fica cega de dor, a dor é muito grande em
você, a pressão é inimaginável, seu sangue borbo-
reja em direção à borda da banheira, mais c mais,
e a faca afiada e terrível ― a faca continua estra-
çalhando pedaços de carne e gordura, cortando,
rasgando, furando os intestinos, rompendo e des-
pedaçando, e a dor é como fogo lhe consumindo.
Luzes fracas vêm e vão, você abre a boca, nenhum
som é emitido, talvez um murmúrio, mas tudo o
que você quer é gritar bem alto... e a faca continua
se entranhando através do seu corpo. Nada é pior.
Nada nunca poderia ser pior.
Exceto perder o amor.
Você está cega, mesmo assim olha para baixo e
7
pode ver o sangue formando espirais na água junto
com farrapos de pele pendentes, destacados pela
lâmina. A dor é como um dardo indo diretamente
contra o seu coração. Você sente a escuridão vindo
em sua direção. Então aparece uma luz. Mais luz.
Finalmente você penetra num caminho confuso e
escuro...
Onde diabos ela está? Ela trancou-se no banhei-
ro?
Caminho confuso e escuro.
Movimento. Ligada a você, parte de você move-
se através da secreção, do sangue e das tiras de
carne. Move-se para fora como um girino defor-
mado tentando nadar para sobreviver, cego, deba-
tendo-se, mexendo-se, descarnado e medonho, na
água, a água turva pelo sangue. Então você rasteja
em direção à terrível escuridão das coisas, sub-
mergindo na água, sente que ela entra em sua
boca, sente-se sufocar naquela água sangrenta. E
aquela coisa ainda flutua na superfície, debatendo-
se e morrendo a cada segundo em sua cegueira c
deformidade.
Você pensa ouvir alguma coisa do outro lado
da porta.
Você pensa que ouviu.
Sua cabeça afunda-se na água.
Alguma coisa esmurrando a porta, gritando.
Ela está trancada aí dentro... Aí dentro...
Você sente aquilo escorregar pelas suas coxas,
8
descendo; há tão pouco tempo uma parte de você,
apenas outro pedaço dos muitos que você perdeu...
E você pensa: Amor, pobre amor.
Onde está você agora?
Um
3 de julho
Algo a despertou.
Primeiro ela achou que tinha sido o barulho do
ar-condicionado jogando lufadas de frio pelo apar-
tamento, mas o aparelho estava desligado.
Ellen imaginou se o bebê teria se mexido ou
dado algum chute em sua barriga. Mas ela não sen-
tia nenhum movimento. Sentada na beirada da
cama, passou os dedos pelos cabelos. Estavam res-
secados. Andando pelo corredor, olhou em direção
à cozinha. Uma luz fraca iluminava o fogão.
Ela estava com sede e encheu um copo de água.
16
A água estava tépida, com um sabor químico.
Como podem os habitantes deste imenso deserto
beber um líquido com gosto de ferrugem? Levou o
copo até a sala e, sentando-se no sofá, passou a ob-
servar os detalhes do cômodo, inventando figuras
estranhas a partir da mobília fracamente iluminada
pela luz vinda da cozinha. A moldura de metal do
quadro de Gorman chamou sua atenção. (Foi um
presente de Eric no dia em que lhe contei que ele
iria se tornar pai, ela pensou.)
Ellen bocejou, ainda pensando no que a tinha
feito acordar, querendo saber como conseguiria
dormir novamente. Dr. Phelps a havia aconselhado
manter-se distante dos tranquilizantes e dos remé-
dios para dormir.
Mesmo que a insônia lhe estiver fazendo subir
pelas paredes, Ellen, remédios são dispensáveis.
Muitas mulheres grávidas não podem dormir por-
que se preocupam demais com seu futuro bebê. É
perfeitamente natural preocupar-se. Será que a
criança nascerá perfeita? E se nascer morta? Re-
laxe. Apenas siga os exercícios propostos pelo ma-
nual.
Exercícios propostos.
Ela bocejou novamente. Caminhou até a porta
de vidro que levava à sacada. Afastou as cortinas e
só então percebeu que a porta de vidro de correr já
estava entreaberta.
Ellen colocou sua mão sobre a garganta como
17
se algo a tivesse assustado. Por que a porta estava
aberta? Será que Eric havia esquecido de fechá-la e
trancá-la? Ou talvez ela própria a esquecera aberta?
Da sacada, Ellen olhou para o escuro estaciona-
mento do condomínio. Havia uma lua cheia, uma
lua amarela do deserto, criando sombras por entre
os carros. Ela podia ver os contornos das palmeiras
em torno da piscina e o tremular da luz azul por
dentro da água.
Nenhuma brisa. Nada se move. O escuro céu da
noite.
Apenas a tenacidade do calor persistindo. Entre,
Ellen. Beba um pouco de água gelada, coloque o
ar-condicionado no máximo e volte a dormir.
Mas ela não se mexeu. Via algo. Virou o rosto
para o lado. Uma gota de suor escorreu para dentro
do seu olho, ardendo. Ela esfregou os olhos com os
nós dos dedos e, ainda piscando, voltou sua atenção
para a piscina.
Um movimento. Alguma coisa de cor branca
passou pelas grades de ferro da cerca em volta da
piscina. Uma sombra que tanto poderia ser o rastro
de um gato vira-latas, como um pedaço de jornal
voando com o vento ― mas não havia vento, ela
pensou. Nada se move nesta noite. Uma noite en-
clausurada em seu calor silencioso, as palmeiras es-
tão imóveis...
Ela inclinou-se para frente e fixou o olhar num
ponto.
18
Era uma pessoa. Alguém indo em direção à pis-
cina. Alguém vestido com uma roupa branca. Ellen
forçou a visão. A figura havia parado debaixo de
uma grande palmeira, mascarada pelo luar, indistin-
ta na sombra. Não era possível identificar o sexo, a
altura, não era possível identificar nada, exceto a
vaga suspeita de que a figura elevara seu rosto para
cima e a estava observando.
Não, Ellen pensou. Ninguém está me observan-
do. Ninguém está parado debaixo daquela palmeira
e vigiando.
Vigiando.
Ela deu de ombros e voltou para dentro da casa,
empurrando a porta para fechá-la e trancá-la. Seu
corpo estava coberto de suor.
Ellen dirigiu-se para o quarto e ouviu a voz de
Eric. Ele estava sentado, seu rosto era pouca coisa a
mais que uma sombra contra a fronha branca do
travesseiro.
― Não está conseguindo dormir? ― ele per-
guntou.
Ellen sentou-se na beirada do colchão e respon-
deu:
― Eu queria saber por que aqui não refresca à
noite como acontece em qualquer outro lugar do
mundo.
Ela o ouviu rir. Eric, ela quis falar, Eric, por
que você me carregou para esta desgraçada cidade
do deserto se eu era plenamente feliz na fria e ve-
19
lha Maine?
― Eu fui até a sacada para respirar um pouco e
não pude encontrar nenhum arzinho ― ela disse ao
invés daquilo que pretendera. ― A porta da varan-
da estava aberta.
Por que este acontecimento banal continuava
aborrecendo Ellen?
― Estava?
― Você esqueceu de trancá-la?
Ele ficou em silêncio por um momento.
― Acho que não. Nem mesmo me lembro de ter
ido lá fora.
― Deve ter sido eu mesma ― ela replicou.
Ellen cerrou os olhos e guiou seu rosto na dire-
ção do peito nu de Eric. Os pelos claros fizeram có-
cegas nela. Por um instante refugiou-se em Eric,
porque havia carinho e solidariedade em sua pre-
sença física, uma doce sensação de segurança, onde
ela poderia deixar seus medos e preocupações de
lado. Deformado. Natimorto. Os medos são piores
na primeira gravidez, Ellen. Toda vez que o bebê
se mexe você imagina que ele está saindo do seu
corpo.
Ela mudou de posição, tentando encontrar algu-
ma mais confortável.
― Estou me sentindo tão gorda ― Ellen falou.
As vezes me sinto como um balão. Estou inchada,
meus tornozelos parecendo troncos de árvores,
meus seios estão vazando leite, e estas roupas sem
20
forma não ajudam nada...
― Ei, por que este assunto agora?
― Eu não sei. Um pouco de medo. Estou assus-
tada com a dor do parto; então, começo a pensar
que o garoto poderá ter pés-de-pato ou ser cego de
um olho, você entende?
Ela ficou um momento em silêncio e retomou:
― Eu pensei ter visto alguém quando estava lá
fora na varanda. Alguém que estava me observan-
do.
Eric sorriu. Ela entendeu que era uma simples
tentativa de aliviar suas tensões, acalmá-la de seus
temores absurdos.
26
Dois
6 de julho
Três
41
8 de julho
Quatro
11 de julho
Vicky disse:
― A única coisa que eu realmente detesto quan-
do venho lhe visitar neste apartamento é o jeito
com que você sempre olha através deste olho mági-
co antes de abrir a bendita porta. Faz-me sentir um
peixe no aquário ou algo parecido.
Ellen, sorrindo, fechou a porta depois da amiga
entrar.
― Eric instalou a coisa, você sabe. Para minha
própria segurança, ele disse.
Vicky entrou pelo corredor, retirando seu cha-
péu azul de brim e balançando seus longos cabelos,
54
dirigindo-se para a sala de estar.
Que passos largos, Ellen pensou. Sempre com
pressa. Com que diabos ela espera que a siga?
― Segurança é uma ilusão, menina ― ironizou
Vicky.
Ela já estava sentada no sofá. Da bolsa, apanhou
um cigarro e colocou-o numa pequena piteira desti-
nada a diminuir o teor da nicotina.
― Diga-me, o que está a salvo num mundo
como o nosso? Você sabia que ninguém está real-
mente a salvo?
― Esta é uma questão teórica ou você quer que
eu responda? ― Ellen perguntou.
Vicky deu uma tragada rápida, vigorosa.
― Desculpe-me. Estou mal-humorada esta ma-
nhã. Recebi uma carta do meu ex-marido, Stan, na
qual ele, polidamente, informa que deseja ficar com
a nossa filha por duas semanas além do legalmente
estabelecido para este período. Eu adoraria saber
por que diabos nós precisamos ter passado por uma
longa batalha na justiça juntos, quando ele resolve
por conta própria estender os períodos. Eu deveria
processar aquele cuzão gordo.
Ellen sentou-se em frente a Vicky. As chegadas
da amiga eram sempre acompanhadas por alguma
explosão de energia, um turbilhão de palavras, um
brilho de turquesa, um fulgor de raio, uma névoa de
fumaça de tabaco. Às vezes Vicky dava a impres-
são de que estava a ponto de explodir em alguma
55
dimensão desconhecida, dragando você com ela.
Possuía o rosto bonito, queixo quadrado, as maçãs
do rosto altas e dominadoras. Seus cabelos negros
pendiam espessos sobre os ombros, e sua camisa
branca, seus jeans azuis eram feitos sob medida,
bem justos.
― Ele tem saudades da filha ― argumentou El-
len.
― Eu tenho saudades dela também ― respon-
deu Vicky. ― Basicamente, eu não aprovo a nova
mulher de Stan, aquela hippie. Não gosto do tipo
― tem a idade mental de oito anos e acha que é
uma das mais maravilhosas mães da face da Terra,
cujo destino é seguir tendo filhotes e viver numa
montanha de farinha láctea.
Ellen deu de ombros. Imaginou ter detectado
uma ponta de ciúmes na voz de Vicky.
― Você não deveria deixar esta história afetá-la
dessa maneira.
― Eu sinto saudades de Kim. Quero minha fi-
lha comigo de volta. Não gosto de sabê-la viajando
por alguma comunidade hippie ou onde quer que
Stan viva. Mas chega de falar de mim. Como está
você? Como está o bebê?
― Continuando na luta.
― Esperando o grande dia, certo?
― Esperando. Temendo.
― Não há nada o que temer. Pode confiar. Uma
garota de boa saúde como você, com estes hábitos
56
alimentares de New England ― você passará por
isso com sucesso. Acredite em mim.
Ellen sorriu:
― Espero que sim.
Vicky acendeu outro cigarro.
― E como está o Eric?
― Está bem. Acho que ele gosta do calor ―
respondeu Ellen.
Vicky silenciou. Olhou para Ellen, dando a im-
pressão de estar a ponto de fazer outra pergunta so-
bre Eric, mas não a fez.
― O bom dr. Phelps está cuidando bem de
você? ― ela perguntou ao invés disso.
― Ele é um pouco antiquado, mas eu gosto
dele.
― Antiquado? Ah, eu sei. Ele me mandou um
panfleto sobre sexo para futuros pais.
― Eu também recebi.
Vicky riu com vontade.
― E aquele que sugere que você pratique sexo
oral depois de proteger sua boca com o diafragma?
Ellen sorriu:
― Quase isso. Vou fazer um café. Quer?
― Claro. Vou fazer-lhe companhia na cozinha.
Posso dar uma força?
― Obrigada. Eu preciso sim.
Ellen ligou a máquina de fazer café e Vicky a
seguiu, arrastando uma linha de fumaça de cigarro.
A primeira perguntou:
57
― Como vão os negócios?
― Os tempos estão difíceis ― respondeu
Vicky. ― Ainda estou penando o fato de você e seu
marido não terem comprado aquela casa tão conve-
niente comigo. Um bom preço, uma localização tão
elegante. Acabou comigo quando um dos meus
concorrentes entrou no meio do negócio e vendeu
para vocês este apartamento bem embaixo do meu
nariz.
Vicky silenciou. Depois disse:
― De qualquer maneira, o que sobre de bom
pesa mais do que estas coisas. Nós somos amigos,
apesar disso. Num mundo como esse, com que se
pode contar senão com uns poucos amigos?
Ela estendeu os braços e impulsivamente deu
um abraço rápido em Ellen. Quando retrocedeu,
braços ao largo, ela sorria ― e Ellen desejou muito
saber por que sentira um leve constrangimento pelo
abraço. Um pouco daquela dureza de New England
na alma, talvez. Alguns traços da frieza ianque no
sangue novamente. Ela observava a água fervente
pingando do filtro de café. Uns poucos amigos no
fim das contas, ela pensou: Vicky era a melhor, tal-
vez a única amiga cm todo o Arizona. Dobrou os
braços sob os seios, sentindo seu tamanho e peso.
Vicky estava bisbilhotando na cozinha, os saltos
das botas de caubói faziam uma barulheira danada
no ladrilho.
― Pois bem. Fale-me sobre sua vida social atu-
58
al ― perguntou Ellen.
― Engraçado você perguntar. Tenho saído com
um cara que vende equipamentos para musculação.
Ele tem tanto bíceps, quanto a Dolly Parton tem
seios.
Ellen olhou para a amiga. Havia toda uma histó-
ria de infelicidade em torno dela: desde o divórcio,
Vicky embarcara em sucessivos relacionamentos
banais com homens casados. Eric havia dito uma
vez que era óbvio que ela procurasse homens casa-
dos, porque, na verdade, não desejava manter ne-
nhuma ligação séria.
Ligações ― isto faz a pessoa parecer um aspira-
dor de pó.
― Não posso chutar um homem porque ele é
casado, não é?
Ellen começou a colocar café nas xícaras.
― Às vezes eu adoraria saber ― não encare
isso como uma crítica. Por que esse interesse por
homens casados, Vicky? Os relacionamentos pare-
cem ir a lugar nenhum...
Vicky jogou a ponta do cigarro na trituradora de
lixo, deixou correr um pouco de água e depois li-
gou o aparelho: um barulho de lâminas girando foi
ouvido por instantes.
― Estou detectando um leve tom de desaprova-
ção em sua voz, Ellen?
A outra balançou a cabeça:
― Claro que não. Não sou juiz, que droga! É
59
apenas que estas coisas que você arranja nunca pa-
recem levar a nada. Eu acho que você merece mais.
Homens casados, ela pensou. O mundo dos ho-
mens casados. E voltou seus pensamentos para
Eric: O que você faria se descobrisse que Eric esta-
va tendo um caso? Se você descobrisse que ele tem
alguém, como está acontecendo com a Vicky? Ela
gostava de imaginar seu altruísmo em entender e
perdoar, ela apreciava a idéia de ser generosa ―
mas havia outro lado que ela nunca visualizava: o
ciúme, o choque da inveja, a dor, a reconstrução vi-
sual de uma cena ― Eric fazendo amor com outra
mulher. (Anna Rosenberg. Por que aquela criança
cabeça-oca aparece sempre para irritá-la? Por que
não consegue ter controle sobre a própria mente?)
― A verdadeira razão de eu vir aqui ― Vicky
disse ― foi apanhá-la para almoçarmos. Mesmo
que eu tenha que arrastá-la daqui.
― Arrastar-me? Você não precisa fazer isso.
Apenas dê-me uns minutos para trocar de roupa.
Ellen entrou no quarto, abriu a porta do armário
e parou melancólica olhando para os vestidos e cal-
ças que não mais usava, pendurados juntos num
canto, como se tivessem sido rejeitados ― gulosei-
mas colocadas diante de alguém em dieta de ema-
grecimento, fora do alcance. As roupas de grávida
eram sem graça e deselegantes. Ela retirou a bata
azul que vestira no jantar com Eric, depois a devol-
veu. Vou guardá-la para outra celebração, ela pen-
60
sou, e decidiu-se por um vestido vinho que odiava.
Saindo da sua própria reflexão, escovou rapida-
mente os cabelos e enfiou suas sandálias abertas.
Ok, ela disse para si mesma, tempo de enfrentar o
calor do Arizona.
Na sala de estar Vicky esperava em pé ao lado
das estantes, folheando as páginas do livro Jornada
nas estrelas de Eric.
― Estou pronta ― Ellen falou.
― Vou usar seu banheiro antes de irmos ―
Vicky disse.
Ellen observou sua amiga movendo-se pelo cor-
redor na direção do quarto. Ouviu o som da porta
fechando, seguido pelo ribombo de água correndo,
a descarga. E então ― então houve um grande si-
lêncio. Ellen esperou impacientemente batendo os
pés no tapete. O que estaca detendo Vicky? Quanto
tempo seria possível gastar-se no banheiro? Ela foi
até o quarto justamente quando Vicky saía.
― Aquelas bonecas devem valer uma fortuna
― Vicky perguntou. ― Eu estava olhando para
elas, devem ser antigas.
― Você está interessada em comprá-las? ― El-
len perguntou.
― Comprar bonecas, eu? Ninguém nunca expli-
cou para você? Garotas grandes não brincam com
bonecas.
Cinco
12 de julho
66
Ele estava atrasado. Aquilo não era do seu feitio
― quando ele sabia que demoraria mais um pouco
no trabalho, sempre ligava —, mas esta noite o te-
lefone estava silencioso. Ela começou a preparar
um dos pratos prediletos de Eric e, mesmo que sua
atenção não estivesse ali, mesmo que a idéia de co-
mer tal coisa a horrorizasse, não obstante todas es-
tas razões, gastou um tempo considerável batendo
as costeletas de vitela com a parte côncava da co-
lher de pau e colocando-as numa mistura de molho
de soja e alho. No momento, as costeletas estavam
no forno, sendo viradas constantemente, dourando
― como num processo de alquimia ― passando de
algo que um cachorro rejeitaria para algo comestí-
vel.
Onde diabos estava ele? E por que não ligava?
Ela sentou-se na sala e fixou os olhos nas luzes
tremulantes das duas velas que acendera na mesa
preparada para o jantar. Cera derretida. Pingos es-
corriam, endurecendo no linho da toalha. Sua impa-
ciência pouco a pouco tornou-se preocupação. O
que ela visualizava era uma cinzenta foto de jornal
com um automóvel destruído na estrada ― bom-
beiros tossindo em meio às ferragens retorcidas da-
quilo que até recentemente fora um carro, as luzes
dos carros de polícia iluminando o acidente, como
avisos luminosos refletindo no chão. Ellen cami-
nhava de um lado para outro, indo e voltando até a
67
varanda, procurando um sinal do Datsun. Nada.
Começou a sentir cansaço, uma fadiga nervosa, e
sentou-se mais uma vez no sofá, tentando encontrar
uma posição na qual ficasse um pouco mais confor-
tável. Pensar a pior coisa primeiro, ela lucubrou.
Imagine que ele está morto num carro acidentado.
Alguém teria telefonado para contar. Um tira teria
chamado, certo? Talvez. Desculpe-me senhora
Campbell, como a senhora está se sentindo por ter
enviuvado? Meu Deus. Como ela podia ficar o tem-
po todo alimentando esse tipo de besteira na cabe-
ça? Más notícias caminham depressa, não se esque-
ça. Muito bem, se não ocorreu um acidente, então
tinha a ver com o trabalho. Uma volta de emergên-
cia ao escritório. Talvez. O que poderia fazê-lo vol-
tar? Uma reunião extraordinária do conselho? A
chegada repentina de auditores que encontraram
algo duvidoso nos livros-caixa?
Um gosto ruim subiu através da garganta de El-
len. Nenhum acidente. Uma emergência no escritó-
rio. Difícil. O quê, então? O quê?
Sem nenhuma razão aparente, apanhou-se lem-
brando quando ele pediu sua mão em casamento.
Neve, vento gelado e queda de temperatura, o sel-
vagem Atlântico descarregando sua fúria através de
uma tempestade por toda a costa de New England.
Eles bebiam vinho num restaurante quando Eric,
subitamente, inclinou seu copo para a frente ―
quase derramando a bebida, ela recordou, fazendo
68
com que o mesmo girasse a ponto de derrubá-lo ―
e colocou A Questão diante dela.
Nós realmente não nos conhecemos, Eric...
O que mais nós precisamos saber? Nós somos
bons um para o outro. Somos bons juntos. O que
mais precisamos saber? Eu amo você. Você não me
ama?
Ela lembrou como ficara olhando para o copo
de vinho, sentindo uma estranha vertigem, removi-
da do espaço físico do restaurante. Recordou como
ficara olhando para a janela, a neve grudada no vi-
dro. Na sua cabeça, a coisa aconteceria num pro-
cesso mais longo, algo menos espontâneo, um na-
moro mais duradouro, o tradicional casamento che-
gando depois de um período adequado de tempo.
Tradicional, período adequado, um namoro dura-
douro. O que ela estava pensando? Aquelas eram
palavras e termos que sua mãe usaria. Era como se
tivesse sido involuntariamente mergulhada na ma-
neira de olhar a vida de sua mãe. Reflexos condici-
onados, comportamento adquirido. Eu não estou
desposando minha mãe, ela pensara.
Eu amo você, Eric.
Eu ouço sobre um lugar.
Eu não estarei lá para ser uma...
Houve então uma pausa, um corte na conversa.
Ela tinha um trabalho interessante numa companhia
de seguros em Bangos. Seu próprio apartamento.
Um carro novo. Como se ela tivesse que dar impor-
69
tância para essas coisas, as coisas que possuía,
como defesas contra a dependência, maneiras de
escapar do castelo da mamãe. O que aconteceria se
aceitasse Eric, se baixasse a guarda?
Amor. A força do amor. Uma coisa intocável
como o vento, imprevisível como o olho de um fu-
racão. Foi amor que ela pôde recuperar enquanto
houve a pausa. Amor definido, com suas linhas de-
lineadas, com forma e substância. Ela preencheu os
espaços brancos.
Ellen esticou-se por cima da mesa e segurou as
mãos de Eric. Sussurrou então aquilo que ele dese-
java ouvir. Neve, vinho tinto, o pedido, o consenti-
mento: sob o som da lenha queimando na lareira, os
detalhes pareciam ter sido plagiados de um antigo
filme romântico. Sim, ela respondeu ― e por algu-
ma estranha razão, principiou a rir, riu até seus
olhos umedecerem.
Ellen foi até o banheiro e olhou-se no espelho.
Você está rindo porque se sente ótima. Por que se
sente tão terrivelmente ótima. Porque neste instante
único, com o som desta palavra única; você está
exultante diante de como conseguiu superar os li-
mites impostos às emoções através da educação.
Você está realmente livre, livre e solta.
Depois disso, Eric viajou por três dias para visi-
tar seus pais, para informá-los sobre o casamento.
Aqueles dias foram preenchidos com o mais agudo
vazio que jamais sentira. Ele não telefonou. Não es-
70
creveu. Ela ficara em seu apartamento esperando o
telefone tocar. Quando ele voltou, não falou muito
sobre a visita. Ela, por sua vez, não fizera muitas
perguntas ― simplesmente intuiu que, por algum
motivo, eles não teriam ficado felizes com a esco-
lha. Talvez tenha sido uma surpresa muito grande
para eles, talvez nutrissem outras ambições. Como
poderia saber? Não os conhecia, jamais vira nenhu-
ma fotografia, e Eric não falava sobre eles. E como
se estivessem esquecidos em algum canto obscuro
da vida dele e ela não interferia. Igualmente, por
seus próprios motivos mesquinhos, sua mãe não
comparecera ao casamento.
Agora, ao pensar no passado, a solidão do apar-
tamento a assustava. Ela observava em volta os ob-
jetos familiares ― os quadros nas paredes, a estúpi-
da coruja tecida em macramé, a televisão, o caro
aparelho de som de Eric ― e acabou por perceber
que eles haviam perdido muito de sua familiarida-
de, tinham se tornado objetos estranhos a ela. Estas
coisas não significam nada quando ele não está
aqui, Ellen pensou. Estas coisas perderam seu sig-
nificado, pensou ela esfregando as mãos nervosa-
mente. Sua aliança de casamento parecia sem senti-
do. Até mesmo o bebê em sua barriga não parecia
fazer parte dela.
Quando apagou as velas, o cheiro de cera derre-
tida penetrou em suas narinas. Olhou para a salada,
intacta na travessa. Onde diabos ele estava? (Mor-
71
to? Ele não pode estar morto. Eric não pode.) Apa-
nhou uma folhinha de alface murcha e soltou-a
dentro da salada novamente. O bebê moveu-se. Ele
parecia estar virando em volta de si mesmo lá den-
tro, enrolando-se no cordão umbilical: ela imaginou
um astronauta flutuando no espaço, ligado à cáp-
sula-mãe por uma corda salva-vidas bem tênue.
Não agora, ela pensou. Não comece a bagunçar
agora. Dirigiu-se ao quarto e de lá ao banheiro.
Embora Phelps a tivesse prevenido contra aquilo,
ela apanhou o vidro de Valium e engoliu um com-
primido a seco. Relaxe. Tente relaxar. Existe algu-
ma boa razão para a ausência dele.
Ela voltou à sala de estar.
Pânico. Era estranho como vinha devagar, como
começava por um caminho tão estreito e então, fei-
to um balão sendo enchido com gás hélio, crescia e
crescia. Pânico ― sempre ardiloso, sempre domi-
nador. Ela fechou os olhos e esperou pela ação do
Valium. Havia uma dor aguda pressionando seu
peito, uma sensação desagradável que lembrava in-
digestão. Se eu conseguisse dormir, ela pensou. Se
eu pudesse dormir até que ele volte.
Isso é bobagem. E realmente absurdo. Você tem
que se acalmar. O homem está duas horas atrasado
e você já está se imaginando no necrotério para
identificar o corpo.
Loucura, teatro, causando um pânico ridículo
como este. Ela olhava o farol dos carros atravessan-
72
do o estacionamento. Abriu a porta da varanda e
saiu. O calor da noite era sufocante. Do outro lado
da piscina estava a quadra de tênis iluminada por
fortes holofotes, chapados e brilhantes. Ellen podia
ouvir o som da bola sendo jogada de lá para cá, e a
risada debochada de uma garota (Anna Seiladas-
quantas. Alguém como Anna poderia jogar neste
calor, parecendo, sem dúvida, muito bem debaixo
deste chapéu molengo. Suas coxas bronzeadas de-
viam estar luzindo sob o reflexo das luzes.)
ERIC CAMPBELL DEIXA UMA VIÚVA, EL-
LEN, 27, E UM FILHO POR NASCER. Páginas
do cinzento obituário, as estatísticas de morte, o
rosto pálido sobre a lápide de mármore e a notícia
fria exsudada sem nenhum sentimento numa página
de jornal.
Desgraça! Ela podia sentir o sono chegando
agora, mas quis combater a sensação. Como, em
nome de Deus, ela podia dormir numa hora dessas?
O efeito do remédio. Uma sensação de flutuar em
mar calmo. Os músculos relaxando na água tépida.
Esforçou-se para se colocar numa posição ereta.
Sentou-se e esticou as pernas.
Ela ouviu algo.
A chave girando na fechadura.
A porta abrindo. Fechando.
O som de um assobio suave.
Eric.
Como se ele não estivesse atrasado, como se
73
não a tivesse colocado fora de si, parou no vão da
porta, sorriu e depositou sua pasta sobre o tapete. A
despeito de si mesma, ela sorriu: recriminação só
depois de sentir alívio. Ele atravessou a sala e pas-
sou os braços em torno dela. Por um bom tempo ela
não disse nada. Simplesmente o abraçou. Deu-lhe
um abraço apertado. O marido percebeu que chora-
va. Ao afastar-se dele, viu seu rosto como se esti-
vesse através de um vidro fosco, enevoado.
― Ei! ― exclamou, segurando o queixo da mu-
lher. ― Ei! ― repetiu.
― Existem telefones. Trabalham com simples
fichinhas. Você já ouviu falar deles, eu acho.
Eric suspirou. Ajoelhando em frente à esposa,
virou-se nos calcanhares:
― Eu sei, eu sei.
Não o interrogue, ela disse a si mesma. Não seja
a Esposa Censuradora, a Super dona-de-casa Preo-
cupada. Não encha seu saco, pelo amor de Deus.
― Eu acho... você poderia estar esmagado sob
o carro. Você poderia estar estendido em alguma
maldita enfermaria, Eric.
Ela ouviu sua própria voz aumentando de volu-
me, aumentando. Queria controlar-se, calar sua his-
teria. Mas não conseguia.
― Com que diabos eu poderia imaginar que es-
tava tudo bem? Eu não sou médium, não fui brinda-
da com nenhum senso de clarividência! Apenas
sentei aqui e esquentei meus miolos. Foi tudo o que
74
fiz. Esquentei os infelizes dos meus miolos.
Você está se lamuriando, ela pensou. Lamurian-
do, xingando e queixando-se. Deixe ir, apenas dei-
xe ir.
Ele começou a esfregar os ombros dela.
― Eu deveria ter ligado, eu sei...
― Desgraçadamente certo.
― Realmente não pude, Ellen.
― Não exigiria muito, não é? Eu acho que você
apenas teria que apertar alguns botões e falar umas
poucas palavras, Eric. Não demora tanto fazer uma
simples chamada telefônica.
Eric levantou-se.
― Eu estava lá no escritório. Faltavam apenas
uns dois minutos para as cinco horas, certo? Eu es-
tava me aprontando para vir para casa, quando adi-
vinha quem aparece? “Ele”. “Ele” quer discutir
uma totalmente nova estratégia de levantamento de
fundos. A dois malditos minutos para as cinco,
lembre-se. “Ele” não tem pressa de ir para casa.
“Ele” não tem uma esposa, muito menos uma espo-
sa grávida. “Ele” pode sentar-se lá, com seus pés
sobre sua mesa e tagarelar por horas a fio. Seu ma-
rido teve que sentar-se imóvel e ficar girando os de-
dinhos, inquietar-se, ir ficando cada vez mais preo-
cupado com você. Enquanto isso, “Ele” ainda está
resmungando.
“Ele” era o nome que Eric dava ao diretor da
empresa, Ralph Houseman.
75
― Tudo bem, eu entendo ― ela disse. ― Eu
posso ver a cena. Mas você não poderia ter-se des-
culpado e telefonado?
― E interromper “Ele”? Eu não cometeria esta
blasfêmia. É como se eu fosse a uma igreja e cus-
pisse no altar, amor.
― Tudo bem, eu posso entender isso também.
Mas quando você saiu do escritório, poderia dar
uma ligadinha, não? Eu apenas queria saber que es-
tava tudo certo. É só o que eu queria saber. Não faz
sentido?
― Claro que faz sentido. Mas eu estava com
pressa de chegar. Eu dirigi como se estivesse sendo
perseguido pelas Eríneas.
― O ponto é...
― O ponto é, eu não liguei ― completou Eric
enquanto procurava pelas mãos dela, segurava-as e
a beijava no rosto. ― Eu não irei aborrecê-la nova-
mente. Eu prometo. Eu juro.
Ellen segurou as mãos dele e as manteve entre-
laçadas com as dela, observando por um bom tem-
po os pelinhos negros que havia na base dos dedos
do marido.
― Como você pode aturar uma velha gorda
chorona como eu? ― ela perguntou.
― É moleza.
― Sério?
― Claro que é.
Ela riu ― havia calma agora, o nervosismo se
76
fora. Ela sentiu como se estivesse olhando para um
lugar recentemente devassado por uma tempestade.
Calma, paz, uma sensação de contentamento.
― Como você se sente sobre duas costeletas de
vitela completamente queimadas?
― Acho que não tenho nenhum sentimento a
respeito.
― Eu posso fazer uma omelete. Posso bater al-
guns ovos.
Eric balançou a cabeça.
― Tenho uma idéia melhor.
― O quê, por exemplo?
― Eu poderia levá-la para jantar. Lembra-se da-
quele lugar que faz fondues?
Ela assentiu.
― Ótimo. Quero apenas cinco minutos para me
trocar.
― Você parece bem desse jeito.
― Estou me sentindo feia.
Ele sorriu, sentou-se no sofá e olhou para ela. A
expressão de Eric ― como poderia descrevê-la?
Ele parecia resplandecente, como se estivesse mui-
to orgulhoso do que via. Minha mulher, ela pensou.
Minha família. Nós três. Era isso que a expressão
dele dizia.
Ela sentou-se diante da sua penteadeira. Pelo
canto do olho sentia o olhar das bonecas. Ellen vi-
rou-se, fixou-se nelas, odiando a cena
― enfileiradas e bonitinhas como androides
77
malvados. Pálida, ela pensou, pálida como uma da-
quelas bonecas de porcelana. Elas tinham riscos ne-
gros sob os olhos ― de uma cor entre o anil e o vi-
oleta. Com as mãos entrelaçadas, levantou-se e di-
rigiu-se ao closet. Desabotoou a saia e, ao tirar a
blusa, percebeu veias em seu busto inchado. Imagi-
nou o sangue percorrendo todo seu corpo, viajando
através da intrincada rede de artérias e veias, bom-
beado pelo coração com o propósito mágico de sus-
tentar duas vidas.
Ellen abriu a porta do armário e começou a
olhar suas roupas. Lentamente procurava através
dos cabides. Tudo parecia grande, folgado, sem
graça, tudo singularmente monótono, apesar da ten-
tativa desesperada dos estilistas pincelando cores
brilhantes naquelas oferendas disformes.
Uma blusa azul com mangas fofas e, os tão na
moda, punhos justos.
Onde ela está se escondendo? Apareça, apareça,
ela pensou.
Onde diabos está?
Quando definitivamente não pôde encontrá-la,
Ellen ainda pensou que a bata poderia ter escorre-
gado pela prateleira e abaixou-se para olhar, reme-
xendo em algumas caixas de sapato, sacolas de
loja, malhas de inverno devidamente ensacadas em
papel-celofane. Nada. Nem sinal da blusa. Diabos.
Levantou-se resmungando um pouco, com bolinhas
coloridas passando diante dos olhos. Olhou nova-
78
mente na prateleira. Não havia nenhuma bata azul.
Ellen virou-se ao ouvir Eric entrar no quarto.
― Eu estava a ponto de mandar investigar o seu
desaparecimento ― ele brincou.
― Estou procurando minha bata azul.
Onde ela se escondeu?
― Posso ajudar?
― Azul, azul, azul ― ela respondeu. ― Novi-
nha em folha. Eu a vesti no jantar outro dia. Você
se lembra?
― Claro, respondeu Eric aproximando-se do
closet. ― Eu não a vejo.
― Tenho certeza de que ela estava pendurada
aqui ontem ― ela insistiu, passando os dedos pelas
roupas colocadas nas prateleiras. Nada. Voltou-se
para Eric, então:
― Será possível que eu a tenha mandado para a
lavanderia hoje?
Por que não conseguia se lembrar?
― Eu estava no trabalho. Não posso saber.
Eric parecia não ter dado importância ao caso:
uma blusa perdida não era um problema sério. Ele
disse:
― Vai aparecer. Tudo aparece no final das con-
tas.
― Eu espero ― finalizou Ellen, apanhando um
vestido vermelho-escuro de algodão do cabide e
enfiando no corpo.
― Enquanto isso, eu morro de fome.
79
Eles comeram no terraço do restaurante. Ela
mergulhava pedaços de aipo na panela do fondue
de queijo e os ia comendo devagarinho. Eric, por
sua vez, comia vorazmente. Quando ele terminou,
acendeu o cigarro e recostou-se na cadeira, olhando
para o céu da noite. Ela estava cansada, cansada
por conta dos efeitos do Valium e do nervosismo
que sobrara da ansiedade sentida.
― Nomes ― ela disse, olhando para os pedaços
enrijecidos de queijo que haviam caído sobre o pra-
to. ― Nomes são um problema.
Ellen olhava para as outras mesas cheias no ter-
raço. Você tem que percorrer o alfabeto para deci-
dir-se por um nome, começando pela letra A ― e
então apanhou-se pensando em Anna Rosenberg. A
mente manda em si mesma, pensou. Eu não preciso
lembrar-me de Anna Rosenberg.
Ellen sorriu e inclinou-se sobre a mesa.
― A propósito, você sabe que tem uma admira-
dora no condomínio?
Ele não disse nada.
― Uma garota loira muito bonita. Eu a conheci
na lavanderia e ela começou a falar sobre quão bo-
nito você é.
― Ela tem bom gosto.
― Eu concordo. Só não sei se devo ficar lison-
jeada ou temerosa...
Vai com calma, Ellen, ela pensou. Vai com cal-
80
ma, brincando, uma ponta de malícia.
― Fique lisonjeada. É mais fácil lidar com esse
sentimento.
― Você já viu a garota? É Anna qualquer coisa.
― Acho que devem ter umas vinte Annas mo-
rando no condomínio. Quando elas vão dormir, são
apenas 10, mas, por um processo misterioso, multi-
plicam-se durante a noite. Pronto, acordam e já são
20.
― Eu apenas achei que você gostaria de se sa-
ber admirado.
― Estou interessado apenas em sua admiração,
Sra. Campbell.
Eu amo você, ela pensou. Eu amo você por toda
a vida.
Veio então uma brisa, espalhando as migalhas
de comida pelo chão, sacudindo as toalhas das me-
sas. Eric levantou-se, ajudando Ellen a ficar em pé.
Ele colocou a mão na boca, cobrindo o bocejo.
― Foi um dia longo ― disse.
Um longo, longo dia, ela pensou.
Azul.
Azul-claro.
O azul dos olhos do bebê.
Você se senta bem quietinha no quarto escuro
com a tesoura nas mãos e por um momento assus-
tador não consegue lembrar o motivo pelo qual
você a está segurando, e então a memória volta,
volta e você levanta-se e caminha em direção à
penteadeira. Você vê seu rosto branco por um mo-
mento no espelho. Você coloca a tesoura sobre o
azul: percorre com ela os botões.
Azul.
Vê a tesoura através do azul.
Vê a tesoura slash slash slash através do azul.
Seis
13 de julho
Sete
16 de julho
Oito
17 de julho
Nove
18 de julho
Dez
22 de julho
Onze
26 de julho
Segunda Parte
O Oitavo Mês
Doze
5 de agosto
HOWARD G. ELY
Estrada Millar
Scottsdale, Arizona
Tel.: 947-1767
Treze
9 de agosto
CARBONATO DE LÍTIO
CÁPSULAS E TABLETES, USP, 300mg.
CARBONATO DE LÍTIO
CÁPSULAS E TABLETES, USP, 300mg
CARBONATO DE LÍTIO.
Quatorze
12 de agosto
244
Por três dias ela julgou-se estar sempre obser-
vando o marido. Observando-o e esperando que
algo aparecesse, uma rachadura na estrutura dele,
uma abertura através da qual pudesse espiar e de-
clarar para si mesma: sim, este é o sinal, esta é a
loucura pela qual eu vinha aguardando. À noite,
procurava escutar os pesadelos dele, que não ocor-
riam. Escutava o ritmo abafado da respiração de
Eric e esperava que seu sonho tomasse forma e
preenchesse o quarto do casal com horror c pânico.
O sonho não vinha. Por dois dias observou um ho-
mem que parecia totalmente normal em todos os
aspectos ― exceto pelo fato de ter-lhe sido prescri-
to um medicamento para controle de psicose maní-
aco-depressiva. Por dois dias Ellen encetou conver-
sas esporádicas com o marido, respondeu às suas
perguntas de tal modo que, se as conversas tives-
sem sido gravadas, soariam extremamente rotinei-
ras para qualquer ouvinte. Era como estar convi-
vendo com uma bomba silenciosa, uma bomba que
parava o seu tique-taque, mas que, apesar de tudo,
ainda estava ativada. Ela gostaria de saber o quanto
de seu pavio ainda restava e quanto já fora queima-
do.
Uma ou duas vezes pegou o telefone para entrar
em contato com dr. Ely, mas sabia que não conse-
guiria e, mesmo se conseguisse falar, não obteria
nenhuma informação. Privacidade. Ética profissio-
245
nal. Sabia que não conseguiria nenhum esclareci-
mento trilhando por este caminho. Quando Eric
fosse para o trabalho leria e releria aquela página
furtada e, cada vez que o fizesse, vivenciaria uma
situação de pavor. Certas vezes as palavras saltari-
am do texto como se quisessem agarrá-la pelo pes-
coço; outras, obscureceriam qualquer significado
que pudessem possuir.
O Lítio é um elemento do grupo dos metais al-
calinos com número atômico 3, peso atômico 6,94,
e uma faixa de emissão em 671 nm no fotômetro de
chama.
Sem sentido. O que toda essa terminologia cien-
tífica tinha a ver com a criatura de carne e osso que
era o seu marido? Qual a importância que o peso
atômico do lítio tinha para ela?
Sintomas típicos da mania incluem pressão de
oratória. (O que seria isso? O que significava
“pressão de oratória”?) Hiperatividade motora, ne-
cessidade de sono reduzida, idéias fugidias, mega-
lomania, exaltação, julgamento falho, agressivida-
de e possivelmente hostilidade...
Ellen às vezes desejava pegar aquela página e
jogá-la no vaso sanitário, ou queimá-la e esquecer
tudo que aprendera e retornar a uma vida normal,
deixando Eric com seu segredo, sua medicação par-
ticular, seu psiquiatra. Mas então, de alguma forma,
parecia ser mais importante compreender por que
Eric ficara assim, por qual motivo um psiquiatra
246
sentado em seu consultório receitaria uma droga
tão potente. Então, ela faria com que sua mente re-
tornasse, buscando pistas dissimuladas, analisando
cuidadosamente o comportamento dele, procurando
pela essência de tudo isso ― apenas para chegar à
mesma conclusão: Algo da vida de Eric ainda não
me foi revelado. Algo aconteceu em seu universo
antes de mim.
Procurou certas palavras no dicionário.
A definição de psicose já era uma perfeita exibi-
ção de horror ― Desarranjo da estrutura mental
caracterizado pela deficiência ou perda de contato
com a realidade.
Era como olhar através de fendas estreitas na
estrutura das palavras para visualizar seu próprio
marido, quase como se ela o tivesse deixado esca-
pulir para outro local e o tivesse perdido no meio
de uma frase técnica.
Possivelmente hostilidade. Perda de contato
com a realidade. Por que às vezes acreditava que
ela era a única que não percebia a realidade? Re-
volvendo a vida de Eric, fazendo seu próprio traba-
lho amador de arqueologia do coração do marido,
não estava aprendendo nada e perdia tudo que já
sabia. Ellen sentia-se como um urso querendo hi-
bernar, desejando que seu filho nascesse durante
um ciclo de sono profundo, acordar na próxima pri-
mavera como uma nova mulher, revitalizada e revi-
gorada, misericordiosamente desmemoriada. Mas
247
esse tipo de amnésia auto-imposta não era um dom
que ela possuía. Não colocaria esse ou aquele as-
sunto de lado até que descobrisse tudo o que preci-
sava saber.
E então havia um obstáculo no curso que envol-
via o carbonato de lítio. Evidente tremor nas mãos,
poliúria, pode ocorrer sensação de sede na fase
aguda da mania... Diarreia, vômitos, tonteira, fra-
queza muscular e falta de coordenação...
Relacione estas coisas com Eric.
E estas ― Frases inacabadas, pronúncia indis-
tinta, incansabilidade, confusão, letargia, coma.
Visão turva. Boca ressecada.
Fadiga, letargia, vontade de dormir.
Havia contradições violentas entre as Reações
Adversas. Se fossem agrupadas e retratadas todas
de uma só vez, gerariam a imagem desoladora de
um indivíduo muito confuso. Meu Deus, que doen-
ça seria curada com essa droga? Parecia-lhe, quanto
mais ela lia, que a medicação produzia efeitos cola-
terais quase tão perturbadores quanto a psicose que
deveria combater.
Coitado do Eric. O que fizera com que ele che-
gasse a essa situação? Algo que ela desconhecia.
Então, ela o observava e esperava que ele não
percebesse que estava sendo observado. Ela se apa-
nhou contando o número de copos de água que o
marido bebia, esperando que as mãos dele come-
çassem a tremer, esperando por qualquer coisa que
248
estampasse a palavra maníaco-depressivo em sua
totalidade. E se odiava por estar agindo desse
modo. Começou a sentir-se como uma visita que
estivesse passando o tempo com um homem encar-
cerado, ponderando se deveria lhe passar sorrateira-
mente uma limalha de ferro com a qual poderia es-
capar da cela.
Pensou: Talvez Ralp Houseman estivesse com a
razão, mais perceptivo que ela supusera, perceben-
do as características transmitidas livremente pela
personalidade de Eric. Tornou-se quase um vício
observá-lo, buscando a manifestação de um sinto-
ma, qualquer coisa que comprovaria ou não os fa-
tos clínicos que ela lera naquele papel. Tremores,
convulsões.
Reflexos dos tendões hiperativos, o que quer
que isso signifique.
Tudo mesmo.
A tarde já estava findando quando McDonald
chegou ao apartamento. Ela ficou surpresa ao vê-lo;
foi como se repentinamente um outro mundo, uma
sequência de eventos esquecidos tivesse ressuscita-
do para surgir diante dos degraus da sua porta. Os
roubos, as ocorrências estranhas já tinham pratica-
mente abandonado a sua mente por causa da preo-
cupação com Eric, por causa da mentira de Eric.
Olhou para o policial e pensou: hoje deve ser um
dia muito especial, uma comemoração ou um ani-
versário, porque ele está trajando um belo terno ―
249
azul-escuro com finas listras vermelhas, muito bem
talhado, camisa branca e uma gravata de cor escura.
Somente a gravata, mal ajustada, assemelhava-se
ao policial desajeitado que Ellen conhecera anteri-
ormente.
― Acabei de sair de um funeral ― explicou. ―
Pensei em passar por aqui para checar como você
estava. Algum problema?
Ellen sacudiu a cabeça. Estava feliz por ter
companhia. Qualquer pessoa que ela não tivesse
que observar e observar como um guarda de fron-
teira que perscruta o horizonte obscuro buscando
um sinal de vida (Ellen lembrava naquele momento
de ter deixado um recado para Vicky há dois dias:
ela não ligara de volta. Algumas secretárias existem
apenas para obstruir as comunicações. Encontram
uma sensação de triunfo quando conseguem sone-
gar informações.)
― Não me importo de ir a funerais. Algo do
meu sangue celta ― declarou McDonald. ― Na re-
alidade, não que eu os aprecie tanto assim, mas, por
outro lado, também não sinto aquela aversão por
enterros tão típica dos anglo-saxões. Velar o morto
em um quarto dos fundos, sabe o que estou dizen-
do. O que eu detesto é ter que me arrumar todo.
― Era alguém chegado?
McDonald acendeu um cigarro. Removeu um
farelo de tabaco dos seus dentes inferiores e exami-
nou-o por um momento na ponta do seu dedo. Um
250
bom indivíduo, Ellen considerou subitamente. Para
um tira, ele é um excelente indivíduo.
― Um jovem colega de trabalho ― respondeu.
― Você deve ter lido nos jornais. Atiraram nele du-
rante um assalto em uma dessas lojas de utilidades
domésticas. Uma do circuito K, eu acho. Isso é uma
grande droga, eles se mandaram com 18 dólares e
uns trocados. Isso deixa qualquer um de queixo caí-
do, Sra. Campbell. Você começa a se questionar se
vale a pena.
― Quer um pouco de chá? ― Ellen indagou.
McDonald balançou a cabeça negativamente.
― Estou só de passagem. Só vim verificar
como você estava. De fato, a minha esposa vive
perguntando de você. Como vai aquela mocinha
que está esperando um bebê; isso é o que ela quer
saber. Você gostou do chá?
Ellen sorriu.
― Devo confessar. Nem sequer provei. Detesto
aquele negócio.
McDonald emitiu uma gargalhada. Longa e so-
nora.
― Para dizer a verdade, minha mulher também
não o suportava. As sobras ficaram guardadas des-
de a sua última gravidez.
― Eu estava começando a me culpar por isso.
― Não é preciso. Tenho certeza de que ela
achará engraçado.
― Ela é do mesmo país que você?
251
O amor da juventude. A ingenuidade. É isso que
as pessoas comuns recordam quando voltam suas
mentes para o passado. Luzes, jamais a escuridão.
McDonald olhou de relance para a porta da va-
randa; possivelmente estava distraído checando a
fechadura.
― Mesma cidade. Mesmo país. Eu a conheço
desde que era deste tamanho. Se você deseja uma
verdadeira história romântica, essa é daquelas que
vêm desde a infância. Só que tive que afastá-la da
nossa chuvosa e querida Escócia. Ela não queria se
separar da mãe. Mas este não é o momento mais
propício para histórias.
McDonald apagou seu cigarro.
― E aí? ― ele perguntou de um jeito simplório.
― Quais são as novidades?
O que ela poderia lhe contar? Quanto do seu
passado recente ela poderia abordar? Eric ― bem,
poderia deixá-lo de lado, poderia depositá-lo segu-
ramente em uma caixa exibindo um rótulo de parti-
cular. As outras circunstâncias ― estas certamente
interessariam a McDonald. Ellen o observou acen-
der mais um cigarro e novamente remover um fare-
lo de tabaco dos dentes. Era interessante perceber
como o hábito nervoso de fumar acarretara outros
hábitos nervosos como o de puxar pedaços de fumo
dos dentes.
Ela contou:
― Recebi um telefonema esquisito.
252
― Esquisito como? Erótico? Ameaçador?
― Uma voz de mulher disse que meu marido
estava doente. Fui para a cidade. Seu escritório es-
tava vazio. Ele não estava doente. Mas havia outra
pessoa no local. Alguém me seguindo.
― E o que aconteceu?
― Eu saí correndo do prédio. Foi isso que acon-
teceu.
― Você não reconheceu a voz?
Ellen negou com a cabeça.
― Não.
― E você tem certeza de que havia outra pessoa
no prédio?
― Certeza? (Como ela poderia explicar? Som-
bras. Sons. A que ponto se chega quando se acredi-
ta piamente em sua certeza? Pelo amor de Deus, é
óbvio que tenho certeza. Pare de fazer definições
rebuscadas demais.) Mais do que certeza.
― Você viu alguém?
― Somente as sombras.
O casaco de McDonald se abriu. Havia uma
arma dentro do coldre perpassado pelo seu ombro.
Ele abotoou o casaco e pareceu estar envergonhado
pela necessidade de ter que portar uma arma.
― Nada de rostos. Nada de formas? Nada que
você pudesse reconhecer se visse novamente?
― Sinto muito. Não. Não dava para ver nada
muito bem. (Somente consegui dar uma boa espia-
da dentro da escrivaninha de Eric, mas você não
253
gostaria de saber o que encontrei lá.) Ah, o carro
preto. Já tinha reparado nesse carro preto outras ve-
zes. Uma vez eu o vi perto da casa da minha mãe
em Paradise Valley. Então o avistei uma outra vez
no estacionamento daqui do condomínio. E nova-
mente quando os livros que eu levava para a biblio-
teca foram roubados.
― Alguém roubou seus livros?
Ela assentiu:
― Pode ter sido qualquer pessoa. Uma criança
poderia fazer isso. Deixei os livros dentro do meu
carro. Eles não estavam mais lá quando retornei.
Mas, havia um carro negro me ultrapassando em
alta velocidade.
― É sempre o mesmo carro?
Ela deu de ombros.
― Não posso afirmar com certeza.
― Você conhece alguém que possui um carro
preto?
― Na realidade, não.
Ela pensou em Vicky, mas aquele carro perten-
cia à companhia para a qual ela trabalhava, era em-
prestado. E, além do mais, era absurdo envolver
Vicky com toda essa história.
― Por que não me contaram isso? ― McDo-
nald inquiriu.
Subitamente ele pareceu aborrecido com tais fa-
tos, com a falta de comunicação.
― Acho que pretendíamos lhe contar. Daí adoe-
254
ci. E não me lembrei mais. Quando finalmente tele-
fonei, fiquei sabendo que você estava doente.
― Doenças ― ele reclamou. ― Deveriam ter-
me contado, de uma maneira ou de outra, Sra.
Campbell. Posso até considerar os roubos como
ocorrências sem importância, uma pequena vingan-
ça, mas, quando se recebe um trote ameaçador que
lhe conduz a uma situação perigosa, já é outra
questão.
― A ligação não foi ameaçadora...
― Não no seu conteúdo. Mas foi isso o que se
revelou. Atinge-se um ponto em que chegamos
além da brincadeira de mau gosto, compreende?
Atinge-se um ponto em que a situação se altera.
Passa a ser outra coisa. Entende o que estou que-
rendo dizer? Não sei por que não fui informado.
Quer dizer, por que o seu marido não me telefo-
nou?
― Não sei ― Ellen respondeu.
Mas então ela já estava refletindo novamente
sobre a droga que havia sido receitada para seu ma-
rido: ponderava sobre seu estado mental. Qual seria
o estado mental em que ele se encontrava naquele
instante? Os primórdios da megalomania? Princípio
de exaltação? Preso entre a zona letárgica e a incan-
sabilidade? Não sabia. (Por que você está assumin-
do que ele tomou a medicação? Tudo o que você
possui é uma prescrição médica incompleta. Jamais
o viu tomando qualquer droga. Como pode ter tanta
255
certeza?)
McDonald esticou as pernas, espalhadas.
― Os objetos roubados ― disse o policial, mu-
dando de assunto, como se tivesse invadido o terri-
tório de alguma discórdia conjugal. ― Há algo
muito esquisito no que diz respeito aos objetos rou-
bados. Uma blusa.
― Não foi a blusa ― ela interveio. ― Resgatei-
a de dentro da piscina, lembra-se? Mas todos os bo-
tões tinham sido arrancados.
― Botões, blusa, não vejo a menor diferença. O
fato é que a blusa foi roubada. A cabeça de uma bo-
neca antiga. Alguns livros da biblioteca. Não consi-
go estabelecer uma relação entre esses objetos. A
blusa, por exemplo, o que tinha de tão especial?
― Era cara.
― Cara o suficiente para ser roubada e logo de-
pois destruída? Jogada fora? Essa não cola, Sra.
Campbell. E os livros?
― Um era um romance de Le Carré e o outro a
biografia de Albert Schweitzer.
― Eu teria que ser um gênio para descobrir a
conexão existente entre os furtos ― admitiu o poli-
cial. ― E a boneca, meu Cristo. Por que roubar a
cabeça da boneca, e então enfiar o tronco dela em
um colchão destroçado?
Ellen sentiu o bebê se mexer. O efeito da agita-
ção, uma cadeia de pequenos acontecimentos. Ela
mudou ligeiramente a posição do seu corpo.
256
Houve um instante de silêncio. Então ele decla-
rou:
― Temos que assumir a existência de uma liga-
ção entre a pessoa que lhe telefonou e fez com que
você dirigisse até Phoenix e a pessoa que roubou
todos esses negócios. Temos que assumir que foi a
mesma pessoa. E isso é problemático.
― Problemático?
― E claro, basta pensar. Alguém a está obser-
vando. Alguém a está seguindo. Alguém conhece a
hora que você sai e para onde vai. Alguém sabe,
por exemplo, que você foi à biblioteca. Seguiram
você até lá.
Ellen estremeceu. Sei disso, ela admitiu em
pensamento. Sei que ele está com a razão. Observa-
da. Seguida. Sei que ele está certo e não quero pen-
sar nessa hipótese.
― Essa mesma pessoa também conhece o local
de trabalho do seu marido. Isso é problemático,
Sra. Campbell. Sabem quando o escritório do seu
marido está fechado. Quando é mais provável que
ninguém esteja lá. Se agruparmos todas estas infor-
mações, chegaremos à conclusão de que essa pes-
soa conhece um bocado de coisas sobre a sua vida.
Ellen olhou para ele. O rosto do policial tinha
uma expressão drástica. Chá de camomila e exercí-
cios físicos se juntando ao medo da sala de parto ―
Jesus, isso já era mais do que suficiente, para que
ela precisava do resto? Ellen estava apavorada.
257
― Gostaria de lhe apresentar uma teoria, Sra.
Campbell. Eu gostaria de saber o que está ocorren-
do. Não mentirei para você. Não possuo uma pista
sequer.
― Essa é uma confissão bem franca para um
policial.
Ele escreveu algo em uma tira de papel.
― Aqui está. Este é o telefone da minha casa.
Você já tem o número do meu trabalho. Se precisar
de mim, durante o dia ou no meio da noite, disque
qualquer um desses números.
Ela o acompanhou pelo corredor, observou-o
abrir a porta da frente, estudando a nova fechadura
por alguns segundos de modo aprovador.
― De dia ou de noite. Prometa.
― Prometo ― ela garantiu.
E o tira se foi.
Ellen voltou para a sala de estar e caminhou até
a porta da varanda, apreciando a paisagem. Estou
sendo vigiada. Lá fora. Lá fora no deserto, alguém
está me vigiando.
Quem quer que você seja, Vou revidar ― e cor-
reu as cortinas da porta da varanda.
Mas Ellen não sabia como faria.
O sol já tinha se posto quando ela foi até a va-
randa aguardar algum sinal do carro de Eric. O que
ainda restava do dia nada mais era do que uma se-
quência de feixes alaranjados no horizonte: com
uma breve chuva e um pouco de umidade, surgiria
258
um glorioso arco-íris. Ellen olhou na direção dos
holofotes instalados sobre as quadras de tênis, a
marola constante na superfície da água azul da pis-
cina, indicações de que alguém acabara de mergu-
lhar. Poderia ter sido um dia tranquilo e comum, até
mesmo sereno ― um dia quente de verão despe-
dindo-se e abrindo as portas para uma noite agradá-
vel.
Mas não foi.
Ela viu o Datsun entrar na garagem, assistiu ao
Eric estacionando e saindo do carro ― e então, sur-
gindo do nada, lá estava a loira repulsiva em pé ao
lado dele. Anna Rosenberg. Ellen observou sem
sentir absolutamente nada, estava abóbada ― não,
nem mesmo abóbada. Não sentia absolutamente
nada. A garota estava dizendo algo para Eric e ele,
por ser mais alto, inclinou sua cabeça para ouvi-la.
O que quer que tenham falado foi ligeiro. A moça
apontou na direção da piscina. Eric não se mexeu.
Ellen imaginou. Ela o está convidando para nadar.
É isso que ela está fazendo. Instigando-o a cair na
água. Ela não sabe o que eu sei sobre ele. E, se
soubesse, o que pensaria? Eric caminhou em dire-
ção ao prédio com seus passos caracteristicamente
longos, um homem sem tempo a desperdiçar. A ga-
rota se afastou, perdida entre as palmeiras e os ar-
bustos. Você é tão linda quanto uma flor em botão,
Rosenberg. Tão linda quanto uma capeta.
Ellen retornou para o interior do apartamento,
259
correu a porta nos trilhos até que esta se fechou.
Pavor: por Deus, como ela temia ver Eric entrando
no apartamento, temia a visão de seu próprio mari-
do. Era a pior sensação que já conhecera. Sentia-se
um pouco tonta, enjoada, queria saber o que se pas-
sara entre Eric e a jovem, que tipo de conversa ha-
viam travado. Entrou na cozinha, sentou-se à mesa
e aguardou.
Anna Rosenberg. Será que Anna Rosenberg fi-
zera aquela ligação telefônica? Será que ela pene-
trara sorrateiramente no apartamento, roubara os
objetos, rasgara a blusa e a atirara na piscina?
Havia aqui uma linha de especulação que ela
não desejava seguir. Uma linha que conduzia dire-
tamente do espanto ao centro da loucura, aprofun-
dando-se cada vez mais no desequilíbrio. Não é
essa a direção que você deve tomar, Ellen. Não é
assim que você deseja prosseguir.
Ela escutou quando o marido fechou a porta, as-
sobiou e disse alguma coisa. Sentiu Eric se aproxi-
mando pelas suas costas, beijando-a no rosto e in-
dagando Como passou o dia?, e ela, sufocando a
necessidade premente de olhar para o marido, res-
ponderia: Meu dia foi magnífico, recebi um telefo-
nema da rainha da Inglaterra, algo a ver com os
meus honorários não recebidos, chegou uma cada
do presidente com um convite para cortar a fita
inaugural de uma usina hidrelétrica, quantas ocu-
pações! Mas não respondeu nada. A suspeita cresce
260
quando é endossada, torna-se pungente e fortaleci-
da. Então, perde-se o contato e ela se altera, trans-
forma-se em certeza. Meu bom Deus, em que eu
estou pensando?
O que, pelo nome sagrado de Cristo, estou fa-
zendo por aqui?
Seu marido é louco.
Anna Rosenberg é.
É.
Ellen cerrou os olhos. E isso, Eric, vá até a pia e
beba sua água. Engula-a. Apenas não me peça para
conversar como se nada tivesse acontecido.
Anna Rosenberg é a mulher que anda com ele.
Entre os dois há algo se passando e eu não per-
tenço ao esquema.
Não participo do plano de ação que arquiteta-
ram. Sou totalmente descartável.
Os dois planejaram me levar à loucura.
Ellen ergueu-se rapidamente, girou nos calca-
nhares e caminhou para o quarto, daí para o banhei-
ro, trancou a porta e contemplou seu rosto no espe-
lho. Um mundo incompreensível, em constante al-
teração, prosseguia em sua órbita.
Os dois estão fazendo isso comigo porque me
querem fora do seu caminho.
Ele dá a chave para ela, muito simples. Ela vem
até aqui. Faz isso, faz aquilo. Eles se encontram du-
rante o dia, em algum motel. Estão apaixonados. A
esposa gorducha tem que desaparecer, certo? O que
261
poderia ser melhor do que induzi-la a um estado de
insanidade total? E a dedicada Srta. Rosenberg não
está muito bem situada para me vigiar, saber quan-
do saio e quando retorno? Ellen, pare. Por que se
está torturando com uma história digna de um da-
queles filmes exibidos durante a madrugada? Por
que está bancando a Ingrid Bergman no romance
com Charles Boyer? Isso é doentio, as considera-
ções de uma mente deplorável. O estado em que
você se encontra, ela pensou: apenas vislumbre a
cena que você montou para justificar a sua condi-
ção lamentável. Não havia nada de sinistro no fato
de uma jovem considerar o seu marido atraente.
O seu marido maníaco-depressivo.
Ela escutou Eric bater à porta. Escutou o que ele
dizia:
― Você não vai sair, Ellen? Ou terei que entrar
para tirar você daí?
15 de agosto
Dezesseis
15/16 de agosto
287
Ellen sentou no apartamento e viu a tarde trans-
formar-se em noite. Viu as sombras crescerem à
medida que o sol mergulhava no horizonte além da
porta da varanda. O recinto parecia frio ― mas de-
via ser a frieza do seu interior o que mais a incomo-
dava. Uma temperatura-glacial: era a superfície
gélida e intransponível da traição. Sentada aguar-
dou, não pensava em nada. Balançava para a frente
e para trás, segurando a barriga como se uma dor a
estivesse atormentando. Mas agora ela estava muito
distante de sentir esse tipo de dor.
Você vê duas pessoas atravessando uma rua
transversal.
Elas entram em um bar.
Você vai atrás delas e abre a porta. De repente,
apanha-se observando o tipo de recinto que jamais
pensou existir, nem sequer suspeitava que existisse.
O rosto do marido.
O rosto da amiga.
Vê dois rostos juntos e esta visão a destrói.
Ellen fita agora a pasta preta pela qual enfrenta-
ra tantos problemas para roubar. Repousando sobre
a mesa da cozinha. Pega-a, arrasta seus pés até o
quarto, senta-se na beira da cama e abre o fecho.
Folheou as páginas. Folheou as páginas bem da-
tilografadas em espaço duplo, que descreviam a
história psiquiátrica do seu marido errante. Não
conseguiria lê-la. Por que iria desejar ler isso agora,
288
agora que isso pouco importava? (Os nervos à flor
da pele. A pulsação fraca retomara como uma febre
estranha. Um inverno capaz de queimar o sangue
quente.) Foi para a última página, saltando, saltan-
do. Havia uma fenda no final da pasta: uma fita
cassete. A voz de Eric, concluiu. Uma sessão grava-
da. Segredos para a posteridade, revelações reduzi-
das a anotações de pé de página escritas em termi-
nologia acadêmica, algo impossível de se ler.
Fechou a pasta. Guardou-a em uma gaveta do
armário de roupas entre blusas, calcinhas e meias.
Você está se precipitando, disse a si mesma. Seja
positiva. Está somando um mais um e encontrando
como resultado a raiz quadrada da infidelidade. A
sua aritmética emocional está errada. (Por que você
interpreta aqueles dois rostos próximos desse
modo? Palavras atentamente ouvidas? Palavras as-
sumindo a forma de beijos, abraços apaixonados?
Por que visualiza a mão dele apalpando a barriga
da outra e descendo vagarosamente para algum
ponto entre as pernas dela, e ela com a cabeça atira-
da para trás, a boca entreaberta, o cabelo esvoaçan-
do, uma expressão em seus olhos de êxtase total?
Por que imagina corpos pálidos em quartos onde as
cortinas foram fechadas e todas as discrições da in-
fidelidade observadas? Por que cria tudo isso em
seu cérebro como leões agressivos? Conclusões.)
Eric e Vicky. Mas isso não se encaixa.
Isso não elucida coisa alguma.
289
Você está tão certa, Ellen. Por que tanta certeza?
Vicky e seu marido. Eric e a frustração de pos-
suir uma esposa cuja graça e atrativos nada mais
são neste momento do que os exibidos por um dro-
medário.
Por que eles não ficavam juntos de uma vez?
Por que Eric não procurava algo que durasse?
Mas.
Mas. E se houvesse algo mais, algo mais inten-
so, amor... e se houvesse? Ellen esfregou as mãos e
caminhou para a janela do quarto.
Você pensou em Anna Rosenberg. Pensou na
Sereia da Piscina. A Queridinha da Quadra de
Tênis. Miss Meia-Noite da Lavanderia. Foi isso
que você pensou. (Não é de admirar que Vicky não
tenha respondido aos seus telefonemas, o recado.
Não é de admirar. Culpa, poderíamos dizer? Culpa
por causa da deslealdade. No meio de tantos ho-
mens casados e ela tinha que escolher Eric.)
A escuridão se alastrava, as sombras se espessa-
vam, os espaços entre as folhas das palmeiras se
adensavam. Os pássaros, percebendo a escuridão,
estavam silenciosos. Ellen fitou o que via da janela
por um longo período, considerando todos os tipos
de pensamento que não queria considerar. Vicky e
Eric ― você continua a imaginá-los juntos, conti-
nua criando fantasias com esse caso (motéis e ho-
téis, restaurantes sombrios e o toque excitante dos
dedos que conduzem ao impulso sexual); você con-
290
tinua se torturando.
Eles estavam apenas bebendo sem maldade al-
guma. É claro.
E mais pensamentos obscenos surgiam com a
ferocidade de uma saraivada de granizos. Ela con-
seguia ouvi-los, martelando, as pancadas contínuas
e multi-direcionadas. Mais e mais, até que o céu de
seu cérebro se tornasse carregado e escurecido.
Pare com isso, pare com as especulações, as diva-
gações, pare imediatamente.
Eles devem estar apaixonados.
Devem estar apaixonados ― e onde eu entro
nessa história?
Um estorvo, menina. Um obstáculo a ser supe-
rado nos caminhos do coração.
Você entra como uma intrusa que transpõe a se-
pultura do seu próprio pensamento. Deposita sobre
a lápide os lírios, os cravos. As flores murcham tão
facilmente quanto o amor. Eles devem se amar com
uma paixão devastadora... como seria possível sa-
ber?
Ellen cruzou o quarto, amorteceu a escuridão
com as luzes, temendo o retorno de Eric. Não que-
ria vê-lo, olhar para ele, sentir a sua presença. (Um
obstáculo. O pensamento era violento. Assolava seu
coração.)
Será que ele chegaria pela porta principal
abruptamente e diria: Adivinha quem eu encontrei
hoje? Adivinha quem me pagou uma bebida? Duvi-
291
do que ele o fizesse. Não diria coisa alguma. Entra-
ria, assobiando, colocaria sua pasta no chão e a bei-
jaria: um toque em seus lábios faria com que recu-
asse como um animal que teme o açoite do seu trei-
nador.
Fazem um belo par, ela pensou.
Não precisam de mim. Sou peso excessivo. Ba-
gagem desnecessária. Simplesmente não precisam
de mim. Eric. Eric, em qualquer época isso teria
sido horrível, mas não poderia existir época pior
do que esta. Não precisam de mim. (As pessoas pe-
dem para se divorciar, não é? Formulam diretamen-
te a questão. Você concorda com o divórcio? Não
ficam rondando por aí com planos preconcebidos
para encurralar o terceiro elemento contra a parede,
certo? De onde saiu esta idéia? Dos seus feixes ner-
vosos, garota. Os seus tensos feixes nervosos, garo-
ta. Os finos cordões retesados que transmitem as
mensagens, como um telégrafo, de uma parte do
corpo para a outra, Ellen. O terceiro elemento.)
Você poderia preferir ignorar tais fatos, certo?
Poderia desligar o sistema que ativa a sua me-
mória, ou programá-lo seletivamente deste modo
no futuro. Quando tentasse se recordar desses mo-
mentos, não se lembraria de nada, a imagem seria
preenchida por um espaço vazio. Sempre um espa-
ço vazio, horas perdidas.
Eric. Eric.
Planos preconcebidos.
292
Por que sempre retornava a esta hipótese? Essa
certeza de uma conspiração, de algo sendo tramado
contra ela?
Ellen afastou tal idéia de sua mente. De repente,
tudo era demais, opressivo demais. Ela gostaria de
ser capaz de continuar vivendo com um piloto auto-
mático e sonhar pelo resto da vida, exercitando
suas funções sem jamais ter que pensar novamente.
Gostaria de ser capaz de aproveitar este momento
para desmaiar, ter um colapso nervoso, permitir que
todo seu sistema psicológico se fragmentasse.
Uma hipótese fatal. Mas as hipóteses fatais sur-
gem das mentes talhadas pelo fio de uma lâmina.
Seu marido é louco. Seu marido está sob o efeito
de uma medicação fortíssima, manutenção do
equilíbrio mental. Pode ser capaz de fazer qual-
quer coisa. Pode ser capaz de fazer algo fatal.
Ellen queria rir de si mesma.
Mas então pensou: imagine.
Imagine isso. Os dois, eles podiam ter resolvido
afastá-la do caminho: imagine ― eles podem ter
maquinado algum esquema para fazer com que ela
pensasse que estava enlouquecendo. Podiam roubar
objetos insignificantes. Elaborar brincadeiras esqui-
zofrênicas. (Cabeças próximas de novo. Será que
estavam inventando uma nova brincadeirinha esta
tarde? Estariam rindo juntos e dizendo: Tenho uma
ótima, vamos roubar o guia da programação de TV
ou enviar uma carta anônima para ela?) Eles po-
293
deriam fazer coisas desse tipo ― as pessoas fazem,
não fazem?
Ela percebeu alguém a observando atrás da
sombra de uma palmeira.
Sob a árvore, alguém se escondia.
Ela tinha certeza disso, tanto quanto poderia
sentir seus próprios batimentos cardíacos.
Ellen escamoteou-se no meio da pálida ilumina-
ção, apoiou-se no parapeito que circundava a va-
randa. Um momento de irritação: Por que você não
sai daí e mostra quem é? Por que você se esconde
desse modo, meu Deus do céu? Quem é você? É
Vicky? Será que os meus loucos pensamentos estão
me conduzindo à direção correta?
Quem quer que você seja, pelo amor de Deus,
apareça.
Mostre-me o seu rosto.
O parapeito pressionava a sua barriga. Ellen
avistou as luzes da piscina azul e o tremular da
água refletindo nas palmeiras; o brilho forte dos ho-
lofotes resplandescentes acima das quadras de
tênis. E, então, estava pensando em um carro preto,
um carro preto ociosamente estacionado em frente
à casa da sua mãe. Vicky possuía um carro preto.
Mas neste instante de pouca luminosidade todos os
carros eram negros. Todos sem cor definida, sem
forma, inertes.
Ela fechou os olhos por um instante. Pensou:
toda a mágoa que você está sentindo provém dos
294
atos da sua imaginação incontrolável. Vê conexões
onde não há nenhuma possibilidade de existir uma.
Compreende o que não existe para ser compreendi-
do, preenche os espaços vazios do seu cérebro com
fantasias.
Mas alguém está me observando agora.
Alguém está me observando do estacionamento.
Ellen retrocedeu e encostou-se na porta de vi-
dro, espalmou sua mão contra a testa úmida pelo
suor. Era uma dor terrível, um momento horroroso
para o bebê chutar com tanta violência. Seus olhos
lacrimejaram. Quando se é atingido por diferentes
sofrimentos, qual deles deveria ser amenizado em
primeiro lugar? Qual deles você aliviaria?
Ela limpou o suor do rosto com a manga da rou-
pa e olhou para o estacionamento lá embaixo. Foi
tomada pela mesma sensação, o mesmo sentimento
que parecia se prolongar além da sua existência e
crescer até que tivesse alterado a textura da própria
escuridão.
Ellen pensou ter visto algo se mexendo entre as
palmeiras. Algo que no momento parecia ser bran-
co. Algo da cor de um lençol.
Mas logo não havia nada a não ser a escuridão e
o barulho dos nadadores e o som distante das bolas
de tênis colidindo contra as raquetes e o grito esga-
niçado de uma moça vindo de algum canto. Tudo
parecia sem contorno, por algum motivo, sem defi-
nição: era como se estivesse escutando um rádio
295
mal sintonizado e captando diversas estações ao
mesmo tempo. A escuridão não produziria nada
para ser fitado, não desistiria da sua consistência:
eram as trevas dentro de um recinto completamente
vedado, as trevas num ataúde impenetrável. Ela
agarrou o corrimão e olhou fixamente a imensa pal-
meira perto do canto da cerca aramada e pensou:
Qualquer pessoa poderia ficar em pé atrás dela.
Qualquer um poderia estar ali.
Mas quem?
Ela saiu da varanda e retornou para dentro do
apartamento e, sem considerar, sem planejar qual-
quer coisa, caminhou pelo corredor até a porta da
frente, abrindo-a silenciosamente ― como se te-
messe que alguém estivesse de tocaia ― e foi em
direção às escadas. Devagar, vagarosamente, des-
ceu. Agora o calor parecia crescer à sua volta. Por
que você está fazendo isso? Por que está saindo?
Você está perseguindo mais fantasmas. Ninguém a
está observando, e McDonald tirou as conclusões
totalmente erradas. Não há tramas, esquemas plane-
jados, roubos, seu marido não está tendo um caso
com a sua amiga ― o mundo está na sua mais per-
feita ordem.
Ellen estava no estacionamento escuro.
Olhou além dos carros, para a cerca, a palmeira
estacada, as sombras fixas debaixo das folhagens.
E daí caminhou naquela direção.
Movimentou-se cautelosamente. Refletiu: estou
296
desequilibrada. É dessa forma que se manifesta
uma crise nervosa, uma estafa, um cérebro mal oxi-
genado, uma sensação de que nada mais importa,
porque nada mais existe.
Ellen percebeu uma agitação debaixo das fo-
lhas. Um vulto branco, visível como a passagem de
um minúsculo inseto ― um vulto, um espectro
branco. (Alguém de branco ― ela vira alguém se-
manas e semanas atrás bem neste lugar na calada
da noite.) Aproximou-se da palmeira, que se curva-
va como que murchando pela desidratação provo-
cada pelo calor, lançando um conjunto de sombras
compactas pelo chão.
Então, ela parou.
Ellen enxergara algo vagamente através da es-
curidão, através de algumas folhas meio iluminadas
nas sombras compactas, meio escondido pelas lar-
gas folhagens e ramificações; viu a coisa tremeluzir
por um segundo, como se fosse etéreo, composto
de nada a não ser pura luz branca. Viu o rosto e as
olheiras azuladas, o rasgo negro que poderia ser a
boca. Em pé, perfeitamente imóvel como um caça-
dor mirando a sua presa, naquele momento glacial
em que a lente é posicionada, com firmeza e total
inércia: perfeitamente imóvel.
Os lábios se movimentaram. Os lábios negros se
movimentaram.
A boca tomou-se um círculo, um buraco vazio.
A escuridão dos olhos sugeria o vácuo infindo,
297
um oceano povoado por mais fantasmas do que
qualquer um pudesse detectar. Então ela se consci-
entizou de que algo mais ― mais do que a forma
semelhante à de um sino ― conscientizou-se da
brancura da vestimenta. A extensa brancura leitosa
fazia com que Ellen lembrasse de um vestido de
noiva, um traje específico, uma indumentária matri-
monial. Não estava bem certa do quê. E havia algo
mais, um objeto escuro erguido no ar por mãos
pálidas, um objeto que parecia um pequeno e pa-
tético buquê de flores, um buquê de noiva, as flores
que uma noiva deve carregar, como se não possuís-
se esperanças, durante a sua entrada e passagem pe-
los bancos de convidados até o altar.
Ellen cambaleou ligeiramente, fechou os olhos,
sentiu algo agarrando seu braço com gentileza.
Voltou seu rosto e viu Eric ao seu lado.
Não falou nada, apenas levantou o braço, apon-
tando para as sombras debaixo da palmeira.
― O quê? ― Eric perguntou ― O que é?
Ela indicou:
― Olhe, olhe lá adiante...?!
Mas não havia ninguém, nada, somente o espa-
ço em que alguém estivera, uma superfície marcada
pela escuridão, livre da brancura estonteante, um
vario daqueles que podem ser observados por um
telescópio em uma noite nublada.
Eric virou sua cabeça para o outro lado.
― O que é? Não vejo coisa alguma.
298
― Alguém estava ali em pé...
― Ellen ― e o tom de voz estava repleto de
prevenção e impaciência.
― Alguém estava...
Eric. Lembre-se de Eric. Ela retirou o seu braço
da mão dele e afastou-se dizendo:
― Não me toque.
Ellen estava consciente de que estava prestes a
fazer uma cena, uma ponta de histeria não permiti-
da em seu comportamento, um ato a ser encerrado
aqui neste estacionamento sombrio.
― Ellen, o que há de errado com você?
Ela não deu nenhuma resposta, tentando se des-
vencilhar dele. Mas foi retida com firmeza pelo
marido, que a trouxe para perto dele.
― Jesus Cristo, Ellen, o que há de errado com
você? O que deu em você nesses últimos dias?
― Você não sabe? Você não tem uma resposta
para esta pergunta?
Havia uma expressão de sofrimento no rosto
dele, seu semblante estava iluminado pela luz tênue
da piscina. Ela não conseguia encará-lo; virou seus
olhos para a palmeira. O que tinha visto? Que tipo
de alucinação fora aquela? Não, por Cristo, não;
aquilo fora real.
Uma mulher estivera naquele local, vestida
como se fosse a um casamento e em seu rosto esta-
va a expressão mais sofrida e angustiada que Ellen
conseguia recordar de já ter visto. Sofrida ― mas
299
essa não era a palavra ― não era o adjetivo mais
apropriado: se houvesse algum sofrimento, era ape-
nas uma expressão estimulada pela loucura, uma
loucura na negritude daquele olhar, a boca escura,
as flores despencando.
― Ellen, por favor ― ele estava dizendo.
Ellen não se virou. Não desejava que ele a to-
casse novamente. O bebê mexeu-se abruptamente,
quase como se estivesse mergulhando entre suas
pernas. Caindo, tomando posição. Eric chegou bem
perto da mulher e ela mais uma vez retrocedeu.
Como é que ele não vira a mulher debaixo da árvo-
re? A menos que isso fizesse parte dos planos dele
― mas ele não tinha nenhum plano, não havia
conspiração alguma, ninguém estava agindo ou
mancomunado contra ela. Lembre-se, Ellen, lem-
bre-se de que você está lidando com um homem
que pode estar desequilibrado.
Jesus, qual de nós é louco? Ambos?
Ela caminhou na direção da árvore, empurrou as
folhagens para o lado, não viu nada: Eric estava
atrás dela, tentando segurá-la pelos ombros.
― Ellen, por favor, vamos subir, você não está
bem...
― É, estou doente. Estou mais doente do que o
capeta. Só Deus sabe, talvez eu esteja tão doente
quanto você, Eric.
― O que você está tentando insinuar?
Ela não replicou. Circundou a palmeira ― ape-
300
nas com a vaga consciência de quão ridícula pode-
ria parecer para qualquer um que estivesse passan-
do. Podia ouvir Eric atrás dela. Inclinou-se para o
lado, ergueu uma das mãos, como se precisasse de
apoio, e indagou:
― Suponho que era a Vicky que estava debaixo
da palmeira, hum? Provavelmente era ela fantasia-
da...
― Vicky... ― ele hesitou. Empurrou a larga fo-
lhagem com a palma da mão. ― Sobre o que você
está falando, Ellen?
Ninguém. Ela não via mais ninguém agora.
Deve ter sonhado com aquela presença, deve ter
encontrado com uma entidade espiritual. E mesmo
o som da sua própria voz nesse momento ― as pa-
lavras que estava proferindo não pareciam consis-
tentes e reais para ela. Você e Vicky, e seus jogui-
nhos. Acha que não sei? ― e ela se deteve, teve
que silenciar a histeria em sua voz e regularizar o
fluxo dos seus pensamentos, pensamentos que a es-
tavam conduzindo cada vez para mais longe da cer-
teza, das coisas que lhe transmitiam segurança.
Eric pousara seu braço em torno do ombro da
esposa e dizia coisas com um tom de voz apazigua-
dor, da maneira com que uma mãe falaria com seu
filho agitado.
O meu mundo está se despedaçando.
Todo o mundo está ruindo, e minhas narinas es-
tão contaminadas pelo cheiro da decadência e da
301
destruição.
Eric está encostando em mim.
Ele está encostando em mim.
Ela sacudiu o ombro tirando a mão do marido e
deu alguns passos à frente dele. Uma dor ardia en-
tre suas pernas.
Eric veio em sua direção.
― Ellen, eu não compreendo você. Não sei do
que você está falando.
Não conseguiria falar com ele, não o faria. Por
que desperdiçar suas palavras? Por que tentar se co-
municar com um homem cujo universo foi distorci-
do pelas mentiras e pela fraude? Um desperdício
total. Ela entrou no prédio mantendo-se à frente
dele. Essa sensação de queda... Pressionou a barri-
ga e acalmou-se rapidamente. Um momento de lou-
cura que já passou, um momento perigoso às suas
costas. Você só precisa pensar no bebê agora, só
pense no bebê, nada mais interessa nesse mundo
completamente distorcido a não ser a segurança do
bebê.
É a sua única responsabilidade.
Nada mais tem a menor importância ― nem as
mentiras, nem as infidelidades, nem as ilusões, nem
os logros.
Somente o bebê importa.
Mantenha este pensamento como o mais rele-
vante em sua cabeça.
Nunca o perca de vista. Não o deixe escapulir.
302
Sua âncora. É o que lhe prende a ura mundo práti-
co, o preto no branco e o bom senso.
O bebê. Deixe o bebê preservar a sua sanidade.
O bebê.
Agarre-se a isso. Pegue-o e ame-o. Sofra em
nome dele.
Nada mais significa coisa alguma.
O bebê é vida. A própria vida. A única força po-
sitiva.
Beleza e vida.
― Não compreendo nada do que você está fa-
lando ― Eric alegou.
Você não importa.
Eu deveria ter percebido quem você era antes.
― Simplesmente não sei o que há com você ―
ele disse.
Ellen começou a subir as escadas. Gostaria de
saber se, na sua ausência, algo mais poderia ter sido
roubado do apartamento. Ela pensou: Talvez te-
nham tirado a lâmpada do lustre lateral. Boa sorte
para eles. Boa sorte para eles, quem quer que se-
jam. Uma lâmpada ― bem possível. Isso não mais
importava.
Não se concentre em mais nada, somente nesta
vida em seu interior. Nada mais.
Ouviu a voz de Eric, pedindo, adulando, supli-
cando. As palavras não atingiam o cérebro dela,
que apenas pensava: Uma lâmpada para iluminar
todas as outras porcarias roubadas. Uma blusa azul,
303
uma cabeça de boneca e alguns livros que peguei
na biblioteca e jamais devolvi.
Eles podem precisar de uma lâmpada para ilu-
minar essa coleção.
Quem quer que sejam. Isso não importa mais.
Ela parou, sem fôlego, do lado de fora da porta
do apartamento que deixara escancarada. Ainda
conseguia ouvir os passos de Eric atrás dela, a voz
dele; Ellen sentia afinal algum tipo de satisfação no
fato de não estar realmente escutando o que ele di-
zia. Pela primeira vez em seu casamento, as pala-
vras dele não significavam absolutamente nada.
Caminhou para dentro do quarto e bateu a porta
ao entrar. Depois, ouviu Eric abri-la. Eu queria que
Deus colocasse uma fechadura na porta deste quar-
to. Sentou-se na cama e olhou fixamente para o ta-
pete. Ele continuava. Ela ouviu o nome de Vicky
ser citado no monólogo do seu marido, mas não es-
tava realmente escutando. Queria olhar para ele
com toda a frieza que seu coração abrigava e dizer:
Eu desconheço você. E isso nem sequer me inco-
moda. Meu amor, pensou. E o pensamento fluiu por
suas veias. Meu querido bebê.
Por que Eric continuava falando desse jeito?
Será que ele não percebia que não a estava alcan-
çando? Que diferença faziam as palavras dele? Ela
tampou os ouvidos com as mãos. Faça-o parar, al-
guém o faça parar.
Você não está interessada em saber que tomei
304
um drinque com a Vicky somente porque estava
preocupado com você ultimamente, somente por-
que queria pedir o conselho dela com relação ao
que fazer com você e com sua conduta. Não houve
nada demais, só queria conversar com ela sobre o
modo esquisito com que você vem agindo, as coi-
sas estranhas que tem feito, a forma com que me
tem observado sem tirar os olhos de mim, talvez
porque esteja sob algum tipo de tensão, o que pos-
so entender, mas é difícil para mim. Por que você
faz com que as coisas sejam tão duras para mim?
Como você pode achar que exista algo entre eu e a
sua melhor amiga?
Eu amo você, meu amor. Eu amo você.
A voz crescia e diminuía, sumia e enfraquecia,
prosseguia.
Ela se afastou. Ausentou-se. Pensou na linda
brancura do rosto do bebê deitado em seu berço, vi-
sualizou sua adorável boquinha em seu seio, sentiu
sua mãozinha quente em seus dedos.
Então se conscientizou de que Eric silenciara.
Tirou as mãos dos ouvidos. Observou quando ele
sacudiu a cabeça e deu-lhe as costas saindo do
quarto, fechando a porta.
Ellen deitou-se de costas na cama e esfregou
sua barriga com suavidade. O bebê salvará sua
vida, pensou. O lado negro e sórdido da vida pode
prosseguir ― a pureza, a novidade trazida por este
bebê é a única coisa que importa.
305
A pureza. A novidade.
Uma nova vida.
Tudo mais são condições.
Fechou os olhos e pensou na mulher que tinha
visto debaixo da árvore. Pensou naquele rosto. Os
olhos.
Aqueles olhos.
Mal parecia lhe importar o modo com que aque-
le rosto era familiar. Familiar ― de alguma forma,
sim.
Ela escutava, ouviu Eric fazendo barulho na co-
zinha. Ponderou: talvez tenha perdido as suas preci-
osas pílulas. Talvez um ataque esteja a caminho.
Foi até o armário e abriu.
Olhou para suas roupas, refletindo: como posso
continuar morando aqui com um homem que des-
conheço? Hesitou somente por um momento antes
de puxar suas roupas e atulhá-las dentro de uma sa-
cola. Foi então até o gaveteiro e pegou algumas
roupas de baixo, colocando-as por cima das outras
peças. Questionou mais uma vez sobre o destino
que daria ao fichário ― precisava dele agora? Será
que aquilo realmente interessava?
Vacilou: de qualquer modo, onde você está
indo? Onde você pode se refugiar?
Deu de ombros e jogou o fichário por cima do
resto das suas coisas na sacola; então, movimentou-
se para a porta do quarto. A TV estava ligada com o
som bem alto ― como se fosse uma manifestação
306
da raiva de Eric. Ou da sua loucura. Ellen cami-
nhou silenciosamente pelo corredor, e com o mes-
mo cuidado destrancou a porta da frente.
Um momento súbito ― de tristeza? Pesar? Você
simplesmente não vai sair de casa sem sentir nada,
mas o que quer que estivesse sentindo passou muito
rapidamente, e quando fechou a porta sentiu-se pa-
ralisada, nada mais.
Tinha tudo o que precisava. Podia estar abando-
nando uma vida, mas tinha tudo o que precisava.
Cruzar o estacionamento, abrir a porta do Opel,
dar partida no motor e engatar a marcha à ré. Essas
rodas a conduzirão a um lugar mais seguro. Logo
dirigiu para a saída do estacionamento com seus fa-
róis rasgando a escuridão.
Foi então que quase perdeu o controle.
O volante correu em suas mãos enquanto as lu-
zes focalizaram a forma de uma mulher vestindo
um longo traje branco, a face coberta por maquia-
gem branca, olhos e boca negros como a noite no
deserto. Ellen girou o volante, freou, sentiu o Opel
derrapar ligeiramente, mas então o vulto já se afas-
tara e sumira nas sombras cerradas do estaciona-
mento. Algo voou à frente do rosto de Ellen, algo
úmido e perfumado pousou sobre a bolsa dela que
estava sobre o assento do carona. Úmido e perfu-
mado. Por um longo tempo não se mexeu, ficou
apenas sentada atrás do volante com sua cabeça in-
clinada para a frente, respirando ruidosamente, irre-
307
gularmente, seus batimentos cardíacos alterados.
Loucura ― você está rodeada pela insanidade.
Podia ter construído um abrigo a sua volta contra
os lunáticos, somente para descobrir que não há
como se proteger. Loucura. Ela fechou os olhos e
aspirou a fragrância no ar; então, ergueu o braço até
a luz interna do veículo e acendeu-a.
Era um buquê de flores que tinha sido atirado
pela janela. Um buquê murcho constituído por mui-
tos tipos de flores.
Desligou a luz e continuou dirigindo, pensando.
Uma louca está por aí me assombrando. Alguém
desvairado que sabe onde moro e para onde estou
indo, alguém que conhece meus horários tão bem
quanto eu.
Você tem que ir para lá.
Não há nenhum outro lugar para ir.
Não pode voltar para Eric e aquele apartamento
carregado de tensão, aqueles cômodos.
Então dirigiu por estradas principais e estreitas
ruas secundárias, seu senso de direção estava abala-
do, como se mesmo agora pensasse que estava sen-
do seguida. Quando chegou à casa de sua mãe em
Paradise Valley, passava da meia-noite. Estacionou
o carro na entrada, mas não saiu do carro imediata-
mente.
Não havia nenhum orgulho em nada disso.
Não havia nenhuma dignidade a ser resguarda-
da.
308
Um vazio. Somente isso. Você corre para a casa
de sua mãe porque nesse momento de desespero
não tem para onde ir. Uma vida em círculos ― sai
de casa, retorna.
Ellen abriu a porta e pegou sua sacola. A luz in-
terna da casa foi acesa. Por um instante terrível foi
tomada pela sensação de que alguém estava se
ocultando no banco traseiro, deitado no chão do
carro. Ninguém. Até mesmo olhou para conferir.
Então fixou seus olhos nas flores. Um buquê. Um
ramalhete.
Violetas. Cravos. Rosas.
Apanhou-as, deixou-as caírem de suas mãos.
Ellen desceu do carro e ficou em pé na estrada
escura com sua bolsa de lado e pensou: há quanto
tempo estas pessoas vêm me seguindo?
E daí se virou, assustada pelo som de um movi-
mento atrás dela. Perscrutou através da escuridão,
tremendo, todo o seu sistema nervoso ativado. Al-
guém se movimentando na noite, alguém atrás dela.
Entreabriu sua boca para dizer algo. Ouviu o
seu próprio murmúrio ininteligível.
― Ellen, é você?
Hattie. Hattie Dalrymple. Era apenas Hattie. Em
sua mão havia algo com um brilho opaco provoca-
do pela fraca luz que vinha da casa.
Tesoura de poda. Tesoura de poda do jardim.
― Ellen, o que você está fazendo aqui?
― Hattie ― a voz dela era fina, aguda. A tesou-
309
ra de poda. Por que Hattie estava com aquela coisa
afiada em sua mão? Sentiu-se tonta, joelhos fracos,
a sacola em sua mão abruptamente pesada. Não
conseguia tirar seus olhos da ferramenta. Observou
Hattie se aproximando e sentiu a mão da mulher
em seu ombro.
― Ellen, o que há de errado com você? Está
com uma péssima aparência. E melhor vir para
dentro, deitar-se. Deixe-me levar a sacola para
você.
Obrigada, Hattie. Obrigada. Mas por que você
está segurando esta tesoura de poda?
Hattie balançou a sacola em uma mão e passou
a sacola para a outra.
― Se eu não a conhecesse, Ellen, diria que você
fugiu de casa.
Tonteira, novamente. Medo. Deixou que Hattie
a conduzisse para a casa, abrisse a porta. Uma en-
chente de luzes elétricas a cegou. Ela apontou a te-
soura de poda e Hattie sorriu.
― Sua mãe tem uma superstição um tanto estra-
nha de que as rosas devem ser podadas à noite. Não
me pergunte por quê.
Ellen assentiu debilmente. De algum canto da
casa conseguia ouvir a voz da sua mãe e o “tap-tap-
tap” do andador atingindo o assoalho de cerâmica.
Estava fraca agora, seus membros pareciam ter-
se tornado um líquido viscoso. O bebê empurrou,
chutou, esticou-se como que entediado com o seu
310
confinamento.
― Hattie ― a voz era a da sua mãe. ― O que
está ocorrendo aí fora?
― É a Ellen ― Hattie respondeu.
É só a Ellen, sou só eu.
E só a sua filha retornando ao lar.
Dezessete
19 de agosto
323
...extremos de humor com os quais frequente-
mente não consegue lidar ou manter sob controle.
Vai da exaltação à depressão sem estágios interme-
diários. Também são clássicos os seus pesadelos
repetitivos com X e com a violência existente na-
quele relacionamento…
Terceira Parte
O Parto
Dezoito
19/20 de agosto
O choro de um bebê.
A pele rosada e macia de um bebê.
Ele ficará feliz em vê-la com o bebê.
360
Feliz em vê-la de novo, de amá-la novamente.
Tão feliz.
E então aquela separação jamais teria impor-
tância. Você esquecerá, A ausência. A enfermidade.
A época em que ele foi visitá-la quando disseram
que você estava doente. Eles disseram, eles, eles,
eles.
Eles nunca souberam.
E você não vai retomar para ele de mãos vazi-
as.
Levará páginas de livros.
Botões de uma blusa.
Fragmentos de porcelana antiga.
E finalmente este bebê, lindo na morte, na des-
truição.
Este bebê. O seu último presente para ele.
E tudo será maravilhoso novamente.
E você será a verdadeira noiva.
O meu bebê.
Você tateia em busca da faca.
Faca. Afiada. Pontiaguda. Escondida debaixo
das suas roupas.
Espeta seu dedo extraindo-lhe sangue, e a dor
lhe traz de volta antigas lembranças brutais.
Você pega a faca, empunha-a, puxa-a para fora
de suas roupas.
Agora, agora, agora, a hora é agora.
Para você querido Eric, um bebê morto.
Para nós, um novo início. Um novo casamento.
364
Você quer o bebê. Quer levar o bebê para ele.
A última das lembranças do casamento.
A última tradição.
Você precisa do bebê.
Teve que esperar.
Agora a espera acabou e você tem o amor à
sua frente.
FIM
*
* *
ÐØØM SCANS
https://doom-scans.blogspot.com.br
378