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Attico Chassot A Ciéncia é mascilimee TYRAC mL Prof Ds, Lu Gonzaga Revers! Genovese Instituto de Fisica-UFG Mat, SIAP 1680299 Sabores e saberes de uma nova edigdo Uma vez mais fazendo uma apresentagéo Alguns balizadores preambulares Nao so a ciéncia, mas (quase) toda a produgao intelectual é predominantemente masculina Uma ciéncia masculina! As mulheres cientistas Os prémios nobel as mulheres Por que a ciéncia foi / é masculina? A nossa triplice ancestralidade A nossa ancestralidade grega A nossa ancestralidade judaica A nossa ancestralidade crista Mas nds néo estamos sds As concepgées cientificas de uma ciéncia masculina Igualdade (ainda) com desigualdades Para saber mais Bibliografia referida SUMARIO 11 13 29 41 51 55 59 65 69 75 81 97 105 117 133 SABORES E SABERES DE UMA NOVA EDICAO Em 2011, quando circulou quinta edigaéo deste livro, houve uma extensa reapresentagao — que esté nas paginas 13 a 28 - mirando duas paisagens. A primeira, duas celebragoes; a outra, evocagées das aberturas de cada uma das edigdes anteriores. Nos festejamentos referi estarmos, entao, no Ano Inter- nacional da Quimica que recordava o centenario da outorga do Prémio Nobel de Quimica a Maria Slodowska Curie. e a evoca- gao dos 100 anos de uma das constatagdes mais significativas da Historia da Ciéncia feita por Ernest Rutherford: a matéria esta praticamente toda concentrada no nticleo do atomo. A segunda celebragaéo era muito pessoal: evocava: minha estreia como professor em 13 de marco de 1961. Em 2012, Editora Unijui publicou Memérias de um professor: hologramas desde um trem misto, onde em 51 capitulos, distribuidos em 501 pa- ginas, fago uma viagem panoraémica de 1961 a 2011 Na trazida da sucessao das aberturas das edigdes an- teriores pode-se acompanher um pouco a evolucéo da tese que faz a tessitura deste livra: o quanto, enquanto civilizagao euro- céntrica, branca, judaico-crista, nos constituimos, ou melhor: fomos constitufdos coma machistas. A sexta edigéo vem ratifi- car esta nossa malformagao. Ressublinho: este nao é um triste privilégio da Ciéncia. Quando escrevo este texto (junho de 2013), por exemplo, le- mentavelmente, ha algo que estarrece. O Rio Grande do Sul tem sido agodado por tragicos crimes passionais, E, como pa- rece natural, nestas tragédias de alcovas as mulheres sao as vitimas em maior numero dos casos. Este milenar machismo e@ algo dolorosamente revoltante. Se agora — no apregoado culto século 21 — ainda grassa a barbarie, nao é dificil imaginar 0 quanto mulheres ja foram vitimas em tempos mais remotos. 12 Sasones & SABERES DE UMA NOVA EDIGAO Por exempla, ha historiadores que referem o Direito da Primeira Noite (Latim: jus primae noctis): uma alegada institui- Gao que teria vigorado na Idade Média, permitindo ao Senhor Feudal, no ambito de seus dominios, desvirginar uma noiva na sua noite de nupcias. Mesmo que nenhum documento medievo comprove existéncia real de tal direito, pode-se admitir tal hi- potese. No Brasil Colonial, ha referéncias que os ‘coronéis’ avo- cassem a si estas primicias. Os abusos prdprios da escravatu- ra deixam imaginar que semelhante direito poderia ter existido, sendo usado pelos Senhores de Engenho e pelos grandes pro- prietarios de terras, ainda que de uma forma “oficiosa”. Alias, na maioria dos casos, o senhor nao esperava pela boda. Trata- va-se entao de um abuso, nao de um direito. Quanto a tese central que este livro apregoa, transcre- vo um excerto que esta, agora, na pagina 59, (ele é da 4° edi- Gao de 2009): Quando se fala em uma Ciéncia masculina, um razoavel indicador poderia ser o némero muito pequeno de mu- Iheres que ganharam o Prémio Nobel. Flas séo apenas 11 entre os laureados nas ciéncias (duas em Fisica, trés em Quimica e seis Medicina ou Fisiologia, destes 11, apenas 3 sao exclusivos a mulheres — menos de 3% -, em um universo de 540 premia- dos [Fisica, 187; Quimica, 157; Medicina, 196). Agora, quatro anos passados, reescrevo 0 mesmo tex- to: L...] Elas so apenas 16 entre os laureados nas ciéncias (duas em Fisica, quatro em Quimica e dez Medicina ou Fisio- logia, destes 16, apenas 3 sao exclusivos a mulheres — menos de 2,8% -, em um universo de 558 premiados [Fisica, 194; Quimica, 163; Medicina, 201), [2009 foi 0 ultimo ano que houve mulheres laureado com algum dos trés prémios de Ciéncias]. Ainda outra atualizagaéo: Na primeira edigao, a dedica- toria era para a Maria Anténia (nascida em 14JUL1999), Na quinta, inclui a Maria Clara (26ABR2008). Agora, adito —- no pleno significado de causar alegria — a Carolina (01DEZ201 1) e a Betania (10JAN2013); Os meninos, também no avonar estado em vantagem: Guilherme, Anténio, Pedro, Felipe e Thomas; E agora, que existam didlogos! www. professorchassot. pro.br no inverno de 2013. UMA VEZ MAIS FAZENDO UMA APRESENTACGAO fsta quinta edigao de A Ciéncia é masculina? apare- ce neste 2011, um ano muito especial: comemora-se 0 Ano Internacional da Quimica, Uma das razoes da escolha para esta celebragao é 0 centenario da outorga do prémio Nobel de Quimica a Marie Sklodowska Curie. Ela que ja havia sido premiada, junto com o marido ~ Pierre Curie — e com Henry Becquerel, em 1903, com o prémio de Fisica. Como veremos adiante, esta bipremiagado com um Nobel de Ciéncias se man- teve camo feito exclusive de Marie Curie por 61 anos. Outra razdo para a comemoragao deste ano interna- cional é a evocagao dos cem anos desse que Ernest Ruther- ford fez uma das constatagdes mais geniais: a matéria esta praticamente toda concentrada no nticleo do dtomo e este é fantasticamente pequeno se comparado com o restante do atomo. Aqui, nao resisto aquelas classicas analogias: o dia- metro atémico é aproximadamente 10 mil vezes maior que o tamanho do nucleo. Se o atomo tivesse o didmetro do Mara- cana, o nucleo teria mais ou menos 0 tamanho da cabeca de um alfinete. Se juntassemos todos os nucleos dos 4tomos que compéem o corpo humano, eles nao seriam maiores do que um grao de areia. Sejam quais forem os motivos jubilares, a presenga de mulheres na Ciéncia, ainda faz de Maria Curie uma es- trela quase solitaria neste universo, e talvez também por isso este livro tem mais uma edigao. A oito anos da primeira edigao, houve o advento de novos tempos, mas estes ainda aparecem de maneira muito ténue. Seja-me permitido trazer ainda algo muito pessoal, mas n&o menos especial, em termos de festejamentos. Nes- 14 Uma vez MAIS FAZENDO UMA APRESENTAGAG te 2011 evoco com muita emogaéo um 13 de marco distante meio século, quando dei minha primeira aula, no colégio Jacob Renner em Montenegro. Desde entao, continuo, como sem- pre, professor de sala de aula. Tive o privilégio de, neste margo jubilar, dar seis aulas magnas em quatro estacos brasileiros diferentes. Entreguei, nesse mesmo més, a Editora do Centro Universitario Metodista do IPA os originais de Memdrias de um professor: holagramas desde um trem misto, onde em 51 capi- tulos fago uma viagem panoraémica de 1961 a 2011. Para acompanhar um pouco a trajetoria deste A Cién- cia 6 masculina?, releio com o leitor as apresentagoes de trés edigdes anteriores, pois estas balizam algumas atuali- zagoes que esta edigao quer trazer. A primeira edigdo ocorreu no ocaso de 2008. No inicio de 2006, apresentava uma segunda edigéo, com a chamada “algo mais que requentar um café”: E muito bom apresentar esta segunda edigao do A Ciéncia @ masculina?. Desde a sua primeira publicagao, no final de 2003, houve ainda uma reimpressao em 2004. Agora, fago algumas atualizagdes pontuais, mais especial- mente nos dados referentes aos prémios Nobel de 2004 e 2005, nos quais, as premiag6des, quase exclusivamente masculinas, ratificam a tese defendida neste texto. Aceno aqui com algumas das muitas emogées que este livro j4 me trouxe. Apresentei palestras originadas dele em quase meia centena de universidades brasileiras em mais de uma dezena de estados da federagao; ha um ano, na Universidade de Lyon, perguntava em uma con- feréncia: // a t’il science masculine?, e respondia: Qui, ma- dame. Também fui convidado para discutir o tema com novigos de uma ordem religiosa masculina catolica. Essa foi talvez uma das mais exdticas palestras que esse tema me ensejou. As reacgdes a essa fala tém sido dispares. H& mui- tos que se surpreendem com algumas afirmagdes, es- pecialmente aquelas que surgem nas leituras de nossas origens cristas. Nao poucas vezes, recebi veementes desaprovagces como se eu fosse o autor de posturas machistas de luminares da Igreja. O que mais me tem A CIENGIA E MASCULINA? E, SiM SENHORA! 15) gratificado é 0 quanto homens e mulheres procuram en- tender, apds analisarmos nossas raizes gregas, judaicas e cristas, que néo somos assim por acaso. So isto vale as discuss6es suscitadas. Também percebo adesdes, especialmente de homens, a um esforgo para continuar- mos a mudar nossas agdes, quando apresento explica- goes histdricas e bioldgicas para nossas continuadas posturas machistas. Uma cobranga muito constante sao as auséncias de alguns nomes apontados como lacunas inadmissiveis no meu livro. Hé pelo menos dois, que mais usualmente sao lembrados: Joana d’Arc (1412-1431) e Helena [Petrovnal] Blavatsky (1831-1891), Quanto a primeira, nao vejo como fazé-la presente, pois este optsculo ndo é uma hagiografia, e a Donzela de Orleans parece ser uma personagem quase lendaria (foi esquecida pelo menos até o século XIX), sendo ressusci- tada quando da ocupacgéo alema da Alsécia e da Lorena em 1870, tornando-se heroina nacional; na Primeira Guer- ra Mundial, Joana D'Arc surge como comandante dos exércitos franceses e monumentos lhe sao dedicados por toda a Franga; foi canonizada em 1920 e declarada Pa- drogira da Franca em 1922, e sua festa, em 30 de maio, 6 feriado nacional na Franga. Pensei na situagao em que, tivesse de escolher uma santa da lIgreja Catolica, como representativa das mulheres mais ligadas a construgao do conhecimento, ou, melhor, responsavel pelo rompimen- to com a ortodoxia vigente, qual seria aquela que elegeria Talvez elegesse Santa Catarina de Sena (1347-1380), que, com 29 anos, decidiu seguir até Avinhao, cidade onde os papas viviam desde ha mais de 70 anos, e apresentar-se diante do mesmo para o convencer a regressar a Roma, pois que tal seria fundamental para a unidade da lgreja e pacificagao da Italia. Embora analfabeta, Catarina ditou mais de 300 cartas enderecadas a todo o tipo de pes- soas, desde papas, reis e lideres, como também ao povo humilde, Em 1970, o papa Paulo VI declarou-a Doutora da Igreja, sendo a tnica leiga a obter esta distingao. O papa Joao Pauls Il declarou-a copadroeira da Europa. Ou talvez escolhesse Santa Teresa D’Avila, também conhecida por Teresa de Jesus (1515-1582), presente na histdéria como 416 Uma vez mais FAZENGO UMA APRESENTAGAO uma Reformadora, autora de varios livros e também de poemas, e enorme correspondéncia, com 458 cartas au- tenticadas; nao é sem razao que, em 1970, Paulo VI lhe concede o titulo de Doutora da Igreja. Nao sei se minhas escolhas sao consistentes. Propanho aos leitores o exer- cicio intelectual. Quanto a nao referéncia a Helena Blavatsky, aceito que talvez nao a devesse ter esquecido. Tento recuperar minha omissao. No final do livro, na secgéo “Para saber mais”, esta agora incluido um pequeno verbete daquela que foi considerada a fundadora ou, ao menos, codifica- dora da Teosofia. Aceito que esse conjunto de doutrinas religiosas de carater sincrético, mistico e iniciatico, ain- da que alienigenas 4 Academia, merece ser pelo menos referido. Assim como na Historia da Ciéncia a figura de Paracelso (c. 1493-1541) parece-nos esotérica e exdtica, mas lhe reservamos um lugar quando falamos do inicio da Quimica Moderna, Helena Blavatsky nao esta mais ocul- tada neste livro. Por fim, algo muito pessoal nessa reapresentagao de A Ciéncia é masculina?. Quando, em 2003, dediquei este texto a Maria Antania, ela era entéo minha tinica neta. No ano passado, meu avonado foi enriquecido com o Guilher- me e, quando o outono chegar, serei presenteado com a Maria Clara, que, seguindo a garra de sua bisavo e mi- nha mae, de quem leva o nome, sera também uma mulher desses sonhados novos tempos que este livro sonha em ajudar a construir. Na expectativa de que este texto catalise didlogos nessa emocionante criagao dos humanos: escrita © lei- tura e que esses contribuam para a diminuigao de di- ferengas, restam os votos de fecundas leituras, que determinem novas escrituras. Que didlogos existam. Morada dos Afagos, no inicio de 2006. Um ano depois, ja no quase outono de 2007, ano em que me despedia da UNISINOS- nao sem dificuldades -, cele- brava com meus leitores a terceira edigao escrevenda: . @ apresentagaéo de uma nova edicaéo deste livro comega por prescindir de uma atualizagaéo de nomes de A Cignoia € MASCULINA? E, SIM SENHORA! 17 mulheres laureadas com prémios Nobel em 2006, como fizera na segunda edigaéo com aquelas premiadas em 2004 e 2005. A outorga a oita homens (dois para o de Fisica; um para o de Quimica; dois para Medicina ou Fisiologia; um para Literatura; um para Paz; e um para Economia) ratifica a tese que 6 central neste livro: nao apenas a Ciéncia é masculina, mas a maioria das produgdes huma- nas (ainda) é predominantemente masculina. E se quiser- mos desqualificar 0 Nobel como indicador de predominio masculino, mesmo com a presenga de apenas 12 mulhe- res entre os 515 ja laureados, desde 1901, com um dos trés Nobel de Ciéncias, basta que olhemos uma noticia da Ciéncia brasileira: “Em maio de 2006, durante as co- memorag6es dos seus 55 anos, o CNPq concedeu, pelo segundo ano, o diploma de Pesquisador Emérito. O titulo foi entregue a nove pesquisadores de diversas areas do conhecimento: Aida Espinola [(Graduada em Quimica In- dustrial e em Engenharia Quimica. Atuou como pesqui- sadora do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) na area da Eletrocatdlise e Elipsometria aplicada & corrosao. Foi tecnologista quimica do Ministério de Minas e Energia por 29 anos. Integra 0 corpo docente da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ, Glaucio Ary Dillon Soares, José Goldemberg, Paschoal Ernesto Américo Senise, Pe. Jesus Santiago Moure. Ramayana Gazzinelli, Rogério Ce- zar de Cerqueira Leite, Sérgio Mascarenhas de Oliveira e Wladimir Lobato Paraense. A lista como se vé, contempla uma mulher. E primeira por critério alfabético, apenas. No ano que passou tive mais uma vez varios convi- tes para falar acerca deste livro. Se ha um ano recor- dava uma situagao que considerei exotica, agora poderia contar o quanto me pareceu ser inusitado ter sido con- vidado a levar a discuss&o a uma reuniao cientifica do Instituto Agronémico do Parana, em Londrina; por tal, com orgulho para mim, fui agraciado com um troféu de “amigo do IAPAR”. A Televisao Educativa do Parana tam- bém convidou para uma conversa “Aqui entre nés” sobre as mulheres na Ciéncia. Ja que antes fiz loas acerca de netos, neste outono, entre os nossos, as mulheres perdem a maioria, que os- tentaram por quase oito anos — aqui, as alternativas sao 418 Uns Vez mals FAZENDO UMA APRESENTAGAO comandadas por fatores probabilisticos e (ainda) sem preconceitos ~ pois o Antonio chega para fazer compa- nhia & Maria Anténia, ao Guilherme e & Maria Clara. Mais uma vez repito meus votos. Que juntos fagamos gostosas leituras. Estas também podem ajudar a diminuir discriminagées, catalisando a chegada de novos tempos. UNISINOS, quase outono de 2007. Ja na expectativa do inverno de 2009, apresentava a quarta edicao, atualizando, sem muitas surpresas, pois a Ciéncia continua masculina, os aquinhoados com os prémios Nobel. Anunciava também uma significative transigao profis- sional. Escrevia assim, dois anos depois... ... € muito bom apresentar a quarta edigéo deste li- vro. Desde que ele foi langado em 2003, busca contribuir um pouco para ajudar a diminuir discriminagdes entre mulheres e homens, chamando a atengao para um tema que continua atual. Ha também a tentativa de buscar explicar as marcas milenares que houve / ha / havera nas relagdes humanas, contribuindo na facilitagao do advento de um maior entendimento e de gostosa fruigéo. Tendo elegido - mesmo aceitando criticas a manipu- lagoes deste indicador — a outorga de prémios Nobel de Ciéncias para olhar o predominio masculino na produgao do conhecimento, na ultima edigao, quando aditados os premiados de 2008, vimos que as premiacoes foram ex- clusivamente masculinas. Passados dois outubros de premiacoes, vale ver como se comportaram os ntimeros. Em 2007, a outorga foi para dez homens e uma mulher (dois homens para o Nobel de Fisica; um para o de Quimi- ca; trés para Medicina ou Fisiologia; uma mulher — Doris Lessing — para Literatura; e para Paz: um homem mais 0 Painel Intergovernamental para as Mudangas Climaticas; e trés para Economia). Em 2008, a premiagaéo foi para onze homens e uma mulher (trés homens para o de Fisi- ca; trés para o de Quimica; dois homens e uma mulher —Frangoise Barre-Sinoussi — para Medicina ou Fisiologia; um para Literatura; um para Paz; e um para Economia). Assim, esses numeros referentes a 2007 e 2008, com 21 homens e duas mulheres premiados, ratificam a tese A CIENCIA E MASCULINA? E, SIM SeNHoRA! 19 que € central nesse livro: nao apenas a Ciéncia 6 mas- culina, mas a maioria das produgdes humanas (ainda) é predominantemente masculina. A tese sofre ratificagéo quando considerarmos os trés prémios na area das Ciéncias (Fisica, Quimica e Me- dicina ou Fisiologia): temos 13 mulheres entre os 529 laureados, desde 1901. Ainda poderia ser recordado que entre as 13 mulheres premiadas — duas em Fisica; trés em Quimica e cito em Medicina ou Fisiologia - apenas tr@s nao dividiram 0 prémio com hamens: duas em Qui- mica: 1911, Marie Curie e 1964; e uma em Medicina ou Fisiologia: 1983, Barbara Mcclintock. Dos 105 premiados em literatura de 1901, 11 sao mulheres. Com o Nobel da Paz, desde 1901, foram laureadas 20 organizacdes e 96 pessoas, das quais 12 mulheres. O Nobel de Economia, distribuido desde 1985, ja foi concedido a 62 hamens. Talvez, nessa ultima referéncia, haja uma justificativa para o esboroamento do capitalismo: a falta de mulheres na oferta de sua sagacidade ao administrar economias domésticas operando milagres com recursos limitados. Haé quatro anos, Frangoise Barré-Sinoussi é estrela solitaria na galeria de mulheres laureadas com um pré- mio Nobel de Ciéncias. Em 2008, ela recebeu um quarto do prémio de Medicina, dividido com a aleméo Harald zur Hausen, que trabalha no centro de pesquisas de cancer em Heidelberg, que recebeu a metade o prémio, e o fran- cés Luc Montagnier, que recebeu a outra quarta parte por suas descobertas relativas a AIDS. A doutora Barré-Sinoussi, uma francesa nascida em 1947, esta envolvida em pesquisas relativas a virus, mais especialmente em busca da cura da AIDS, desde o comego dos anos 1970 no Instituto Pasteur em Paris. Ela é auto- ra ou coautora de mais de 220 publicagdes originais. Ela jé foi convidada para falar em mais de 250 conferéncias internacionais e j4 recebeu dez prémios internacionais como reconhecimento por suas pesquisas e contribui- goes para HIV/AIDS. Na atualizagao para esta edigéo, devo registrar que desde margo de 2008 nao pertengo mais ao corpo do- cente da UNISINOS, cuja Editora continua me prestigian- do. Atualmente, sou professor e pesquisador no Centro Prot Dr. Luiz Gonzaga Roversi Genovese Instituto de Fisica-UFG Mat, SIAP 1680299 20 Uma vez mais FAZENDO UMA APRESENTACAO Universitario Metodista - IPA. Ainda nesta dimensao pessoal, adito que desde 30 de julho de 2006 edito um blogue diario, defendendo a tese de que ele se constitua num artefato cultural p6s-moderno para fazer alfabeti- zagao cientifica. Sonhando que com esta nova edigdo, ampliemos as interag6es: escrita > leitura e que juntos contribuamos Para que outro mundo seja possivel, ate porque a alegria e 0 gosto pela Ciéncia podem / deve coexistir. Morada dos Afagos www. attticochassot. com. br na expectativa do inverno de 2009 Depois desta mirada das apresentacées anteriores, neste outono de 2011, trago algumas contextualizagées para esta nova edigao. No segmento onde analiso a presen- ga das mulheres laureadas com prémios Nobel, amplio as referéncias que estado nos anuncios das outras edicdes do interregno de 2004 a 2008. Antecipo aqui, para guardar iso- nomia com as outras apresentagées, que em 20039, nos trés prémios na area de Ciéncias (Fisica, Quimica e Medicina ou Fisiologia), temos algo muito significativo: trés mulheres en- tre os nove laureados (em Fisica, trés homens; em Medici- na, duas mulheres e um homem; e, em Quimica, dois homens e uma mulher). No ano de 2009, pela primeira vez uma mu- lher (Elinor Ostrom, nascida em 1933 nos Estados Unidos) junto com um homem foi premiada com o Nobel de Economia (distribuido desde 1965). Em 2010, os trés prémios de Cién- cias tém esta distribuigdo: Quimica trés homens, Fisica dois homens e Medicina um homem. No capitulo “Os prémios No- bel as mulheres” estes dados sao reunidos e atualizados, mas se pode antecipar: se validos estes indicadores, a Cién- cia (ainda) é masculina, E claro que cada vez mais é significativo discutir a validade deste indicador (prémio Nobel) e um possivel des- crédito a ele foi aumentado, quando em 2009 Barack Obama recebeu o Nobel da Paz. Por coincidéncia escrevo esta apre- sentagao na mesma semana que do Brasil ele mandou bom- bardear a Libia “por razGes humanitarias”. Nao sao poucos Os que pedem que o laureado devolva o prémio. A CIENCIA € MASCULINA? E, SIM SENHORA! 21 Ha continuados questionamentos quanto a omis- goes de alguns nomes de mulheres relevantes na historia da humanidade; assim, adito na secgao “para saber mais” um novo verbete: Annie Wood Besant (1847-1933), militante socialista e autora de uma vasta obra literaria sobre teoso- fia. Ela agrega para esta adigado a mesma justificativa que determinou, em 2008, incluir Helena (Petrovnal Blavatsky (1831-1891). E preciso referir repetidamente que este livro tem um recorte: a cultura ocidental — e nao ignoro que fazer mengao a esse detalhe empobrece este livra. De uma ma- neira muito reducionista, claro que com o rastreamento de outros DNAs, que néo o grego, 0 judaico e o cristao, que sao trazidos quando da andlise de nossa triplice ancestralidade, poderia se dizer que a pergunta titulo deste livro nao teria resposte muito diferente no mundo oriental ou no mundo islamico. Isto aparece tenuemente no capitulo “Mas nds nao estamos sds”. Ainda sobre acréscimos desta edigao devo anunciar que 0 mais significativo ocorre na analise de nossa ancestra- lidade judaica. Vaérias vezes em palestras fui cobrado por nao mencionar a possivel existéncia de Lilith como predecessora de Eva, no paraiso. Acredito que agora tenha trazido bons argumentos para outra releitura do capitulo 1 do Génesis. Este texto, como nas quatro edigdes anteriores per- segue 0 mesmo objetivo: ajudar a chegadas de novos tem- pos, onde haja menos discriminagoes. E dentre as muitas possibilidades, aqui, a luta é contra as discriminagoes im- posta 4s mulheres Quando escrevia essa apresentagao surpreendia-me com a noticia, publicada em jornal de circulagaéo nacional: Uma das primeiras mulheres a entrar no Instituto Rio Bran- co, a jornalista e ex-diplomata Cecilia Prada, 81 anos, tenta ha dez anos na Justiga ser reintegrada ao Itamaraty. Cecilia entrou no instituto em 1956, dois anos apds o Concurso ser aberto a mulheres. Mas teve que abandonar a carreira em 1958, para casar com o também diplamata Sérgio Paulo Rouanet (ex-secretério de Cultura da Presidéncia, que deu nome @ Lei Rouanet) 22 Uma vez MAIS FAZENDO UMA APRESENTAGAD Na época, segundo ela, o Itamaraty exigia que, nes- ses casos, a mulher pedisse exoneragdo. “Ou eu saia ou nao me casava. Sai prejudicada por ser mulher.” Apds quin- ze anos, Cecilia se separou, Depois, tentou voltar a carrei- ra diplomaética por um processo administrativo, mas nao conseguiu. Para Cecilia, sua saida foi provocada pelo preconceito por ser mulher, “Guando minha turma terminou o curso, foi chamada ao gabinete do secretario-geral. Para cada um ele cumprimentava dizendo “Parabéns, seja bem-vindo 4 Casa”. Quando chegou a minha vez, disse: "Eu sou contra mulheres na carreira”. O Itamaraty confirmou a exigéncia de exoneragao da mulher quando houvesse casamento entre diplomatas. Um decreto-lei de 1946 determinava que se o diplomata casasse com uma servidora publica, como era o caso de Cecilia, ela teria que se exonerar. Nao ha registro de mudanga na regra até 1958, segundo o sitio da Camara. Segundo a assesso- ria, atualmente, dois diplomatas podem se casar e marido e mulher castumam ser removidos para o mesmo local. Ainda sobre continuadas discriminagdes a mulheres, vale a trazida de um relato ouvido de meu colega Dario Pires, do Programa de Pés-Graduagaéo em Ensino de Ciéncias da UFMS. Em Nioaque — nome indigena: clavicula quebrada -, seu municipio natal, que fica a meio caminho entre Campo Grande e Bonito, em Mato Grosso do Sul, sua mae era ve- readora, em uma camara municipal onde seu partido detinha quatro das sete cadeiras. Candidata 4 Presidéncia da casa, sua eleigao era, como se dizia, “favas contadas". Pois dona Octacilia perde a eleigao, pois um dos seus correligionérios vata com a oposigao, afirmando fazé-lo por ser preferivel a infidelidade partiddéria a ter uma mulher no comando do legislativo nioaquense, e, portanto, a comanda-lo. Pademos fazer inferéncias de como 0 ilustre edil sentir-se-ia no Brasil de 2011, quando uma mulher é a presidenta do Brasil. Mesmo que a Politica como a Ciéncia seja masculina, a eleigao de Dilma Rousseff em 2010 representa um marco tdo expressivo como aquele que aconteceu oito anos antes, quando da eleigéo de metalurgico para presidente do Brasil A Ciencia ¢ mascuuina? E, sim SENHORA! 23 Ha ainda, pelo menos, duas mazelas no Brasil em que as mulheres séo extensamente discriminadas: violéncia do- meéstica e salarios. Se os trés DNAs que examino adiante podem explicar 0 machismo, é dificil aceité-los como expli- cagaéo quanto a violéncia, mesmo que possamos admitir, alinhados na tradigdo judaico-cristé, que o ato da criagao narrado na Biblia € um ato de viol@ncia domestica. Adao e Eva sao expulsos do paraiso por desobedecerem a Lei de Deus; nao houve, por parte do Criador, nenhum perdao. Além do mais, tanto Adao quanto Eva tiveram que provar o mal para conhecer o bem. Quanto as diferencas de saldrios, no mundo capitalis- ta competitivo, o que se pode fazer para desqualificar é va- lido — e entao as teses acerca do machismo afloram. Trago dois comentarios sobre uma e outra destas nddoas. Avioléncia doméstica contra mulher é tao significativa no Brasil (e nisso nao somos excegao) que ha uma legislagao especial. Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei nimero 11.340 foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente do Brasil Luiz Inacio Lula da Silva em 7 de agosto de 2008. Dentre as varias mudanges promovidas pela lei esta o aumento no rigor das punigdes das agress6es con- tra a mulher quando ocorridas no ambito doméstico ou fa- miliar. A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2008, e ja no dia seguinte o primeiro agressor foi preso, no Rio de Janeiro, apds tentar estrangular a ex-esposa. A introdugao da lei diz: “Cria mecanismos para coi- bir a violencia doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 226 da Constituigao Federal, da Convengao sobre a Eliminagao de Todas as Formas de Discriminagao contra as Mulheres e da Convengao Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violéncia contra a Mulher; dis- pde sobre a criagao dos Juizados de Violéncia Domestica e Familiar contra a Mulher; altera o Codigo de Processo Penal, o Codigo Penal e a Lei de Execugao Penal; e da outras providéncias”. Maria da Penha Maia Fernandes é uma biofarmacéu- tica brasileira que lutou para que seu agressor viesse a ser condenado. Com 60 anos e trés filhas, hoje ela é lider de 24 Uma vez mals FAZENDO UMA APRESENTAGAG movimentos de defesa dos direitos das mulheres, vitima em- blematica da violéncia doméstica. Em 1983, seu ex-marido, o professor universitario colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, tentou mata-la duas vezes. Na primeira vez atirou contra ela, simulando um assalto, e na segunda tentou eletrocuta-la. Por conta das agress6es sofridas, Penha ficou paraplégica. Nove anos de- pois, seu agressor foi condenado a oito anos de prisao. Por meio de recursos juridicos, ficou preso por dois anos, Salto em 2002, hoje esta livre. Qutra suposigao é que a maioria dos casos de vio- léncia doméstica sao em classes financeiras mais baixas, mas a classe média e a alta também tém casos, porém as mulheres denunciam menos por vergonha e medo de se exporem e a sua familia. O fendmeno ocorre em todas as classes, porém é mais visivel entre os individuos com fracos recursos econdémicos. O senso comum considera a violéncia doméstica como um tipo de crime que so ocorre com as mulheres, mas quase 30% dos homens dizem que foram vitimas deste tipo de abuso, segundo uma pesquisa publicada pela revista American Journal of Preventive Medicine publicada em maio de 2008. “A violencia doméstica sofrida pelos homens é pouco estuda- da e frequentemente estdé escondida, quase tanto como se escondia a violéncia contra as mulheres ha uma década”, dis- se o autor principal do estudo Robert Reid, do Centro para Estudos da Satde Group Health em Seattle (Washington). Os pesquisadores entrevistaram por telefone mais de 400 homens adultos que eram pacientes do Group Health e descobriram que quase 30% tinham sido vitimas da violéncia doméstica em algum momento de suas vidas. A extensao da violéncia doméstica contra os homens néo é um fenémeno exclusivo dos Estados Unidos: a Pesqui- sa de Crimes do Reino Unido no periodo 2001-2002 desco- briu que quase 20% dos incidentes foram denunciados por vitimas masculinas, e que na metade destes casos 0 abuso tinha sido cometido por uma mulher. A Ciencia € masculine? E, sim SENHoAA! 25 Para o estudo do Group Health, os pesquisadores in- cluiram na violéncia doméstica tapas, golpes, pontapés e o abuso nao fisico como ameagas, frases continuamente de- preciativas ou insultantes e conduta controladora. “E provavel que na violéncia daméstica as mulheres sofram mais abuso fisico que os homens", apontou Reid. “Mas 0 abu- so nao fisico também pode fazer um dano durével.” “O que nos surpreendeu foi descobrir que a maioria dos ho- mens em situag6es de abuso tambem ficam no casamento, apesar de multiplos episddios durante muitos anos”, acres- centou. Quanto 4 segunda das mazelas, nao parece crivel que no século XXI ocorra ainda com tantas discriminacdes contra mulheres, e estas tenham na remuneracaéo da forga de trabalho significativos contrastes. Alguns parecem ser paradoxais: a diferenca salarial entre homens e mulheres aumenta com o grau de instrugaéo Dados de analise de conjuntura de mercado de traba- lho apontam que o salério médio de admissao dos homens é de RS 856,88 e o das mulheres é de AS 753,23; sendo que Sergipe é o Unico estado brasileiro onde os salarios mé- dios de admissao das mulheres superam os dos homens, RAS 737,07 e RS 693,97, respectivamente. O mais surpreendente é que, quanto maior o grau de instrugao, maior é a diferenga salarial entre homens e mu- Iheres, segundo dados divulgados pelo MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Em 2010, o salario médio de admissao de homens analfabetos estava em A$ 615,49, enquanto que o das mulheres na mesma situagao estava em RS 565,51, uma diferenga de R$ 49,98. Jé homens com educagéo supe- rior recebiam, aproximadamente, R$ 2.709,82 e as mulheres com mesmo grau de instrugdéo, AS 1.659,05, 0 que repre- senta AS 1.050,77 a menos. Nos cargos operacionais, as mulheres ganham menos que 50,7% do que os homens. Mesmo com pés-graduacao, mulheres ganham até 51% menos que homens. As mulheres continuam ganhando menos do que os homens em todos os niveis hieraérquicos, apesar de alcan- 26 Uma vez Mais FAZENDO UMA APRESENTAGAG garem mais a pos-graduagao do que eles, revelou uma pes- quisa realizada por empresa do mercado de agenciamento de empregados. De acordo com os dados, elas chegam 4 ganhar 51,6% menos do que eles, como acontece nos car- gos de geréncia. Neste caso, a média salarial delas é de R& 5.089,40, e a deles, de A$ 7.717,70. “Mesmo as mulheres se preparando tao bem para 0 mercado de trabalho, elas ainda possuem salarios menares. Observamos grandes diferengas salariais tanto para cargos operacionais como gerenciais, ou seja, as diferengas ainda ocorrem de forma expressiva em varios niveis hierarquicos”, diz a gerente da Pesquisa Salarial de empresa especializada Enquanto 19,5% das mulheres sao pos-graduadas, a propor- go entre os homens @ de 17,3%, Um total de 44,2% delas tém graduagao, ante 38% deles. Outra discriminagdéo ainda mais dolorosa: negras ga- nham 45% menos do que mulheres brancas. Pesquisa do De- partamento Intersindical de Estudos Socioeconémicos (Die- ese) mostra que o desemprego é maior para as negras do que para as brancas e as asidticas, bem como os salérios so, em média, 44,9% mais baixos. Em Sao Paulo, o salario médio pago para negras é de AS 494, contra RS 896 das néo negras e AS 756 dos negros. Mas migremos de abjetas discriminagdes a auspiciosos relatos. Como os anuncios de novas edigdes se constituiram lécus natural para fruir o avonado e como esta apresenta- Gao se sobrepde as demais, apresento aqui um panorama dos dulgores de meu avonar. Quando a livro foi langado, a Maria Anténia, filha do Bernardo e da Carla, era a Unica neta, nas- cida no ocaso do século passado. Em 2005, 0 Guilherme, filho da Ana Lucia e do Eduardo, é aditado (aditar também tem a acepgao gostosa: causar a dita de, tornar feliz) ao avonar. No ano seguinte, com a chegada da Maria Clara - filha da Clarissa e do Carlos -, nado desmente a garra de sua bisavé e minha mae, de quem herda o nome - poe as mulheres em vantagem em termos de género dos netos. Em 2007, esta relagao fica igualada com a chegada do Antonio, filho da Laura e do Gabriel. Em 2009, 0 Pedro, filho do André e da Tatiana, e, em 2010, 0 Felipe, filho da Ana Lucia e do Eduardo, ampliam uma hegemo- A Ciencia € MASOULINA? E, SIM SENHORA! 27 nia masculina. Neste outono soube pela Clarissa e pelo Carlos que quase no ocaso da primavera serei um hepta-av. Apartir desta edigéo a dedicatoria — que mais de uma vez usei para a contestacao de que o livro nao é machista, como poderia sugerir o titulo e a sua resposta que esta na primeira pagina — é ampliada. Vale acrescentar que sao os desejados novos tempos referidos ofertorio deste livra que continuamos perseguindo. Isso ocorre, especialmente, nas centenas de pales- tras que tenho proferido. Nestes anos de circulagao deste livro, do leque de opgées (esta na minha pagina) que oferego, aquela que tem este livro como titulo 6 a mais solicitada. Ja a realizei em quase todos os estados do Brasil (nao es- tive ainda no Acre, Amapa, Piauf e Tocantins). Também ja a proferi na Franga, México, Argentina, Uruguai e Colémbia. Tenho sempre a sensagao de que algo se transforma. Os homens passam a atender como néo somos machistas por acaso e parecem conseguir superar este sentimento, e as mulheres talvez se abram possibilidades de acdes para faci- litagao da nao tao utopica chegada de novos tempos. Ha situagoes singulares: um colega da Universidade Estadual de Maringa, em outubro de 2006, encomendou vin- te exemplares deste livro. Ante minha curiosidade, eis ex- certos da resposta do professor dr. Ourides Santin Filho, do Departamento de Quimica: “L...1 Eu trabalho com a discipline de Histéria, Epistemologia e Filosofia da Ciéncia, e sempre abordamos a influéncia do catolicismo na sociedade e na ciéncia ocidentais, particularmente na Idade Média, como é€ de praxe, tentando remover-lhe a pecha de “idade das tre- vas”. Neste ano, ao abordar o evolucionismo de Darwin, con- videi os alunos a me explicarem como convivem com dogmas catélicos e a profissdo de (muitos deles) professor de Bio- logia. O resultado se pode imaginar... Nao resisti em apre- sentar seu pequeno / grande optsculo aos meus alunos, e€ trabalhar exaustivamente em aula com fragmentos dele. O resultado ai esta. Sempre conto com a esperanga de que seu pequeno livro va revolucionar velhos modelos. Mais uma vez obrigado e grande abraco [...]”. Alguém que escreve li- vros pode ter alegria maior? 28 Uma vez mals FAZENDO UMA APRESENTAGAC Outra referéncia que envolve este livro: no dia 2 de junho de 2010, partia, para reencontrar Rondénia depois de 35 anos. Levava 150 exemplares do A Ciéncia 6 Masculina? para Ariquemes. Ja em abril remetera 70 exemplares au- tografados com dedicatorias pessoais para Porto Velho. 0 professor que nessa jornada fez seis falas (duas das quais A Ciéncia é masculina?) em trés dias é muito diferente daquele que deu umas aulas de Quimica em 1975 no Projeto Rondon, no campus avangado da UFRGS em Porto Velho. A apresentagao desta quinta edigao se estendeu. Convido agora a adentrarmos no livro. O texto seminal € aquele de 2003. Agora ele vem retintado. Desejo como sem- pre que transubstanciados por esse bindmio fantastico: escritura ¢> leitura consigamos - e aqui o plural néo é ma- jestatico; cada uma e cada um dos leitores e eu ~ vencer preconceitos. Pretensiosa e sonhadoramente sonho que didlogos catalisadas por este livro possam gerar tsunamis de reumanizacao. Morada dos Afagos, quando as arvores comegam a se desnudar neste celebrado outono de 2011. ALGUNS BALIZADORES PREAMBULARES Quando vivemos a escrita de um texto, afloram pro- vaveis futuros leitores — nem sempre tao andnimos — e, ima- ginando suas criticas, nos cercamos de indicadores para resguardar ou proteger posigdes, tentando, assim, dar mais vitalidade a esse bindmio quase magico: escritura <> leitura. Mas isso determina que fagamos algumas limita- gdes. Comego com elas, tentando marcar posigées. E salutar, por primeiro, trazer Para 0 cenario das analises que se iniciam uma ressalva que Parece importante e que tem sido objeto de discussdes e até de varias diver- géncias. O titulo deste livro determina essa colocagao pre- liminar. A Ciéncia, mesmo que as vezes permita que tal se infira, nao esté sendo considerada como uma entidade que possa ser pensada como um ente individuado. Logo, den- tro dessa perspectiva, nao cabe considerar, por exemplo, a Ciéncia como sendo boa ou sendo ma. A Ciéncia é um cons- truto humano — logo falivel e néo detentora de dogmas, mas de verdades transitdrias — e, assim, resposta as realiza- goes dos homens e das mulheres, Logo, quando os humanos produzem remédios que salvam vidas ou modificam geneti- camente alimentos que ajudam a matar a fome, estao rea- lizando ag6es que consideramos como boas. Por outro lado, quando cientistas constroem armas letais ou transformam sementes férteis em organismos estéreis para assegurar propriedade daquilo que @ de dominio universal ou quando produzem armas de destruigao, nao é a Ciéncia que esté gerando a morte, mas sao homens e mulheres que estéo se envolvendo em agdes eticamente condenaveis. Assim, tam- bém parece haver um certo exagero na afirmagao: vamos ouvir a voz da Ciéncia para que ela opine, quando se discutem 30 A.GUNS BALIZADORES PREAMBULARES assuntos como plantar ou nao transgénicos e dizer-se: Nao! Vamos ouvir cientistas, que muito provavelmente terao opi- nides dispares, por exemplo, sobre o assunto. Ha opinides muito diferentes sobre temas complexos como 0 uso de células-troncos ou aparentemente dbvios como “reflorestar” com eucaliptos. Por essas e outras ra- zoes as discussées acerca da ética na Ciéncia 6 complexa A Ciéncia nao é neutra e muito menos os cientistas, Assim, quantas vezes defender o plantio de espécies predadoras como eucalipto pode estar sendo movido por interesses eco- némicos que, de vez em vez, esquecem a sauide do Planeta? Paralela 4 ressalva que esta acima, mesmo que nao seja propésito deste texto fazer uma discussao mais ampla como aquela que esta em Chassot (2003a), a Ciéncia pode ser considerada como uma linguagem construida pelos ho- mens e pelas mulheres para explicar o nosso mundo natural. Assim, a Ciéncia 6 um dos mentefatos — ha outro como as religides, os mitos, 0 senso comum, o pensamento magico, saberes primevos - para a leitura do mundo (Chassot, 2008). Esta é uma descrigao de Ciéncia, e, mesmo que possa pare- cer reducionista, serve para os propésitos das discussGes que se quer fazer aqui. Até porque se quer estar atento, e tambem a uma continuada oposigao ao cientificismo - a crenga exagerada no poder da Ciéncia e/ou atribuigao a ela de fazeres apenas benéficos -, alertados por aquilo que reco- menda Fourez (1995), permitindo que as anélises elaboradas a seguir sejam consideradas como filosofia da Ciéncia, ja que fazem uma interpretagao do que se diz a respeito da Ciéncia: L..1 a palavra “Ciéncia" pode por vezes “aprisionar”, por exempla, quando alguns passam a impressao de que, uma vez que se falou de cientificidade, nao ha nada mais a fazer senao se submeter a ela, sem dizer ou pensar mais nada a respeito. Um fildsofo “critico” ou “emancipatorio” da Ciéncia procurard portanto compreender como e por que as ideolo- gias da cientificidade podem mascarar interesses da socie- dade diversos (p. 21). Mesmo que nem sempre tenhamos facilidades, pare- ce que temos de nos acostumar, cada vez mais, a nos afiliar a Feyerabend (2007) A Ciencia & MASCULINA? E, siM SENHORA! 34 _..dada uma regra qualquer, por “fundamental” e “necessa- ria” que se afigure para a Ciéncia, sempre havera circuns- tancia em que se torna conveniente ignora-la, como adotar regra oposta. L...] Qualquer ideia, embora antiga e absurda, é capaz de aperfeigoar nosso conhecimento. [...] 0 conheci- mento de hoje pode, amanhé, passar a ser visto camo conto de fadas; essa é a via pelo qual o mito mais ridiculo pode vir a transformar-se na mais solida pega da Ciéncia. Ainda outro esclarecimento preliminar, e mais uma vez o titulo parece que pode me comprometer. Dentro da necessidade de socializarmos nossos escritos, este texto teve uma apresentagao prévia em 21 de agosto de 2003, numa das sessdes semanais de discuss6es promovida pelo Instituto Humanitas’ da UNISINOS. Quando o tema foi anun- ciado, a jornalista Paula Almentes veio entrevistar-me para um orgao de divulgacéo da Universidade; disse ao final que, ao contrério do que esperava, néo encontrou um antifemi- nista. Assim, parece importante anunciar que, até para nao frustrar expectativas, mesmo que o titulo possa permitir outras inferéncias, este nao é um texto machista. Ou, me- lhor, ele é exatamente o contrério, Em minha defesa tenho apontado o ofertorio do livro. Fosse o livro machista, ele nao seria dedicado a mulheres que me sao muito caras. Ainda neste balizar inicial, devo dizer também o lugar de onde falo. Sou licenciado em Quimica e fiz mestrado e doutorado em Educagao. Em 2002, fiz um pds-doutoramen- to em Sociologia da Educagao na Universidade Complutense de Madrid. Exergo atividades profissionais, desde 0 segun- do semestre de 2007, no Centro Universitario Metodista do IPA, em diferentes Licenciaturas (atualmente, leciono nelas Conhecimenta, Linguagem e Agao Comunicativa) e no Mestraco Profissional de Reabilitagaéo e Inclusdo, além de orientagdéo de dissertagées envolvendo Historia e Filosofia da Ciéncia. Nestas acées busco fazer a facilitagéo para uma melhor alfabetizagao cientifica 1 Para conhecer mais o Instituto Humanitas consulte www. ihu. unisinos.br 32 ALGUNS BALIZADORES PREAMBULARES Quando falo de meus fazeres académicos no Cen- tro Universitario Metodista do IPA, devo referir que neste 2011/1 ja estou no terceiro semestre de atividades no Pro- grama da Universidade do Adulto Maior — Universidade do Adulto Maior, um programa de extensaéo que se propée a, nao s6 contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas idosas como tambem cumprir com o papel de agen- te mobilizador de agdes académicas na area do envelheci- mento humano. Trabalho na disciplina “Processo histdrico e antropalogico do envelhecimento”, que busca “acompanhar e entender a dimensao do envelhecimento a partir dos even- tos historicos e culturais ao longo dos tempos, principais movimentos sociais artisticos, culturais e compreenséo do processo de envelhecimento como decorrente da interacéo deste contexto". Essa ementa faz visivel o meu significativo desafio e se relaciona com as reflexdes que trouxe quando comentava as minhas dificuldades de ser considerado ano- so € que estaéo em Memorias de um professor: hologramas desde um trem misto, livra em editoragaéo e que reuine holo- gramas de meus 50 anos de professor. Tenho a cada tarde de segunda-feira como alunas e alunos cerca de meia cen- tena de mulheres e homens, maiores de 65 anos que, por j@ terem muitas experiéncias de vida, encantam o meu ser professor ha 50 anos. E deste cendrio que tenho trazido al- gumas das experiéncias que fazem a presente edigdo deste livro mais ampliada. Devo registrar que este livro, em sua edigéo seminal, foi escrito quando na UNISINOS era professor de Metodolo- gia de Ensino de Ciéncias no curso de Pedagogia e atuava na Linha de Pesquisa Curriculo, Cultura e Sociedade do Progra- ma de Pés-Graduagao em Educagao. Este texto se agrega a outros em que venho me opon- do ao presenteismo - vinculacdo exclusiva ao presente, sem enraizamento com o passado e sem perspectivas com o futu- ro, Ja ha mais de meio século, Claude Lévi-Strauss (1989), quando dava a aula inaugural da cadeira de Antropologia So- cial, no College de France, em 5 de janeiro de 1960, afirmava que temos uma obstinagao que nos impele a esquecer nos- sas proprias historias e sentir por elas um verdadeiro horror A CIENCIA € MASCULINA? E, SIM SENHORA 33 (1989, p. 12). Ha neste texto uma decisiva caminhada em diregao oposta. Vale recordar a andlise de um dos maiores historia- dores vivos € ainda muito produtivo, o inglés Eric Hobsbawm (nascido em 1917), a respeito de um dos grandes problemas do final do século passado e que provavelmente persiste, ainda, nesta aurora trimilenar: A destruigao do passado - ou melhor, dos mecanismos so- ciais que vinculam nossa experiéncia pessoal a das geragdes passadas - é um dos fenémenos mais caracteristicos e Iu- gubres do final do século xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa especie de presente continuo, sem qualquer relagao orgénica cam o passado ptiblico da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nun- ca na fim do segundo milénia. (Hobsbawm: 1995, p. 13) E no apossamento das recomendacgdes de Hobsbawm que nds, educadoras e educadores, temos também o oficio cometido aos historiadores: /embrar o que os outros esque- ceram. E nesse espirito que neste texto se revisitam nossas raizes passadas para encontrar perspectivas para o futuro. A propdésito permito-me narrar uma historieta atribu- ida a cultura africana. Em barco que sogobra esta um jovem pai, com seu filho de cinco anos e seu pai, ja de idade avan- gada. Ele tem condigao de a nado salvar apenas um: ou o filho ou o pai. Tragica opgao. Imaginemos um de nés frente a essa escolha. Para aquele jovem pai nao havia indecisao. Era natural para ele e para toda a comunidade que ele salvasse 0 seu pai, pois era ele que detinha 0 conhecimento que poderia ser util & vida de todos e esse nao poderia ser perdido. Essa decis&o tem a ver com a justificativa a uma ati- vidade académica de resgate de saberes populares e que detalho no capitulo 7 de Sete escritos sobre Educacdo e Cién- cias (Chassot, 2008). E, neste fazer, 6 muito impressionan- te 0 quanto os jovens se seduzem com a sabedoria dos mais velhos. Talvez a maxima: quando morre um velho é como uma biblioteca que queima, citada de vez em vez, em outros tex- tos, 6 para mim balizadora de escrevinhares. Tememos dei- xar rastros, mas fazé-lo é preciso. Talvez seja por tal que 34 ALGUNS BALIZAOORES PREAMBULARES escrevo cada dia um diario pessoal e também ha quase cinco anos edito um blogue com frequéncia diaria. Por ditimo, talvez aquele que é o mais importante dos balizamentos, que fago com mais cautela e até com certo temor. Mesmo que a religido esteja muito presente neste texto, ele nao é sobre religiao. Quando me envolvo com his- toria da Ciéncia, especialmente em aulas ou palestras, nas diferentes tessituras que essa disciplina exige com outras histérias, as mais densas, como se vera adiante, sao aque- las com a religido. Por diferentes razOes, muitas vezes me sinto caminhando sobre brasas, A frase “Admira, meu filho, a sabedoria divina que fez o rio passar perto das grandes ci- dades!” presente na abertura de meu livro A Ciéncia através dos tempos j& me trouxe tambem dissabores. Tenho dito que, em absoluto, desejo opor-me as convicgées religiosas e muito menos esmorecé-las; ao contrario Ha diferentes perspectivas para olharmos o mundo natural: podemos fazé-lo com os éculos das religides, dos mitos, da Ciéncia, do senso comum, do pensamento magi- co, dos saberes primevos... Nao afirmamos qual o melhor e mesmo que haja a necessidade de exclusividade, isso é, de nos valermos apenas de um destes mentefatos. Considere- mos duas dessas perspectivas: religiao e ciéncia. Talvez valesse assinaler por que dentre os seis éculos elegi comparar esses dois. A Ciéncia é uma escolha natural, até porque este livro pretende ser um “livro de Ciéncia”. Trés parecem ser as exigéncias de olharmos a religiao: 4) hé um convencimento de quanto é correta a afirma- Gao de como, religiosos ou nao, estamos imersos em mundo religioso. O quanto a eleigéo de um papa mobiliza a muitos e tem igual (ou maior) ressonancia que a escolha de presidente da Republica. A propdsito: por que nao trabalhamos aos do- mingos ou por que no Brasil é feriado no dia 12 de outubro? Por que em alguns municipios (onde luteranos sao maioria) & feriado em 31 de outubro? Ou por que em Rondonia é feriado estadual em 18 de junho (dia do evangélico]? Nas ultimas elei- gdes presidenciais (2010), especialmente no segundo turno, cada um dos dois candidatos queria parecer mais religioso. A Ciencia é Mascuuina? E, sim SENHORA! 35) 2) o cada vez mais acentuado recrudescimenta do fun- damentalismo nos obriga a mostrar que, por exemplo, acei- tar a opgao de uma leitura de nossa cosmogonia, marcada, por exemplo, pelo relato do Génesis, implica aceitar que esta usando outro mentefato cultural que aquele que esta numa leitura da Ciéncia. O fundamentalismo religioso existe o politico, 0 cientifico...) perturba nossas sala de aulas difi- cultando ou embaralhando 0 ensino de Ciéncias. 3) ateologia — ainda nao dicionarizada — parece ser algo muito novo fruto das liberdades que vivemos neste século xxl. Quso definir ateologia: possibilidade de ler o mundo assumindo a posigao filosdfica de que n&o existem deus ou deuses, ou, em sentido lato, a auséncia de crenca na existéncia de divindades. Tenho criticado os fundamentalismos (e estes nao ocorrem so nas religides). Vale referir que ha ateus e também cientistas fundamentalistas. A estes cabe também a critica que se faz aos fundamentalistas religiosos. Esta é a razao pela qual um dos ateus mais militantes — Richard Dawkins, autor do sucesso editorial Deus, um delirio, que comento adiante — ja recebeu em palestras e em outros textos minha critica, por diferentes posicionamentos, como a frase que colocou em Gnibus: “Deus talvez nao exista, divirta-se!” ou ter desejado prender Bento XVI, quando este chegou ao Reino Unido no ano passado. Mas critico especialmente a “militan- cia" do ateismo, que tem marcas de um fanatismo, Admiro o escritor José Saramago; lamentei sua morte recente, mas seu ateismo militante no livro Caim foi desrespeitoso. Por ocasiao do “Massacre de Realengo” (7 de abril de 2011), os autointitulados “formadores de opiniao” foram “sabidos” em construir preconceitos: o assassino é um “aidético”; ele é mugulmano; um mais exaltado bradava: “quem acredita em Deus nao faz uma dessas! Ele € um ateu!”, Recordo que ha néo muito ao fazer palavras cruzadas @ acepcgao para “homem mau de quatro letras” era “ateu”. Quando comentei isso em novembro de 2008, em Brasilia, no | Coléquio Internacional de Psicologia do Conhecimento, o Prof. Arden Zylbersztajn, da UFSC, acrescentou com graga: "\.. ede cinco: judeu!”.

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