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‘Titulo original The Continent Pover (0 pote otioente ~ regio ule lternaive del moderne) ‘Titulo Cotegdo: Politica das males Ginzepe Cows (coord) ‘Teadugio Adriano Pilati Equipe auxilor de Taiz Eduardo, Silva Deberto| Thamy Pogrebrinski Rerisao de provas Paulo Telles Ferreira Pyro gifs « diggrameye ‘Maria Gabriela Delgado Corina de prodapio espa ‘Rodrigo Mustinho Fite do espa Danilo Schisvella ABP = Agence France Press CIP-Brasit. Catalogasio Sindicato Nacional dot Eaitores de Livros, R) Nap Negi, Antonio, 1933- © poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade 1 Antonio Negri; raducio Adriano Pilati. — Rio de Janciro : DP&A, 2002. 14x21 eam; 480p. indice onomistiéo ISBN 85-7490-133-4 1. Diteito consttucional ~ Filosofia. 2. Histria constinacion Antonio Negri O poder constituinte ensaio sobre as alternativas da modernidade texto 64 ~ Tradugao Adriano Pilatti ~o_ DPEA editora Digitalizado com CamScanner © poder constituinte a Luiz Eduardo Melin pelo “auxilio huxuoso” ¢ preciosissimo na tradugio das citagées dos capitulos II ¢ V; 2 Mauricio Rocha, pela leitura critica do capitulo VII, bem como pelas sugestdes e observagdes que dai resultaram;a ‘Ana Roberta Gualda, nio apenas pelo incentivo, pelo carinho e pelo amor, ‘mas pela paciente e proficua Ieitura e revisio da pentliima versio, antes da centrega Editora. Se os defeitos © equivocos deste trabalho so de minha inteira ¢ exclusiva responsabilidade, os eventuais méritos devem ser ‘compartilhados com eles. Com muita alegria. Adriano Pilatti CapituLo I Poder constituinte: o conceito de uma crise 1. Sobre 0 conceito juridico de poder constituinte Problemética juridica do poder constituinte— Poder constituinte:conceito de uma crise insolivel? — A citneia juridica e seu projeto de controle do poder constituinte — Poder constituinte como fonte transcendente: Jelinek e Kelsen; como fonte imanente: de Lassalle a Rawls — Exacerbagio irracional do poder constituinte: Weber e Schmitt — Poder constituinte como fonte coextensiva no institucionalisma juridico — O constitucionalismo contra 0 poder consttuinte — Radicalidade problemitica do canceito deproder constitinte — Um falso problema: poder constituinte e representagio. Falar de poder constituinte € falar de democracia. Na era moderna, 98 dois conceitos foram quase sempre correspondentes ¢ estiveram insetidos num processo histérico que, com a aproximacio do século XX, fez com que se identificassem cada vez mais. Fm outros tezmos, © poder constituinte nio tem sido considerado apenas 2 fonte onipotente © expansiva que produz as notmas constitucionais de todos os ordenam« juridicos, mas também o sujeito desta produgSo, uma atividade igualmente onipotente e expansiva. Sob este ponto de vista, © poder constituinte tende a se identificar com 0 proprio conceito de Politica, no sentido com que este € compreendido numa sociedade democritica. Portanto, qualificar constitucional e juridicamente o poder constituinte nfo sera simplesmente produzir normas constitucionais € estruturar poderes constituidos, mas sobretudo ordenar 0 poder constituinte enquanto sujeito, regular a politica democritica. Ora, a coisa nfo é simples. Com efeito, o poder constituinte resiste 4 constitucionalizagio: “O estudo do poder constituinte apresenta, do Ponto de vista juridico, uma diffculdade excepcional que concerne & naturcza hibrida deste poder... A poténcia que o poder constituinte oculta € rebelde a uma integragio total em um sistema hierarquizado de normas ¢ de competéncias...o poder constituinte permanece sempre Digitalizado com CamScanner 8 © poder constituinte A coisa se torna ainda mais dificil porque a democracia também resiste 4 constitucionalizacio: de fato, a democracia € teoria do governo absoluto, 20 passo que 0 constitucionalismo é teoria do governo limitado ¢, portanto, pritica da limitago da democracia? O nosso problema, portanto, é encontrar uma definigio do poder constituinte dentro desta crise que o caracteriza. Procuraremos compreender 0 conceito de poder constituinte na radicalidade do seu fandamento’e na extensio dos seus efeitos, nas alternativas entre democracia e soberania, politica e Estado, poténcia e poder. Em suma, © conccito de poder constituinte precisamente enquanto conceito de uma czise. Para tanto, examinaremos, em primciro lugar, as articulagdes da definigéo juridica de poder constituinte: elas nos levam prontamente 20 centro da questio. Em segundo lugar, analisaremos o problema do poder constituinte do ponto de vista do constitucionalismo. (© que é, na perspectiva da ciéncia juridica, 0 poder constituinte? E a fonte de produgio das normas constitucionais, ou seja, o poder de fazer uma constituicio ¢ assim ditar 2s normas fundamentais que onganizam os poderes do Estado. Em outros tecmos, é 0 poder de, instaurar um novo ordenamento juridico ¢, com isto, regular as relacoes jucidicas no scio de uma nova comunidade.’ “O poder constituinte é um ato imperativo da naco, que surge do nada e organiza a hierarquia costtuzionalismo”, I/Mulina 314, 2n0 36,6, 3 C Monti, Poder constituinte: © conceito de uma crise dos poderes.”* Eis-nos, com esta definigio, diante de um paradoxo extremo: um poder que surge do nada e organiza todo o dircito... Um paradoxo que, precisamente pelo seu cariter extremo, € insustentivel. E, no entanto, a ciéncia jurfdica nunca se exercitou tanto naquele jogo de afirmar © negar, de tomar algo como absoluto e depois estabelecer- tes ~ que € to préprio do seu trabalho légico — como o fez a propésito do poder constituinte.® Entretanto, se o poder constituinte € onipotente, deveré ser temporalmente limitado, devers ser definido e exercido como um poder extraordinitio. O tempo que é préprio do poder constituinte, um tempo dotado de uma formidavel capacidade de aceleragio, tempo do evento ¢ da generalizacio da singularidade, devera ser fechado, detido ¢ confinado em categorias juridicas, submetido 4 rotina administrativa. Este imperativo — transformar 0 poder constituinte em poder extraordinario, comprimi-lo no evento € encerré-lo numa factualidade somente revelada pelo direito — talvez nunca tenha sido tio ‘exaustivamente sentido como no curso da Revolucao Francesa. O poder constituinte como poder onipotente €, com efcito, a propria revolucio. “Citeyens la révolution ext fice ance principes qué Vont carnmencé. Lz Constitution st fondée sur es droits sacrés de la propricté, de Végait, de la Eberté. La révolution ext frie” § proclamari Napoleio, com inigualivel ¢ irnica arrogiincia,? Porque afirmar que © poder constituinte terminou é pura falta de senso légico. E certo, porém, que a revolugio ¢ o poder constituinte no podem ser juridicizados a nfo ser na forma do Termidor: 0 problema do liberalismo francés, durante toda a primeira metade do século XIX, continuard a ser o de terminar a revolugio.* Contudo, “1. Boutmy, Etudes de det contintonnel Franc, Arghtere, Etstr Unis (1885), 3.6, Pati, 1908, p. 241. 5 Como incessantemente sublinha K. Macx, ‘*Cidadios, a revolusio esi asentada nos pinepios que desencadearam. A Constinigio std fundada sobre 03 sagrados direitos de propriedade, igualdade ¢ liberdare, Um longo comentito a esta afimasio de Napoleio no dia 15 de dezembro de 1798 encontrado em R, Schau, Retin wnd Webber, Berm, 1989 (ee Mise 1986,p.89-118. * Ver o capo V,abaixo, Mas aqui, além do citado volume de Schnus, as obeas de R. Koselech Ke and Rn, Freiburg, 1939 (wd. ie, Bolonha, 1972) © Vagrages Sotaoh, it., Génova, 1986), ce “s Frankfurt, 1979 ( Digitalizado com CamScanner Ne wo © poder constituinte © poder constituinte no é apenas onipotente, é também expansivo, seu cariter ilimitado nio é apenas temporal, também espacial. Pois, bem, esta expressio espacial também deve set reduzida e regulada. poder constituinte deve ser reduzido a norma de produgio do interiorizado no poder constituido — sua: expansividade no manifestar a no ser como norma de interpretasio, como a atividades referendarias, caine dentro de limites ¢ procedimentos bem definidos. Tudo isto do p de vista objetivo: uma fortissima parafernilia ju © poder constituinte. Define seu conceito como esséncia insohivel Se encaramos o problema sob 0 angullo do diteito subjetivo, a crise roma-se ainda mais evidente. Apés ter sido desnaturado objetivamente, ‘© poder constiminte é subjetivamente dissecado. Antes de tudo, as caracteristicas singulares da originariedade e da inalienabilidade sio dissolvidas, e 0 nexo que historicamente liga o poder constituinte a0 diceito de resisténcia (¢ que define, por assim dizer, a figura ativa do primeiro) € suprimido.”” Aquilo que resta é submetido a todas as sevicias, “Absorvido pelo conceito de nagio, 0 poder constituinte parece” manter, certo, alguns aspectos de originariedade; mas é sabido que se trata de um sofisma e © conceito de poder constituinte é antes sufocado que desenvolvido no conceito de nagio." Nem mesmo essa redugio é suficiente: a fera ainda no parece domada. Eis que 20 sofisma ideol6gico alia-se 0 tabalho das tesouras Iogicas — e a cigncia juridica celebra uma de suas obras-primas. O paradigma é seccionado: ao poder constituinte originario ou comitente opse-se (Segue-se, distingue-se, contrapSe-se) 0 poder constituinte em sentido proprio, assemblear, enfim, aos dois primeiros se opde 0 poder °” A remissio é, novamente ¢ sobremido, a C. Mortati, Mas ver também P. G. Grasso, “Potere costinuente”, Eadiapeia del drte, vol. XXXIV, p. 642-670, e, com particular atengio, H. Sauerwein, Dis Onenpoterg des “pouvoir coniitant”, Ein Derg zur Stats = und Verfascangtbare, eases, 1960. 10M, Hausion, Pri de drat contusion, Pais, 1923, p. 10 € 282. 1 R Carré de Malberp, Coniaton lthirc ntl de Es, Pai, 1922, 0.1, p. 167 €38; 820, R. Reichardt e E. Schmite (org), Munique: Heft7, 1986, p.75-107. Poder constituinte: © conceito de uma crise " constituido."* Deste modo, o poder constituinte é absorvido pela maquina dareptesentagio.” O cariter ilimitado da expressio constituinte €limitado na sua génese, porquanto submetido as regras ¢ a extensio relativa do suftigio; no seu funcionamento, porquanto submetido is regras parlamentares; no seu periodo de vigéncia, que se m: funcionalmente delimitado, mais préximo 4 forma da ditadura ¢ do que a teoria e as praticas da democracia:"* em suma, a idéia de poder constituinte é juridicamente pré-formada quando se pretendia que ela formasse o diteito, é absorvida pela idéia de representago politica quando se almejava que ela legitimasse tal conceito. Assim, o poder constituinte, enquanto elemento conexo 4 representagio (€ incapaz de exprimir-se senio através da representagio) € inserido no grande quadro da divisio social do trabalho."* Era deste modo, pois, que a teoria juridica do poder constituinte procurava resolver 0 presumido circulo vicioso que caracterizatia a esséncia do poder constituinte. Mas 0 que significa encerrar © poder constituinte na representaZo, quando esta tltima ndo é mais que uma engrenagem da maquina social da divisio do trabalho? O que significa isto seniio a negago da prdpria realidade do poder constiminte, sua fixago num sistema estitico, a restauragio da soberania tradicional contra a inovacio democratica?* Facil demais. Apesar de tudo, o problema no pode ser eliminado nem negado. Permanece. E permanece igualmente 0 trabalho de Sisifo dos intérpretes juridicos. Como evitar entio uma via tedrica que elimine, constituinte ¢ ordenamento juridico, entre a eficicia onipotente © constituida? Como manter aberta, embora controlando-a, 2 fonte da vitalidade do sistema? Em suma, © poder constituinte deve de algum modo ser mantido, para evitar que sua eliminacio leve consigo @préprio '? Ver no capitulo V, absixo, 0 estado das posigdes de Sieyés € a bibliogeafia pondente. Democraxia defiizon, 3.08, Bolonba, 1 \6HL sac Poe Wann Pende Deuba Tubingen, 129 (de Boon 1964 P6675), Digitalizado com CamScanner 2 © poder constituinte sentido do sistema juridico ¢ a referéncia democritica que lhe deve quulificar 0 horizénte. O poder constituinte ¢ os seus efeitos existem — como ¢ onde fazé-los atuar? Como encerrar 0 poder constituinte num mecanismo juridico? O problema serd apenas e somente este: controlar a irredutibilidade do fato constituinte, dos seus efeitos, dos valores que exprime. Trés sio entio as solugdes propostas: para uns, o poder constituinte é transcendente face 20 sistema do poder constituido — sua dinimica’é imposta a0 sistema a partir do exteri grupo de juristas, o poder constituinte é 20 contritio, imanente, sua presena é intima, sua ago é aquela de um fundamento; um terceiro grupo de juristas, por fim, no considera o poder constituinte como fonte transcendente ou imanente, mas como fonte integrada, coextensiva ¢ sincrénica do sistema constitucional positivo. Vejamos uma a uma tais posigdes, destacando suas articulagdes internas: de fato, parece que o grau de transcendéncia, de imanéncia ou de integracio pode passar, em cada caso, de um minimo a um maximo, determinando efeitos juridicos e constitucionais singulares e diversos. Assim é para o primeiro grupo de autores, aqueles que consideram © poder constituinte como fonte transcendente. © poder constituinte € aqui assumido como um fato que precede 0 ordenamento’ constitucional, mas que depois se lhe opée, no sentido de Ihe permanecer historicamente externo e de somente poder ser definido pelo poder constituido. Esta é, com efeito, a posisio tradicional; mas reformada, pois a contradicao é evitada através de um deslocamento de planos: enquanto a ordem do poder constituido é aquela do dever- ser (Sollen), a ordem do poder constituinte é aquela do ser (Sei 4 primeira compete 4 ciéncia juridica, a segunda a hist6ria ou a sociologia norma e fato, validade ¢ efetividade, dever-ser ¢ horizonte ontol6gico ‘io se entrelagam. O poder constituinte funda 0 primeiro, mas o faz através de um nexo causal imediatamente rompido, de modo que a autonomia do ordenamento juridico constituido é absoluta. A grande escola do dircito piblico alemio, na segunda metade do século XIX e no inicio'do século XX, conquistou fama por sustentar essa posigio. Segundo Georg Jellinek, o poder constituinte € ex6geno 4 constinuigio e resulta do empirico-factial como produgio normativa.” "7G Jellinck, Aleemeine Staatlre, Bedin, 1914, p. 342 ¢5;H. Sauerwein, op. cit, p. 45-47. 1B inte: © conceito de uma crise Esta produgio normativa é limitada, ou melhor, compreende ela mesma sua autolimitagio, posto que o empirico-factual é aquela realidade hist6rica e ética que, querendo o direito, limita kantianamente a extensio do principio externo ao direito. O poder constituinte, querendo 0 dircito © & constitui¢io, nao quer outra coisa sendo a regulagio e, portanto, a autolimitagio da propria forca.'® Neste sentido, a transcendéncia do fato relativamente ao direito pode apresentar-se como diferenga de grau minimo ~ ¢ é particularmente interessante notar como a escola de Jellinek (sobretudo diante dos efeitos da Revolugao dos Conselhos na Alemanha do primeito pés-guerra) no hesitou em esvaziat ainda mais este clemento de separacio entre a fonte e 0 ordenamento, sustentando a necessidade de acolher neste ordenamento produgdes revolucionarias € seus efeitos institucionais nio previstos, antes claramente excedentes a norma fundamental da constituigio do Reich.” Isto € tudo que Hans Kelsen se recusa a fazer. Para ele, a transcendéncia € maxima, absoluta. A especificidade do direito consiste em regular sua prdpria produgio. Somente uma norma pode determinar — e determina — 0 procedimento pelo qual se produz uma outra norma. A norma que regula a producio de uma outra norma, ¢ a norma produzida segundo tal prescrisio, representadas através da imagem espacial da supremacia e da subordinacio, nfo tém nada a ver com 0 poder constituinte — as normas seguem as regras da forma juridica © poder constituinte nio tem nada a ver com 0 proceso formal de reprodugio das normas. No limite, 0 poder constituinte é definido pelo conjunto do sistema ~ sua realidade factual, sua onipoténcia ¢ expansividade sio implicitamente evocadas naquele ponto do sistema em que a poténcia formal do direito encerra, em si mesma, onipoténcia ¢ expansividade: a norma fundamental (Grundnorn).® Ea situagio no se altera muito com o fato de que, no iiltimo periodo da produgio cientifica desse autor, toda a vida factual, jurisprudencial e institucional do direito tenha sido absotvida pelo processo normative — esta nova dindmica no é nunca dialética, no maximo é um decalque do real, e 0 sistema jamais perder sua autonomia absoluta, Quanto a0 poder 1G Jelinek, op at, p. 332, 19 G Jelinek, “Revolution und Reichsvefassung’ arb ir iether Rac, 1920, p31 es 2H, Kelsen, Dersogilgiche und dere Staab, Tabingea, 1928, . 83s, 98, 187; La det parade drt, 3 2, Tate, 1915, 251 ess, Digitalizado com CamScanner 4 ; © poder constituinte no interior da vida constitucional, mas ser-nos absol impossivel, de outra parte, consideri-lo fonte de qu: principio de movimento de qualquer aspecto do sistema." Que dizer? ‘Pouco ou nada resta do poder constituinte apés essa operacio de fundacio formal do direito ¢, portanto, de redugio ética (como em Jelinek) ou sociolégica (como em Kelsen) do seu conceito, © ponto de vista da soberania impde-se, mais uma vez, contra aquele da democracia, a transcendéncia do poder constituinte é a sua negacio. O resultado no parece diferente quando 0 poder constituinte é considerado como imanente ao sistema juridico-constitucional. Aqui, ino nos encontramos diante de uma articulacio de posicées no interior de uma mesma escola, mas diante de posigdes tio diversas quanto tipicas de importantes orientagdes tedricas. Ora, neste caso, a densidade histérica do poder constituinte nao é expulsa a priori das consideragdes cientificas, mas sua relagio com a ciéncia do direito no é menos problemitica. Se, de fato, 0 poder constituinte torna-se um auténtico motor da dinimica constitucional (¢ a ciéncia aceita sua presenca), a0 mesmo tempo, porém, varias opetagées de neutralizagio sao ativadas: operagdes de abstragio transcendental ou de concentragio temporal, a fim de que, no‘primeiro caso, a imanéncia do fato a0 direito seja diluida num horizonte (dir-se-ia) providencial, ou entio, no segundo caso, seja condensada numa a¢io inovadora tio imprevista quanto isolada. O grau mfnimo e 0 grau maximo de imanéncia so mensurados pela extensio despotenciada dos efeitos ou pela intensidade irracional € stbita da causa: se a eficdcia do principio constituinte € dada, ela o € com a finalidade de ser detida ¢ regulada. A posicio de incidéncia minima do principio constituinte como pri imanente ao sistema juridico pode ser estudada, em sua forma sipica, nas formulagoes de John Rawls Com efeito, ele considera o poder constituinte no interior ‘de uma seqiiéncia em que tal principio € posto num segundo estigio, apés um primeiro estégio no qual se realiza 0 acordo contratual sobre FFL Keen, Allemrine Tre der Normer, Viena, 1979.Na tradugio italiana, vera Sima ntrodugio de Macio A. Lossno. Sobre a interpretagio kelseniana do poncipio da ‘fetividade, ver G. Piovani, Il signieato de principio diefittinita, Milo, 1953. Ver, ainda, £.G. Guersezo Perez, Pade cttngent.y Contr ridisioral, Bogot, 1985. 2 Rawls, A Theory of Juste, Cambridge, Mass, 1971, trad. it, Milio 1982, p 171 Poder constituinte: © conceito de uma crise 1s os principios de justica, © antes de um terceiro ¢ de um quarto estigios em que se vém colocados, respectivamente, a méquina e a hierarquia legislativas, e a execusio da lei. Trata-se da reabsorsio do poder constituinte pelo direito constituido através de uma méquina de virios estigios que, tornando o poder constituinte imanente 20 sistema, tolhe ua originariedade criativa. Além disso, a justiga politica, ou melhor, 4 jastiga da constituicao (aquela produzida precisamente pelo poder constituinte) representa sempre um caso de justia procedimental imperfeita: em outros termos, no cilculo das probabilidades, « rganizacZo do consenso politico é sempre relativamente indeterminada ‘A limitagio que o poder constituinte encontra na méquina contratual de ‘sua expresso, acrescenta-se aqui um limite ético-politico sobredeterminado (que é condigao — kantiana — da constituicao do transcendental) ‘A imanéncia é palida, de grau minimo, ainda que seja efetiva Consideremos agora as posigoes em que o grau de imanéncia é mais forte. De novo somos impelidos — apés esta breve incursio no mundo anglo-saxio = em dire¢o 4 ciéncia juridica (¢, 20 caso em questio, também 4 ciéncia politica) do Reich alemao. Ferdinand Lassalle: a vigéncia normativa da constituicao juridico-formal, sustenta ele, adequagio entre as ordens de realidade (material ica ¢ juridica) que foi estabelecido pelo poder constituinte, Este € um poder de formagio em sentido proprio. A sua extraordinariedade é pré-formadora, a sua intensidade estende-se, como projeto implicito, pelo conjunto do ordenamento. Levando em conta a resistencia das condig6es reais ¢ a poténcia revelada pelo poder constituinté, o processo constitucional pode ser imaginado ¢ estudado como instincia de intermediagio entre a5 duas ordens de realidade.* Sempre no:ambito daquelas tendéncias juridieas préximas do movimento operirio, Hermann Heller aperftigoa a visio de Tassalle- O processo constituinte torna-se aqui endégeno, interno 20 desenvolvimento’ constitucional. Inicialmente, o poder consdtuinvs imprime seu dinamismo ao sistema constitucional, antes de sen 06 tmesino, 1 formado pela constitulgio, © poder consttuinte é absorvido Ver en Loic 1500 18055 cA NE Reena >. Futur Antiiear, supl. 1, Paris, 1991. trim, 1962 também B. Being, Rereltion und Rec, ® Ihidem,p. “Rawls: ua formalisme fort das 26, Lasealle, Ober Vefascangosesen, ‘Augsburg, 1923, Digitalizado com CamScanner © poder constituinte pela constituicio.* J4 nio est longe o momento no qual Smend poder chamar a constituigio de “principio dinimico do devir do Estado” ‘Como pode acontecer que a originariedade do poder constituinte seja, 120 termo do processo cientifico, completamente absorvida pelo Estado? Como pode acontecer que a mediagio entre as diversas ordens da realidade se realize através de um dinamismo centrado no Estado, ou melhor, formado precisamente, como intima esséncia, pelo Estado? Mais uma vez, ¢ uma operagio de neutralizacio do poder constituinte a que assim se realiza. B ainda que tais autores 0 neguem, sustentando que a evolugio do Estado é também a realizacio progressiva de um conjunto de normas constituintes, torna-se absolutamente incerta a determinagio que estas assumnem no movimento real. A imanéncia do poder constituinte manifesta-se no Estado sob a forma de uma evolucio natural. ‘A hist6ria constitucional pode ser uma hist6ria natural? Respondem asta questo dois dos maiores pensadores do século XX: Carl Schmitt ¢ Max Weber. Ede Weber a acutissima percepcio da insuficiéncia do critério naturalista para tornar o poder constituinte imanente ao poder constituido. Ele nfo cessa de confrontar o poder constituinte com a realidade hist6rico-social.” Atravessando 0 cerne de sua’ sociologia’ politica, no qual a teoria dos tipos de legitimidade é definida, o poder constituinte é claramente inscrito por Weber entre o poder carismitico ¢ 0 poder racional. Do primeiro, tem 0 poder constituinte a violéncia da inovacio e, do segundo, a instrumentalidade constitutiva, pois ele produz direito positivo imediatamente, segundo um projeto de inovasio que instaura um paradigma de racionalidade. A casuistica alemi, Weber acrescenta o estudo das revolugdes recém-ocorridas na Riissia em 1905 e 1917. Ele compreende perfeitamente 2 complexidade das relagdes entre irracionalidades € 25H, Hiller, Statiebre, Leiden, 1934; “Die Keisis der Staaslehre", Arcbiv fir sogale Wisner und Sosapokk, 1926. 2 R. Smend, “Verfassung und Verfassungsrecht" (1928), Stautacblche Abbandburge, Bealim, 1955, p. 119.276. 27 M. Weber, “Paslament und Regierung im neugeordneten Deutschland”, Gesammele Politic Series, 2. e8., Tabingen, p. 371-392. Ver também Wirsbaft upd Geist, trad. it, Milto, 1971, vol Ip. 6B1 e ss (Sail dello Stato), 740 € 35 (I Parlamnte) 29M, Weber, Sule Rusia, 1905:6/ 1917, eat, Bolonha, 1981; Sal ssaomo ral, Roma, 1979. Poder constituinte: 0 conceito de uma crise racionalidades, coletivas e singulares, que atravessam a fase constituinte. Dito isto, porém, nfo parece que o formalismo socioldgico conduza a resultados mais vilidos que o formalismo juridico. A conexio entre legitimagio carismatica e legitimagio racional no é suficiente para reabrir uma fenomenologia do poder constituinte. Tal pesquisa falha porque a metodologia weberiana, malgrado todo esforgo em contrario, permanece fundada sobre uma tipologia fixa, no tanto da forma de producio quanto das figuras de consisténcia do direito ¢ do Estado. Tnstaura-se aqui uma singular miopia, como se fosse preciso argumentar a partir das projegées do poder constitufdo pata definir 0 poder constituinte, ou pior: a partir dos desvios, dos efeitos perversos do poder constituinte. O poder constituinte e 0 poder carismatico so jsolados: dentre os tipos de legitimidade, eles no tém consistéacia histérica e, mais do que determinagées concretas, s40 antes comportamentos ¢ episédios, ainda que extremamente relevantes. Enquanto tipos ideais, eles sio coextensivos aos ordenamentos, jimanentes sem diivida, mas ao fim € 20 cabo esotéricos, estranhos, extraordinarios. Mais que realidades histéricas, eles so limites conceituais. B conseqiiente, entio, a posicio de Carl Schmitt, que pretende apreender tal limite em sua concretude: concretizar o formal significa fazer dele 0 principio absoluto da constituicia.” ‘A “idecisio”, na qual Carl Schmitt vé a propria possibilidade do ditcito, in fiery, como divisio ¢ confronto entre amigo € inimigo, e que ele vé percorrer, cm seguida, a totalidade do ordenamento, formando-o sobredeterminando-o, este ato de guerra representa 0 maximo de factualidade, plasmada como imanéncia absoluta no ordenamento jutidico2” A imanéncia é tio profunda que, & primeira vista, a prépria distingio entre poder constituinte ¢ poder constituido se desfaz, ¢ 0 poder constituinte apresenta-se em sua natureza de poder originirio bu de contrapoder, poténcia historicamente determinada, conjunto de necessidades, desejos ¢ determinagdes singulares. O fato, porém, DC Sehmite, Vafassunglebre, Muniqne-Leipsig, 928. “Die Lehre vom ‘pouvoit constituant’ bei Emmanuel Sieyés und Cast Seni Comploco Oppusiteram, Ober C Shai Beslim, 1988, p 371-385. Ver sobrenudo aearntcdo aU Steines, Veascanerbung and vrfasungebende Gena des Valk, Bes, sean ge conmapor a tao francen ser na concept jie Jo 1986 ae re eee de Senco” de Sh 31H, Sauerwein, op. et p. 57-77. Digitalizado com CamScanner 8 © poder cor 6 que a trama existencial sobre a qual o poder constituinte se define é, desde 0 inicio, rompida, reconduzida as determinagées abstratas da violéncia, do evento puro como evento voluntitrio do poder. A tendéncia absoluta da fandagio torna-se pretensio cinica: apés haver esbocado uma definigio material de poder constituinte, Schmitt € enredado na sobredeterminacio irracionalista da concep¢io de soberania — de uma ‘concepsao pura, no mais da poténcia, mas do poder. Examinemos, entio, a tiltima das posigdes que nos interessam: a que considera 0 poder constituinte como integrado, constitutivo, coextensivo € sinerénico 0 direito constituido. Como se sabe, foram -o-institucional deve ser considerado como um Ptineipio vital: por conseguinte, longe de ser puramente factual, prefigurado ¢ percebido, no seu proprio carter de originariedade, ‘como implicitamente constituido pela legalidade (pelo direito positivo). O fato normativo 6, assim, violentamente afastado de sua inessencialidade ¢ das Garacteristicas consuctudinarias ¢ orginicas nas quais a tradicao’ o reconhecia, para ser, 20 contritio, concebido —com gradagio maxima ou minima — em termos de uma atividade de cujo desenvolvimento ‘emana a ordem juridica © grau minimo dessa integracio dinimica é aquele que encontramos em Santi Romano” e provavelmente também ‘no Schmitt que teoriza os “compromissos dilatérios”.*> No institucionalismo francés, 20 contririo, encontramos um. altissimo grau de combinacio das diversas figuras da produgio institucional. Porém tal combinagio parece, por um lado, demasiadamente 3°C. Mortati, “Costinuzione”, Enciclopedia de dritto, op. cit, especialmente p. 15% 160, € 160-161, onde sio adotados, oe = on 8 dirito cottagionale generale, Milo, 1945, di un ordinamento costituzionale © 107 ess, 25. Schmitt, Verfssungsere op. (rad. it, Milo, 1984, 52-57) Poder constituinte: 0 conceito de uma crise condicionada pelo direito piblico positivo ¢, por outro, freqientemente perturbada pela infltragio de ideologias improvisadas.™ Talver seja Pp autores como 0 iiltimo Smend, Forsthoff ¢ Costantino Mortati gue um ponderado equilibrio teérico tenba sido alcangado, Em Jrortati, a constituigio jusidica é implantada sobre a constituicao social, enquanto esta é formada por um conjunto de grupos ¢ de forgas: “Toda Sociedade da qual emerge e a qual se conecta uma formagio estatal fingular possui uma normatividade que lhe € intrinseca, que resulta precisamente do modo pelo qual ela se ordena em tomo de forsas ou finalidades politicas.”®” Portanto, é a partir da “constituigio material” que a constituigio formal sera interpretada, modificada e eventualmente substituida. A elasticidade da constituigio formal é delimitada pelas forcas gue constiruem politicamente a sociedade e formam sua constituicio material através de compromissos institucionais continuos. Nao uma norma fundamental, mas um movimento incessante esti na base da constitui¢io e determina seu dispositive dinimico* Contudo, para onde vai o cariter originatio e liberador do poder constituinte quando nos defrontamos com esta pesadissima imagem do jogo politico como base material da constituicao? Este jogo no poderia produzir, como produsziu, sinistras figuras de poder toxilirio? Para onde vai ento a referéncia intima e continua do poder constinainte & democracia ¢ 2 uma politica ‘que se constitui nos cendtios da poténcia da multidio? Para onde vai o seu cariter criativo e inresistivel? Certamente os juristas queria domar essa fera, mas eis-nos aqui diante de um animal amestrado 00, pior ainda, reduzido a comportamentos mecinicos ¢ 3 inerte repeticio de uma base social pré-construida. Transcendente, imanente ou 1 arrelagio que a ciéncia jusidica (¢, através dela, o ordenamento ‘4 mistifici-lo, ou melhor, de esvazié-lo de sentido. niio houvesse outra via? Se a condigio de manutencio ¢ desenvolvimento do ordenamento jusidico —¢, no caso, do ordenamento sow, La tlre destin del fndaon, Pati, 192531. Dut, Tit Dat E notério o quanto pesam, em Hiauriow as razdes do ¢,em Dogut, as msdes do solidacismo provdhonias Enda del rit, ip AAS. Alem da Propésito, : Romano, Ltanaen ridin, im Wandet Seatrgat, 1964 Digitalizado com CamScanner © poder constituinte constitucional — nio fosse outa senio esta: suprimir o poder constituinte? Visto o cariter insohivel do problema do poder constituinte na perspectiva da ciéncia do direito piiblico, vejamos entio, como haviamos prometido, o mesmo problema segundo 0 ponto de vista do constitucionalismo. Aqui tudo fica mais facil: do ponto de vista da ideologia constitucionalista e liberal, com efeito, o poder constituinte é explicitamente submetido a0 fogo da critica e & limitagio institucional, através de uma anilise que desmascara — ou pretende desmascarar — toda pretensiio soberana da comunidade. O. constitucionalismo apresenta-se como teotia ¢ pritica do governo limitado: limitado pelo controle jurisdicional dos atos administrativos ¢ sobretudo pela organizagao do poder constituinte pela lei.” “Mesmo as revolugées devem se curvar 4 supremacia da Iki... 0 poder constituinte, como poder iiltimo, deve se legitimar através de sua expressio num procedimento legal; este fato hist6rico origindrio no é justificado apenas pela obediéncia, mas pelo seu modo de expresso juridica, modo este cuja formalizagio garante o poder constituinte do povo. Assim também todo proceso constituinte é regulamentado pelo direito, e nao existem “fatos normativos’: nem como poder constituinte baseado numa forma que consegue se fazer obedecer, nem como constituicio materi realizada através da pritica da classe politica. Pois a constituigio no é um ato de governo, mas um ato do pov...“ Este sofisma, ou melhor, este pensamento amargo, esta edipica conseqiiéncia do apélogo de Menenio Agrippa," suprime, no Ambito te6rico do constitucionalismo, a propria possibilidade de avancar na definicio do poder constituinte. Vale a pena, entio, utilizar tal oposi¢ao para identificar no poder constituinte (precisamente na medida em que ele é.0 contrisio da idéia constitucionalista de “checks and balances”) 0 signo de uma expresso radical da vontade deniocritica. Com efeito, a préxis do poder ® Além do volume de C. Freidrich, j ctado, ef, H Mcllwain, Couttegionallome antico ¢ sodern, tad. it. Veneza, 1956;H. J. Laski, Reflections en Constitution, Manchester, 1962; J Agnoli Trsfrmezion’ dele demverzzia, Mio, 1969. ON Matteued, ect p 692. “" Consul romano que, em 494 a.C., perante a plebe reunida no Monte Palatino, teria apresentado o apdlogo sobre oz membros gue se Prejudicando todo © corpo. Os membros. simb témago, os paticios. Com sua revolts, aqueles caus seciam poupados da prépria(N. do 7). 21 Poder constituinte: © conceito de uma crise constituinte foi a porta pela qual a vontade democratica da multidio (multitude) — e conseqiientemente 2 questio social — entrou no sistema politico, destruindo o constitucionalismo, ou pelo menos debilitando-o intensamente. Este iiltimo define a ordem social ¢ politica como 0 conjunto articulado, seja de ordens sociais distintas, seja de poderes jusidicos e politicos distintos: 0 paradigma constitucionalista € sempre 0 da “constituigio mista”, da mediagio da desigualdade ¢ na desigualdade, portanto um paradigma nfo democritico. paradigma do poder constituinte, a0 contritio, é aquele de uma fora que irrompe, quebra, interrompe, desfaz todo equilibrio ¢ toda continuidade possivel. O poder constituinte esté iéia de democracia, concebida como poder absoluto. Portanto, © conceito de poder constituinte, compreendido como forga que ircompe e se faz expansiva, é um conceito ligado & pré-constituicio da totalidade democratica. Pré-formadora ¢ imaginaria, esta dimensio entra em choque com o constitucionalismo de maneira direta, forte € duradoura. Neste caso, nem a histétia alivia as contradigdes do presente: a0 conteario, esta luta mortal entre democracia e constitucionalismo, entre 0 poder constituinte e as teorias e praticas dos limites da democracia, torna-se cada vez mais presente a medida em que a hist6ria amadurece seu curso.** No conceito de poder constituinte esta a idéia de que 0 passado nao explica mais 0 presente, ¢ que somente o futuro podera fazé-lo. “Sem o passado para iluminar 0 futuro, o espirito caminha em meio As trevas”:” paradoxalmente, esta expresso negativa esclarece, mais do que qualquer outra explicacio, 0 nascimento da “democracia'na América”. E € por isto que o poder constituinte se forma e reforma incessantemente em todo lugar. A pretensio do constitucionalismo em regular juridicamente 0 poder constituinte no é estépida apenas porque quer — € quando quer — dividi-to; ela o & sobretudo quando quer bloquear sua temporalidade constitutiva (0 constitucionalismo é uma doutzina juridica que conhece somente 0 passado, é uma referéncia continua a0 tempo transcortido, as poténcias 3B oportuno lembrar que o tema dos “limites da democracia” foi retomado ¢ desenvolvide com extrema forca no decénio 1975-1985, no inicio da fase neoliberal {Ge Heologia moderna, da qual estamos saindo. Na base dessa reomada da temdtica lntidemocratiea, é bom lembrar, estava 0 estudo da Trilateral, de 1975, © 4, de Tocqueville, Dele Démocrai en Amérique, Pats: Gallimaed, 1951, vol IL. p. 36 Digitalizado com CamScanner 2 © poder constituinte consolidadas ¢ & sua inércia, ao espirito que se dobra sobre si mesmo — a0 passo que © poder constituinte, a0 contririo, é sempre tempo forte ¢ futuro. © poder constituinte tem sempre uma relagio singular com 0 tempo. Com efeito, 0 poder constituinte é, por um lado, uma vontade absoluta que determina 0 seu préptio tempo. Em outros termos, 0 poder constituinte representa um momento essencial na secularizacao do poder e-na laicizagio da politica. O poder torna-se uma dimensio imanente a histéria, um horizonte temporal em sentido proprio: com a tradi¢io teolégica é completa.“ Mas isto nfo basta: constituinte representa igualmente uma extraordindria aceleracio do tempo. A historia concentra-se num presente que se desenvolve com impeto, as possibilidades 840 comprimidas num fortissimo micleo de producio imediata. Sob este ponto de vista, o poder constituinte esta estreitamente ligado ao conceito de revolugio.* E ainda que o conceito de poder constituinte ja esteja conectado ao conceito de democracia, ci-lo agora apresentado como motor ou expressio principal da revolugio democritica. E nés o vemos viver a sistole ea s vezes violentissimas, que pulsam na revolucio democratica, do uno |20 miltiplo, do poder 4 multidio, num tempo que atinge sempre concentrages fortissimas, freqiientemente espasmos. O que podem “ter em comum 0 tempo do poder constituinte € 0 tempo inercial | radicional do constitucionalismo?** Nio é o viés constitucionalista, portanto, que pode nos ajudar a resolver o problema da crise do conceito de poder constituinte.” ‘A cesta altura, porém, é necessétio perguntar: considerada a profunda BAW, Bockenforde, Die Virfasrunggebonde Genalt des Wolkes — in Grenchegrif des Verfassungrcts, Prakkfurt, 1986. 4 Sobre a bibliografia concernente a relacio “poder constituinte ~ revolugio”, ver C. Mortati, “Costinusione”, Encichpedia del dirt, op. ct, p. 232; f. ambém as obras 46 B, Matienstras, Nous epeuple Les origins d nationale arian, Pas za p. 424, a propérito do confronto entre constimacionalismo ¢ mulplicidade do poder constituinte na Revoluglo Americana. 47 na obra deC. Schmit,e sobrenido na sua Vefarsanylebre, pct, que essa probleritica é desenvolvida. CE as andlisesjuidico-lingisticas de Caio, Sobre ls mite del onguaje normative, Buenos Aires, 97 p. 34 e 2, assim como, para uma sintere dos problemas, M, Cattaneo, Veonctio di rioletone nll en del drt, Milio, 1960. poder conttituinte: 0 conceito de uma crise - ambigiidade com que as doutrinas juridica € constitucionalista eavolvem o conceito de poder constituinte, serh conseguir, em ambos ‘os casos, resolvé-la, nfo seria aquele conceito realmente o conceito de lama crise? Assim, em vez de tentar uma solusio, nio seria mais adequada A verdade a tentativa de identificar melhor suas caracteristicas txiticas, seu contesido negativo, sua esséncia icresolivel? Bis-nos assim provavelmente chegados a0 objetivo da nossa pesquisa. Verificar, em paimeiro lugar, qual a verdadeira natureza do poder constituinte. Se verificarmos que essa natureza € critica (como a anilise das tentativas de redugio juridica ou constitucionalista comegou a demonstrat), devemos, em segundo lugar, compreender qual € 0 limite sobre o qual se desenvolve essa crise. Em terceiro lugar, se o limite (ou melhor, as condigdes atuais da crise, insuperadas ¢, nesta situacao, insuperiveis) @ de algum modo ultrapassavel. Fm suma: se na histéria da democracia ¢ das constituigSes democraticas a tensio entre poder constituinte © poder constituido nunca atingju uma sintese, devemos nos concentrar precisamente nesta negatividade e neste vazio de sintese para tentar compreender o poder constituinte. Antes de nos concentramos sobre este ponto, porém, seja-me permitida uma ultima observacao. Ela concerne 20 conceito de representagio, que temos visto, desde o inicio, apresentar-se como um dos instrumentos juridico-constitucionais fandamentais para o controle € a segmentagio do poder constituinte. Ora, também ao termo deste excursus, a figura mistificadora da representacio reaparece no quadzo do desenvolvimento do poder constituinte.* Surge assim a suspeita de que 0 conceito de representagio democritica contenha um elemento de continuidade com © constitucionalismo, de sorte que no primeiro ‘conccito permanecam fungées fundamentais do segunda.” Deste ponto de vista, a ctise do conceito de poder constituinte no esti apenas em sua rclagio com o poder constituido, com o constitucionalismo ¢ com todo o refinamento juridico do conceito de soberania: ela esté Jiderar a posigdo de C. Friedsich, op at Contra esta posisio, echt, Politik und Verfassunggebende Gewal”, Der Stash 1980, 207 € 8, ¢ também E. Zweig, Die Lebre som Pourvir Consttnant, Bin Batrag um Staatsrecht der Frangdsiseben Revolaton, Tibingen, 1909. # . Loewen: Ue nnd Parlament nach der Steatstbarie der Franzisiscben [Nationalersaneang vn 1789, Monique, 1922. Digitalizado com CamScanner 4 © poder constituinte igualmente na relagio do poder constituinte com o conceito de representagio. Ao menos do ponto de vista tedrico, € sobre esta articulagio te6rico-pritica que se opera uma primeira ¢ essencial desnaturagio ~ ¢ privaio de poténcia — do poder constituinte. 2. Procedimento absoluto, constituisée, revolugao Poder constituinte e soberania—As alternativas do pensamento negative — O principio constituinte em H. Arendt —A deriva do principio em Arendt — Entre 0 atlantisma e 0 constitucionalismo—A resposta de J. Habermas —A radicalidade do principio ontoligico no sofisma da soberania — Poder constituinte contra soberania — Poder constituinte e democracia — Poder constituinte como procedinvento absoluto — Reminiséncias espinosistas. Ao nos confrontarmos com a crise do conceito de poder constituinte, considerado como categoria juridica, devemos indagar se, 20 invés de tentar superar 2 crise, como © pensamento juridico faz inutilmente, no seria melhor accité-la e, a partir desta accitagio, tentar compreender melhor a natureza do conceito. Ora, aceitar a crise do conceito significa desde logo negar que 0 conceito de poder constituinite possa de algum modo ser fundado e, com isto, privado da sua natureza de fandamento. Esta ruptura ocorre conclusivamente, jé vimos, toda vez que © poder constituinte é subordinado 4 fungio representativa ou 20 principio de soberania, mas j4 comega a operar quando a onipoténcia e a expansividade do poder constituinte sio submetidas alimitages ¢/ou finalismos constitucionais. O poder constituinte, dizem e decretam, no pode ser concebido senfio como poder extraordinario. no tempo e no espaco; no pode seniio ser fixado numa determinagio singular—um fato normativo preexistente ou uma constituigao material que se desenvolve coextensivamente! Tudo isto, porém, é absurdo: como pode um fato normativo consuetudindrio fazer justica inovagio? Como pode uma “classe politica” pré-constituida ser a garantidora de uma nova constituicio?® O esforgo de encerrar o poder neste ponto que as concepsdes de “consttuigio matedal” voltarn-se perigosamente ara concepcdes histéricas continuistas do Estado ¢ falham na,sua tentativa de renovagio da teoria. Sobre o estado da teoria constimacional nos anos que precederam a redacio desta obra, ver meu La forma Stet, Mili, 1977. Poder constituinte: 0 conceito de uma crise inte numa jaula de limitagées espago-temporais ja € , mas a tentativa de bloqued-lo através de uma prefiguracio finalistica torna-sc imediatamente inconcebivel: pode-se, de fato, buscar 1 amplitude do evento, mas por certo no é possivel definit \damente sua singularidade inovadora.' Na realidade, essas as Idgicas, conduzidas pela insensatez, traduzem a mistificacio que a técnica ¢ a ciéncia juridicas concentram e rearticulam nas teorias da soberania ¢ da representacio. Uma vez limitado e concluido, © poder constituinte é entio retido em redes hierérquicas que articulam produgdo ¢ representasio, e assim reconstruido conceitualmente, no como causa, mas como resultado do sistema. Inverte-se 0 sentido do fandamento: a soberania como suprema potestar é evocada e reconstruida como fundamento, mas um fundamento oposto ao poder constituinte: é um vértice, enquanto o poder constituinte € uma base; € uma finalidade cumptida, enquanto o poder constituinte nao tem finalidade; € um tempo e um espago limitados e fixados, enquanto o poder constituinte é pluralidade multidirecional de tempos e de espaos; € constituicio formal rigida, enquanto © poder constituinte é um procedimento absoluto. Tudo, em suma, opde poder constituinte ¢ soberania ~ ¢, finalmente, o cariter absoluto a que ambas as categorias aspiram, pois o carater absoluto da soberania remete 2 um conceito totalitirio, enquanto 0 cariter absoluto do poder constituinte remete a0 governo democritico. Insistindo assim em considerar 0 conceito de poder constituinte como conceito de um procedimento absoluto—onipotente ¢ expansivo, ilimitado ¢ inconcluso ~, podemos comegar a avaliar a originalidade da estrutura. Antes, devemos enfrentar novamente uma critica, que se traduz na seguinte objecio: 0 que significa esse cariter absoluto, considerado dessa forma, senio 0 cariter absoluto de uma auséncia, de um vazio infinito de possibilidades, ou de uma abundincia de possibilidades negativas? Parece-nos que, nesta objegio, a mé- compreensio da auséncia seja multiplicada pela incompreensio do conceito de possibilidade: esta objecio pode ser rechagada. Se o conceito de poder constituinte € 0 conceito de uma auséncia, por que entio esta auséncia deveria ser resolvida num vazio de possibilidade ou numa 51 A metodologia historiografica de M. Foucault é, deste ponto de vista, exemplars. CEG. Deleuze, Fovcaul, Pats, 1989. Digitalizado com CamScanner

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