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Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Ciéncias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Segio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 gina 1 de 8 APAISAGEM CULTURAL DA PRACA ONZE, Beatriz Coelho Silva (Tot6)! Luciana Nascimento? ‘Thais Vinhas? Resumo Todas as cidades possuem uma cartografia cultural que vai além da sua planta € é esse substrato que forma o imaginério urbano ¢ esse € 0 caso da Praga Onze, cujo logradouto deixou de existir na década de 1940, época em que o Rio de Janeiro sofreu uma de suas inimeras modemizagies. E foi nesse espaco onde conviveram imigrantes Judeus e o samba das classes populares, tendo se tornado um “lugar de Palavras chave: idade; Rio de Janciro; meméria; Praga Onze. Abstract All cities have a cultural cartography that goes beyond their plan and it is this substrate that forms the urban imaginary and this is the case of Praga Onze, whose street no longer existed in the 1940s, 2 time when Rio de Janeiro suffered a of its numerous modernizations. And it was in this space where Jewish immigrants and popular classes samba coexisted, having become a “place of Key Words: City; Rio de Janeiro; memory; Praga Onze, As rages por que & Praga Onge no consguinligar sn destino ‘20 fate bistrco que comemara so descnbecidas. © busto do nave marinbiro Mario Dias nio foi forte 0 bastante para sence uma utr fra, ado santa (Jota Ege 11 de Jano: a praca do sami, ns Jornal do Brasil, 11/06/1970, p 4} Introdugio [As cidades, reais ou imaginatias, visiveis ou invisiveis, veladas ou reveladas, trazem consigo discursos que as insceevem e as legitimam. Um passeio por suas paisagens, reais ou epresentadas em imagens, textos c/ou sons, nos permite observar como os discursos criam identidades e produzem apagamentos ou realce dos lugares, transformando-os em “lugares de meméria. Este € 0 caso da Praca | Beatriz Coelho Siva (Tot) € autora do veo Negros ¢ Judeus na Praga Onze. A histivia qe aio ficon na meméria (Q015, Bockstar) e da disseacio Quando bem da alma de nossa gente: sambas da Praga Onze, letra © misica 2020), sprescatada ao CLS JF. Uma parte rlativa a Praca Onze teve por base execs dois trabalnos.Jornalista, foi editora de cedernos de cultura des jornsis © Globo e O Estado de Sio Paulo, fo! arbém rotcrsta da Rede Globo no Programa Video Show. 2 Doutor em ‘Teoria ¢ Histia Litera pela UNICAMP (2003); Docente do Programs Interdiscplinar de Pés- Graduagio em Lingulsies Apliesda éa UFRJ; Bolista de Produtvidade em Pesouisa do CNPq = Conselho Nacional de Desenveisimento Cientfien e Tecnologie, * Graduada em Jomalsmo pela Faculdade Pinheiro Guimaries, Gradvads em Lets Portagués-Latim pela UFRJ. Foi bolsista do Programa Insitcional de Inicigao Arsitico: Cultural da Pré:Reitora de Gradoagao ca UFR] sob a orentagion 4 Profa. Dra. Lacana Nascimento, ‘Fapressio de Piere Nora. Nora apreventa a categoria de “Lugares de Meméria" como resposta & necessidade de ‘dentifcagio do individ frente a0 que fo! apagado. “Os lugares de meméria naseem e viver do sextimento que 14 hi smemiria espontinea, que € preciso eriar arquivos, organizar ceebragies, manter aniversiros, pronuncar clogios fined, nouriar alas, porque estas operagbes io sig naturais" NORA, Piewe. Entre meméria © histori a problemitica dos lugares, Prito Huta So Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 4, 1993. Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Ciéncias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Secio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 gina 2 de 8 Onze, baitro que existiu na regito central do Rio de Janeiro. Do passado aristocritico no séeulo XIX, quando ligava Sio Cristévio, onde residia a familia imperial, ao Pago da Cidade, sede administrativa do governo, tomou-se um baitro popular, partir da Repiiblica até 1942, quando foi demolida para a ‘Avenida Presidente Vargas passat, ligando 0 centro da cidade Zona Norte, Neste meio século (1889/1942), a Praga Onze recebeu imigrantes pobres, ganhou fama de bergo do samba e do carnaval ¢ tornou-se um lugar de meméria, mesmo no existindo fisicamente hé ito décadas. Este trabalho conta como se deu este processo. TOCALTZAGKO DA ANTIGA PRAGA ONZE (1933) NO RIO DE JANEIRO EM 2020 —o Cai t es honed rnarcomante 30 moate oO pang Figura 1. Cartografia da Antiga Praga Onze. Cartografia realizada pelo Gedgrafo Luiz Henrique Gusmao, Belém-Pari, “Na Praga Onze de Junho, entrei na roda de um samba” ‘A Praga Onze era um bairro onde iam morar os imigrantes pobres que chegavam ao Rio de Janeiro aos borbotées, na primeira metade do sSculo XX. A época, a entio Capital Federal era o maior porto do Hemisfério Sul, com farta oferta de empregos especializados ou nfo. A regio era também conhecida como Pequena Africa, devido a grande quantidade de descendentes de escravos que la viviam € ficou famosa como bergo do samba que, se no nasceu no bairro, la se tornou conhecido e divulgado, Hoje € dificil imaginar a configuracio da Praca Onze, porque o Rio de Janeiro passou por muitas reformas urbanas, a0 longo do século XX. Ia da Passarela do Samba Darcy Ribeiro, o sambédromo, onde as escolas de samba desfilam no carnaval, até o Elevado Paulo de Frontin; da margem direita do Canal do Mangue (lado impar da Avenida Presidente Vargas) até as fraldas do macigo da Tijuca. O logradouto Praga 11 de Junho lembrava a Batalha do Riachuclo, marco da vitéria do Brasil na Guerra do Paraguai em 1865. Em toro, havia ruas de tragado regular. As mais movimentadas cram a Senador Eusébio © a Visconde de Inhaiima, que desapareceram com a demoligio, Outras ruas desapareceriam + Primeiro verso do refiio de Na Praga Onze, de Francisco Gonealves, lancada em 1931, pela gravadora Paslophon, ccamtada por Teobaldo Marques da Silva Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Cigneias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Segio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 Pagina 3 de 8 ‘nos anos 1980, quando o metré se estendeu até a Zona Norte ¢ hoje persistem uma ou outra tua ou vila, escondidas pelo sambédromo. Até 0 inicio do século XIX, era uma serventia pouco usada, conhecida como Rocio Pequeno. im 1808, 2 famtlia Imperial se instalou na Quinta da Boa Vista, em Sio Cristévio, ¢ abriu-se uma estrada até o Paco Imperial, sede administrativa do governo, na Rua Primeiro de Margo, no centro do Rio de Janeiro. A burguesia catioca, pequena, mas ativa, mudou-se para lé, construindo casarbes granjas distribuidos em ruas de tragado simétrico, num inicio de planejamento urbano. Era conveniente morar no trajeto usado pela familia Imperial ¢ sua corte, exemplos de comportamento a ser copiado, SILVA, 2015). Com a expansio dos transportes urbanos na segunda metade do séeulo XIX, a burguesia mudou-se para baitros préximos (Tijuea e Santa Teresa) e para a orla da Baia de Guanabara, movimento acentuado com a instalagio do Governo republicano entre os baisros de Laranjeiras ¢ Catete. Com a cchegada de imigeantes pobres da Europa, Oriente Médio (entio Império Otomano) ¢ do interior do Brasil, os casardes viraram casas de cémodos (também chamados cortigos ou cabega de porco), geralmente com comércio no andar térreo ou na frente dos iméveis. Os ex-escravos € seus descendentes chegaram a partir da década de 1880, vindos de Minas Gerais, interior do Estado do Rio de Janeiro Bahia. Os homens buscavam trabalho no porto © as mulheres, em casas de burgueses ou na rua, vendendo comida: doces, salgados e refeigdes rpidas (SILVA, 2015). Segundo Censo de 1906, lé viviam cerca de 200 mil pessoas em cortigos que eram “local de encontro para gente de diferentes ragas, ali chegada por varios trajetos que enfrentava ¢ se solidarizava frente as duras condigdes da vida para o subalterno € o paria na capital” (MOURA, 1995, p.54). Este autor descreve um desses cortigos: 114 eémodos divididos por biombos, alguns com pequenas cozinhas, mas sem banheiros, substituidos por 12 latrinas sem diviséria entre elas. Eram moradias insalubres € os governos federal ¢ municipal tinham planos de eliminé-las, tirando sua populagio da paisagem, para implantar um modelo de cidade curopeia, mais expecificamente uma Paris tropical. Ressalte-se que era um modelo sem correspondente & realidade, No inicio do séeulo XX, a Europa enfrentava graves problemas econdmicos, sociais e politicos, que fizeram parte da populacio cemigear em busca de sobrevivéncia. (HOBSBAWM, 1994), Havia ainda questies nacionalistas religiosas que levariam a duas guerras entre 1914 ¢ 1945, Embora outros bairtos populares do centro do Rio de Janciro tenham sido tirados do mapa nas primeiras décadas do século XX, a Praga Onze foi poupada, nao se sabe se devido 20 poder politico dos proprietirios dos imiveis que no queriam se privar da renda dos alugueis ou “pela resistencia dos moradores que ja havia tornado o bairro paleo de festas populares como o carnaval, o Natal e Nossa Senhora da Peaha, em outubro” (SILVA, 2015, p. ™, bairro era pobre, mas animado, Em tomo da praca que Ihe dava nome, com chafatiz, arvores frondosas bancos “onde os frequentadores ou transeuntes costumavam repousar para se abrigar do calor” (MALAMUD, 1988, p. 19), a citculagio era intensa, dia e noite. A proximidade da zona boémia, ‘no Mangue, onde se apresentavam misicos consagrados, como Sinhé ¢ Benedito Lacerda, e que ficasiam famosos depois, como Luiz Gonzaga ¢ Nelson Goncalves, completava © mosaico: artistas, imigrantes, malandros ¢ trabalhadores, todos se encontravam nos muitos bares expalhados pelo bairro, especialmente ao redor da praca. O Capitilio, o Jeremias ¢ 0 Praga Onze sio os mais citados pelos memorialistas do bairro. Havia muita festa, especialmente nas casas dos negros, com ceriménias religiosas seguidas de batuque. Eventos que atravessavam dias, promovidos pelas mulheres que exerciam lideranga em sua comunidade, por acolherem os recém-chegedos e serem o elo entre eles ¢ os poderes constitufdos, Exam cchamadas de baianas por se vestitem como tal. ‘Tia Ciata (Hiléria Batista de Almeida) era a mais famosa, Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Ciéncias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Segio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 Pigina d de 8 uma lider comunitisia avant Ja lie, em euja casa teria sido composto Pelo Telefone, considerado 0 primeiro samba a ser gravado, sucesso do carnaval de 1917. As festas e as mulheres que as promoviam, ‘nao eram bem vistas pela imprensa ou pela sociedade que vivia nos bairtos nobres. Se filhos da burguesia carioca, como os compositores Heitor Villa-Lobos, Mario Lago ow Noel Rosa (SOIHET, 1998), 0 escritor ¢ jornalista Joio do Rio (Paulo Barreto) afirmava, nessas festas, havia, “na atmosfera, tum cheiro carregado de azeite de dendé, pimenta da costa ¢ catings” (BARRETO, 1906, p. 4) e baianas eram “demoniacas ¢ as grandes farsistas da raca preta, as obsedadas e as delirantes” (BARRETO, 1906, 06) que viviam histérias envolvendo dleool, mancebia, sangue e morte (BARRETO, 2006) ‘Ao longo do século XX, historiadores contestaram a impressio de Joao do Rio, causada pelo fato de que estas mulheres, por serem chefe de suas famflias, responsivel pelo sustento de filhos proprios e/ou adotados, trabalhando na mia ou no mereado de servigos domésticos, tinham um comportamento eum modo de pensar mais aberto, “contrastando com as mulheres de outros segmentos sociais, ela se comportava de forma mais desinibida e tinha um linguajar mais solto e maior liberdade de locomogao ¢ iniciativa” (VELLOSO, 1990, p. 217). © compositor Joo da Baiana, nascido na Praga Onze, contou que, nas festas, 08 mésicos sérios tocavam na sala, o choro (instrumental) ¢ 0 samba, com um refrio fixo, cantado por todos, € estrofes improvisadas por versejadores. A vor feminina, mais aguda, era fundamental para a percepgio da ‘melodia ¢ da letra, que funcionava como um jornal e uma erOnica da vida daquelas pessoas. Segundo o antropélogo colombiano Alejandro Sanmiguel, tais festas no eram exclusividade do Rio. Ocortiam na petiferia das metrépoles americanas, habitadas por “marginais, proletirios, imigrantes, escravos. ¢ libertos” SANMIGUEL, 1991, p. 58). Esta misica hibrida, aproveitada pela indiistria cultural (tidio € disco) nas primeiras décadas do século XX é, para Sanmiguel, o trago de modernidade da belle oaque das ‘Américas, j4 que 0s avangos tecnolégicos (trem, automével ¢ telefone), politicos (voto universal) € sociais (alfabetizacio para todos) s6 chegaram a uma pequena elite deste lado do Atlintico. Eos ‘movimentos artisticos europeus do inicio do século XX, aqui foram consumidos por um escasso grupo, caso da Semana de Arte Moderna de 1922. Esta miisiea hibrida, misturando cantos religiosos com a informagio erudita, para consumo de massa, via rédio e disco, se tornou 0 género nacional de cada pais: jazz e blues nos Estados Unidos; tango ¢ a milonga na Argentina ¢ Uruguai, salsa e rumba em Cuba, choro ¢ samba no Brasil sio os mais conhecidos. © antropélogo Hermano Viana, ressalta a importincia do radio e do disco no processo, mas assinala que o gosto das elites pela misica dos ex-escravos vinha de antes. Cita os Oito Batutas, de Pixinguinha, que animavam as festas dos Guinle e os relatos de viajantes contando que as festas brasileirs, desde inicio do séeulo XIX comegavam nos saldes ¢ terminavam nos terreitos com batuques dos escravos (VIANA, 1995). No Brasil, a Revolugio de 1930, aproveitou o sucesso popular do samba para seu projeto nacionalista, Lidetada pelo gaicho Getilio Vargas, a Revolugio de 1930 foi um golpe de Estado contra as oligarquias rurais paulistas ¢ mineiras que dominaram as quatro primeiras décadas da Reptblica, O ‘novo pais precisava de simbolos nacionais e o samba era a expressio artistica ideal. Segundo Viana, para isso, foi preciso inventar-Ihe autenticidade e tradicio, buscando elementos diversos: um traje de baiana, ‘uma batida especifica, num amalgama, jé que o samba gravado e pronto para o consumo da massa, € um produto diferente e mais complexo que a simples soma de seus elementos originais, A Praga Onze torou-se o celeiro do samba, onde produtores fonogrificos ¢ cantores colhiam sucessos. Os sambistas ganhavam dinheito dos diseitos autorais de suas miisicas ou das que vendiam, totalmente ou parcialmente, a cantores de sucesso. © bairro tornou-se também tema de cangées. A fama tinha base real. Joio da Baiana, Donga ¢ Heitor dos Prazeres, nascidos no bairro, tinham uma produgio musical alentada, Outros, como Noel Rosa, Cartola ¢ Pixinguinha mostravam suas misicas novas nas festas das baianas. Cantores como Carmen Miranda ¢ Moreira da Silva encomendavam sambas sobre 0 Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Ciéneias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Secio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 Pigina 5 de 8 bairto. Mlém disso, 0 carnaval popular dos blocos € escolas de samba (que tomavam a forma como os conhecemos hoje) ganhava fama e comecava a ter 0 apoio do poder piblico (CABRAL, 1996). Segundo a imprensa que cobria 0 evento, © bairro recebia cerca de 40 mil pessoas por noite, multidao que atravancava a praca ¢ as ruas adjacentes (SILVA, 2015). Nada disso impediu a demoligio do baitro em 1942. Mesmo inexistindo, continuow recorrente ‘na misica popular. No site Musica Brasiliensis, sio enumeradas de 50 miisieas sobre a Praca Onze 20 longo de 80 anos (THOMPSON, 2013). If interessante notar que, na década de 1950, se enconteam s6 trés cangdes sobre a Praca Onze, embora jé fosse um lugar de meméria. A época, a nostalgia foi pouco cultivada. O hie da década foi Chega de saudade, de 1958, porque tudo se voltava para o futuro: Bossa Nova, Cinema Novo. Nova Cap etc. Nos anos 1960, a nostalgia voltou a galope. Nao por acaso, a imisica mais tocada da década € Yesterday. O rock brasileiro se apaixonow por um Calhambeque ¢ a musica engajada se dividiu entre a guarinia (género do século XIX) Para nfo dizer que nao falei das flores eo samba Sabié, pariftase da Cangio do de Gonealves Dias, sonhando voltar a uma “palmeira que jé mio ha” ¢ “‘colher a flor que ha nio da” JOBIM e HOLLANDA, 1968). A Praca Onze tornou-se 0 fasus de um pasado melhor, uma nostalgia carioca ¢ brasileira ¢, mais que munca, berco de ‘um samba como auténtico, puro ¢ original “Eu canto pra esquecer a nostalgia” § Se © samba no naseeu na Praga Onze que deveria lembrar 2 Guerra do Paraguai, como 0 bairto teria se tornado o bergo do samba? A mudanga foi provocada ou espontinea? Segundo socidlogo Michel Pollak, “2 meméria deve ser entendida como um fenémeno coletivo € social, construido coletivamente e submetido a fintuacées, transformagies, mudangas constantes” (POLLAK, 1987, p. 2). Ble diz. ainda que a meméria coletiva € instivel ¢, como tal, uma zona de conflito € negociagao, Por isso, (8 grupos hegeménicos investem no que ele chama de “enquadramento da meméria” (POLLAK, 1987, 7) fungio que eaberia a historiadores, mas também a fiecionistas e, no e2so brasileiro, a quem far © uso da literatura brasileira para criagio de identidade nacional? vem do Primeiro Reinado. “Os escritores rominticos, apés a independéncia, como se estivessem empreendendo uma cruzada, realizaram uma interven¢io deliberada utlizando-se da literatura para criar ¢ difundir uma ideia de nagio” (QUIRINO, 2005). A imagem de Brasil eriada por eles no é foco deste texto, cuja intencio & ressaltar a importincia do samba nesse processo de criagio de nacionalidade brasileira a partir do Estado Novo. Getilio Vargas tinha na miisica popular o veiculo ideal para criar meméria c identidade, jé que contava historias, dava recados ¢ era de ficil assimilacao, especialmente num pais onde, até hoje, as taxas de alfabetizago so baixas € 0s habitos de leitura pouco disseminados. Mas a escolha do samba como instrument de eriagio de identidade deveu-se também a0 convivio Vargas com miisicos (cantores, compositores ¢ instrumentistas) desde seu mandato como deputado federal pelo Rio Grande do Sul, quando criow, em 1928, a Lei do Direito Autoral. Essa escolha fica explicita no fato de que o ditador usow a Radio Nacional como vefculo de unificagio nacional (€ a misica como conteido preferencial a ser divulgado) ¢ fazia questi de cercar-se de mésicos € prestigié- los em seus shows. Embora tena contratado intelectuais e escritores para trabalhar em seu governo, no se tem noticia de Getilio Vargas ter aberto uma editora ou ao menos uma livraria. Ressalte-se que ambos, miisicos populares ¢ intelectuais softiam censura em sua producio. © Verso da cancio Apoteose do Samba, de Silas de Olivera 7 Aqui usamos o conceito de Benedict Anderson cm Comunidades imaginadas: reflexes sobre a origem ¢ a dlifusio do nacionalismo (2008 Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Ciéncias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16 ~ Segio Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 Pagina 6 de 8 © samba tinha qualidades intsinsecas, resultado de uma rica tradi¢io musical passada de uma geragio & outra, como contaram Joio da Baiana e Heitor dos Prazeres; havia a participacio de misicos com formagio académica como Custédio Mesquita, Radamés Gnatalli ¢ Pixinguinha, além de estrangeiros, como 0 maestro Simon Bountman (vindo da Russia) ¢ 0 empresério Frederico Figner (tcheco que fundow a primeita gravadora brasileira) que traziam informagio musical ¢ expertise pare fazer a industria fonogréfica funcionar. E.havia também um pablico disposto a consumir © contetdo dos discos ou do ridio, em cadeia nacional Nio seriam as misicas sobre a Praga Onze um memorialismo musicado, geralmente em versos, para ser ouvido, cantado dangado, em vez de lido? Do memorialismo guardam as descrigaes de lugares, costumes, personagens € acontecimentos de um cotidiano idealizado, mas com base em fatos personagens coneretos. Afinal, a “balanga onde os malandos iam pesar” citada em Tempos Idos, de Cartola € Carlos Cachaga, existiu e seu piso de madeira ajudava a repereutir o sapateado do samba (RIBEIRO, 2008), houve ¢ ha muitas mulheres que dao ao companheito “casa, comida, dinheiro ¢ roupa lavada”, como diz o samba Quando a Policia Chegar, de Joao da Baiana; todo mundo se recorda de, fem crianga, ter perdido uma festa porque “bobinho” acabou “dormindo na calgada”, como lembra Zé Keti em Praga Onze Bergo do Samba, e quem nao conheceu (ox sonka conheces) um Moreno cor de bronze cuja vor tem “toda a meiguice propria de um brasileiro”, como diz o samba de Custédio Mesquita cantado por Aurora Miranda? samba da Praga Onze é um género textual, com ritmo © melodia para fixé-lo na meméria ¢ © dom de unir pessoas muito mais que um texto lido, seja prosa ou verso, Clissicos, como o samba Praga Onze, de Herivelto Martins ¢ Grande Otelo, e 0 Rancho da Praga Onze, de Joao Roberto Kelly € Chico Anysio, sio imediatamente reconhecidos © cantarolados pelo piblico, Foram compostos, interpretados ¢ produzidos para contagiarem 0 ouvinte nos primeitos acordes e cumprem este objetivo até hoje. Embora haja livros de grande alcance popular e, nas décadas recentes, feiras ¢ bienais de livros tenham se tornado corriqueiras pelo Brasil afora, popularizando os escritores (alguns levam multiddes a ouvi-los) € nfo se tem noticia, no Brasil que seus textos serem recitadas por multiddes, como ocorre quando se tocam alguns dos clissicos citados, langados ha mais de meio séeulo, ‘Além disso, desde a Era Vargas foi a forma de os pretos ¢ pobres terem acesso A cidadania, pois, cembora ji egressos da escravidio, ainda eram vitimas de preconceito da sociedade que se achava branca « culta ¢ tinha por cles repulsa ¢ fascinio (SILVA, 2015). Para responder a um desafio que ainda existe para pretos € pobres no século XI, 0 samba muda, adapta-se, adquitindo inovagoes tecnolégicas ou estilisticas. O compositor Ismael Silva, a quem se attibui a etiagko das escolas de samba, é assertive quando explica esta estratégia surgida na Praca Onze: “Samba no é folclore, tem de se modificar. Ea parte viva da nacio. O sambista interage, anda nas brechas do permitido, © vai se afirmando, se aprimorando” (SILVA apud, RIBEIRO, 2007, p. 87)", Consideragées finais Quase 80 anos apés a demolicio da Praca Onze, o interesse pelo baitto cresce especialmente centre judeus, outro grupo que vivia li em condigées parecidas com a dos negros. Vinham de um passado trigico (escravidio para os negros perseguigio religiosa ¢ morte para os judeus), eram discriminados por nao serem cristios e chegavam pobres, como conta Samuel Malamud no livro Recordando a Praga ‘Onze. Os dois grupos tinham em comum também a rede de solidariedade para se ajudarem mutuamente € 0 amor pelas festas e pela musica. A diferencié-los, tinham institucionalizagio de seus habitos. Judeus escrevem sua hist6ria (eo por acaso, sio autores da Biblia) c oficializam suas instituigies. Na Praga ® Segundo Paula Ribeiro, esta declaragio foi achada no portal portugues Vidas Luséfonas, em 2008, No entanto, ilo foi achada no mesmo. Optei por manté-Ia por fazer parte de sua tese de doutorado aprovada no mesmo ano, Revista Querubim — revista eletrénica de trabalhos cientficos nas drcas de Letras, Cigncias Humanas © Ciéncias Sociais - Ano 16~ Seco Especial - maio — 2020 — ISSN 1809 - 3264 Pagina 7 de 8 ‘Onze, havia pelo menos dez associagées ou elubes judaicos e outro tanto de jornais para a comunidade, Jia cultura negea € oral, mio por serem analfabetos, pelo contrétio, mas porque as formas de se fexpressar, passar conhecimento ¢ reivindicar sio informais, quando nao oficiosas. Um dos ratos livros a época que aborda a Praca Onze é Na Roda do Samba, de Francisco Guimaries, cronista carnavalesco da primeira metade do século XX que assinava seus textos como Vagalume. O livro € uma coletinea de artigos publicados em jornal, cujo intuito é “reivindicar os direitos do samba e prestar uma respeitosa homenagem aos seus criadores”, segundo diz 0 autor no prefécio. Vagalume ado era da Praca ¢, no Brasil, nio se enquadsaria como negro. Por isso, o registro da hhistoria negra na Praga Onze esti nas miisicas feitas. J4 os judeus, por algum motivo, sé neste século ‘XXI interessaram em voltar 20 baitro, ainda que virtualmente, ¢ té-lo como Jacus de sua histéria no Rio de Janeiro, No século pasado, até os jornais publicados pela comunidade se perderam (nao esto Museu Jadaico ou na Biblioteca Nacional), mas hé dois livros de memérias que nos levam 20 de volta ao bairro: 0 j citado Recordando a Praga Onze ¢ O canto da Rosa. Crdnicas de uma judia carioca, de Rosa Goldfarb, No entanto, comega a surgir uma literatura, de ficeao ou académica, sobre 0 grupo no bairro. [Nesta dea, destaca-se Paisagem estrangeira: meméria de um bairto judeu no Rio de Janeiro, de Finia Fridman, uma alentada pesquisa sobre o grupo langada em 2007. Na area de fiegio, destacam-se dois romances, ambos de 2010, Traduzindo Hannah, de Ronaldo Wrobel, histéria de suspense sobre o submundo da comunidade judaica 4 época do Estado Novo, Acidente em Mata Cavalos, de Matheus Kacowiez, contando a saga de dois irmaos judeus, da chegada como imigrantes pobres até sua integragio na clite catioca. Certamente haveri outros textos além desses, se nfo jé editados, em producio porque o interesse dos judeus no bairto é erescente, como fiea evidente no bloco carnavalesco Rancho da Praca Onze, que sai no stbado antes do carnaval, tocando miisicas judaicas com arranjos € percussio brasileiro. que nos leva a concluir que a Praga Onze & um lugar de meméria para os descendentes de «quem li viveu , mais que isso, para quem encontra lé as rafzes da cultura brasileira, com seu amélgama de ingredientes que, variados ¢/ou antagénicos, resultaram num todo diferente e maior que # soma de ‘suas partes. Outzos bairros populares do Rio de Janeiro tém importincia semelhante e podemos citar © ‘Morro da Mangucira, Madurcira (bergos das escolas de samba) e, mais recentemente, Cidade de Deus ¢ ‘Maré. Mas, desses bairros ainda sio vivos e pulsantes, enquanto a Praca Onze nao existe fisicamente ha ito décadas. No entanto, é referéncia ¢ esti na meméria até de quem nio viveu li, Como ensina Pollak, a meméria no precisa ser vivida para ser real, pode perfeitamente ser herdada ¢ a heranga da Praca ‘Onze esta eada ver mais viva Referéncias BARRETO, Paulo (Joio do Rio). As religiées do Rio. Editora Nova Aguilar - Colegio Biblioteca Manancial =n” 47, Rio. = de Janeiro, 1976, Disponivel = em hutp://www.dominiopublico.gov.br/download /texto/bi000185,pdf Acesso em 26/03/2019. CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeito: Lumiar Editora. 1996, Colegio MPB Reedigées, volume 2. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978 CALVINO, ITALO. AAs Cidades invisiveis. Trad. 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