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O debate entre Tarde e Durkheim

Eduardo viana Vargas


Bruno Latour
Bruno Karsenti
Frédérique Aït-Touati
Louise Salmon

Resumo

Um debate capital sobre a natureza da sociologia (Tarde 1903; Durkheim 1903). A atual apresentação
e suas relações com outras ciências opondo Ga- do debate é baseada em um roteiro composto de ci-
briel Tarde e Émile Durkheim ocorreu em 1903 tações de trabalhos publicados por Gabriel Tarde e
na École des Hautes Études Sociales. Infelizmente Émile Durkheim, organizados de modo a formar um
o único registro disponível do evento é uma breve diálogo. Todo o texto, salvo o que se encontra entre
apresentação em francês intitulada “La Sociologie colchetes, é composto por citações de trabalhos pu-
et les sciences sociales [confrontation avec Tarde]” blicados por Gabriel Tarde e Émile Durkheim.

Palavras-chave
Gabriel Tarde, Émile Durkheim, sociologia, teoria social, controvérsia.

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“Você se lembra da discussão que aconteceu na Ecole des Hautes Etudes So-
ciales entre Durkheim e meu pai? Antes que eles houvessem dito uma palavra, pela
fisionomia deles, seus olhares, seus gestos, adivinhava-se o que separava estes dois
homens, e adivinhava-se que uma tal discussão seria uma loucura.”
PAULAN, Jean ; TARDE, Guillaume de. 1980. Correspondance Jean Paul-
han Guillaume de Tarde 1904-1920. Paris: Gallimard, p. 20.

Notas introdutórias

Um debate capital sobre a natureza da sociologia e suas relações com outras ciências
opondo Gabriel Tarde e Émile Durkheim ocorreu em 1903 na École des Hautes Études
Sociales. Infelizmente o único registro disponível do evento é uma breve apresentação
em francês intitulada “La Sociologie et les sciences sociales [confrontation avec Tarde]”
(Tarde 1903; Durkheim 1903).
A atual apresentação do debate é baseada em um roteiro composto de citações de
trabalhos publicados por Gabriel Tarde e Émile Durkheim, organizados de modo a formar
um diálogo. Todo o texto, salvo o que se encontra entre colchetes, é composto por citações
de trabalhos publicados por Durkheim e Tarde. Uma versão curta do texto foi encenada
por Bruno Latour (Gabriel Tarde) e Bruno Karsenti (Émile Durkheim) por três vezes,
uma primeira em 21 de junho de 2007 em Cerisy la Salle, França, durante o Colóquio
Empirical Metaphysics; uma segunda em 14 de março de 2008 no teatro McCrum do
Corpus Christi College, Cambridge, Reino Unido, no quadro da Conferência Tarde/
Durkheim: trajectoires of the social; e uma terceira enfim em Paris, em 14 de março de
2008, cuja versão filmada por Martin Pavlov encontra-se disponível na página virtual
de Bruno Latour. Frédérique Aït-Touati dirigiu todas as apresentações, Eduardo Vargas
foi responsável pela pesquisa e escolha dos textos e Louise Salmon realizou a pesquisa
complementar. Louise Salmon, Simon Shaffer e Dominique Reynié interpretaram o
Decano respectivamente na primeira, na segunda e na terceira apresentação.
Esta versão do debate foi preparada originalmente em francês. Ela foi publicada
em inglês em 2008 na revista Environment and Planning D: society and space, 26(5),
pp. 761-777, sob o título de “The debate between Tarde and Durkheim”1. A presente
tradução foi realizada a partir dos textos originais em francês listados nas referências
bibliográficas, salvo quando eles já haviam sido traduzidos para o português, caso
em que se optou por usar as traduções existentes também indicadas nas referências
bibliográficas, ainda que estas tenham sido ocasionalmente modificadas. A paginação
indicada nas citações refere-se às edições francesas utilizadas.

1 A Revista Teoria & Sociedade agradece aos editores de Environment and Planning D: society and space
pela autorização para publicação desta tradução. [Nota do Organizador]

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Decano, Sr. Alfred Croiset:

[“Senhoras, senhores,
Em nome de seus diretores, Emile Boutroux e Emile Duclaux, e de sua secretária
geral, Dick May, eu estou feliz de vos acolher na École des Hautes Études Sociales, aqui no
número 16 da Rue de la Sorbonne.
Instituto de ensino das ciências sociais fundado há três anos, em novembro de
1900, a École des Hautes Études Sociales pretende estudar, em sua extrema complexidade,
o conjunto de questões mais nítida e diretamente sociais. Sem ser hostil à teoria, ela está
preocupada, antes de tudo, com o concreto e o investimento em questões de atualidade.
Em julho passado, o X Congresso Internacional de Sociologia foi consagrado às
“Relações entre a psicologia e a sociologia”. E é em continuidade com o tema de reflexão
desse Congresso que nós decidimos consagrar uma série de conferências às “Relações
entre a sociologia e as diferentes ciências sociais e as disciplinas auxiliares” no quadro do
curso de Sociologia da École Sociale do ano escolar de 1903-1904.
Jovem disciplina, a sociologia tem um impacto decisivo na apreensão das ques-
tões sociais atuais. Dois eminentes confrades a representam hoje aqui. Eles pretendem
defini-la e demonstrar sua especificidade expondo os métodos que eles estimam serem
próprios a essa disciplina, no quadro de uma discussão contraditória.
É, então, enquanto presidente do conselho de direção e presidente do comitê de ensino
da escola de moral e de pedagogia, que eu tenho a honra de vos apresentar: à minha direita, o Sr.
Gabriel Tarde, professor da cátedra de Filosofia moderna do Collège de France, membro da
Academia de Ciências Morais e Políticas desde 1901, mas também membro do Conselho
de Direção e do Comitê de Ensino da Escola de Moral e Pedagogia de nossa École, autor
das famosas Leis da Imitação e da obra A Psicologia Econômica, recentemente publica-
da.
À minha esquerda, o Sr. Émile Durkheim, suplente da Cátedra de Ciências da Educação
na Faculdade de Letras da Universidade de Paris desde 1902, autor das notáveis Regras
do método sociológico e fundador do Année sociologique, revista que recenseia as pro-
duções sociológicas internacionais do ano.
Senhores, eu vos passo a palavra começando pelo mais jovem. Sr. Durkheim, sua
vez de definir primeiro sua concepção da sociologia em suas relações com as outras ciên-
cias.]

Durkheim:

Há algum tempo a sociologia está na moda. A palavra, pouco conhecida e quase re-

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jeitada há uns dez anos, é hoje de uso corrente. As vocações se multiplicam e há por par-
te do público como que um preconceito favorável à nova ciência. Espera-se muito dela.
No entanto, devemos admitir que os resultados obtidos não correspondem exatamente
ao número de trabalhos publicados nem ao interesse em acompanhá-los […]. É que, no
mais das vezes, ela não se coloca problemas determinados. A sociologia não ultrapassou
a era das construções e das sínteses filosóficas. Em vez de assumir a tarefa de lançar luz
sobre uma parcela restrita do campo social ela prefere buscar as brilhantes generalidades
em que todas as questões são levantadas sem que nenhuma seja expressamente tratada.
Esse método permite enganar um pouco a curiosidade do público, dando-lhe, como se
diz, noções sobre todos os tipos de assuntos, mas não pode chegar a nada de objetivo. […]
Uma ciência tão recente tem o direito de errar e de tatear, contanto que tome consciência
dos seus erros para evitar que se repitam. A sociologia, portanto, não deve renunciar a
nenhuma de suas ambições; por outro lado, se deseja responder às esperanças que se
colocaram nela, deve aspirar a se tornar algo mais do que uma forma original da lite-
ratura filosófica. Que o sociólogo, em vez de se comprazer em meditações metafísicas a
propósito das coisas sociais, tome como objetos de suas pesquisas grupos de fatos niti-
damente circunscritos, que possam, de certo modo, ser apontados com o dedo, dos quais
se possam dizer onde começam e onde terminam, e atenha-se firmemente a eles! Que ele
tenha o cuidado de interrogar as disciplinas auxiliares – história, etnografia, estatística
–, sem as quais a sociologia nada pode fazer! […] Se o sociólogo proceder desse modo,
mesmo que seus inventários de fatos sejam incompletos e suas fórmulas muito restritas,
ele pelo menos terá feito um trabalho útil a que o futuro dará continuidade. (Durkheim
1897a: 1-3)

Decano:

[Sr. Tarde, sua vez de precisar o objeto da sociologia em suas relações com as ou-
tras ciências.]

Tarde

É natural que uma ciência nascente se apóie em ciências já constituídas, a sociologia, por
exemplo, na biologia. Também é natural que uma ciência em vias de crescimento busque voar
com suas próprias asas e se constituir como um domínio à parte. A sociologia em desenvolvimento
está atualmente nesta situação, ela busca se constituir por si e para si. Trata-se de uma espé-

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cie de egoísmo, de individualismo científico, útil em certa medida como todo egoísmo
animal ou humano, mas prejudicial ao próprio indivíduo além de um nível pretendido.
[...] Sabe-se da esterilidade destas pretensões que desconhecem a solidariedade das di-
versas ciências e, conseqüentemente, a unidade profunda da realidade universal. Teme-
mos para a sociologia o mesmo dispêndio de esforços em vão; e creio perceber aqui e ali
sintomas de um tal extravio que poderia ser desastroso. Tratemos de preveni-lo: busque-
mos com toda precisão desejável, mas sem pretender para a ciência que nos é cara uma
autonomia absoluta, os limites do campo que ela é chamada a esclarecer. [...] Qual é, ou
melhor, quais são os fatos sociais, os atos sociais elementares, e qual é sua característica
distintiva? [...] O fato social elementar é a comunicação ou a modificação de um estado
de consciência pela ação de um ser consciente sobre outro. [...] Nem tudo o que fazem os
membros de uma sociedade é sociológico. [...] Respirar, digerir, bater as pálpebras, sa-
cudir as pernas mecanicamente, olhar distraidamente uma paisagem ou lançar um grito
inarticulado, estes são atos que não têm nada de social. [...] Mas falar com alguém, orar
por um ídolo, esfaquear um inimigo, esculpir uma pedra, estes são atos sociais, pois ape-
nas o homem em sociedade age desta maneira e, sem o exemplo de outros homens que
ele copiou voluntariamente ou involuntariamente desde o berço, ele não agiria assim. A
característica comum dos atos sociais, com efeito, é de serem imitativos. [...] Eis portanto
uma característica bem nítida e, além disso, objetiva. [...] E eu me espanto que tenham
me repreendido de me vincular aqui ao fato exteriormente apreensível sem considerar
sua fonte interna, e que esta repreensão me tenha sido endereçada – por quem? Por [meu
distinto colega] o Sr. Durkheim, que precisamente professa a necessidade de fundar a
sociologia sobre considerações puramente objetivas e de, por assim dizer, exorcizar esta
ciência expulsando para fora dela a psicologia que seria, parece-lhe, não sua alma como
acreditaram até aqui todos os seus fundadores, de Augusto Comte a Spencer, mas, ao
contrário, seu mau gênio. (Tarde 1895a: 63-66)4

Decano:

[Eis, creio, o desacordo claramente articulado: Sr. Durkheim, gostaria de precisar


seu pensamento?]

Durkheim:

O Sr. Tarde pretende que a sociologia chegará a tais ou tais resultados; mas nós

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não podemos dizer o que é o fato social elementar no estado atual de nossos conhecimen-
tos. Nós ignoramos demasiadas coisas e, nestas condições, a construção do fato social
elementar só pode ser arbitrária. (Durkheim 1903: 164)

Tarde:

Para formular leis, não é necessário que as ciências estejam definitivamente cons-
tituídas. É preciso uma idéia diretiva nas pesquisas. Ora, as ciências sociais não deveram
seu progresso a certas regras de método objetivas, mas realizaram-no desenvolvendo-se
no sentido [...] desta microscopia social que é a psicologia intermental. (Tarde 1903: 164)

Durkheim:

O que quer que valha esta psicologia intermental, é inadmissível que ela exer-
ça uma espécie de ação diretiva sobre as disciplinas especiais das quais ela deve ser o
produto (Durkheim 1903: 164). Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais
deixa escapar o que eles têm de específico, isto é, de social. […] Há entre a psicologia e a
sociologia a mesma solução de continuidade que existe entre a biologia e as ciências físi-
co-químicas. Conseqüentemente, todas as vezes que um fenômeno social é diretamente
explicado por um fenômeno psíquico, podemos estar seguros de que a explicação é falsa.
(Durkheim 1894: 103, 106)

Tarde:

Entretanto a importância da repetição – [entendam] sempre da imitação – não


deixa de [se] fazer sentir ao [Sr. Durkheim], mesmo que sem seu conhecimento. Para
provar a separação radical, a absoluta dualidade de natureza que ele pretende estabelecer
entre o fato coletivo e os fatos individuais que, segundo eu, o constituem, mas, segundo
ele, o refratam de fora, não se sabe como, ele escreve [eu vos cito:] “Algumas destas ma-
neiras de agir e de pensar adquirem, em conseqüência da repetição, uma espécie de con-
sistência que, por assim dizer, as precipitam e as isolam dos acontecimentos particulares
onde elas se encarnam um dia”. [...] E o que o demonstra – escutem bem isto – é que o
hábito coletivo, um costume qualquer, [eu cito novamente,] “se exprime de uma vez por

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todas em uma fórmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela educação,
que se fixa mesmo por escrito” [fim de citação]. Sem a preocupação que o cega [meu
contraditor] veria, o que salta aos olhos, que ele acaba de fornecer uma nova comprova-
ção involuntária do caráter eminentemente social, ou melhor, socializante da repetição
imitativa. [...] O Sr. Durkheim parece gravitar em direção a alguma teoria da emanação.
Para ele, eu repito, os fatos individuais que nós chamamos sociais não são os elementos
do fato social, mas sua manifestação. Quanto ao fato social, ele é o modelo superior, a
Idéia platônica, o modelo... tanto é verdadeiro que a idéia de imitação em matéria social
se impõe a seus maiores adversários. Mas passemos... (Tarde 1895b: 67-69)

Durkheim:

É preciso [...] tomar os termos rigorosamente. As tendências coletivas têm uma


existência que lhes é própria; são forças tão reais quanto as forças cósmicas, embora
sejam de outra natureza; também agem de fora sobre o indivíduo, embora por outros
meios. O que permite afirmar que a realidade das primeiras não é inferior à das segun-
das é o fato de ela se provar da mesma maneira, ou seja, pela constância de seus efeitos.
[…] Por conseguinte, uma vez que atos morais [...] se reproduzem com uma [grande]
uniformidade [...], devemos também admitir que eles dependem de forças exteriores aos
indivíduos. Apenas, como essas forças só podem ser morais e além do homem individual
não há no mundo outro ser moral que não a sociedade, elas são necessariamente sociais.
Mas, seja qual for o nome que se lhes dê, o que importa é reconhecer sua realidade e
concebê-las como um conjunto de energias que nos determinam a agir de fora, tal como
fazem as energias físico-químicas cuja ação nós sofremos. Tanto elas são coisas sui ge-
neris, e não entidades verbais, que podemos medi-las, comparar sua grandeza relativa,
como fazemos com a intensidade de correntes elétricas ou de fogos luminosos. […] Sem
dúvida, ela se choca com o senso comum. Mas todas as vezes que veio revelar aos ho-
mens a existência de uma força ignorada, a ciência deu de encontro com a incredulidade.
Quando é preciso modificar o sistema de idéias recebidas para dar lugar à nova ordem
de coisas e construir conceitos novos, os espíritos resistem indolentemente. No entanto,
é preciso entender-se. Se a sociologia existe, ela só pode ser o estudo de um mundo ain-
da desconhecido, diferente dos que as outras ciências exploram. Ora, esse mundo não é
nada senão um sistema de realidades. (Durkheim 1897b: 348-349)

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Tarde:

À primeira vista não se compreende; mas quando se é iniciado à doutrina do autor, eis o
que isto significa: não é o montante de generalização ou de propagação imitativa de um fato que
constitui seu caráter mais ou menos social; é o seu montante de coercitividade – Segundo [meu
contraditor], com efeito, pois nós só reconhecemos até aqui uma metade de seu pensa-
mento, a definição do fato social é dupla. Uma de suas características, nós o sabemos, é
que [eu vos cito novamente, ele] “existe independentemente de suas expressões indivi-
duais”. Mas há uma outra característica não menos essencial, é a de serem coercitivos.
(Tarde 1895a: 70)

Decano:

[Vocês estão então todos os dois claramente em desacordo sobre a questão de


saber como convém tornar autônomos os fatos especiais de que se ocupa a sociologia,
mas também sobre a questão de sua exterioridade e, em suma, da força com a qual este
mundo se impõe a nós.]

Durkheim:

[É preciso] representar o domínio da sociologia de uma maneira precisa. Ele com-


preende apenas um grupo determinado de fenômenos. Um fato social é reconhecido pelo
poder de coerção externa que ele exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e
a presença deste poder é reconhecida, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção
determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda iniciativa individual que tende
a lhe violentar. Entretanto, pode-se defini-lo também [eu vos concedo] pela difusão que
ele apresenta no interior do grupo, desde que, conforme as observações precedentes, se
tenha o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe in-
dependentemente das formas individuais que ele assume ao se difundir (Durkheim 1894:
11). Além disso, esta segunda definição não é mais do que uma forma da primeira; pois
se uma maneira de se conduzir, que existe exteriormente às consciências individuais,
se generaliza, isso só ocorre porque ela se impõe (Durkheim 1894: 12). Eis o que são os
fenômenos sociais, desembaraçados de todo elemento estrangeiro. Quanto às suas mani-
festações privadas, elas têm efetivamente algo de social, pois elas reproduzem em parte
um modelo coletivo; mas cada uma delas depende também, e por uma larga parte, da

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constituição orgânico-psíquica do indivíduo e das circunstâncias particulares nas quais
ele está situado. Elas não são, por conseguinte, fenômenos completamente sociológicos.
Elas pertencem ao mesmo tempo aos dois reinos; poder-se-ia chamá-las de sócio-psíqui-
cas, [caso você assim prefira]. (Durkheim 1894: 10)

Tarde:

Deste ponto de vista, não haveria nada mais social do que a relação estabelecida
entre vencedores e vencidos pela tomada de assalto de uma fortaleza ou pela redução à
escravidão de uma nação conquistada, nem menos social do que a conversão espontânea
de todo um povo a uma nova religião ou a uma nova fé política apregoada por apóstolos
entusiastas! Para mim o erro aqui é tão palpável que devemos nos perguntar como ele
pôde nascer e se enraizar em uma inteligência desta força. [O Sr. Durkheim] nos diz:
[...] dado que o fato social é essencialmente exterior ao indivíduo, “ele só pode entrar
no indivíduo impondo-se”. Eu efetivamente não vejo o rigor desta dedução. O alimento
também nos é exterior antes de ser absorvido. Quer dizer que a deglutição e a assimilação
são constrangimentos exercidos pelo alimento sobre a célula que se apropria dele? Isto
não se verifica nem mesmo com as aves que nós engordamos à força nas granjas, e que
certamente preferem ser empanturradas que morrer de fome. (Tarde 1895a: 71)

Durkheim:

A [...] proposição [do Sr. Tarde] é totalmente arbitrária. [Ele] pode afirmar que,
segundo sua impressão pessoal, não há nada de real na sociedade além do que vem do
indivíduo, mas faltam provas para apoiar essa afirmação e sua discussão, portanto, é
impossível. Seria tão fácil opor a esse sentimento o sentimento contrário de um grande
número de indivíduos que se representam a sociedade não como a forma que a natureza
individual assume espontaneamente desenvolvendo-se para fora, mas como uma força
antagônica que os limita e contra a qual eles se empenham! (Durkheim 1897b: 351)

Tarde:

Segue-se daí que, de acordo [com o Sr.], não é permitido qualificar como sociais os
atos do indivíduo onde o fato social se manifesta, por exemplo as palavras de um orador,

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manifestação da língua, ou o ajoelhar de um devoto, manifestação da religião. Não, como
cada um destes atos depende não somente da natureza do fato social, mas também da
constituição mental e vital do agente e do meio físico, estes atos são espécies de híbridos,
fatos sócio-psíquicos ou sócio-físicos com os quais não se deve mais manchar por muito
tempo a pureza científica da nova sociologia. (Tarde 1895a: 69-70)

Durkheim:

Sem dúvida, esta dissociação [entre o social e o individual] não se apresenta sem-
pre com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável em
casos importantes e numerosos […] para provar que o fato social é distinto de suas re-
percussões individuais. De resto, mesmo quando ela não é imediatamente dada à ob-
servação, pode-se freqüentemente realizá-la com ajuda de certos artifícios de método;
é mesmo indispensável proceder a esta operação, caso se queira libertar o fato social de
toda mistura para observá-lo no estado de pureza. Assim, há certas correntes de opinião
que nos empurram, com uma intensidade desigual segundo os tempos e os países, uma
ao casamento, por exemplo, outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos forte,
etc. Estes são, evidentemente, fatos sociais. À primeira abordagem, parecem inseparáveis
das formas que eles tomam nos casos particulares. Mas a estatística nos fornece o meio
de isolá-los. (Durkheim 1894: 9)

Tarde:

[Oh!], se […] contamos com a estatística como fonte de informações essencial-


mente “objetiva”, nós nos iludimos. Os oráculos desta sibila são freqüentemente ambí-
guos e exigem interpretação. Em verdade, as estatísticas oficiais funcionam ainda muito
imperfeitamente e há muito pouco tempo para fornecer elementos decisivos para o de-
bate que nos ocupa (Tarde 1895b: 154). [Sei-o tão bem Sr. Durkheim porque fui eu quem
vos forneceu, atendendo ao vosso pedido, as estatísticas do setor que eu dirigia e que
serviram a esta obra sobre o suicídio.]

Durkheim:

Conclui-se com toda a evidência que a imitação, pelo fato de poder ocorrer entre
indivíduos que não são unidos por nenhum vínculo social, é um fenômeno puramente

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psicológico, [como eu mostrei no livro que você mencionou]. (Durkheim 1897b: 107)

Decano:

[Acredito que nós chegamos a um ponto crucial do debate. Ele concerne à dife-
rença em importância que vocês atribuem à imitação em matéria social. Vocês poderiam
elaborar isto de modo mais preciso?]

Tarde:

Precisamente porque ela é o agente socializante, é necessário que ela preexista à


sociedade que ela prepara. Seguramente, um só ato de imitação de um ser vivo por um
outro não é suficiente para torná-los associados – do mesmo modo que um cabelo não
constitui uma cabeleira... – mas, começando a imitar um ser que é susceptível de vos
imitar por sua vez [...], começa-se a estabelecer com ele relações socializantes, as quais
se tornarão necessariamente relações sociais se os atos de imitação se multiplicam e se
centralizam. [...] Para vós, Sr. Durkheim, para que a imitação fosse o fato social essencial,
seria necessário que ela não ocorresse a não ser entre seres já associados. Mas se eles es-
tivessem associados antes dela, ela não seria, por conseguinte, o fato social característico.
Ela não seria o agente, a causa socializante, se ela não preexistisse ao seu efeito. (Tarde
1897: 224; 224n)

Durkheim:

Um homem pode imitar o outro sem que sejam solidários um do outro ou de um


mesmo grupo do qual dependam igualmente, e a propagação imitativa não tem, por si só,
o poder de solidarizá-los. (Durkheim 1897b: 107)

Tarde:

Ela sempre tem este poder – e eu digo que apenas ela tem este poder –, ao menos
caso se trate de uma propagação imitativa de fatos psicológicos. Pois eu sempre expli-
quei que, tal como a entendo, a imitação é uma comunicação de alma a alma. (Tarde

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1897: 224-225)

Durkheim:

Um espirro, um movimento convulsivo, um impulso homicida podem se transferir


de um sujeito a outro sem que haja entre eles algo além de uma proximidade fortuita e
passageira. (Durkheim 1897b: 107)

Tarde:

Mas esta aproximação “fortuita e passageira”, caso se repita, caso se multiplique,


torna-se uma verdadeira união social. (Tarde 1897: 225)

Durkheim:

Não é necessário que haja entre eles uma comunhão intelectual ou moral, tampou-
co uma troca de serviços, nem mesmo é necessário que falem a mesma língua, e depois da
transferência eles não se encontram mais ligados do que antes. (Durkheim 1897b: 107)

Tarde:

Segue daí que, segundo o autor, o laço social se reconhece pelo fato de que existe
uma comunidade intelectual ou moral entre os homens, ou ao menos que eles falem uma
mesma língua... Ora, Sr. Durkheim, me [diga o Sr.] como, se não por meio da difusão e
do acúmulo de exemplos, esta comunidade intelectual [...] ou esta comunidade moral [...]
poderia ter se estabelecido? E, se não é por transmissão imitativa dos pais aos filhos, e
dos contemporâneos entre si, também me [diga o Sr.] como os indivíduos de uma mesma
nação encontram-se a falar a mesma língua? (Tarde 1897: 225)

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Durkheim:

[O] procedimento pelo qual imitamos nossos semelhantes é o mesmo que nos ser-
ve para reproduzir os ruídos da natureza, as formas das coisas, os movimentos dos seres.
Como ele não tem nada de social no segundo caso, o mesmo ocorre com o primeiro. Ele
tem origem em certas propriedades de nossa vida representativa que não resultam de
nenhuma influência coletiva. Portanto, se estivesse demonstrado que ele contribui para
determinar taxas de suicídios, resultaria que esta última depende diretamente, seja em
sua totalidade seja em parte, de causas individuais. (Durkheim 1897b: 107-108)

Tarde:

Eu já respondi […] a esta objeção superficial dizendo que a imitação de que eu falo
é uma comunicação interpsíquica. Mas a inanidade da objeção requer que seja apontada
com o dedo. (Tarde 1897: 226)

Durkheim:

Porém, antes de examinar os fatos, convém fixar o sentido da palavra. Os sociólo-


gos estão tão habituados a empregar os termos sem os definir, ou seja, a não determinar
nem circunscrever metodicamente a ordem de coisas de que têm intenção de falar, que
ocorre constantemente deixarem uma mesma expressão estender-se, à sua revelia, do
conceito que ela tinha ou parecia ter em vista primitivamente a outras noções mais ou
menos próximas. Nessas condições, a idéia acaba por se tornar de uma ambiguidade que
invalida a discussão. Pois, não tendo contornos definidos, ela pode se transformar quase
à vontade conforme as necessidades da causa e impossibilitando a crítica de prever de
antemão todos os diversos aspectos que ela é suscetível de assumir. É especialmente o
caso do que se chamou de instinto de imitação. (Durkheim 1897b: 108)

Tarde:

Quanto à minha teoria (não a que [o Sr.] desfigura e caricatura, mas a que eu
expus em outros lugares), eu a tenho aplicado a todas as ordens de fatos sociais. (Tarde
1897: 232)

40 O debate entre Tarde e Durkheim


Decano:

[Vocês poderiam, então, esclarecer o significado que atribuem à imitação?]

Durkheim:

Essa expressão [imitação] é comumente empregada para designar ao mesmo tem-


po os três grupos de atos seguintes: […] uma espécie de nivelamento […] em virtude do
qual todo mundo pensa ou sente em uníssono […]; [...] maneiras de pensar ou de fazer
que são gerais à nossa volta […]; [e] a macaquice por si mesma. Ora, essas três espécies de
fatos são muito diferentes uma das outras. […] Uma coisa é sentir em comum, outra coisa
[é] inclinar-se diante da autoridade da opinião, outra coisa, enfim, [é] repetir automa-
ticamente o que outros fizeram. Da primeira ordem de fatos está ausente toda reprodu-
ção; na segunda, ela é apenas a conseqüência de operações lógicas, de julgamentos e de
raciocínios, implícitos ou formais, que são o elemento essencial do fenômeno; portanto
não pode servir para defini-lo. A reprodução só é plena no terceiro caso. […] Portanto, é
exclusivamente aos fatos dessa categoria que deveremos reservar o nome de imitação, se
quisermos que ele tenha um significado definido, e diremos: Há imitação quando um ato
tem como antecedente imediato a representação de um ato semelhante, anteriormente
realizado por outros, sem que entre essa representação e a execução se intercale nenhu-
ma operação intelectual, explícita ou implícita, sobre as características intrínsecas do
ato reproduzido. (Durkheim 1897b: 108-115)

Tarde:

[Sr. Durkheim, o Sr. entende] imitação em um sentido tão estreito que nos per-
guntamos como, apesar desta estreiteza, [o Sr. pôde] lhe reconhecer uma papel notável
no suicídio (Tarde 1897: 224). [Certamente,] censuram-me aqui e ali por “ter freqüen-
temente chamado de imitação fatos aos quais este nome absolutamente não convém”.
Reparo que me surpreende sob a pluma de um filósofo. Com efeito, sempre que o filósofo
tem necessidade de uma palavra para exprimir uma nova generalização, só lhe resta a
escolha entre duas alternativas: ou bem o neologismo, se não pode fazer de outra manei-
ra, ou bem, o que indiscutivelmente vale muito mais, a extensão do sentido de um antigo
vocábulo. Toda a questão consiste em saber se eu estendi abusivamente [...] o significado
da palavra imitação. [...] Só se teria o direito de criticar como abusivo o alargamento do

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significado da palavra em questão se, ao estendê-lo, eu o tivesse deformado e tornado
insignificante. Mas deixei-lhe sempre um sentido muito preciso e característico: o de
uma ação à distância de um espírito sobre um outro (Tarde 1890: vii-viii), […] onde um
[…] modifica o outro mentalmente, com ou sem reciprocidade (Tarde 1902: 1-2). A título
bem mais justo poderiam me censurar de ter estendido abusivamente o sentido do termo
invenção. É certo que eu atribuí este termo a todas as iniciativas individuais, não apenas
sem considerar o seu grau de consciência – pois freqüentemente o indivíduo inova à sua
revelia, e, para dizer a verdade, o mais imitador dos homens é inovador de algum modo
– mas ainda sem reparar absolutamente nada no grau maior ou menor de dificuldade
e de mérito da inovação. [...] Pois bem, apesar de tudo eu creio que mesmo aqui tenho
razão em submeter a língua comum a uma leve violência qualificando como invenções ou
descobertas as inovações mais simples, tanto mais que as mais fáceis não são sempre as
menos fecundas, nem as mais difíceis são as menos inúteis. (Tarde 1890: ix)

Durkheim:

Se, com efeito, a imitação é, como se disse, uma fonte original e particularmente
fecunda de fenômenos sociais, é principalmente quanto ao suicídio que ela deve dar pro-
vas de seu poder, pois não há outro fato sobre o qual ela tenha maior domínio. Assim,
o suicídio irá nos oferecer um meio de verificar por meio de uma experiência decisiva a
realidade da virtude maravilhosa que se atribui à imitação. (Durkheim 1897b: 120)

Tarde:

É isto que eu nego. Por importante que seja o papel da imitação no fenômeno do suicídio (e
[o Sr.] mesmo não [pode] negar que numerosos suicídios se explicam por ela, apesar da
definição manifestamente apertada, extremamente estreita que [o Sr.] lhe dá), a imitação
desempenha um papel infinitamente maior na formação e na propagação das línguas, das
religiões, das artes... Por conseguinte, eu não posso aceitar como “decisiva”, de maneira
alguma, a experiência que [o Sr. pretende] instituir desta maneira. (Tarde 1897: 228)

42 O debate entre Tarde e Durkheim


Durkheim:

Se essa influência existe, é sobretudo na distribuição geográfica dos suicídios que


ela deve ser perceptível. Devemos ver, em certos casos, a taxa característica de um país
ou uma localidade se comunicar, por assim dizer, às localidades vizinhas. Portanto, é o
mapa que devemos consultar. Mas é preciso interrogá-lo com método. […] Para poder
afirmar que uma tendência ou uma idéia se propaga por imitação, é preciso vê-la sair
dos meios em que nasceu para invadir outros que, por si mesmos, não a suscitariam na-
turalmente. Pois, conforme mostramos, só há propagação imitativa na medida em que o
fato imitado, e só ele, sem o concurso de outros fatores, determina automaticamente os
fatos que o reproduzem. […] Antes de tudo, não pode haver imitação sem um modelo a
ser imitado […]. Apresentadas essas regras, vamos aplicá-las. Os mapas usuais […] não
podem ser suficientes para essa análise. Com efeito, eles não permitem observar os possíveis
efeitos da imitação onde estes devem ser mais sensíveis […]. Construímos então, especialmen-
te para o estudo dessa questão, um mapa […]. Sua leitura nos ofereceu os resultados mais
inesperados. […] Enfim, o que todos os mapas nos mostram é que o suicídio, longe de
se dispor mais ou menos concentricamente em torno de alguns focos, a partir dos quais
iria diminuindo gradualmente, apresenta-se, ao contrário, em grandes massas mais ou
menos homogêneas (apenas mais ou menos, porém) e desprovidas de qualquer núcleo
central. Uma tal configuração, nada tem que revele a influência da imitação. (Durkheim
1897b: 120-128)

Tarde:

Ela também não tem nada que a contradiga. Com efeito, a disposição em círcu-
los concentricamente degradados ocorreria, conforme a teoria da imitação, se o suicídio
fosse um fenômeno de origem recente; mas ele é muito antigo; e, do mesmo modo, por
todo lugar onde a ação da imitação se acumulou durante muito tempo, produziu-se um
nivelamento, um amontoado, uma classificação por assim dizer. E partir daí para negar
o caráter imitativo do suicídio é como negar o caráter ondulatório do calor porque a tem-
peratura de um quarto é igual por toda parte ainda que seu aquecimento tenha ocorrido
a partir de um aquecedor ou de uma lareira (talvez extinta há um bom tempo). (Tarde
1897: 230)

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 43


Decano:

[Eu não sei ao certo se estamos ou não diante de um caso de imitação, mas se es-
tivermos, o que esta poderia ser?]

Durkheim:

Não há [aqui] nem imitadores nem imitados, mas identidade relativa dos efeitos
devido a uma identidade relativa das causas. E explica-se facilmente que seja assim se,
como tudo que precede o fato já previsto, o suicídio depende essencialmente de certas
condições do meio social. Pois este último geralmente mantém a mesma constituição em
extensões bastante amplas de território. […] A prova de que essa explicação é fundada é
que vemos a taxa de suicídios modificar-se bruscamente e por completo toda vez que o
meio social muda bruscamente. Este nunca estende sua ação para além de seus limites
naturais. (Durkheim 1897b: 129)

Tarde:

O que há de vago é o apelo ao meio social, à taxa social, ao estado coletivo, às


condições de existência, a todas as entidades, a todas as nebulosas não resolvidas que
têm servido aos que fazem ontologia da ciência social desde que se começou a raciocinar
sobre ela. (Tarde 1897: 231)

Durkheim:

Em resumo, embora seja certo que o suicídio é contagioso de indivíduo para indi-
víduo, nunca se vê a imitação propagá-lo de tal maneira que afete a taxa social de suicí-
dios. Ela pode dar origem a casos individuais mais ou menos numerosos, mas não con-
tribui para determinar a desigualdade da propensão que leva ao suicídio as diferentes so-
ciedades e, no interior de cada sociedade, os grupos sociais mais particulares. (Durkheim
1897b: 134)

44 O debate entre Tarde e Durkheim


Tarde:

Ainda aqui, esta alucinação do social distinto e separado do individual. O que é


esta taxa social dos suicídios que não afeta nem um pouco o número maior ou menor
de suicídios individuais? [Eu respondo:] a taxa social, o meio social, o estado coletivo,
etc., [são] tantas divindades nebulosas que tiram [o Sr. Durkheim] do aperto quando [o
Sr. está] embaraçado. [O Sr.] não quer que eu as resolva em fatos individuais contagiosos e [o
Sr.] tem razão, pois dissipado o mistério, o prestígio tomba, e toda esta fantasmagoria de
palavras cessa de impressionar o leitor. (Tarde 1897: 231)

Durkheim:

Mas há uma razão mais geral que explica por que os efeitos da imitação não são
identificáveis através dos números estatísticos. É que, reduzida apenas às suas forças, a
imitação não pode ter nenhuma influência sobre o suicídio. [O capítulo do Suicídio que eu
dediquei à imitação] mostra principalmente o quanto é pouco fundada a teoria que consi-
dera a imitação a fonte iminente de toda vida coletiva. Não há fato tão facilmente transmis-
sível por contágio quanto o suicídio, e no entanto acabamos de ver que essa contagiosidade
não produz efeitos sociais. Se, nesse caso, a imitação é tão desprovida de influência social,
não o poderia ser menos nos outros; as virtudes que lhe são atribuídas são portanto ima-
ginárias. […] Pois nunca se mostrou, a propósito de uma ordem definida de fatos sociais,
que a imitação pudesse explicá-los e, menos ainda, que pudesse explicá-los sozinha. A pro-
posição foi apenas enunciada sob forma de aforismo, apoiada em considerações vagamen-
te metafísicas. No entanto a sociologia só poderá pretender ser considerada uma ciência
quando não for mais permitido que aqueles que a cultivam dogmatizem desse modo, fur-
tando-se tão evidentemente às obrigações regulares da prova. (Durkheim 1897b: 134-137)

Tarde:

E é por ter pretendido substituir estas explicações metafísicas, ou antes ontológi-


cas, por explicações precisas, retiradas da intimidade da vida social, relações psíquicas
de indivíduo a individuo, que são o próprio elemento infinitesimal mas continuamente
integrado da vida social, que eu fui tratado como vago metafísico... pelo Sr. Durkheim!
[...] Seja como for, devo constatar da parte do Sr. [Durkheim] um real progresso. Em seu
primeiro livro não havia para a teoria da imitação mais do que uma linha desdenhosa em
uma nota (veja a Divisão do trabalho social). No presente, ele bem pretende lhe consa-

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 45


grar todo um capítulo, ou, para dizê-lo melhor, todo um livro, pois, do começo ao fim,
todo seu último livro parece dirigido contra mim. (Tarde 1897: 232-233)

Durkheim:

[Antes de ser contra você, este livro é a favor da sociologia científica. Nele] nós es-
tabelecemos sucessivamente as proposições seguintes: o suicídio varia em razão inversa
do grau de integração da sociedade religiosa, doméstica, política. [...] Nós chegamos
então a esta conclusão geral: o suicídio varia em razão inversa do grau de integração dos grupos
sociais dos quais o indivíduo faz parte. (Durkheim 1897b: 222-223)

Tarde:

Isto é verdadeiro? Isto depende do sentido que se empresta a esta expressão equí-
voca: o grau de integração de uma sociedade. Caso se entenda por isso a quantidade
maior ou menor de densidade ou de coesão de um grupo social, isto é, o número maior
ou menor de suas unidades e sua maior ou menor proximidade física, é claro que a pro-
posição acima é contradita pelos fatos. [...] Entretanto, não é neste sentido todo físico [...]
que [o Sr. Durkheim] entende a expressão. [...] A integração de que [o Sr. fala] implica
um “constrangimento moral” e não somente material. Mas é necessário ser preciso. [...]
Chamar isto de integração é bastante bizarro vindo da parte de um autor que me censura
o emprego que faço [...] da palavra imitação. (Tarde 1897: 235-236)

Decano:

[Vemos agora que o que é questão de imitação para um, é questão de integração
para o outro. Mas vocês poderiam nos dizer o que é e o que não é metafórico nesta ma-
téria?]

46 O debate entre Tarde e Durkheim


Durkheim:

Não é por metáfora que se diz que cada sociedade humana tem uma disposição
mais pronunciada ou menos pronunciada para o suicídio: a expressão se fundamenta
na natureza das coisas. Cada grupo social tem por esse ato, realmente, uma inclinação
coletiva que lhe é própria e da qual derivam as inclinações individuais, e que não procede
destas últimas. (Durkheim 1897b: 336)

Tarde:

Explique isto quem puder. Se [o Sr. pretende] dizer com isso que a tendência co-
letiva existe à parte e sobre todas as tendências individuais ao suicídio, trata-se de pura
quimera. Se [o Sr. pretende] simplesmente dizer que para cada indivíduo considerado à
parte a tendência que ele experimenta para o suicídio provém das tendências próprias
ao conjunto dos outros indivíduos que querem se matar, trata-se de uma adesão a minha
Teoria da Imitação. Ora, parece que este último sentido é o verdadeiro. Então [o Sr., Sr.
Durkheim,] é meu aluno sem o saber. (Tarde 1897: 246)

Durkheim:

O que a constitui são as correntes de egoísmo, de altruísmo ou de anomia que afe-


tam a sociedade considerada, com as tendências à melancolia apática, à renúncia ativa ou
à lassidão exasperada que são suas conseqüências. São essas tendências da coletividade
que, penetrando os indivíduos, os determinam a se matar. (Durkheim 1897b: 336)

Tarde:

As páginas que terminam o capítulo sobre o suicídio egoísta são belas, de uma
poesia metafísica à Schopenhauer, mas não é necessário pressionar. Trata-se de pura
mitologia. Vemos aí a sociedade elevada à posição de pessoa, e de pessoa divina. [...]
Durkheim é um Bonald ateu, e, por conseqüência, inconseqüente. [(...) Ele] nos deixa
apenas a escolha entre a tirania da regra, que mutila nossa natureza, que fere nossa li-
berdade, e o suicídio que suprime nossa existência. Enclausurar-se ou se matar, não há

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 47


meio termo. Lendo-o por muito tempo, tornamo-nos facilmente anarquistas... (Tarde
1897: 237; 244; 247).

Durkheim:

[Os fatos sociais] são retratados pela taxa de natalidade, de casamentos, de


suicídios, quer dizer, pelo número que se obtém dividindo o total médio anual dos
nascimentos, casamentos e mortes voluntárias pelo número de homens na idade de
procriar, de se casar, de se suicidar. Como cada um destes números compreende todos
os casos individuais indistintamente, as circunstâncias particulares que podem ter
tomado parte na produção do fenômeno neutralizam-se mutuamente e, por conseguinte,
não contribuem para determiná-lo. O que ele exprime é um certo estado da consciência
coletiva. (Durkheim 1894: 9-10)

Tarde:

Em matéria de laços sociais, isto é não reconhecer nada além das relações do se-
nhor ao servo, do professor aos alunos, dos pais aos filhos, sem absolutamente considerar
as livres relações dos iguais entre si. E é fechar os olhos para não ver que, nos próprios
colégios, a educação que as crianças se dão livremente ao se imitarem umas às outras [...]
é bem mais importante que aquela que elas recebem e padecem à força. Só se explica um tal erro
atando-o a este outro segundo o qual um fato social, enquanto social, existe fora de todas as
suas manifestações individuais. Infelizmente, objetivando radicalmente a distinção, ou
melhor, a separação integralmente subjetiva do fenômeno coletivo e dos atos particulares
que o compõem, o Sr. Durkheim nos lança em plena escolástica. Sociologia não quer di-
zer ontologia. Tenho muita dificuldade em compreender, confesso, como é possível que,
“descartados os indivíduos, resta a sociedade”. [...] Iremos voltar ao realismo da Idade
Média? Pergunto-me que vantagem há, sob pretexto de depurar a sociologia, em esvaziá
-la de todo seu conteúdo psicológico e vivo. Parece que se está em busca de um princípio
social onde a psicologia absolutamente não entra, expressamente criado para a ciência
que se fabrica, e que me parece bem mais quimérico ainda que o antigo princípio vital.
(Tarde 1895c: 61-62)

Decano:

48 O debate entre Tarde e Durkheim


[Temos, então, desacordos particularmente nítidos sobre a autonomia da sociolo-
gia e sobre o poder de coerção dos fatos sociais, e porque é o realismo que está em jogo,
chegamos aqui, parece-me, à grande questão da relação entre as partes e o todo.]

Durkheim:

Como a sociedade não é composta senão de indivíduos, o senso comum julga que a
vida social não pode ter outro substrato que a consciência individual; sem isso, ela parece
solta no ar e pairando no vazio. Entretanto, o que se julga tão facilmente inadmissível
quando se trata dos fatos sociais é normalmente admitido nos outros reinos da natureza.
Toda vez que ao se combinarem elementos quaisquer produzem, por sua combinação,
fenômenos novos, cumpre conceber que esses fenômenos estão situados, não nos ele-
mentos, mas no todo formado por sua união. A célula viva nada contém senão partículas
minerais, assim como a sociedade nada mais contém além dos indivíduos; no entanto,
é evidentemente impossível que os fenômenos característicos da vida residam em áto-
mos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e de azoto. […] Ela está no todo, não nas
partes. […] Apliquemos esse princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese
sui generis que constitui toda sociedade produz fenômenos novos, diferentes dos que se
passam nas consciências solitárias, cumpre admitir que esses fatos específicos residem
na sociedade mesma que os produz, e não em suas partes, isto é, em seus membros.
(Durkheim 1901: 21-22)

Tarde:

[Reconheço-o de boa vontade.] Quando se considera uma destas grandes coisas


sociais, uma gramática, um código, uma teologia, o espírito individual [é verdade!] parece
tão pouca coisa diante destes monumentos que a idéia de ver neles o único construtor
destas catedrais gigantescas parece ridícula a certos sociólogos, e, sem se aperceber que
assim se renuncia a explicá-los, é perdoável [reconheço-o!] chegar a dizer que estas são
obras eminentemente impessoais, - daí é apenas um passo para pretender, com meu
eminente adversário, [o Sr.,] Sr. Durkheim, que, longe de serem funções do indivíduo,
elas são seus fatores, que elas existem independentemente das pessoas humanas e as
governam despoticamente projetando sobre elas sua sombra opressiva. Mas como estas
realidades sociais – pois, se eu combato a idéia do organismo social, eu estou longe de
contradizer a de certo realismo social, sobre o qual seria necessário se entender – como,
eu o repito, estas realidades sociais são feitas? Vejo bem que, uma vez feitas, elas se im-

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 49


põem ao indivíduo, algumas raras vezes por constrangimento, mais freqüentemente por
persuasão, por sugestão, pelo prazer singular que experimentamos, desde o berço, de
nos impregnar de exemplos dos milhares de modelos do ambiente, como criança a sugar
o leite de sua mãe. Vejo bem isso, mas como estes monumentos prestigiosos de que falo
foram construídos, e por quem, se não foram por homens e esforços humanos? (Tarde
1898: 124-125)

Durkheim:

É tão habitual aplicar às coisas sociológicas as formas do pensamento filosófico, que


muitos viram nessa definição preliminar uma espécie de filosofia do fato social. Disseram
que explicávamos os fenômenos sociais pela coerção, do mesmo modo que o Sr. Tarde
os explica pela imitação. Não tínhamos uma tal ambição e não nos ocorreu sequer que
pudessem atribuí-la a nós, por ser contrária a todo método. O que propúnhamos era não
antecipar por uma visão filosófica as conclusões da ciência, mas simplesmente indicar em
que sinais anteriores é possível reconhecer os fatos que ela deve examinar, a fim de que o
cientista saiba percebê-los onde se encontram e não os confunda com os outros. Tratava-
se de delimitar o campo da pesquisa tanto quanto possível, não de se envolver numa
espécie de intuição exaustiva. Assim aceitamos de muito bom grado a censura feita a essa
definição, de não exprimir todos os caracteres do fato social e, por conseguinte, de não
ser a única possível. Não há nada de inconcebível, com efeito, em que o fato social possa
ser caracterizado de várias maneiras diferentes; não há razão para que ele tenha apenas
uma propriedade distintiva. Tudo o que importa é escolher a que parece a melhor para
o objetivo proposto. É bem possível, até, empregar simultaneamente vários critérios,
conforme as circunstâncias. Nós mesmos reconhecemos ser às vezes necessário isso em
sociologia, pois há casos em que o caráter de coerção não é facilmente reconhecível. O
que é preciso, já que se trata de uma definição inicial, é que as características utilizadas
sejam imediatamente discerníveis e possam ser percebidas antes da pesquisa. Ora, é essa
condição que não cumprem as definições que às vezes opuseram à nossa. (Durkheim
1901: 20-21)

Tarde:

O problema é que a observação é absolutamente contrária a esta hipótese. Aqui,


na sociologia, nós temos, por um privilégio singular, o conhecimento íntimo do elemento
que é nossa consciência individual assim como do composto que é a reunião das cons-

50 O debate entre Tarde e Durkheim


ciências, e não se pode aqui tomar as palavras pelas coisas. Ora, neste caso constatamos
claramente que, descartado o individuo, o social não é nada, e que não há nada, absolu-
tamente nada na sociedade que não exista, em estado de fragmento e de repetição contí-
nua, nos indivíduos vivos, ou que não tenha existido nos mortos que os precederam. […]
[De resto,] o que há nas profundezas da molécula química, da célula viva? Nós não sa-
bemos. Ignorando-o, como então podemos afirmar que, logo que estes seres misteriosos
se reencontram de certa maneira, ela mesma desconhecida, e fazem aparecer aos nossos
olhos fenômenos novos, um organismo, um cérebro, uma consciência, houve, a cada grau
vencido desta mística escala, uma aparição brusca, criação ex nihilo do que há pouco não
existia, mesmo em germe? Não é provável que, se conhecêssemos em sua intimidade
estas células, estas moléculas, estes átomos, estas incógnitas do grande problema tão co-
mumente consideradas como dadas, nós encontraríamos simplesmente a exteriorização
de fenômenos em aparência criados pelo seu relacionamento e que, presentemente, nos
maravilham? Observem o enorme postulado implicado por estas noções correntes sobre
as quais se apóia expressamente o Sr. Durkheim para justificar sua quimérica concepção;
este postulado é que a simples relação de vários seres pode se tornar ela mesma um novo
ser freqüentemente superior aos outros. É curioso [é curioso!] ver espíritos que se van-
gloriam de ser sobretudo positivos, metódicos, que perseguem por toda parte a própria
sombra do misticismo, aferroarem-se a tão fantástica noção. (Tarde 1895a: 75-76)

Durkheim:

Um pensamento comum a todas as consciências particulares ou um movimento


repetido por todos os indivíduos não são por isso fatos sociais. É tão pouco a repetição
que os constitui que eles existem fora dos casos particulares onde eles se realizam. Cada
fato social consiste seja em uma crença, seja em uma tendência, seja em uma prática que
é aquela do grupo considerado coletivamente e que é uma coisa bem diferente das formas
sob as quais ele se refrata nos indivíduos. (Durkheim 1894: 08)

Tarde

Como [uma coisa social] poderia se refratar antes de existir, e como ela poderia
existir, falemos de modo inteligível, fora de todos os indivíduos? A verdade é que uma
coisa social qualquer [...] se transmite e passa, não do grupo social considerado coleti-
vamente para o indivíduo, mas sim de um indivíduo [...] a um outro indivíduo, e que,
nesta passagem de um espírito para um outro espírito, ela se refrata. O conjunto destas

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 51


refrações, a partir de um impulso inicial devido a um inventor, a um descobridor, a um
inovador ou modificador qualquer, anônimo ou ilustre, é toda a realidade de uma coi-
sa social em um momento dado; realidade que vai mudando como toda realidade, por
nuanças insensíveis; o que não impede que estas variedades individuais liberem uma
resultante coletiva, quase constante, que à primeira vista assombra o olhar e dá lugar à
ilusão ontológica do Sr. Durkheim. Não há que duvidar, é uma verdadeira ontologia esco-
lástica que o sábio escritor pretende substituir na sociologia a psicologia que ele combate.
(Tarde 1895a: 66-67)

Durkheim

O único meio de contestar essa proposição seria admitir que um todo é qualita-
tivamente idêntico à soma de suas partes, que um efeito é qualitativamente redutível à
soma das causas que o engendraram, o que equivaleria a negar qualquer mudança ou a
torná-la inexplicável. Houve quem chegasse, no entanto, a sustentar essa tese extrema,
mas para defendê-la só foram encontradas duas razões realmente extraordinárias. Foi
dito primeiro que, [eu vos cito, caro colega,] “em sociologia, nós temos, por um privilégio
singular, o conhecimento íntimo do elemento que é nossa consciência individual assim
como do composto que é a reunião das consciências”; segundo que, por essa dupla intros-
pecção, [você acaba de redizê-lo,] “constatamos claramente que, descartado o individual,
o social não é nada”. (Durkheim 1897b: 350-351)

Decano:

[Creio que compreendemos o que vos separa e que é inútil prosseguir nesta via:
vocês absolutamente não se entendem. Mas parece-me que o Sr. Durkheim deve respon-
der a esta grave acusação de “misticismo”, pois a palavra não vos parece demasiado forte?
Isto se deve ao modo como cada um de vocês compreende o papel da contingência?]

Durkheim:

Para [o Sr.] Tarde [...] todos os fatos sociais são o produto de intervenções indi-
viduais, propagadas por imitação. Toda a crença como toda a prática teriam por origem
uma idéia original, saída de qualquer cérebro individual. Produzir-se-iam diariamente
milhares de invenções deste gênero. Somente, enquanto a maior parte aborta, algumas

52 O debate entre Tarde e Durkheim


há que têm êxito; elas são adotadas pelos outros membros da sociedade, quer seja porque
lhes parecem úteis, quer seja porque o seu autor está investido duma autoridade particu-
lar que se comunica a tudo o que provém dele. Uma vez generalizada, a invenção deixa
de ser um fenômeno individual para se transformar num fenômeno coletivo. Ora, não
existem ciências das invenções, tal como [o Sr.] Tarde as concebe; pois elas só são possí-
veis graças aos inventores, e o inventor, o gênio, é o “acidente supremo”, puro produto do
acaso. (Durkheim 1900: 119)

Tarde:

[Inversamente] o Sr. Durkheim poupa-nos estes terríveis quadros. De acordo com


ele, nada de guerras, de massacres, de anexações brutais. Tem-se a impressão ao lê-lo
que o rio do progresso correu sobre um leito de espuma, sem corredeira nem salto peri-
goso [...]. Visivelmente, de resto, ele está inclinado a julgar a história em netuniano, não
em vulcaniano, a ver por todo lado formações sedimentárias e não erupções ígneas. Ele
nada concede ao acidental, ao irracional, esta face mascarada do fundo das coisas, nem
mesmo ao acidente do gênio. (Tarde 1893: 187)

Durkheim:

Certamente, uma vez conhecido o gênio, podem-se procurar quais são as causas
que nele favorecem as combinações mentais de que resultam as idéias novas, e é cer-
tamente a isso que [o Sr.] Tarde chama as leis da invenção. Mas o fator essencial de
qualquer novidade é o próprio gênio, a sua natureza criadora, e ela é produto de causas
fortuitas. Por um lado, visto ser nele que se encontra a fonte misteriosa do “rio social”, o
acidente está portanto na base dos fenômenos sociais. Não há necessidade absoluta que
tal crença ou tal instituição só apareçam em determinado momento da história e em de-
terminado meio social; consoante o acaso faz nascer o inovador mais tarde ou mais cedo,
a mesma idéia leva séculos a germinar ou rebenta de vez. Há assim toda uma categoria de
invenções que se podem suceder numa ordem qualquer, são as que não se contradizem,
mas que, pelo contrário, se entreajudam. [...] Assim, a noção de lei, que Comte tinha fi-
nalmente [laboriosamente] conseguido introduzir na esfera dos fenômenos sociais e que
os seus sucessores se tinham esforçado por precisar e consolidar, aparece aqui como que
obscurecida e velada; e a imaginação, por ser projetada nas coisas, passa a ser admitida
ao pensamento. (Durkheim 1900: 132)

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 53


Tarde:

[Eu vos cito mais uma vez:] “a causa determinante de um fato social deve ser bus-
cada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os estados da consciência individual”.
Apliquemos: a causa determinante da rede de nossas estradas de ferro deve ser buscada
não nos estados de consciência de Papin, de Watt, de Stephenson e de outros, não na sé-
rie lógica de concepções e de descobertas que estes grandes espíritos possuem, mas antes
na rede de rotas e nos serviços de malas postais que existiam anteriormente. […] Há um
fetiche, um deus ex machina, do qual os novos sociólogos fazem uso como de um abre-te
sésamo toda vez que eles estão embaraçados, e é tempo de assinalar este abuso que real-
mente se torna inquietante. Este talismã explicativo é o meio. [Ah!] Quando esta palavra
é solta, tudo é dito. O meio é a fórmula para todos os fins cuja ilusória profundidade serve
para recobrir o vazio da idéia. Também não deixaram de nos dizer, por exemplo, que a
origem de toda evolução social deve ser exclusivamente solicitada às propriedades “do
meio social interno”. [...] Quanto a este meio-fantasma que nós invocamos a bel prazer,
ao qual emprestamos todo tipo de maravilhosas virtudes para nos dispensar de reconhe-
cer a existência dos gênios reais e realmente benfeitores pelos quais vivemos, nos quais
nos movemos, sem os quais nada seríamos, expulsemo-lo o mais rapidamente de nossa
ciência. O meio é a nebulosa que, de perto, se resolve em estrelas distintas, de grandezas
desiguais. (Tarde 1895a: 78-79)

Decano:

[Mas então, se eu compreendo bem todos os dois, vocês estão em desacordo não
somente sobre o papel da inovação e do gênio na história, mas também sobre a própria
questão do que deve ser uma ciência?]

Durkheim:

A teoria [do Sr.] Tarde aparece como a própria negação da ciência (Durkheim
1895a: 86-87). Com efeito, ela coloca o irracional e o milagre na base da vida e, por con-
seguinte, da ciência social. Se adotamos o ponto de vista [do Sr.] Tarde vê-se que os fatos
sociais são o resultado, na maior parte dos casos, de causas simplesmente mecânicas,
ininteligíveis e estrangeiras a toda finalidade, pois não há nada mais cego do que a imita-
ção. (Durkheim 1895a: 85) Aqui a indeterminação é erigida em princípio. Já não se trata

54 O debate entre Tarde e Durkheim


mais, portanto, da ciência. Já não se trata mesmo desta filosofia metódica que Comte
havia tendo instituir; é um modo bem particular de especulação, intermediário entre a
filosofia e a literatura, onde algumas idéias teóricas, muito gerais, desfilam por todos os
problemas possíveis. (Durkheim & Fauconnet 1903: 479)

Tarde:

Isso não é de modo algum apelar ao mistério, mas sim àquela profunda faculdade,
muito pouco apreciada, de afirmar para além do horizonte dos fatos e de não ignorar,
pelo menos, o que não se pode conhecer. Se afirmar o desconhecido é utilizar nossa igno-
rância, negar o desconhecido é ignorar duas vezes. (Tarde 1910: 41) Digamos mesmo que
a idéia-mãe do Sr. Durkheim [...] repousa sobre uma pura concepção de seu espírito que
ele confundiu com uma sugestão dos fatos. Ela só apresenta, em todo caso, uma verda-
de bem parcial, bem relativa, bem insuficiente como fundamento único ou principal de
uma teoria sociológica. [...] Pode-se então se espantar da confiança que ela inspira ao Sr.
Durkheim e da virtude que ele lhe presta de nos conduzir necessariamente a uma Moral
e a uma Justiça mais alta ou mais humana. (Tarde 1893: 189)

Durkheim:

Como o diz o Sr. Tarde, [...], a origem de nosso diferendo está em outro lugar.
Antes de tudo ela está no fato de que eu acredito na ciência e o Sr. Tarde não acredita
nela. Pois é não acreditar nela reduzi-la a não ser mais do que uma diversão intelectual,
boa para nos ensinar a respeito do que é possível e impossível, mas incapaz de servir à
regulamentação positiva da conduta. Se ela não tem outra utilidade prática, ela não vale
o que custa. Caso então acredite desarmar assim seus recentes adversários, equivoca-se
estranhamente; na verdade se lhe entrega as armas. Sem dúvida, a ciência assim enten-
dida não mais poderá frustrar a expectativa dos homens; mas é que os homens não mais
esperarão grande coisa dela. Ela não será mais exposta a ser acusada de falência; mas é
que se terá declarado-a perpetuamente menor e incapaz. Não vejo o que ela ganha com
isso e o que aí se ganha. Pois o que se coloca desta maneira acima da razão, é a sensação,
o instinto, a paixão, todas as partes baixas e obscuras de nós mesmos. Que nos sirvamos
disso quando não podemos fazer de outro modo, nada melhor. Mas quando aí vemos ou-
tra coisa que não algo provisório que paulatinamente deve ceder lugar à ciência, quando
lhe atribuímos uma preeminência qualquer, mesmo quando não há franca referência a
uma fé revelada, somos teoricamente místicos mais ou menos conseqüentes. Ora, o mis-

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 55


ticismo é o reino da anarquia na ordem prática porque é o reino da fantasia na ordem
intelectual. (Durkheim 1895b: 523)

Tarde:

É demandando à ciência mais do que ela pode dar, é em lhe emprestando direitos que
ultrapassam seu alcance, já muito vasto, que é possível acreditar em sua pretensa falha. A ciência
jamais falhou às suas promessas verdadeiras, mas tem circulado sob seu nome uma multidão de
notas promissórias com sua falsa assinatura e que ela é incapaz de pagar. É inútil aumentar seu
número. (Tarde 1895b: 162)

Durkheim:

Em presença dos resultados aos quais chegou até o momento a história compa-
rada das instituições, não é possível negar pura e simplesmente a possibilidade de um
estudo científico das sociedades; o Sr. Tarde, além disso, entende fazer ele mesmo uma
sociologia. Só que ele a concebe de uma maneira tal que ela cessa de ser uma ciência
propriamente dita para se tornar uma forma muito particular de especulação onde a
imaginação desempenha um papel preponderante, onde o pensamento não se considera
submetido nem às obrigações regulares da prova nem ao controle dos fatos. (Durkheim
1900: 130-131)

Tarde:

O Sr. Durkheim crê honrar a ciência lhe emprestando o poder de governar sobe-
ranamente a vontade, isto é de não apenas lhe indicar os meios mais adequados para
alcançar seu fim dominante, mas ainda de lhe demandar sua orientação em direção à
estrela polar da conduta. (Tarde 1895b: 161-162) Se eu tivesse que formular uma máxima
a este respeito, ela de algum modo estaria relacionada não só às condições intelectuais
requeridas pela descoberta da verdade, mas também às morais. Um pouco de modéstia
e de simplicidade digna cabe a uma ciência adolescente como a um jovem homem que
entra na vida; ela deve evitar o tom doutrinário e o jargão de escola. É necessário então
lhe fornecer uma disposição de espírito benevolente e familiar e, também e antes de tudo,
o amor vivo e alegre pelo tema. [...] A primeira condição para ser sociólogo é amar a vida
social, simpatizar com os homens de todas as raças e de todos os países reunidos em tor-

56 O debate entre Tarde e Durkheim


no de um lar, buscar com curiosidade, descobrir com prazer o que há de devoção afetuosa
na cabana do mais feroz dos selvagens, às vezes mesmo covil de vilão; enfim, de jamais
crer facilmente na estupidez, na absoluta malícia do homem em seu passado, nem em sua
perversidade presente, e de jamais se desesperar quanto ao seu futuro. (Tarde 1895a: 94)

Durkheim:

O Sr. Tarde confunde […] questões diferentes, e [eu me] recuso a dizer qual-
quer coisa sobre um problema [...] que não tem nada a fazer na discussão. (Durkheim
1903: 165)

Decano:

[Creio que podemos parar por aqui. Lembro que este debate contraditório entre
nossos dois eminentes colegas serviu de introdução ao curso de sociologia da École des
hautes études sociales durante o qual os alunos terão várias ocasiões para discutir os pres-
supostos. Creio que é chegado o momento de vivamente agradecer a nossos oradores].

TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 57


Referências bibliográficas

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58 O debate entre Tarde e Durkheim


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TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje. 59


The debate between Tarde and Durkheim

ABSTRACT

A momentous debate concerning the nature of so- tion avec Tarde]” (Tarde 1903, Durkheim 1903).
ciology and its relation to other sciences took place The present recension of the debate, therefore, is
between Gabriel Tarde and Émile Durkheim at the based on a script consisting of quotations from the
École des Hautes Études Sociales in 1903. Unfor- works of Gabriel Tarde and Émile Durkheim, arran-
tunately the only available record of the event is a ged to form a dialogue. All text, save that in squa-
brief overview published in French under the title re brackets, consists of quotations from published
“La Sociologie et les sciences sociales [confronta- works by Émile Durkheim and Gabriel Tarde.

keywords

Gabriel Tarde, Émile Durkheim, sociology, social theory, controversy.

Sobre os autores

Eduardo viana Vargas


Professor associado de antropologia da UFMG, onde coordena o Laboratório de Antropologia das
Controvérsias Sociotécnicas (LACS). Entre outros trabalhos publicou Antes Tarde do que nunca: Gabriel
Tarde e a emergência das ciências sociais (Contra Capa) e organizou a coletânea de textos de Gabriel
Tarde intitulada Monadologia e Sociologia e outros ensaios (Cosac Naify).
Contato: evvargas@ufmg.br

Bruno Latour
Antropólogo, sociólogo e filósofo francês, é professor da Science Po, Paris, e da London Scholl of Eco-
nomics, Londres. Pioneiro dos estudos sociais da ciência e tecnologia, é um dos principais proponentes
da Actor Network Theory (Teoria do Ator-Rede). É autor de inúmeros livros publicados em mais de 20
países, entre os quais se contam Jamais Fomos Modernos (34 Letras), Reagregando o Social (EDU-
FBA), Ciência em Ação (UNESP), A Esperança de Pandora (EDUSC), Pequena Reflexão sobre o culto
moderno dos deuses feitiches (EDUSC), Políticas da Natureza (EDUSC) e, mais recentemente, Enquête
sur les modes d’existence : Une anthropologie des Modernes (La Decouvert). Foi, com Peter Weibel,
curador das exposições Iconoclash, beyond the image wars in science, religion and art, e Making Thin-
gs Public, the atmospheres of democracy.
Contato: www.bruno-latour.fr/contact

Bruno Karsenti
Filósofo e sociólogo francês, foi professor da Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne e hoje atua na
École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Entre os vários trabalhos que escreveu desta-
cam-se D´une philosophie à l´autre. Les sciences sociales et la politique des modernes (Gallimard), La
société em personnes. Études durkheimiennes (Economica), Politique de l´esprit: Augste Comte et la

60 O debate entre Tarde e Durkheim


naissance de la science sociales (Hermann) e Marcel Mauss. Le fait social total (PUF).
Contato : exodes@club-internet.fr

Frédérique Aït-Touati
Professora de literatura francesa no St. John´s College da University of Oxford e professora associada
da Science Po. Escreveu Fictions of the Cosmos: Science and Literature in the Seventeenth Century
(University of Chicago Press) que lhe rendeu o Scaglione Prize concedido pela Modern Language Asso-
ciation of America. Co-editou com Anne Duprat o livro Histoires et saviors (Peter Lang) e, com Stephen
Goukroger, Le Monde en Images (Garnier). Contato : frederique.ait-touati@sjc.ox.ac.uk

Louise Salmon
Doutoranda do Centre d’histoire du XIXe siècle da Université Paris I Panthéon-Sorbonne, onde prepara
tese sobre Gabriel Tarde. Publicou Le Laboratoire de Gabriel Tarde (CNRS Éditions) e, com Jacqueline
Carroy, a coletânea de textos inéditos de Gabriel Tarde intitulada Sur le sommeil ou plutôt sur les rêves,
et autres écrits, 1870-1873 (Éditions BHMS). Contato: salmon.louise@gmail.com

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