You are on page 1of 7
fgg 4 xg eevee a aera ere A arte de traduzir guas, através de jornais, livros, revistas e publicagSes de toda a espécie. A maioria dos individuos sé tem acesso a essas idéias e informagoes por meio de tradugao para o seu idioma nacional. O trabalho do tradutor, em nossa época, é um dos trabalhos inte- lectuais de maior importancia e responsabilidade. A imensa maioria da opiniao ptiblica se baseia no que o tradutor escreve, na pressuposi¢ao de que ele “traduz” fielmente o que foi dito ou escrito em lingua estrangeira. Basta refletir um instante so- bre isso, para que nos apercebamos incontinénti da tremenda res- ponsabilidade moral e intelectual que recai sobre o tradutor. No entanto, a maioria das pessoas parece nao ter idéia do que é, realmente, o trabalho do tradutor. Muita gente pensa que basta saber falar uma lingua estrangeira para que se possa tra- duzir um livro escrito nessa lingua. Outros julgam que nao Ihes seria dificil traduzir para o portugués os livros que léem em in- glés, francés, espanhol ou italiano. Puro engano. A profissao de tradutor exige, como todas as profissdes, longo periodo de apren- dizagem. A técnica da tradugao é dificilima. Pode-se quase afir- mar que cada livro estrangeiro apresenta certos problemas pe- culiares. Problemas que exigem solugGes diversas. Ler um livro estrangeiro é uma coisa; traduzi-lo é outra, completamente di- ferente. Muita gente, que ja fez tal experiéncia, sabe disso. Quando eu me encontrava a frente do referido departamento de tradugGes, tive oportunidade de examinar algumas dezenas de candidatos a tradutores. Esse exame se verificava da seguinte maneira: via-se, em primeiro lugar, quais eram os conhecimentos que o candidato tinha das linguas de que pretendia traduzir. Fa- ziam-se perguntas gerais sobre como adquirira ele o conhecimen- to de tais idiomas, se ja tinha alguma pratica de tradugao, quais os estudos que fizera até entao etc. Se o candidato fosse julgado apto a prestar exame, pergunta- vamos-lhe que espécie de livros gostaria de traduzir: biografias, histéria, viagens, livros de aventuras, romances policiais, obras de autores classicos ou modernos. 23 Brenno Silveira Essa pergunta era sumamente importante. Todas as edito- ras sabem, por experiéncia, que os melhores tradutores podem fazer péssimas tradugées. ~ Como? ~ perguntaré o leitor. Quando sao encarregados de traduzir livros de algum género com o qual nao estao familiarizados. Todos nés, depois de adultos, encaminhamos nossos estudos, nosso aperfeigoamento intelec- tual, nossa cultura, em determinado sentido. E esse sentido é sempre indicado pelas nossas preferéncias ou necessidades pes- soais. Uns sao obrigados, pela profissao que escolheram, a ler quase que exclusivamente livros técnicos ou especializados: fisi- ca, quimica, histéria natural, geografia, arquitetura, artes plasti- cas, ou de outros setores restritos do conhecimento. Em geral, s6 ocasionalmente, como simples recreagao, léem livros que nao estejam relacionados com a sua profissao ou atividade habitual. Suponhamos que uma dessas pessoas fosse encarregada da tradugao de um livro de ficgao: um romance policial ou uma no- vela de fundo psicolégico; seria um fracasso. Por maiores que fossem os seus conhecimentos da propria lingua materna e da lingua estrangeira da qual traduzisse, seria, com toda a probabi- lidade, um fracasso. Tomemos, agora, 0 exemplo contrario: su- ponhamos que a uma criatura culta, de apurada cultura litera- ria, afeita 4 leitura de autores classicos, fosse dada para traduzir uma obra especializada; 0 resultado seria idéntico, Conhego um tradutor que pode ser considerado, sem ne- nhum exagero, um dos bons tradutores que o Brasil possui. Ho- mem de cultura, sensibilidade, conhecedor profundo da litera- tura, da histéria e da lingua de alguns paises europeus. Quanto a lingua portuguesa, conhece-a como poucos. E as suas prefe- réncias literdrias? Jean-Paul Sartre? André Malraux? William Faulkner? Alberto Moravia? Nao. Absolutamente. Somente os grandes escritores do passado: Balzac, Daudet, Flaubert, Carlyle, Dickens, Dostoievski, Eca, Ramalho Ortigao, Camilo. 24 A arte de traduzir Pois bem. Esse tradutor brasileiro a que me refiro, apés tra- duzir, com inexcedivel maestria, dois ou trés famosos novelistas ingleses do perfodo elizabetano, fracassou de maneira fragorosa ao verter para o portugués uma novela de Sinclair Lewis. Era tao defeituosa a sua tradugao que os editores tiveram de inutiliza- la. Depois, deram-lhe um livro famoso da primeira metade do século XIX. E ele o traduziu estupendamente. Por qué? Porque tal obra pertencia a uma época ea um géne- ro de literatura com os quais estava familiarizado. Dai se infere que, além de cultura especializada nao sé quanto ao tema, mas, também, quanto a época em que foi escrita a obra que tem em maos, o tradutor deve possuir conhecimento pro- fundo do idioma do qual traduz, perfeito dominio da lingua para a qual traduz e — condi¢ao primordial — cultura geral. As melhores tradu¢Ges sao feitas, quase sempre, por tradu- sonalidade litera- tores que conhecem a obra, 0 ambiente e a pe ria do autor, tal como esta se reflete em seus livros. Sao feitas por tradutores que conhecem a histéria, a literatura e as tendén- cias literarias, sociais, econdmicas e filos6ficas da época e do pais em que viveu 0 autor. Claro é que s tenha tal conhecimento. Mas nao estamos tratando, aqui, de um e pode traduzir um livro qualquer sem que se livro qualquer. Estamos tratando da arte da tradugdo. Des a arte, sumamente dificil, que permite que as grandes criagdes do espirito humano transponham todos os limites geograficos, ra- ciais e lingiiisticos. Dessa arte que permite que a Divina comé- dia, que os dramas e as comédias de Shakespeare, que a obra de Racine, de Corneille, que 0 Dom Quixote — para somente citar algumas das criagdes maximas do pensamento — possam ser lidos nao apenas pelos povos de lingua italiana, inglesa, fran- cesa ou espanhola, ou pelos que conhecem tais idiomas, mas pela humanidade toda, da qual tais obras se tornaram patriménio comum. 25 Brenno Silveira Um tradutor mediocre — sem os conhecimentos essenciais da profisséo — podera traduzir, mediocremente, um best-seller popular, um romance juvenil, um livro de aventuras. Mas sé um verdadeiro tradutor poder verter para a sua lingua materna, con- servando-lhes o sabor, um Balzac, um Stendhal, um Anatole France, um Dickens, um Tolstoi. Dentre todas as profiss6es intelectuais, a de tradutor 6, sem dtivida, uma das mais penosas. O tradutor, em suas longas ho- ras de trabalho diario, esta sempre sozinho, debrucado sobre a sua maquina de escrever ou as suas obras de consulta. Traduzir um livro por diletantismo, com lentidao, por simples prazer ou exercicio, sem 0 prazo em geral estipulado pelo editor, é tarefa que pode ser sumamente agradavel. Mas traduzir livro apés livro, durante anos, dedicando-se a esse trabalho longas horas do dia ou da noite, sem interrup¢ao, é tarefa que poucos suportam. Conhe¢o varios casos de pessoas que, apds a tradugao de um ou dois livros, se sentem completamente exaustas, incapazes de traduzir sequer uma pagina. Isto, alias, As vezes acontece com bons tradutores. Ainda recentemente, um meu amigo, tradutor de mais de uma dezena de obras das mais variadas ~ algumas de cerca de 800 paginas -, apareceu, uma manha, nervoso e depri- mido, ante o diretor de uma de nossas grandes editoras. Afun- dado numa cadeira, angustiado, disse-Ihe que nao sabia o que Ihe estava acontecendo, pois na noite anterior nao conseguira traduzir uma tinica pagina. O texto em lingua inglesa — idioma que conhece profundamente — apresentara-se-lhe como se est vesse escrito numa lingua desconhecida. Lia varias vezes a mes- ma frase e nao lhe apreendia o sentido. Tentara, repetida e inu- tilmente, traduzir uma simples frase. Em vao. Nao Ihe entendia o sentido. Estava completamente esgotado pelo continuo esfor- ¢o despendido na tradugao de livros anteriores. O editor recomendou-lhe algumas semanas de repouso. Nosso amigo foi para uma fazenda e, ao regressar, traduziu, com a habilidade e a eficiéncia de sempre, 0 mesmo livro que lhe pa- recera escrito numa lingua estranha. 26 A arte de traduzir Narro aqui este episddio para que ninguém se iluda quanto ao trabalho do tradutor. E tarefa pesada, estafante, que requer, além dos requisitos j4 enumerados, infinita paciéncia. Paciéncia, para penetrar no sentido de certas frases ou de certos trechos intrincados; paciéncia, para procurar, em dicionarios, enciclopé- dias ou obras especializadas, o significado exato de uma simples palavra. As vezes, o sentido da frase é claro, mas ha nela uma pa- lavra que nao se conhece. O tradutor integro, intelectualmente honesto, nao a omite jamais, mesmo que a omissao nao prejudi- que a compreensao da frase. Anota-a cuidadosamente, para procuré-la ao fim do trabalho diario; ou, entao, procura-a no mes- mo instante. E, com freqiiéncia, perde muito tempo para desco- bri-la. Tempo que daria para a tradugao de uma ou duas paginas. Todavia, com o decorrer do tempo, o tradutor experimenta- do vai, gradativamente, prescindindo de dicionarios, cujo manu- seio se Ihe torna cada vez menos necessario. Mas, para que 0 vocabulario das linguas que conhece se enrique¢a dessa maneira, serdo necessarios varios anos no exercicio da profissao. £ preci- so que ja haja traduzido varios livros; é preciso que os seus dicio- narios apresentem sinais de alguns anos de uso. E preciso que ja seja, na acep¢ao perfeita do termo, um tradutor. ‘Talvez convenha dizer que, dos trechos de tradugSes exami- nados neste livro, nenhum foi “catado a dedo”. Sao todos tre- chos colhidos ao acaso. Eu abria numa pagina qualquer da obra a ser examinada e confrontava 0 original com o trecho que me caja diante dos olhos. Se a tradugao era boa, aproveitava-a como exemplo de tra- ducdo bem-feita. Se era defeituosa, infiel, com erros, acréscimos, omissdes ou quaisquer outros sendes, examinava-a da mesma maneira. Tanto as boas como as mas tradugGes se adaptavam perfeitamente a finalidade deste livro, que é a de mostrar como se deve e como nao se deve traduzir. 27 A arte de traduzir “E em suas tradugGes”, perguntar-me-a vocé, “nao ha sendes? Sao, todas elas, tao perfeitas quanto se possa desejar?” Embora um tanto constrangido, sou obrigado, para responder A sua pergunta, a revelar a vocé um segredo profissional — um segredo de tradutor: tenho encontrado, em minhas tradugées, erros que me fazem corar. Isso para nao falar dos periodos que, as vezes, involuntariamente, “pulo”, e para os quais os revisores, depois, me chamam a aten¢ao. Tais erros e omissées involuntarias ocorrem, em geral, quando me encontro fatigado, apds varias horas de trabalho. ‘ar, porém, sem falsa modéstia, que, em geral, nao se trata de falhas graves, como algumas que cometi em mi- nhas primeiras tradug6es. Trata-se, quase sempre, de frases que poderiam ser melhoradas, de express6es que o autor certamente Devo conf nao empregaria, se as escrevesse em portugués. Expresses do mesmo género a que pertence esse “um bocejo em poténcia” e, na maioria das vezes, de frases omitidas involuntariamente. Br a vocé como é que isso acontece. Vocé traduz trés ou quatro horas s omitidas involuntariamente? Isso mesmo. Vou explicar consecutivas, com intervalos de apenas alguns minutos, durante 0s quais vocé toma uma xicara de café ou fuma mais um cigarro, junto a janela, para espairecer. Seus olhos, com toda probabili- dade jA estarao cansados ~ principalmente se vocé tiver 0 mau habito de traduzir 4 noite. Mas vocé precisa traduzir um pouco mais, pois, do contrario, nao terminara a tradugao dentro do prazo constante do contrato que assinou com a editora. Entao, continua a traduzir. Devido ao cansa¢o, sua eficiéncia j4 se acha diminuida. Em lugar de traduzir uma pdgina em 25 ou 30 minutos, vocé ja leva 40, ou talvez mesmo 50. As idéias do autor, que, a principio, Ihe pareceram expostas coma maxima clareza, em frases elegantes ¢ fluentes, j4 agora nao lhe parecem nem tio claras nem tao fluen- tes. Para as ler, vocé é obrigado a fixar mais a vista no texto que tem a sua frente, o qual, graficamente, se torna cada vez menos nitido. E entao que, na maioria das vezes, ocorrem as omiss6es 9 Brenno Silveira involuntarias, as frases “forgadas”, que, embora gramaticalmente corretas, nao se coadunam com a sintaxe portuguesa — enfim, uma série de sendes que, de outra forma, nao passariam desper- cebidos. Chamo, pois, a sua atengao para este ponto: se vocé quiser ser tradutor eficiente, aprenda a ter método em seu trabalho. ‘Traduza, de preferéncia, pela manha - e nunca mais de trés ho- ras didrias. As pessoas que jamais traduziram livros costumam perguntar aos tradutores: “Quantas paginas vocé traduz por dia?”. Mas vros de tradugao dificil. Se o livro for de tradugao facil, pode-se sa é uma pergunta tola. Ha livros de tradugao facil ¢ li- traduzir duas paginas no espago de tempo que se levaria para tra~ duzir apenas uma pagina de livro mais dificil. Além disso, hé li- vros compostos, tipograficamente, de varias maneiras: uns, pos- suem margens amplas, corpo grande, maior espaco entre cada linha, menos palavras em cada pagina. Outros, sao de letra miti- da, composicao compacta. Além disso, é claro que o género da obra também importa: uma simples narragdo de viagem é mais facil de traduzir-se que uma novela de Sir Walter Scott. Um livro de James Hilton, por exemplo, pode ser traduzido em muito menos tempo do que uma novela de Nathaniel Howthorne. E assim por diante. Em caso de inadiavel necessidade, um bom tradutor poderia traduzir dez, doze ou, mesmo, quinze paginas por dia. Poderia, talvez, terminar a tradugao de um livro num terco do tempo que em geral gasta na execugao de trabalho semelhante. Mas isso se se tratasse apenas de um livro. Se tivesse de traduzir, como os tradu- tores profissionais em geral fazem, livro apés livro, isso nao seria possivel. Se vocé é jovem e gosta de esportes, jf compreendeu a razo por que é que isso nao seria possivel. Numa corrida de cem ou duzentos metros rasos, 0 corredor da, desde a partida, tudo o que pode. Mas se se trata de uma maratona ~ se tiver de percor- rer grande distancia — a sua atitude ser4 outra, completamente diversa. Teré de poupar forcas. 120

You might also like