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11/08/2022 21:21 A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de Terror - Nathaniel Hawthorne

A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de


Terror - Nathaniel Hawthorne
- junho 27, 2020

A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI

Nathaniel Hawthorne

(1804 – 1864)

Há muito tempo, um jovem chamado Giovanni Guasconti, oriundo


da região mais meridional da Itália, chegou a Pádua para continuar os
estudos na célebre universidade.

Giovanni possuía apenas alguns ducados e ouro. Por essa razão,


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alojou-se em um sombrio quarto de um velho edifício que não parecia
indigno de ter sido o palácio de um nobre paduano, e no qual se viam
colocadas sobre a porta as armas de uma família extinta havia muito
tempo. O jovem forasteiro, que conhecia o grande poema italiano,
recordou-se de que Dante tinha posto entre os que vivem em eterna
agonia no seu inferno um antepassado dessa família, talvez habitante
daquela casa.

Esta lembrança, junto à melancolia, tão natural no rapaz que sai,


pela primeira vez, da esfera em que nasceu, arrancou de Giovanni um
profundo suspiro quando vislumbrou o desolado aposento.

— Virgem santa! — exclamou a velha Lisabetta, que, encantada da


singular beleza do rapaz, se esforçava por dar ao quarto melhor aspecto.
— Senhor , o que significa tal suspiro, saído de um jovem coração? Esta
velha mansão lhe parece demasiadamente sombria? Nesse caso, pelo
amor de Deus, chegue à janela, e verá um Sol tão belo quanto o que
deixou em Nápoles.

Guasconti seguiu mecanicamente o conselho da velha mulher. Mas


o Sol da Lombardia não lhe pareceu tão alegre como o da Itália
meridional. Não obstante, tal como era, iluminava jardim situado por
baixo da janela, e espargia sua vivificante influência sobre uma grande
variedade de plantas, cultivadas, ao que parecia, com excessivo cuidado.

— Este jardim pertence à casa? — perguntou Giovanni.

— Deus nos livre, senhor, enquanto não produzir outras plantas


além das que nele crescem atualmente! — respondeu Lisabetta. — Não;
esse jardim é cultivado pelas mãos do Sr. Giacomo Rappaccini, famoso
médico, cuja reputação, estou certa, tem chegado a Nápoles. Dizem que
ele extrai dessas plantas remédios tão poderosos quanto os feitiços. Você
verá com frequência o médico, e talvez a senhora, sua filha, ocupados em
coletar as extraordinárias flores que nascem no jardim.

Depois de ter intentado, por todos os meios ao seu alcance, tornar


mais alegre o quarto, a velha retirou-se, encomendando o jovem à
proteção dos santos.

Giovanni não encontrou melhor ocupação que olhar para o jardim


sob a janela.

O aspecto deste parecia-lhe o de um desses jardins botânicos que se


viam em Pádua antes de aparecerem no resto da Itália e do mundo.

Parecia ter sido o jardim de recreio de alguma família opulenta,


porque ao centro viam-se as ruínas de uma fonte de mármore
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porque ao centro viam se as ruínas de uma fonte de mármore
maravilhosamente esculpida, mas tão deploravelmente destroçada que
era impossível descobrir o desenho original naquele caos de dispersos
fragmentos. A água, todavia, continuava fluindo e brilhando ao Sol como
sempre.

O brando murmúrio que chegava à janela do rapaz inspirava-lhe o


pensamento de que uma fonte é um espírito imortal que canta incessante
o seu cântico celeste, indiferente às vicissitudes de quanto o cerca,

importando-lhe pouco que um século lhe faça um corpo de mármore, e


outro deite por terra esse objeto morredouro.

Ao redor do tanque que recolhia as águas, cresciam diversas plantas,


cujas imensas folhas e flores, de admirável magnificência, reclamavam
abundante umidade. Num vaso de mármore, colocado no centro do
tanque, crescia, singularmente, um arbusto dotado de uma profusão de
flores púrpura, e cada uma delas tinha o esplendor e a beleza de uma
pedra preciosa; as flores produziam um espetáculo tão resplandecente
que pareciam suficientes a iluminar o jardim, mesmo que não fizesse sol.
Cada porção do solo era povoado de plantas e ervas que, malgrado
menos belas, não deixavam de revelar cuidados constantes, como se cada
uma delas tivesse virtudes individuais, bem conhecidas pela mente
científica que as cultivava.

Umas estavam colocadas em urnas antigas e ricamente esculpidas;


outras, em vasos ordinários; algumas estendiam-se pela terra como se
serpentes; outras trepavam a grande altura. Uma destas plantas
enroscara-se ao redor da estátua de Vertumnus[1], envolvida desse modo
em um manto de folhagem tão felizmente disposto que poderia servir de
objeto de estudo a um escultor.

Achando-se Giovanni na janela, ouviu um rumor atrás de uma


cortina de folhas, percebendo que alguém trabalhava no jardim.

Sua figura logo surgiu à vista.

Não era um jardineiro comum: era um homem de alta estatura,


magro, pálido e de aparência doentia. Vestia-se de preto. Passava já da
meia idade, a barba era branca como os cabelos e as feições revelavam
inteligência muito cultivada, mas que, mesmo nos dias da mocidade,
nunca puderam expressar muito calor de coração.

O sábio jardineiro examinava com a maior atenção cada planta que


encontrava.

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Parecia que a sua vista lhes penetrava no mais íntimo da natureza,


que observava a maneira como se formavam, e descobria por que uma
folha crescia sob tal forma e outra de uma maneira diferente ou por que
esta flor se distinguia da sua vizinha na cor e perfume.

Contudo, apesar da profunda ciência do jardineiro, não havia a


menor intimidade entre ele e aqueles seres do reino vegetal. Pelo
contrário, evitava tocá-los sem corpo intermediário e, ao aspirar-lhes o
aroma, fazia-o com tal precaução que impressionou desagradavelmente
Giovanni: a cautela do homem era próprias dos que andam em meio a

influências malignas, tais como feras selvagens, serpentes venenosas ou


espíritos infernais que descarregariam sobre ele o açoite de alguma
terrível fatalidade, acaso lhes concedesse um momento de liberdade.

Era coisa singularmente horrível, para a imaginação do rapaz, ver


semelhante ar de inquietação numa pessoa que cultivava um jardim, o
mais simples e inocente trabalho do homem, encanto e ocupação de
nossos primeiros pais antes da sua queda.

Era aquele jardim o Éden do mundo atual? E aquele homem, que via
o mal no que as suas próprias mãos haviam plantado, era o seu Adão?

Enquanto o desconfiado jardineiro arrancava as folhas murchas, ou


cortava os rebentões produzidos pela seiva excessiva, tinha as mãos
cobertas com luvas grossas. E não era esta a única arma defensiva.
Quando chegou onde estava a magnífica planta que embelezava com
suas brilhantes flores a fonte do mármore, tapou com uma espécie de
máscara a boca e o nariz, como se toda aquela beleza encerrasse
malignidade muito mais mortífera.

E, julgando ainda a sua ocupação demasiadamente perigosa,


retrocedeu alguns passos, tirou a máscara e, com a voz de um
tuberculoso, gritou:

— Beatrice! Beatrice!

— Estou aqui, meu pai! O que quer? — respondeu uma voz jovem e
melodiosa que saía da janela oposta. Aquela voz bela, como o pôr do Sol
nos trópicos, fez brotar no pensamento da Giovanni, sem saber por que
motivo, matizes de púrpura e perfumes deliciosos. — O senhor está no
jardim?

—Sim, Beatrice! — respondeu o jardineiro. —E preciso de sua ajuda.

Imediatamente, saiu de um portal esculpido uma jovem vestida com


o brilho da mais esplêndida flor. Era bela como a luz do dia, e tinha em si
tão belas e vivas cores que uma ligeira pincelada a mais seria excessiva
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tão belas e vivas cores que uma ligeira pincelada a mais seria excessiva.
A vida, a força e a saúde cobriam-na em profusão. E a exuberância de
todos estes dons estava, por assim dizer, comprimida e sujeita pela sua
cintura virginal. Indubitavelmente, a imaginação de Giovanni
alimentara-se de ideias mórbidas enquanto estivera contemplando o
jardim, porque a impressão que lhe causou a linda desconhecida foi
como a que experimentara ao contemplar aquelas flores: tão bela, mais
linda ainda que a mais magnífica das flores, mas cujo contato não
poderia ser feito sem luvas e máscaras.

Cruzando as alamedas do jardim, Beatrice tocava nas plantas e


suspirava o cheiro das flores que seu pai tratava com tanta precaução.

—Venha, Beatrice — disse este último —, veja o que há a fazer no


nosso precioso tesouro. Debilitado como estou, seria perigoso chegar-me
tanto como o exigem as circunstâncias. Receio que, a partir de agora, esta
planta ficará sob sua responsabilidade.

— Com prazer eu me encarregarei dela — respondeu a vibrante voz


da jovem, que se inclinou para a magnífica planta, e abriu os braços
como se quisesse abraçá-la. — Sim, minha irmã, meu esplendor. Beatrice
cuidará e servirá a você. E você, em recompensa, dará o seu perfume,
que é para ela como um beijo, como o sopro da vida.

E, dando às suas maneiras toda a ternura de suas surpreendentes


palavras, prestou à planta o cuidado que esta parecia exigir.

Entrementes, Giovanni, na janela, duvidava se via uma menina


ocupada com a sua flor favorita, ou uma irmã cumprindo para com sua
irmã os deveres que carinho inspira.

A cena não foi longa.

Rappaccini — ou porque concluíra os seus trabalhos de jardinagem,


ou porque o seu olhar vigilante descobrira a figura estrangeiro — tomou
o braço de sua filha e retirou-se.

Anoitecia. Parecia que exalações sufocantes se erguiam daquelas


plantas e se insinuavam pela janela aberta. Assim, Giovanni fechou-a,
meteu-se na cama e sonhou com uma soberba flor e uma linda criatura.

A flor e a donzela eram duas. Contudo, formavam apenas uma, e


sob estas duas formas diferentes, este ente estava envolto de um singular
perigo.

A luz da manhã tem uma influência que tende retificar todos os


erros da imaginação, e ainda os do entendimento, que forjamos ao pôr
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do Sol, durante as sombras da noite, ou a claridade menos saudável da


Lua.

Acordando, o primeiro movimento de Giovanni foi abrir a janela e


olhar para o jardim, tão fundo em mistérios por graça dos seus sonhos.
Ficou envergonhado e confuso ao ver quão natural e simples estava tudo
com os primeiros raios do Sol, que douravam as gotas de orvalhos
encerradas nas folhas e flores, e que, realçando a beleza de cada flor rara,
restituíam todos os objetos aos limites do natural. O jovem alegrou-se de

ter, no coração de tão estéril cidade, o privilégio de espraiar a vista por


aquele oásis vegetação magnífica e exuberante.

— Serviria — disse ele a si mesmo — como uma linguagem


simbólica para manter-me em comunhão com a natureza.

É verdade que, naquele momento, não se via o enfermo médico


Rappaccini ou a sua linda filha, de modo que Giovanni não podia
determinar até que ponto a singularidade que atribuía a ambos devia-se
às próprias qualidades destes ou à sua preocupada fantasia, mas se
sentiu inclinado a ver tudo sob mais uma perspectiva mais racional.

Durante o dia, foi dar os seus cumprimentos ao Sr. Pedro Baglioni,


professor de medicina universidade, famoso sábio para o qual levava
uma carta de recomendação. O professor era homem cortês, jovial e de
bom caráter. Convidou o jovem a uma refeição, a quem se mostrou
muito agradável pela alegria familiar da conversação, principalmente
depois de animado com uma ou duas garrafas de vinho de Toscana.
Giovanni, pensando que dois sábios habitantes da mesma cidade deviam
tratar-se familiarmente, procurou ocasião para faltar sobre o médico
Rappaccini. O professor, porém, não lhe respondeu com tanta
cordialidade como imaginara.

— Não conviria a um mestre da divina arte da Medicina — disse


Pietro Baglioni — recusar a um médico de tão eminente habilidade como
Rappaccini os elogios que de justiça merece. Mas, por outra parte, não
agiria conforme a minha consciência se permitisse que um rapaz, filho de
um velho amigo, formasse falsa ideia de um homem que, no futuro,
poderia chegar a ter a sua vida e morte, Giovanni, nas próprias mãos. A
verdade é que o médico Rappaccini é, talvez com uma única excepção,
tão sábio quanto qualquer dos membros da faculdade do Pádua, e de
toda a Itália. Porém, existem graves objeções à sua conduta profissional.

— E quais seriam elas?

— O meu amigo Giovanni padece de alguma enfermidade do corpo


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e da alma que o obriga a ser tão curioso a respeito dos médicos? —
perguntou, sorrindo, o professor. — Quanto a Rappaccini, diz-se (e eu,
que o conheço, posso afirmar a verdade do dito), que se preocupa mais
com a ciência que com a humanidade. Os seus pacientes somente o
interessam como objeto de novas experiências. Com gosto sacrificaria a
vida de um homem, a sua própria, a da pessoa mais querida, para
acrescentar um grão a seu grande monte de conhecimento acumulado.

— Ele me parece, com efeito, um homem terrível — disse Guasconti,


recordando-se da fisionomia fria e inteligente do Rappaccini. — Mas,
venerável professor, o amor à ciência não revela nobreza de espírito?
Existem muitos homens dotados de tão elevado amor à ciência?

— Deus nos livre! — exclamou o professor, um tanto irritado. — A


menos que tenham uma visão mais sadia que a de Rappaccini em
matéria de Medicina. Em sua opinião, todas as virtudes medicinais estão
encerradas nas substâncias que denominamos venenos vegetais. Cultiva-
os ele próprio, e corre o rumor de que tem inventado novas variedades
de venenos, ainda mais horrivelmente deletérios e nocivos do que os
criados pela natureza para castigo do mundo, sem a sua culta assistência.
Não se pode negar que o médico faz menos mal do que podia esperar-se
de tão perigosas substâncias. É preciso declarar que, de vez em quando,
tem realizado, ou parecido realizar, uma cura maravilhosa. Mas, dizendo
o que penso, senhor Giovanni, estes triunfos não devem ser louvados:
talvez sejam fruto do acaso. Deve-se, porém, levar em conta todas as suas
realizações funestas, que podem ser atribuídas justamente à temeridade
de seus intentos.

O jovem não teria aceitado, sem precaução, o parecer do professor


Baglioni se soubesse que, há muito tempo, havia uma disputa
profissional entre ambos os médicos, e que Rappaccini era geralmente
reputado como vencedor. Se o leitor se inclina a julgar por si mesmo,
recomendamos a leitura de certos tratados de letra negra, escritos por
ambas as partes, e que são preservados no departamento de Medicina da
Universidade de Pádua.

— Doutíssimo senhor — disse Giovanni, depois do meditar sobre o


que acabava de ouvir acerca do zelo exclusivo de Rappaccini pela ciência
—, não sei até que ponto esse médico ama a sua ciência. Mas há um
objeto que lhe é igualmente querido: Rappaccini tem uma filha.

—Ah! Ah! — respondeu o professor, soltando uma gargalhada. —


Está descoberto o segredo do nosso amigo Giovanni. Ouviu falar dessa
menina, que traz perdidos de amor todos os rapazes de Pádua, ainda que
não chegue a meia dúzia os que têm tido o prazer de lhe ver a cara. Nada
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sei da menina Beatrice, senão que Rappaccini a instruiu na sua ciência, e


que, jovem e bela segundo a fama, já está qualificada para ocupar uma
cadeira de professor. O seu pai destinará à jovem a minha cátedra?
Correm, ainda, mais absurdos rumores, que não merecem ser contados
nem escutados. Vamos, Giovanni, beba o seu copo!

Gusconti dirigiu-se a casa um pouco quente com o vinho que


bebera, e que fazia girar em sua cabeça as extraordinárias figuras de
Rapaccino e da formosa Beatrice. No caminho, encontrou uma florista,
de quem comprou um buquê de flores frescas e aromáticas.
Entrou no seu quarto e sentou-se junto da janela, à sombra projetada
pelo espesso muro, de maneira que podia ver o jardim sem correr o risco
de ser descoberto. Baixou os olhos: a solidão era absoluta. As plantas
aqueciam-se ao Sol, fazendo-se algumas vezes misteriosos sinais de
familiaridade e simpatia.

No centro, próximo das ruínas da fonte, via-se o magnífico arbusto,


com os seus gomos rubicundos, que cintilavam no ar, e se refletiam nas
águas do tanque, completamente iluminadas pelo radiante esplendor da
planta.

A princípio, como dissemos, o jardim estava deserto. Em breve,


porém, como Giovanni esperara ou temera, apareceu, debaixo da
portada de antigas esculturas, a figura da encantadora jovem, que desceu
os degraus e começou a passear no centro das fileiras de plantas,
aspirando seus diversos perfumes, semelhante a um desses entes, de que
fala a fábula, alimentados por fragrâncias suaves.

Tornando a ver Beatrice, o jovem estremeceu, reconhecendo que a


sua beleza ultrapassava a recordação que dela guardara. Era uma beleza
viva, tão brilhante que, mesmo ao Sol, lançava os seus raios e iluminava
os pontos mais sombrios do jardim. Ao menos assim a via Giovanni, que
distinguia a sua fisionomia melhor que na véspera, e se admirava do seu
ar natural o grave, porque estas qualidades não tinham entrado no
retrato que concebera do seu caráter. Por esta razão, tornou a perguntar a
si mesmo que espécie de criatura era aquela. Não deixou de descobrir —
ou imaginar — certa analogia entre a bela menina e o magnífico arbusto
que deixava cair seus gomos de rubis sobre a fonte: o capricho de
Beatrice quisera aumentar a semelhança por meio das cores e disposição
de seu vestido.

Chegando ao arbusto, a moça abriu os braços, com ardor


apaixonado, e apertou os ramos em tão íntimo abraço que o seu rosto
ficou oculto entre a folhagem, e os anéis do cabelo confundiram-se com
as flores.
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— Exale o seu perfume, minha irmã —exclamou Beatrice —, porque


o ar comum deixa-me sem forças. E me dê esta flor, que separo com mão
amiga, para colocar sobre o meu coração.

Enquanto dizia estas palavras, a filha de Rappaccini colheu uma das


flores mais brilhantes do arbusto, e adornou o peito com ela. Mas,
naquele momento, a menos que os vapores de vinho enturvassem os
seus sentidos, ocorreu um incidente singular. Um pequeno réptil cor de
laranja, da família do lagarto ou do camaleão, chegou, arrastando-se pelo

caminho, aos pés do Beatrice. Pareceu a Giovanni — mas, na distância


em que estava, era-lhe muito difícil distinguir algo tão pequeno — que
uma ou duas gotas de umidade desprendiam-se do talo partido cortado
da flor e caíam sobre a cabeça do lagarto.

Por um instante, o réptil contorceu-se convulsivamente e depois


ficou imóvel, estendido ao sol. Beatrice observou este fenômeno e
benzeu-se tristemente, mas sem surpresa. Isto não a impediu de arranjar
a flor no peito, que ali resplandeceu tão deslumbrante quanto uma pedra
preciosa, acrescentando ao aspecto e traje de Beatrice um encanto tal que
nada do mundo teria sido capaz do substituir aquela flor.

Giovanni, trêmulo, murmurava:

— Estou acordado? Domino os meus sentidos? Essa criatura... devo


chamá-la de inefavelmente bela ou de infinitamente terrível?

Beatrice, passeando com indiferença pelo jardim, chegou-se tanto à


janela de Giovanni que este pôde satisfazer a imensa e penosa
curiosidade que o movia. Neste momento, vinha adejando pelo jardim
uma magnífica borboleta. Talvez tivesse errado pela cidade, sem
encontrar flores nem verdura entre aquelas antigas moradas dos homens,
até que os fortes perfumes dos arbustos do médico Rappaccini a atraíra.
Aquela criatura alada não pousou em flor alguma; mas, atraída pela
beleza do Beatrice, pôs a voltear ao redor da sua cabeça. Desta vez, era
impossível que os olhos de Guasconti se enganassem.

Seja como for, ele imaginou que, enquanto Beatrice olhava com
alegria infantil para o inseto, este perdeu as forças e caiu e aos pés dela!
As suas asas brilhantes tremeram. Estava morto! Morto sem outra causa
aparente que o hálito de Beatrice. Mais uma vez, Beatrice se benzeu e
suspirou, inclinando-se para o inseto privado de vida.

Um movimento involuntário de Giovanni chamou a atenção de


Beatrice. Esta viu na janela a formosa cabeça do jovem — mais grega do
que italiana —, com feições de regular beleza e um reflexo dourado nos
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anéis de seu cabelo. Quase sem saber o que fazia, Giovanni lançou à
jovem o ramalhete que tinha na mão.

— Senhora — disse ele —, aí vão estas flores puras e saudáveis.


Aceite-as, por amor de Giovanni Guasconti.

— Obrigada, senhor, respondeu Beatrice, com uma linda voz que


saiu como onda de harmonia, e com expressão em que ia misturada a
alegria da menina e o prazer da mulher. — Aceito o seu presente, e lhe
daria em troca, com muito gosto, esta preciosa flor púrpura; mas, por

mais que a atirasse, nunca conseguiria fazê-la chegar aí. É preciso, pois,
Sr. Guasconti, que se contente com o meu agradecimento.

Guardou o ramalhete e, depois, como se envergonhada de ter saído


da sua reserva virginal para responder à galanteria de um desconhecido,
dirigiu-se apressada para casa. Mas, por muito rápida que fosse a sua
passagem, pareceu a Giovanni, quando ela estava quase desaparecendo
no portal esculpido, que o seu precioso ramalhete começava a murchar
na mão de Beatrice. Era, sem dúvida, um pensamento insano. Como
distinguir, a tal distância, se uma flor está fresca ou murcha?

Em consequência deste incidente, o jovem abandonou por muitos


dias a janela que dava para o jardim do médico Rappaccini, como se
temesse ver alguma coisa horrível e monstruosa. Estava consciente de se
ter colocado, até certo ponto, sob a influência de um poder
incompreensível que reverberava do breve convívio que tivera com
Beatrice. O mais prudente seria, se o seu coração corria perigo real, ou
sair imediatamente daquela casa e de Pádua ou, então, vendo Beatrice
todos os dias, acostumar-se a considerá-la como outra qualquer mulher.
Mas o pior que Giovanni podia fazer seria, evitando vê-la, permanecer
perto daquela extraordinária criatura, porque a proximidade — somada
à possibilidade de manter com ela algum relacionamento— não podia
deixar de conferir certa importância e realidade às fantasias que a sua
caprichosa imaginação engendrava.

Guasconti não tinha coração profundo — ao menos ainda não lhe


sondara a profundidade —, mas era dotado de imaginação viva e do
ardente temperamento do meio-dia, que a cada passo aumentavam a sua
febre sufocante. Beatrice possuía — ou não — o hálito mortal, essa
afinidade com flores tão terríveis, que Giovanni julgara presenciar? O
que é certo é que ela havia infiltrado em todo o seu ser um veneno sutil e
violento. Não era amor, ainda que a esplêndida beleza da jovem o tivesse
enlouquecido; não era horror, mesmo quando imaginava que a alma de
Beatrice estivesse saturada da mesma essência venenosa que parecia
circular no seu corpo: era um produto do amor e do horror — reunidas
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circular no seu corpo:
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era um produto do amor e do horror reunidas
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estas duas paixões — que abrasava como uma e fazia tremer como a
outra.

Giovanni não sabia o que devia temer, e menos ainda o que devia
esperar. Mas o temor e a esperança operavam em seu coração uma
batalha contínua, conseguindo alternativamente a vitória e reparando-se
depois de cada derrota para recomeçar a luta. Toda a comoção de alegria
ou tristeza pode ser um bem para nós se é simples; porém, a terrível
mistura de duas emoções contrárias acende as lúgubres chamas das
regiões infernais.
Algumas vezes, intentava abrandar a febre do espírito percorrendo
as ruas de Pádua ou passeando fora da cidade. Mas, como os seus passos
eram guiados pela cabeça, o passeio degenerava frequentemente em
rápida carreira. Um dia foi detido: um homem gordo, que se voltara ao
reconhecê-lo, e quase se sufocara para alcançá-lo, agarrou-o pelo braço.

— Senhor Giovanni! Pare, meu amigo! — gritou. — Não me


reconhece? Não era de estranhar se eu estivesse tão mudado como o
senhor.

Era Baglioni, de quem Giovanni fugia desde a sua primeira visita,


temendo que a sagacidade do professor adivinhasse os seus segredos. O
rapaz esforçou-se por tornar a si, lançou um olhar do seu mundo interior
ao exterior e, depois, respondeu, como quem sonha:

— Sim, eu sou Giovanni Guasconti, e o senhor é o professor Pietro


Baglioni. Agora permita-me continuar...

— Devagar, Sr. Giovanni Guasconti — disse o professor, sorrindo e


procurando penetrar o pensamento do rapaz. — Como! Fui companheiro
de infância e de mocidade do pai, e o filho passa por mim, como um
estrangeiro, por estas ruas de Pádua? Espere, Giovanni, temos que falar
antes de nos separarmos.

— Depressa, pois, meu digno professor, depressa! — replicou


Giovanni, com febril impaciência. — Bem pode ver que estou com muita
pressa.

Enquanto falavam, passava pela rua um homem vestido de preto,


curvado, que andava com a dificuldade de uma pessoa enferma. No
rosto, embora pálido como o de um cadáver, reinava tal expressão de
prudente inteligência que o observador podia facilmente fechar os olhos
aos sintomas de debilidade física para concentrar-se apenas naquela
prodigiosa energia. Aquele homem trocou uma fria saudação com
Baglioni. Fixou, contudo, em Giovanni um olhar tão penetrante que
pareceu ter descoberto o quanto nele era digno de atenção. Não obstante,
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havia uma quietude singular naquele olhar, como se o médico tivesse no


desconhecido um interesse puramente especulativo, não humano.

— Este é o médico Rappaccini! — murmurou o professor, depois


que ele passou. Ele já viu o seu rosto antes?

— Não que eu saiba — respondeu Giovanni —, a quem aquele nome


fez estremecer.

— Sem dúvida, ele já o viu! — respondeu Baglioni, com


precipitação. — Esse sábio não o examinou assim sem um motivo.
Conheço aquele olhar. É o que ilumina friamente o seu rosto quando ele
se inclina para um pássaro, um rato ou uma borboleta mortos pelo
perfume de uma de suas flores. É um olhar tão profundo quanto a
própria natureza, mas que carece do fogo e do amor que esta possui. Sr.
Giovanni, apostaria a minha vida que você é o objeto de uma das
experiências de Rappaccini.

— O Sr. está brincando comigo? — perguntou, apaixonadamente,


Giovanni. — Esta, professor, seria uma funesta experiência.

— Paciência, paciência! — replicou o imperturbável professor. —


Digo-lhe, pobre Giovanni, que Rappaccini fita-o como objeto de interesse
científico. O amigo caiu em mãos terríveis. E a Sra. Beatrice, que papel
representa neste mistério?

Mas Guasconto, não podendo suportar a pertinácia de Baglioni,


desvencilhou-se do professor, e pôs-se a correr antes que este pudesse
segurá-lo novamente pelo braço. Baglioni seguiu o jovem com a vista, e
balançou a cabeça, murmurando:

— Isso não! O rapaz é filho de um velho amigo meu, e eu não quero


lhe suceda uma desgraça que os segredos da minha ciência podem
estorvar. Além disso, é uma falta de vergonha intolerável que Rappaccini
queira arrancar-me das mãos, por assim dizer, este rapaz, para ensaiar
nele suas infernais experiencias! Ficarei alerta. Talvez, doutíssimo
Rappaccini, eu lhe faça guerra onde menos espera.

Entrementes, Giovanni traçara um caminho tortuoso e achara-se,


enfim, à porta da sua casa. Ao transpor os umbrais, encontrou a velha
Lisabetta, que sorria afetuosamente, e parecia querer atrair-lhe a atenção.
Em vão, todavia, porque a efervescência dos sentimentos de Giovanni
fora substituída por uma triste e fria indiferença. Fixou os olhos no rosto
enrugado que lhe sorria, mas sem dar sinais de percebê-lo. Então a velha
puxou lhe pela capa
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11/08/2022 21:21 A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de Terror - Nathaniel Hawthorne
puxou-lhe pela capa.

— Senhor, senhor! — murmurou ela, sempre com o sorriso nos


lábios, que lhe dava a aparência de uma grotesca escultura de madeira
escurecida pela ação dos séculos. — Escute, senhor... Há uma porta
secreta para entrar no jardim.

— O que está dizendo? — exclamou Giovanni, voltando-se do


repente. — Uma porta para entrar no jardim de Rappaccini?

— Silêncio, silêncio! — murmurou Isabel, tapando-lhe a boca com a


mão. — Sim, no jardim do respeitável médico, e de onde poderá ver
todas as suas formosas flores. Muitos rapazes de Pádua dariam muito
dinheiro para ser admitido entre essas flores.

Giovanni lhe deu uma moeda de ouro.

— Ensine-me o caminho — disse.

Uma suspeita, nascida talvez da conversa que tivera com Baglioni,


cruzou pela imaginação do rapaz.

Talvez esta intervenção de Lisabetta tivesse relação com a intriga


misteriosa que, segundo o professor, Rappaccini urdia contra ele. Mas,
apesar de perturbá-lo, esta suspeita não conteve Giovanni.

Desde o momento em que viu a possibilidade de acercar-se de


Beatrice, sentiu-se na obrigação de fazê-lo.

Que lhe importava fosse ela um anjo ou um demônio? Sentia-se


irresistivelmente atraído à sua orbita, e não podia evitar a lei que o
obrigava a descrever ao seu redor círculos cada vez mais estreitos, até
que chegasse a um resultado que ele se abstinha de prever.

E, não obstante — coisa singular! —, ocorreu-lhe uma dúvida


repentina: este ardente interesse que tinha por Beatrice seria pura ilusão?
Acaso não fosse verdadeiramente bastante profundo e real para
desculpar a temeridade que o arrastava a uma situação de incalculáveis
consequências, seria apenas capricho de um jovem, que nada ou quase
nada tinha a ver com o coração.

Deteve-se... vacilou... retrocedeu um passo... mas continuou o seu


caminho.

Lisabetta conduziu-o ao longo de vários corredores sombrios e,


finalmente, descerrou uma porta que se abria à visão e ao som de folhas
farfalhantes, com a luz do Sol decomposta brilhando entre elas.
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farfalhantes, com a Aluz
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do Sol decomposta brilhando entre elas.
FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de Terror - Nathaniel Hawthorne

Giovanni transpôs o limiar e, abrindo passagem pelos densos ramos


de um arbusto que cobria a porta secreta, achou-se, no jardim de
Rappaccini, sob a janela de seu quarto.

Quantas vezes sucede que, quando o impossível acontece, e os


sonhos tornam-se realidades palpáveis, nos sentimos tranquilos e cheios
de sangue-frio em meio a circunstâncias cuja previsão só nos fizera
delirar de alegria ou de dor! O destino compraz-se em zombar assim de
nós. A paixão escolhe o instante que lhe apraz para vir à cena, e ignora-o
quando a situação parece requerê-lo. Isto
aconteceu a Giovanni.

Todos os dias, o sangue inflamado lhe


fazia bater o pulso com a ideia improvável
de uma conversa a sós com Beatrice no
jardim, onde, animado com o brilho oriental
da sua beleza, pudesse surpreender-lhe nos
olhos o mistério que ele julgava ser o
enigma da própria existência. E, neste
momento, reinava em seu coração uma
singular e intempestiva tranquilidade.

Alongou a vista pelo jardim e, não


vendo Beatrice nem seu pai, começou
friamente a examinar as plantas.

O aspecto de todas e de cada uma delas desgostou-o; a sua


magnificência parecia-lhe violenta e sobrenatural.

Raro era o arbusto que não teria assustado o viajante ao atravessar a


selva, parecendo-lhe que uma figura do outro mundo lançava-lhe olhares
terríveis. Outros teriam ferido a sua sensibilidade com o aspecto
artificial, indicando que houvera neles tal mistura de vegetais de diversas
espécies que o seu produto já não era o ser criado por Deus, mas um
monstruoso bastardo da imaginação depravada do homem, brilhando
com funesta e falaciosa beleza.

Aquelas plantas eram provavelmente o resultado de experiências


que tinham chegado a formar, pela combinação de dois formosos
indivíduos, um ente híbrido, possuindo — sinistro e misterioso — o
caráter revelado enquanto crescia naquele jardim.

Finalmente, Giovanni não conheceu mais de duas ou três plantas em


toda a coleção, e essas eram de espécie muito venenosa.

E
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Enquanto se ocupava neste exame, ouviu o farfalhar de um vestido


de seda. E, voltando o cabeça, percebeu Beatrice que saía do portal
esculpido.

Giovanni não pensava no que faria em tal conjuntura. Pediria


desculpara por ter entrado no jardim ou admitiria o fato, como
consentido pelo médico Rappaccini ou sua filha? Mas o ingênuo modo
de Beatrice tranquilizou-o. Esta seguiu alegremente o caminho, e
encontrou o rapaz próximo à fonte. Na em sua fisionomia estava
retratada a surpresa, misturada de afabilidade e de contentamento.

— Gosta de flores? — disse, sorrindo e aludindo ao buquê que o


jovem lhe endereçara da janela. — Não estranho que, por isso, queira ver
a colecção de meu pai. Se ele estivesse aqui, poderia dizer-lhe muitas
coisas acerca das extraordinárias propriedades destas plantas, a cujo
estudo dedicou, com exclusividade, a vida inteira.

— Também a senhora, a ser certo o que se diz, conhece as virtudes


destas magníficas flores. Se tivesse a bondade de ser meu preceptor, creia
que faria mais progressos do que com o próprio Sr. Rappaccini.

— Empregam o tempo lá fora em cousas tão fúteis? — perguntou


Beatrice, sorrindo. — Dizem que conheço a ciência de meu pai? História!
Ainda que tenha sido criada entre estas flores, não distingo mais que as
suas cores e perfumes e às vezes creio que renunciaria mesmo a esta
pouca ciência. Há flores aqui, e não das mais formosas, que me
incomodam bastante. Peço-lhe não creia no que dizem da minha ciência.
Não acredite, a meu respeito, senão no que vir com os próprios olhos.

— E devo acreditar em tudo o que tenho visto? — perguntou


Giovanni, tremendo com a recordação das cenas que presenciara. —
Não, senhora. Você exige muito pouco de mim. Mande-me acreditar só
no que me disser.

Beatrice decerto o compreendeu. Um vivo carmim subiu-lhe às


faces. Mas olhou para Giovanni, e respondeu com o orgulho de uma
rainha:

—Sim, mando-lhe esquecer quanto tenha imaginado. O que lhe tem


parecido certo pode ser falso. As rainhas palavras, porém, são a
expressão de um coração que não sabe fingir. Acredite nisto.

O seu rosto inflamado brilhou aos olhos da consciência de Giovanni


como a luz da verdade.

Enquanto falava, espargia ao seu redor perfume tão delicioso,


embora efêmero, que o preocupado rapaz mal ousava respirar. Era,
l f â i d fl P di
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talvez, a fragrância das flores. Podia o hálito de Beatrice embalsamar de


tal modo as suas palavras?

Giovanni esteve quase a desmaiar. Mas a vertigem passou como


sombra. Parecia ler, através dos olhos daquela encantadora criatura, até o
fundo da alma, e já não sentia dúvida nem temores.

O rubor de Beatrice tinha desaparecido. Tornou-se alegre, e parecia


que as relações com Giovanni lhe causavam prazer semelhante ao que

sentiria a pessoa que habitasse uma ilha deserta conversando com um


viajante do mundo civilizado.

Evidentemente, a sua experiencia da vida não ultrapassava os


muros do jardim. Falava de coisas tão simples, e fazia acerca de Pádua,
ou da longínqua pátria de Giovanni, de sua mãe ou irmãs, perguntas que
indicaram tal ignorância do mundo que Giovanni lhe respondia como a
uma criança.

Sua alma era como um fresco arroio que rebenta pela primeira vez e
se encanta com os reflexos do céu e da terra lançados em seu seio. Tinha,
também, pensamentos que vinham de um manancial profundo, e
imagens vivas como os rubis e diamantes.

De vez em quando, o jovem maravilhava-se, vendo-se no jardim


com aquela a quem emprestara tão terríveis cores, e cujas qualidades
haviam sido apresentadas a ele de uma forma terrível. Era ele mesmo
que falava com Beatrice como se fossem irmãos? As suas reflexões não
duravam mais que um instante, porque o efeito do caráter de Beatrice era
muito positivo para que se não familiarizasse com ela.

Depois de passearem em tão agradável intimidade pelo jardim,


acharam-se de novo junto à fonte onde estava o arbusto das lindas flores.
O perfume que exalava era o mesmo que Giovanni atribuíra ao hálito de
Beatrice, com a diferença de que o da planta era mais forte. Quando
Beatrice olhou para esta, Giovanni observou que punha a mão sobre o
coração, como se sentisse, repentinamente, pulsações dolorosas.

—É a primeira vez na minha vida — disse a filha de Rappaccini —


que me esqueço de ti.

— Recordo-me, senhora, que me prometeu um desses vivos rubis


em troca do ramalhete que tive a feliz temeridade de lançar a seus pés.
Permita-me colher uma dessas flores para lembrança dessa nessa
entrevista.

C ã did Gi i di i i
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Com a mão estendida, Giovanni dirigiu-se para o arbusto. Mas a


jovem tomou-lhe o passo, dando um grito que lhe atravessou como um
punhal o coração. Pegou-lhe na mão e tirou-a com todo o vigor possível
em uma pessoa frágil. O tremor da mão de Beatrice fez Giovanni
estremecer.

— Por sua vida, não toque nela! — ela exclamou, angustiada. —


Essa planta é fatal!

E, cobrindo o rosto, desapareceu sob o portal esculpido.

Seguindo-a com a vista, Giovanni viu o fraco e pálido Rappaccini


oculto na sombra da estátua de Vertumnus. Há quanto tempo estaria ali?

Tão logo Guasconti se achou no seu quarto, a imagem de Beatrice


fixou-se em sua apaixonada imaginação, com toda a magia que lhe
descobrira desde o primeiro vislumbre, e os suaves sentimentos de que
era dotada. Adornada de todas as preciosas qualidades femininas, era
digna de ser amada e capaz, por sua parte, de todo o heroísmo do amor.
Ou havia ele condenado ao esquecimento o que considerara como provas
de terrível singularidade da sua natureza física e moral, ou a sutil lógica
da paixão havia transformado os estranhos indícios em coroa de ouro de
encantamento, que ainda mais tornava Beatrice admiravelmente única. O
que lhe parecia abominável convertera-se em novos encantos, ou perdia-
se entre as ideias vagas e sem forma, que enchem as escuras regiões que
passam além das que são perfeitamente conhecidas.

Assim Giovanni passou a noite, até que a aurora começou a


despertar as flores do jardim de Rappaccini. O Sol apareceu à hora do
costume e, lançando os seus raios sobre as pálpebras do rapaz, acordou-o
para induzi-lo a uma sensação dolorosa. Era uma picada aguda na mão
direita, a mesma que Beatrice tocara para impedi-lo de colher a flor. Nas
costas das mãos tinha, em marca roxa, o sinal de quatro dedos, e, no
pulso, o do polegar.

Oh, com que tenacidade o amor (ou a aparência de amor que brota
em nossa imaginação sem lançar raízes no coração) guarda a fé até
chegar o momento em que deve desvanecer-se como ligeiro vapor!

Giovanni atou um lenço na mão e se perguntou que maligno inseto


o teria mordido. Logo esqueceu a dor, pensando em Beatrice.

Depois da primeira entrevista, o que chamamos destino não podia


prescindir de apresentar segunda, logo terceira, quarta, até que a reunião
com Beatrice no jardim deixou de ser um acidente para ser a vida inteira
de Giovanni, porque o esperar antes e a recordação depois ocupavam o
resto Sucedia outro tanto à filha do médico Espreitava a aparição do
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resto. Sucedia outro tanto à filha do médico. Espreitava a aparição do
rapaz e corria para ele com tanta familiaridade como se tivessem sido, e
ainda fossem, companheiros de infância. Se por acaso ele não aparecia à
hora convencionada, Beatrice situava-se debaixo da janela, e fazia subir
ao quarto as melodiosas inflexões da sua voz, que ecoava sempre no
coração de Giovanni:

— Giovanni! Giovanni! Por que demora? Venha logo!

E este apressava-se em descer ao Éden de flores venenosas.

Mas, apesar de tal intimidade, havia no procedimento de Beatrice


tão rígida reserva que, à imaginação de Giovanni, se apresentava a ideia
de vencê-la. Segundo todos os indícios, amavam-se. Os olhos haviam
transportado o segredo do seu amor de um coração a outro, como se
fosse demasiado santo para ser revelado. Tinham por vezes falado de
amor com efusões apaixonadas, em que a alma saía misturada com as
palavras, semelhantes às línguas de um fogo muito tempo oculto.
Todavia, não houvera um beijo, um aperto de mão, nenhuma das ternas
carícias que a paixão santifica. Nunca Giovanni tocara em um cabelo de
Beatrice. Nunca o seu vestido, agitado da brisa, roçara a roupa de
Giovanni. Nas poucas ocasiões em que este parecia querer passar além,
Beatrice mostrava-se tão triste e severa que não tinha necessidade de
pronunciar urna palavra para contê-lo. Naquelas ocasiões, ele estremecia
com as suspeitas que saíam, como outros tantos monstros, do seu peito, e
olhava-a aflito: a paixão enfraquecia; somente as dúvidas subsistiam.
Mas quando, mais tarde, Beatrice sossegava, deixava de ser a criatura
misteriosa a quem com tanto terror olhava, para tornar a ser a linda e
ingênua donzela, cujo espírito ele conhecia melhor que qualquer outra
coisa do mundo.

Muito tempo decorrera desde o último encontro de Giovanni com


Baglioni. Uma manhã, foi aquele desagradavelmente surpreendido pela
visita do professor, em quem raras vezes pensara durante muitas
semanas, e a quem esqueceria de todo com muito gosto. Presa de
prodigiosa excitação, não podia suportar a companhia dos que se não
achavam em perfeita harmonia com o seu estado presente, e não era de
esperar tal harmonia do professor Baglioni. Começou este falando com
indiferença dos rumores que corriam na cidade e, em seguida, lançou-se
em outro assunto.

—Li há pouco um antigo autor clássico — disse o professor — e me


deparei com uma história que singularmente me interessou.
Provavelmente você se lembra dela. Trata-se de um príncipe indiano que
enviou uma bela mulher de presente a Alexandre Magno. Era ela
d t b l
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sedutora como a aurora e bela como o Sol do ocidente. O mais notável,
porém, era a fragrância do seu hálito, o perfume mais refinado que se
aspira em um jardim de rosas da Pérsia. Alexandre (coisa natural em um
jovem conquistador!), ao primeiro olhar, apaixonou-se pela encantadora
desconhecida. Mas um médico sagaz, ali presente, descobriu um segredo
terrível.

— Qual? — perguntou Giovanni, baixando os olhos.

—Essa bela mulher — continuou o professor — tinha sido criada


com venenos desde que nascera, e estava tão saturada deles que se
convertera ela própria no veneno mais mortal. O veneno era o seu
elemento de vida. O perfume do seu hálito envenenava o ar. O seu amor
seria um veneno; os seus, abraços mortais. Não é uma história
maravilhosa?

— Uma fábula para crianças — disse Giovanni, levantando-se com


impaciência. — Admira-me que o senhor, que se ocupa com estudos
sérios, gaste o tempo lendo tais desatinos.

— Oh! — disse o professor, olhando com inquietação em torno de si.


— Que estranha fragrância é esta no seu quarto? É tão delicioso quanto
incômodo. Se tivesse de respirá-lo com frequência, creio que me faria
mal. Parece o aroma de flores... mas não as vejo aqui.

— Não há flores aqui — respondeu Giovanni, empalidecendo. —


Creio que é imaginação sua. A lembrança ou pensamento de uma coisa
nos faz facilmente acreditar na sua realidade.

— Sim; mas eu não estou tão sujeito a tais devaneios. E se pensasse


em um cheiro, seria no de alguma droga de farmácia, de que os meus
dedos podiam estar impregnados. Dizem que Rappaccini junta aos seus
medicamentos aromas mais suaves que os da Arábia. Sem dúvida, a
formosa e sabia Beatrice administraria aos seus enfermos bebidas tão
doces como um hálito virginal. Mas desgraçado de quem as tomasse!

O rosto de Giovanni mostrava as diversas comoções que o agitavam.


O tom do professor, aludindo à pura e radiante filha de Rapaccini,
oprimiu-lhe o coração. E aquela suposição iluminou mil sombras
suspeitosas que, como outros tantos demônios, começaram a torturá-lo.

Esforçou-se por desvanecê-las, e respondeu com a confiança de um


namorado:

— O senhor, professor, foi amigo de meu pai. E talvez pretenda ser


amigo do filho. Com o maior respeito, pois, peço-lhe que não me fale
mais nisso. Não conhece Beatrice, não pode compreender a injúria que
lh f f l d d l d i f i
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lhe faz falando dela desta maneira ofensiva, ou mesmo ligeira.

— Pobre Giovanni! — replicou o professor, compassivamente. —


Conheço essa pobre menina melhor do que pensa. É preciso que lhe diga
a verdade acerca do envenenador Rappaccini e de sua filha, que é tão
bela quanto venenosa. Sim, porque ainda que o senhor atentasse contra
os meus cabelos brancos, não poderia impor-me silêncio. A fábula da
indiana realizou-se em Beatrice graças à profunda e mortal ciência de
Rappaccini!

Giovanni deixou escapar um gemido e escondeu o rosto.

— O amor natural de um pai a seu filho — continuou Baglioni —


não bastou para impedir que Rappaccini oferecesse sua filha como
vítima à paixão insensata pela ciência. Porque (façamos-lhe justiça)
nunca um verdadeiro amante da ciência destilou, como ele, o próprio
coração num alambique. Que destino, pois, espera o senhor? Não há
dúvida que você será submetido a alguma experiencia, cujo resultado há
de ser a morte... ou alguma coisa ainda mais terrível. Quando tem diante
de si o que chama o interesse da ciência, Rappaccini não vacila.

— Isto é um sonho — murmurou Giovanni —, um verdadeiro


sonho!

— Ânimo! Ainda estamos a tempo de socorrê-la. Talvez consigamos


restituir essa infeliz criatura aos limites ordinários da natureza que a
loucura do pai lhe fez ultrapassar. Eis este frasco de prata. É obra de
Benevuto Cellini [2], e digno de ser oferecido à dama mais formosa da
Itália como presente de amor. Mas o seu conteúdo é de inapreciável
valor. Algumas gotas deste antídoto neutralizariam os mais violentos
venenos dos Borgias. Não duvide da sua eficácia contra os de
Rappaccini. Dê a Beatrice este frasco e o seu precioso licor, e espere
confiadamente o resultado.

Baglioni pôs o frasco de prata requintadamente forjado sobre a mesa


e retirou-se, deixando que as suas palavras operassem o seu efeito no
espírito no rapaz.

“Derrotaremos Rappaccini”, pensou Baglioni enquanto descia a


escada. “Mas confessemos que ele é um homem admirável. Não
obstante, não é mais que um empírico. Eis a razão por que os que
respeitam as boas tradições da ciência médica não podem tolerá-lo.”

Em seus encontros com Beatrice, Giovanni, como já dissemos, tinha


sido algumas vezes atormentado por cruéis suspeitas. Mas a jovem
mulher apresentava-se diante de seus olhos com tal candura e
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naturalidade, exibia-se tão carinhosa e sincera, que o retrato feito por


Baglioni parecia-lhe estranho e incrível, como se nunca tivesse acreditado
nas suas primeiras impressões. Horríveis recordações estavam ligadas
àquela encantadora menina. Giovanni não esquecia o buquê que
murchara na mão de Beatrice, nem a borboleta morta sem outra causa
visível além do seu hálito. Por outra parte, estes incidentes, dissolvendo-
se no esplendor puríssimo da garota, não tinham aos olhos de Giovanni
valor real, e só lhe pareciam imaginações falaciosas, apesar do
testemunho de seus sentidos.

Há coisas mais certas do que o que vemos, mais reais do que o que
apalpamos. Por essa razão, Giovanni fundara a sua confiança em
Beatrice, ainda que antes pela força irresistível das nobres qualidades
desta do que pela profunda e generosa fé que o animava.

Neste momento, porém, o seu espírito era incapaz de sustentar-se na


altura do primeiro entusiasmo amoroso. Caiu, duvidou, e arrastou por
terra a alvura da imagem de Beatrice. Não renunciava a ela, mas
desconfiava. Quis obter uma prova decisiva, que o convencesse da
existência daquelas terríveis singularidades, que não podia admitir em
uma natureza física sem certa monstruosa analogia com a natureza
espiritual.

Na distância em que se achava, os olhos podiam ter se enganado a


respeito do lagarto, da borboleta e do ramalhete. Mas, se pudesse ver de
perto uma flor viçosa murchar subitamente na mão de Beatrice, não
tinha lugar a dúvida.

Correu, pois, a uma loja onde se vendiam flores e comprou um


ramalhete em que brilhavam ainda as gotas do orvalho da madrugada.

Era a hora de sua visita diária a Beatrice. Antes de descer ao jardim,


Giovanni compôs-se ao espelho: era uma vaidade natural em um rapaz,
mas que denotava certa leviandade dos sentimentos, e, talvez, falta de
sinceridade em um momento de inquietude e perturbação. Vendo-se ao
espelho, julgou que as suas feições nunca tinham sido mais graciosas. Os
olhos mais brilhantes e as faces animadas de maior vitalidade.

“Pelo menos, o seu veneno não se infiltrou em meu organismo. Não


estou como a flor que murcha em suas mãos”, pensou Giovanni.

Ao mesmo tempo, olhou para o ramalhete que tinha na mão. Um


estremecimento de indefinível horror percorreu todo o seu ser, quando
viu que aquelas flores, ainda cobertas de orvalho, já se inclinavam:
pareciam colhidas na véspera. Giovanni empalideceu e ficou como
petrificado diante do espelho, olhando aterrado para a própria imagem.
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Recordava-se da observação de Baglioni a respeito do perfume que lhe


pareceu inundar o quarto.

Não podia ser outra coisa senão o veneno do seu próprio hálito.
Tremeu e teve horror de si mesmo! Quando se restabeleceu dessa espécie
de estupor, começou a examinar curiosamente uma aranha que fazia teia
na velha cornija do seu quarto. Era a aranha mais vigorosa e ativa que
tinha visto pendida de um teto. Aproximou-se dela e lhe lançou um
longo e profundo suspiro. A aranha suspendeu de imediato o seu tralho.

A teia oscilou por causa de um tremor produzido pelo corpo do pequeno


artesão.

Giovanni lançou outro suspiro mais profundo, suspiro impregnado


do veneno de seu coração. A aranha juntou as pernas convulsivamente e
caiu morta diante da janela.

— Maldito, maldito! — disse Giovanni, falando consigo. — Você se


tornou tão venenoso que um simples hálito é suficiente para aniquilar
essa aranha mortal?

Neste instante, uma voz melodiosa e terna subiu do jardim.

— Giovanni, Giovanni, já é tempo! Por que demora tanto? Desça!

— Sim —murmurou este. — Beatrice é a única criatura para quem o


meu hálito não é mortífero. Quisera que fosse também para ela!

Giovanni apressou-se a descer e logo se achou face a face com a


moça, cujos olhos brilhavam de amor. Um momento antes, a sua cólera e
desespero tinham sido tais que desejava matá-la com o olhar. Mas, em
sua presença, via-se submetido a muitas influências que tinham uma
existência demasiadamente real para ser de imediato eliminada. A
recordação do amável poder daquele caráter de mulher derramara
muitas vezes em sua alma religiosa tranquilidade. A lembrança de tantas
e tão ternas efusões tinha afastado o que encobria o manancial daquele
coração, permitindo aos olhos do espírito penetrar-lhe as transparentes
profundidades, E se Giovanni soubesse apreciar aquelas recordações,
elas teriam mostrado que todo aquele horrível mistério não passava de
uma ilusão grosseira, e que, apesar da escura névoa que parecia envolvê-
la, a verdadeira Beatrice era um anjo celestial.

Malgrado fosse incapaz desta sublime confiança, a presença de


Beatrice não perdera ainda, para ele, todo o seu influxo.

O furor de Giovanni transformou-se em silenciosa insensibilidade.


Beatrice adivinhou no mesmo instante que entre ambos havia um
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Beatrice adivinhou no mesmo instante que entre ambos havia um
abismo. Passearam juntos e taciturnos, e assim chegaram à fonte de
mármore e ao tanque, no meio do qual se elevava o arbusto das flores de
rubis. Giovanni assustou-se do deleite que experimentou ao aspirar o
perfume daquelas flores.

— De onde veio este arbusto? — perguntou, de repente, Giovanni.

— Meu pai o criou — respondeu a jovem, com simplicidade.

— Criou! Criou! — repetiu Giovanni. — O que quer dizer com isso,


Beatrice?

— Que o meu pai é um homem que tem penetrado, até o âmago, nos
segredos da natureza. E, na hora em que eu via a luz do dia pela
primeira vez, nasceu essa planta, filha da sua inteligência, como eu o era
do seu sangue... Não se aproxime dela! — continuou Beatrice,
observando, aterrada, os movimentos de Giovanni. —Tem propriedades
que você não suspeitas. Meu querido Giovanni, eu cresci e floresci com
ela, e tenho-me nutrido das suas emanações. Era minha irmã, e eu a
amava com afeto, porque... — você não suspeitou? — um terrível
infortúnio me aconteceu.

Giovanni dirigiu-lhe, neste ponto, um olhar tão sombrio que ela


parou, tremendo. Mas a confiança que tinha na sua ternura a fez corar
por haver duvidado um instante do jovem que amava.

— Um terrível infortúnio me aconteceu. O amor fatal de meu pai à


ciência separou-me do mundo até o momento em que o céu o enviou,
querido Giovanni. O quão solitária estava a sua pobre Beatrice!

— Foi um infortúnio difícil? — perguntou Giovanni, fixando os


olhos nela.

— Há pouco tempo não conhecia todo o seu vigor — respondeu


Beatrice, com ternura. — Sim, porque o meu coração estava sumido em
uma espécie de entorpecimento, que lhe permitia viver tranquilo.

O furor brotou da sombria tristeza de Giovanni como o relâmpago


sai do âmago de uma nuvem negra.

— Maldita seja! — gritou o rapaz, transbordando de cólera e


desprezo. — E por que a solidão lhe causava tédio, separou-me de todo o
calor vital e arrastou-me à região de inexplicável horror em que você
vivia?

— Giovanni! — exclamou Beatrice volvendo para ele os olhos


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Giovanni! exclamou Beatrice, volvendo para ele os olhos
fulgurantes.

Ela não compreendia o sentido daquelas palavras, mas a expressão


violenta com que foram pronunciadas deixou-a aterrorizada.

— Sim, mulher venenosa! — repetiu Giovanni, com raiva. — Veja o


que você fez comigo! Fez com que eu murchasse. Encheu-me as veias de
veneno. Fez-me tão repugnante, tão terrível como você mesma, que é um
monstro de horror! Caso seja o nosso hálito tão mortal para nós o quanto

é para os outros, unamos os lábios em um beijo de inefável ódio, e


morramos assim!

— O que lhe aconteceu? — murmurou Beatrice, com um gemido,


saído do íntimo do coração. — Virgem Santíssima, tende piedade dessa
infeliz criatura!

— Está rezando? — gritou Giovanni com o mesmo infernal


desprezo. — As orações, saindo de sua boca, infestam mortalmente a
atmosfera! Sim, sim, oremos! Iremos à igreja, meteremos os dedos na pia
da água benta, e os que vierem depois morrerão envenenados como nós!
Façamos cruzes no ar e espargiremos maldições sob a aparência do
símbolo sagrado!

— Giovanni — disse placidamente Beatrice —, por que pronuncia


palavras tão terríveis? Eu sou, sim, esse ente horrível monstro de que
fala. Mas você... Depois de haver tremido, mais uma vez, diante do
aspecto da minha triste sorte, não tem que fazer senão sair daqui para
misturar-se aos transeuntes e esquecer que, pela terra, se arrasta um
monstro como a sua pobre Beatrice.

—Finge nada saber? — disse Giovanni, com olhar ameaçador. —


Veja o poder que a filha de Rappaccini me transmitiu!

Um enxame de mosquitos revolvia-se no ar, buscando o pasto que o


perfume das flores daquele jardim fatal lhes prometia. Formavam
remoinhos ao redor da cabeça de Giovanni, evidentemente atraídos pelo
mesmo influxo que os guiara para muitas daquelas plantas. Ele lançou
um sopro e sorriu amargamente para Beatrice, vendo cair morto muitos
daqueles insetos.

— Vejo agora e entendo!— exclamou Beatrice. — Foi a ciência de


meu que pai produziu isso, não eu. Não, Giovanni, não eu! Nunca,
nunca! O meu sonho é amá-lo. Você partirá, mas guardarei a sua imagem
no meu coração. Porque — creia, Giovanni —, ainda que meu corpo
tenha sido criado com venenos, Deus criou a minha alma, e esta pede um
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A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de Terror - Nathaniel Hawthorne

pouco de amor como o seu pão quotidiano. Mas meu pai! Foi ele quem
nos uniu em tão cruel simpatia. Sim, despreze-me, mate-me!... Que é a
morte depois das palavras que você proferiu? Mas não diga que sou a
culpada! Eu não lhe faria mal, nem pela felicidade eterna.

O furor de Giovanni extinguira-se com aquelas exclamações


apaixonadas, sendo substituído pelo doloroso e terno sentimento das
relações íntimas e particulares que havia entre ambos. Pareciam
abandonados no meio de um deserto. Não devia tal soledade unir mais
estreitamente aquele casal infeliz? Se se odiassem, quem os amaria?
Demais, pensou Giovanni, não podia retornar aos limites da natureza,
conduzindo Beatrice pela mão, salva por ele? Oh, espírito fraco, indigno
e egoísta, pode crer em uma ditosa união na terra, depois de haver
ultrajado amor tão profundo como o de Beatrice? Não, já não havia
esperança. Seria forçoso que ela ultrapassasse, triste e com o coração
despedaçado, os limites do mundo; seria preciso que lavasse as feridas
em alguma fonte do paraíso, para esquecer as penas no esplendor da
imortalidade.

Mas Giovanni disto não sabia.

— Querida Beatrice — disse, aproximando-se, enquanto ela, como


sempre, se afastava, ainda que agora por outro motivo. — Querida
Beatrice, a nossa sorte não é ainda desesperada. Veja este remédio
poderoso e quase divino, como me assegurou um médico muito sábio,
composto de ingredientes contrários aos que teu pai empregou para
reduzir-nos a tão terrível estado. Bebamos ambos, para nos purificarmos
do veneno que temos em nós!

—Dê-me— disse Beatrice, estendendo o braço para receber o


pequeno frasco de prata que Giovanni tirara do peito.

Depois, acrescentou, com uma ênfase peculiar:

— Beberei; mas você espera o resultado.

Ela levou aos lábios o antídoto de Baglioni. No mesmo instante,


apareceu Rappaccini e dirigiu-se para a fonte de mármore.
Aproximando-se, o pálido amigo da ciência olhou, orgulhoso, para o
casal encantador, como um artista que, tendo passado a vida a fazer um
quadro, ou um grupo de estatuas, está por fim satisfeito do seu triunfo.

O médico parou. O seu corpo curvado endireitou-se. Estendeu a


mão sobre os jovens, com o gesto de um pai que implora do céu a benção
para seus filhos. Mas aquela mão era a mesma que lhes derramara o
veneno! Giovanni empalideceu. Beatrice estremeceu convulsivamente e
l ã ã
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levou a mão ao coração.

— Minha filha — disse Rappaccini —, você já não está sozinha na


terra! Colha uma flor dessa planta, sua irmã, e roga ao seu noivo que a
receba como sinal do seu amor. Agora, não fará a ela dano algum. A
minha ciência e a simpatia que existe entre ambos produziram o efeito de
elevar o seu noivo acima dos homens comuns, assim como você, minha
filha, meu orgulho e triunfo, é superior às outras mulheres. Prossigam,
pois, o seu caminho no mundo, adorando-se mutuamente, mas terríveis
para os que se aproximarem de suas pessoas.

— Meu pai — disse Beatrice com voz fraca e a mão sobre o coração
—, por que infligiu à sua filha tão desgraçada sorte?

—Desgraçada? — repetiu Rappaccini. — Que quer dizer, tola


menina? Pensa que é uma desgraça possuir dons maravilhosos, contra os
quais se despedaçaria a força do inimigo mais poderoso? Desgraçada,
quando pode fazer perecer com um sopro o ente mais robusto?
Desgraçada, porque é tão temível quanto formosa? Prefere a condição de
uma débil mulher, exposta a todos os ultrajes, incapaz de vingar-se?

— Eu queria ser amada e não temida — disse Beatrice, caindo. —


Mas agora isto não importa, meu pai, porque vou para onde o mal, que
se misturou ao meu, ser passará como um sonho... como o perfume
dessas flores venenosas que não mais turvarão o meu fôlego entre as
flores do Éden. Adeus, Giovanni! As suas palavras de ódio pesam como
chumbo era meu coração. Oh, não tem havido, desde o primeiro dia,
mais veneno na sua natureza do que na minha?

Como o veneno fora a vida de Beatrice — cuja natureza física havia


sido tão radicalmente alterada pela habilidade de Rappaccini —, o
poderoso antídoto foi a sua morte.

Assim morreu, aos pés de seu pai e de Giovanni, a pobre vítima do


engenho do homem, da natureza contrariada, e da fatalidade que
acompanha os esforços da sabedoria pervertida.

Neste instante, o professor Pietro Baglioni apareceu à janela de


Giovanni e, com ar de triunfo, entremeado ao horror, gritou ao sábio:

—Rappaccini, Rappaccini! Esse é o resultado de suas experiências?

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “Diario de Pernambuco” (PE), edições de 19 e 20 de novembro de 1860.

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[1] Na mitologia romana, deus dos jardins e pomares.

[2] Benvenuto Cellini (1500 – 1571), escultor, ourives e escritor italiano.

Conto Clássico Nathaniel Hawthorne Terror

Igor da Silva Livramento 14 de julho de 2021 20:08

PAULO SORIANO 14 de julho de 2021 21:29


Olá, Igor,! Muito grato pela sua observação. Houve um erro de
digitação na indicação do ano de publicação. Graças à sua
pertinente e útil mensagem, o erro já foi corrigido. Na verdade, o
conto de Hawthorne foi publicado no ano de 1860. Para facilitar a
sua pesquisa, indico os liames para as páginas dos arquivos da
hemeroteca da Biblioteca Nacional:
http://memoria.bn.br/DocReader/029033_04/2754,
http://memoria.bn.br/DocReader/029033_04/2762.
Abraços,
Paulo

PAULO SORIANO 14 de julho de 2021 21:33


Sim, ia-me esquecendo... Os números das edições são: 1860/268
e 269.

Igor da Silva Livramento 14 de julho de 2021 22:12


Muitíssimo obrigado!

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