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Medicina do Trabalho: subciência ou subserviência?

TEMAS LIVRES FREE THEMES


Uma abordagem epistemológica

Labor Medicine: sub-science or subserviency?


An epistemological approach

Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos 1

Wanderlei Antonio Pignati 2

Abstract This article discusses a disquieting is- Resumo O artigo traz ao debate um tema inqui-
sue in the field of workers’ health, the mission of etante na área de saúde do trabalhador, qual seja,
the labor physician in the context of a change in o papel do médico do trabalho, no contexto de uma
the model of public politics with regard to the re- mudança de paradigma das políticas dirigidas às
lation health and work that began with the estab- relações saúde-trabalho, a partir do advento do
lishment of the new Unified Health System in Sistema Único de Saúde. Buscando ater-se às ques-
Brazil. The paper focuses on epistemological ques- tões epistemológicas de ser ou não a medicina uma
tions like Medicine being or not a science and an- ciência, analisa-se o papel da Medicina do Traba-
alyzes the mission of Labor Medicine on the basis lho neste contexto, dentro de uma breve análise
of a short historical analysis of its development histórica de seu desenvolvimento, sua apropria-
and its appropriation by the production systems ção pela lógica dos sistemas produtivos e sua tra-
and institutional trajectory since the appearance jetória institucional, desde o surgimento do pri-
of the first factory physician. The study comes to meiro médico de fábrica. Conclui-se pela inter-
the conclusion that Labor Medicine is not on a pretação de que a Medicina do Trabalho não aten-
level with the ethical and scientific principles tra- de aos postulados éticos e científicos que se requer
ditionally expected from Medicine and its special historicamente da medicina e de suas especialida-
fields, understanding this branch of medicine as a des médicas, entendendo aquela como prática sub-
practice subordinated to other hegemonic and not serviente a outras variáveis, hegemônicas e não
scientific variables. Finally, this article remits to científicas. Além disto, remete o debate às contra-
the debate about the contradictions involving the dições conceituais que envolvem a construção da
construction of the field of workers’ health in Bra- área de saúde do trabalhador no Brasil.
zil. Palavras-chave Medicina do Trabalho, Saúde do
Key words Labor Medicine, Workers’ health, trabalhador, Ciência médica
Medical science
1
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fiocruz. Rua
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ.
elfadel@globo.com
2
Universidade Federal do
Mato Grosso.
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Vasconcellos, L. C. F. & Pignati, W. A.

Medicina: ciência? cias expliquen científicamente el Universo... El atri-


buto más esencial de la existencia es su perentorie-
Se definir ciência é um desafio hermenêutico qua- dad: la vida es siempre urgente4.
se insondável, situar a medicina como ciência Ocorre que a fronteira entre o comportamen-
pode ser uma temeridade epistemológica. Im- to do “fazer médico” e o conteúdo dos postula-
pregnada de avaliações subjetivas das humani- dos “científicos” e não científicos que lhe subsi-
dades, a medicina é instigante neste dilema de diam carece de limites precisos em que se possa
ser ou não ciência. assegurar onde começam e terminam: a ética do
A ciência, mesmo, ser ou não ser, permanen- ato médico, a relevância política de sua aplicação
temente revisitada em seus pilares dogmáticos e a certificação da indenidade científica que lhe
que lhe sustentam conceitualmente – as suas ca- embasa. Eis o desafio maior desse debate.
pacidades de previsibilidade, exatidão, compro- Se nos pusermos em acordo de que, em últi-
vação, reprodutibilidade, refutabilidade, como as- ma análise, cada ato médico, de per si, traduz uma
sinalaria Popper1, e instabilidade paradigmática, trajetória cumulativa de conhecimentos científi-
como acrescentaria Kuhn2, entre tantas variáveis cos recheados de observações empíricas e singu-
de categorização – instiga o debate sobre a me- larizados, estaremos diante do dilema: não será
dicina: ciência ou não. Todavia, independente- cada ato médico – expressão emblemática da prá-
mente do desfecho deste debate, a possibilidade xis da medicina – uma invenção não patenteável
de se estabelecer critérios científicos de análise ou ainda não patenteada? Por outro lado, o mes-
às práticas e metodologias arroladas no campo mo recheio do pragmatismo individualizado em
do conhecimento médico supõe uma necessária cada ato médico possui fortes temperos cultu-
demarcação epistêmica de seus objetos de alcan- rais, míticos, místicos e aleatoriamente determi-
ce. Parece que é desta forma que a filosofia da nados pela (in)consciência de cada criador e/ou
ciência tem se comportado, ao se referir ao cam- executor do ato em si. Nesse caso, o fazer médico
po da saúde e às disciplinas que lhe conformam, não será a expressão pura e simples do que mile-
com destaque para a medicina, ao buscar baliza- narmente se rotulou de ars curandi? – uma pe-
mentos críticos de suas práticas. quena e singela obra de arte, ou a sua negação
Por certo, a medicina, ou ciência médica, (?), no caso de a obra ser concluída, mas não con-
como é expressivamente, e talvez descuidadamen- seguir atingir a finalidade “estética” da cura.
te, rotulada, comporta um sem-número de dis- Não é o propósito desta discussão visualizar
ciplinas do conhecimento científico, para alcan- o ato médico como prática profissional corpora-
çar seu(s) objetivo(s). Certo, também, que se fun- tiva de uma das inúmeras corporações nele im-
da em conhecimentos alicerçados em subjetivi- plicadas – no caso da nossa discussão, o da cor-
dades movediças, incapazes de resistir ao crivo poração dos médicos propriamente ditos, foco,
epistemológico. Dois lados de uma moeda em que inclusive, de um intenso debate legal contempo-
se pode questionar o seu valor de face, mas será râneo, no qual, sem maiores aprofundamentos,
moeda em última instância. posicionamo-nos diante do ato médico de for-
A medicina poderá ser encarada tão somente ma ecumênica e complacente dentro dos parâ-
como uma técnica, conjunto de habilidades arti- metros cultural e socialmente estabelecidos, ao
ficiais disponibilizadas para o desígnio do pro- longo da sua trajetória histórica, qual seja, como
cesso teleológico da vida, dada nesta a sua falibi- prática interdisciplinarmente constituída e gene-
lidade e ineficácia para se perpetuar3. rosamente receptiva a novas práticas.
E, como técnica ou conjunto harmonizado de Apenas, apoiados na sua emblematização,
técnicas, a medicina, sistematizada no seu ato intentamos delimitar o objeto da abordagem
concreto de devir – o ato médico –, estaria mais epistemológica, a de que a medicina estaria ou
suscetível ao crivo deontológico, por conta de sua não sujeita no laboratório reflexivo da validação
aplicação e dos resultados dela decorrentes, do dita científica. E, nesse caso, consideraremos o
que ao crivo epistêmico propriamente dito. ato médico em si mesmo: a prática mais singula-
Defendendo a idéia de que a medicina não se rizada e atomizada desfechada pelo médico,
trata de ciência, a despeito de sua emergência como elemento simbólico representativo da me-
como tal na contemporaneidade “tecnologizada” dicina.
do ato médico, bem se delimita o quanto à medi- Podemos fazer incursões em qualquer uma
cina se retira o caráter estritamente científico, ao das várias vias na encruzilhada deste tema, cer-
lidar ela com a manutenção da vida da espécie tos de que todas levarão ao mesmo ponto de che-
humana: La vida no puede esperar a que las cien- gada. Uma delas é a inexistência de uma ciência
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médica, mas somente o embasamento de seu ato discussão as especialidades da medicina como
pragmático final (o ato médico) num discurso subciências médicas. Evidentemente, que por se
em tudo científico. Calcada no discurso baseado tratarem de derivações da ciência-mor que lhes
em ciências puras, tais como a biologia, a fisiolo- rege, as especialidades médicas seguem, em qual-
gia, a química e a física, entre outras, a medicina quer situação normativa, deôntica ou técnica, a
acaba por invocar a ciência como meio de vali- “doutrina” da medicina-ciência: subciências, pois
dação da verdade de seu pragmatismo tecnicista, bem.
na medida em que ciência é sinônimo de verda- Hipócrates (460-377 a.C.), em sua sentença
de5. fundadora da medicina – o juramento – coloca o
Talvez, o que mais distancie a medicina e o ente teleológico essencial da matéria: Eu juro, por
conjunto de práticas que lhe dão corpo da ciên- Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panacea, e
cia seja o seu conteúdo teleológico, centrado na tomo por testemunhas todos os deuses e todas as
ética do comportamento finalístico, cuja essên- deusas, cumprir, segundo meu poder e minha ra-
cia é o valor intrínseco de fazer o bem, em prin- zão, a promessa que se segue: [...] Aplicarei os regi-
cípio a qualquer custo, na direção da cura. Con- mes para o bem do doente segundo o meu poder e
tudo, se na busca desse objetivo-mor (fazer o entendimento, nunca para causar dano ou mal a
bem), a medicina vai beber na fonte das ciências alguém. A ninguém darei por comprazer, nem re-
que lhe dão suporte e consistência, e quanto mais médio mortal nem um conselho que induza a per-
próxima do fundamento científico mais a medi- da [...] Conservarei imaculada minha vida e mi-
cina cure, ou seja, mais atinja seu desígnio essen- nha arte [...] Em toda a casa, aí entrarei para o
cial, mais ela se torna científica. Aproximações bem dos doentes... Se eu cumprir este juramento
que nos fazem preservar a ideologia de medicina com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente
como ciência, ainda que ressalvadas suas tantas da vida e da minha profissão, honrado para sem-
variáveis não científicas. Fato que coloca, de for- pre entre os homens; se eu dele me afastar ou in-
ma mais incisiva, a ciência médica e o ato médi- fringir, o contrário aconteça”7.
co na rota do olhar epistemológico sobre si. Não Juramento este que se mantém como emble-
fora desse modo, o ato médico seria tão somente ma do significado da arte médica ou da medici-
um ato de benemerência social, um ato político, na-ciência, em nenhuma hipótese contestado ou
um ato de curandeirismo, um ato de solidarie- repudiado ao longo desses 23 séculos, porquan-
dade humana, embora não deixe de ser uma to negá-lo seria negar a essência da matéria mé-
amálgama de todos eles, mas sempre revestido dica e sua finalidade.
de um caráter “científico”, como assinalava Gale- Nesse contexto, a medicina e o ato médico
no (129-200) ainda no alvorecer da medicina que a corporifica têm, em última análise, o seu
como ciência: “Curto e hábil é o caminho da es- objeto de realização concreta como ciência o bem
peculação, mas não conduz a nenhuma parte; lon- do doente, o bem do paciente, o bem do ser hu-
go e penoso é o caminho da experiência, mas nos mano sob o cuidado médico, enfim, o bem ou
leva a conhecer a verdade”6. princípio da beneficência. Não há ressalvas. O
princípio da beneficência tem como regra nortea-
dora da prática médica, odontológica, psicológica
Medicina-ciência e da enfermagem, entre outras, o bem do paciente,
o seu bem-estar e os seus interesses, de acordo com
É nesse contexto, digamos galênico, que coloca- os critérios do bem fornecidos pela medicina, odon-
mos a medicina como ciência lato sensu. Seja para tologia, psicologia e enfermagem. Fundamenta-se
que desta premissa se retirem os postulados que nesse princípio a imagem que perdurou do médico
regem a validação de suas incursões, sob o pris- ao longo da história, e que está fundada na tradi-
ma da crítica científica, seja para que nos disci- ção hipocrática8.
plinemos na delimitação de conceitos, mesmo Parece factível, portanto, que a mirada filo-
sabendo-os insuficientes para dar conta da com- sófica da ciência sobre a medicina considere que,
plexidade arrolada no objeto conceituado. a despeito de um desprovimento ideológico apri-
Assim, a medicina-ciência se comporta como orístico da ciência em geral – uma “neutralida-
um grande afluente de ciências subjacentes e um de” científica no seu objeto teleológico, que, a ri-
escoadouro de subciências: suas ramificações – gor, sabemos ser também questionável –, o obje-
as especialidades médicas. Sem o caráter de valo- to finalístico da medicina calcado numa ideolo-
ração qualitativa, e muito mais na linha de su- gia e numa ética do “bem” não borra a silhueta
bordinação hierárquica, consideraremos nesta científica da medicina.
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Vasconcellos, L. C. F. & Pignati, W. A.

A idéia concreta de “bem”, contudo, é vaga, ção do comportamento científico ou não de um


em decorrência de valores principalmente cul- ato médico, numa contenda jurídica, ética, mo-
turais e místico-religiosos para defini-la e, por ral, social ou técnica, se não pela própria valida-
isso, extremamente variável em função do con- ção científica do mesmo, sobreposto àquelas va-
texto histórico de cada sociedade em particular. riáveis, de modo a justificá-lo ou condená-lo?
Mais uma vez, a medicina, incorporando certa Desse modo, entendemos que a medicina-ciência
“trans-historicidade” em sua finalidade, vai se e as especialidades médicas serão, como subciên-
fundar na idéia de “bem” como cura ou, na sua cias, alvo de olhares epistemológicos sobre si, em
impossibilidade, mitigação da dor e do sofrimen- que, ao fim, feito o percurso canônico adequa-
to, a partir da utilização de seu aparato técnico e do, deverão estar legitimadas perante a ciência
tecnológico. “oficial”. Ou deveriam estar como salvaguarda
Para a medicina, o “bem” finalístico a que se de uma práxis abrigada no seio da ciência, e que
propõe alcançar é devolver ao ser humano sob o desta não se espera um ato de não-reconheci-
cuidado médico a forma mais condizente possí- mento da medicina-ciência, como se a ciência
vel com o “andar natural das coisas da vida”, em pudesse abandonar a medicina à própria sorte,
seu ambiente cultural e social, ainda que, como por ter como objeto finalístico o “bem”.
ensinava Galeno, vix medicatrix naturae, a força Ocorre que no caso da subciência dita Medi-
curativa da natureza muitas vezes prescinda da cina do Trabalho, o paradigma da cura e do “bem”
medicina e do médico – la idea de plantear la como ato finalístico da medicina é violado, pe-
medicina como una profesión que algunas veces remptoriamente violado. Esse pode ser o calca-
cura, otras alivia y siempre acompaña5. nhar-de-aquiles da abordagem epistemológica e
Por seu turno, ao olharmos criticamente para sua competência no tocante à medicina-ciência.
a medicina-ciência, tendo como premissa sua su- Esta é a nossa discussão.
bordinação a um conjunto de valores, nem to-
dos estritamente científicos, que se superpõem
na direção de seu fim maior – o bem, a cura –, Medicina do Trabalho – subciência
evidentemente a validação do experimento mé- médica?
dico que leve a alcançar esse objetivo se dará num
cenário de tolerância e adaptação epistemológi- Antes, quando a medicina não comportava es-
ca às suas particularidades. pecialidades, havia uma natural abordagem ho-
A demarcação, a mais clara possível, dessa lística do ser humano em que a medicina busca-
abordagem repousa na separação que deverá es- va o “bem” finalístico da cura, independentemen-
tar nítida e cristalina quando, na análise do ato te dos fatores determinantes dos desequilíbrios
médico, o critério para a sua validação, para a do “andar natural das coisas da vida”. À medida
sua legitimidade, não se dê no campo estrito da que se complexificaram as variáveis de aborda-
ética de valores culturais ou socialmente estabe- gem, e o conhecimento científico foi se acumu-
lecidos. Enfim, que seja o crivo epistemológico lando, a medicina-ciência foi se subdividindo
sobre a medicina um acontecimento científico em para dar conta dos níveis de exigência requeri-
si mesmo, como que reconhecendo que se a uma dos nos campos específicos do conhecimento
dada ciência é facultada a finalidade de uma idéia necessário para atingir o “bem” finalístico.
de valor, no caso a realização do “bem”, a ciência, Assim, podemos dizer que o grau e a intensi-
ela mesma, deverá se auto-avaliar no ato de ava- dade de especialização da medicina deram-se no
liar. marco do avanço tecnológico, a partir da acu-
Parece não importar muito, se formos nesta mulação de experimentos científicos e sua vali-
linha, se a filosofia da ciência percorrer caminhos dação no ambiente legitimado da ciência oficial:
heterodoxos na obediência aos seus postulados, a academia, as instituições de pesquisa e a im-
rompendo com pacotes muitas vezes fechados prensa científica oficial. Entre algumas vertentes
de dogmas metodológicos e normativos. Relati- da pesquisa científica que deram suporte e legi-
vismo, talvez, mas muito mais mutações para- timação para a conformação de uma medicina-
digmáticas a la Kuhn: algo como se a própria epis- ciência e sua gradual, e ainda inacabada, subdi-
temologia estivesse sujeita às instabilidades pa- visão em especialidades, podemos citar: a bacte-
radigmáticas, devendo, às vezes, migrar de uma riologia, a fisiologia, a farmacologia, a imageno-
epistemologia “normal” para uma epistemologia logia, a computação científica, a energia nuclear,
“revolucionária”. etc.
Como definir, por exemplo, diante da avalia- Criado o especialista, nesse processo de
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evolução científica dos instrumentos e meios para tologista, no caso das dermatoses ocupacionais,
aprimorar o “bem” finalístico da cura, o cardio- entre outros tantos casos exemplares. Poderia ser,
logista passou a ser um médico, que executa então, a MT uma clínica geral voltada para os tra-
um ato médico, cujo objeto é alcançar o “bem” balhadores, no tocante aos seus males origina-
do coração do paciente. Também assim foi com dos no trabalho? Do mesmo modo, a resposta
o pneumologista, o dermatologista, o ginecolo- também é não, na medida em que o médico do
gista, o psiquiatra e todos os demais especialistas trabalho não tem como missão tratar do traba-
dentro da plêiade de subciências médicas, lhador, propiciar a cura de seus males, mas so-
hoje sobejamente conhecidas e definitivamente mente avaliar sua capacidade física de continuar
estabelecidas. ou não trabalhando. No máximo, em situações-
Nesse espectro, é bem evidente a tríade co- limite de mal-estar dos trabalhadores, capazes de
meço-meio-fim da práxis médica. Se no início impedir ou comprometer a capacidade de traba-
da abordagem em busca da cura, o médico ob- lhar, o médico do trabalho pode agir como blo-
serva que a cura depende do “bem” do coração queador desse mal-estar, pela via da medicaliza-
do paciente, e que para isso é necessário um olhar ção paliativa de sintomas diversos ou pelo afas-
específico e mais aprofundado de seus meandros, tamento temporário, pelo menor tempo possível
o cardiologista assume o caso em ato médico con- que as exigências do processo produtivo permi-
tinuado e coerente com o aspecto finalístico da tam. Caso o problema de saúde seja grave, a pon-
medicina-ciência. to de comprometer mais definitivamente o tra-
Sem entrar no mérito e na crítica desse mo- balhador como elemento da produção, o afasta-
delo de fragmentação interminável da medicina, mento poderá ser definitivo, e o problema de saú-
pois não é esse o foco da nossa discussão, de/doença será resolvido por outro médico e, não,
existe uma coerência científica das subciências pelo médico do trabalho.
médicas para se chegar ao objetivo maior da Sendo assim, cabe outra pergunta: a MT tra-
medicina-ciência. ta, então, de quê? Por certo não é do trabalhador,
Pois que à Medicina do Trabalho (MT) não porquanto, como vimos, foge ao seu escopo de
se passa esta índole. A rigor, a MT deveria ser a atuação. Não há o objeto finalístico da cura no
especialização médica que visa a aprofundar o ato do médico do trabalho. Seu ato se restringe a
olhar médico para aquelas enfermidades que, ori- servir como intermediador dos danos infligidos
ginadas na relação trabalho-saúde, pudessem em à força de trabalho, estabelecendo critérios, não
ato médico continuado e coerente alcançar o para o diagnóstico do dano (ou doença) em si,
“bem” finalístico da medicina-ciência. Não é, mas para o diagnóstico de aptidão para que o
contudo, esta a finalidade da MT, posto que sua “paciente” continue trabalhando ou não.
posição institucional não é a de tratar e, em con- O ato médico na MT configura-se, portanto,
seqüência, buscar o “bem” do paciente, mas an- em ato intermediador, filtrante, de avaliação da
tes, ao avaliar a capacidade física do trabalhador aptidão do trabalhador para seguir ou não sua
de poder continuar ou não trabalhando, muitas jornada, ou de se o “paciente” deve ou não real-
vezes o ato médico se traduz na devolução do mente ir ao “verdadeiro” médico.
paciente às fontes determinantes de seu mal-es- Ao médico do trabalho caberá um outro tipo
tar original. Em outras palavras, o médico do tra- de ato finalístico: o de avaliar se há condições para
balho não se situa no mundo do trabalho, e neste manutenção da força de trabalho na linha de pro-
institucionalmente se insere como “verdadeiro” dução. Em última instância, não parece haver
médico e agente facilitador da cura. O verdadei- qualquer proximidade com o objeto da medici-
ro, aqui propositalmente aspeado, tem a cono- na-ciência. Será então uma fraude a MT como
tação assumida neste debate da verdade científi- subciência médica? Sim ou não, como dirimir
ca conferida ao ato médico, embasado no co- epistemologicamente esta questão?
nhecimento científico e levado ao extremo na O binômio prevenção-cura aflora nesta dis-
comprovação de atingir seu objetivo, ou seja, cussão. Secularmente, a medicina navegou e des-
sujeito à validação científica na medida do alcan- fraldou suas velas no oceano da cura, e assim ain-
ce do “verdadeiro” objeto finalístico, qual seja, o da o é. Entra em cena o não menor universo das
da cura. ciências da saúde e seus postulados da preven-
Em outra situação, se um médico do traba- ção, e não mais o (restrito) campo da medicina e
lho observa um trabalhador com problema car- os seus postulados curativos, em última instân-
díaco, não é ele que o tratará, mas o cardiologista cia. Ou, mais precisamente, um campo teleolo-
que deverá ser acionado, assim como o pneumo- gicamente mais abrangente além do da cura: o
logista, no caso das pneumoconioses, e o derma- da “cura antecipada”.
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Vasconcellos, L. C. F. & Pignati, W. A.

Pois bem que se tem, aqui, um novo dilema. como visto, poderia então estar inserida na saú-
Seriam as chamadas ciências da saúde ciências de pública (preventiva)? Vejamos.
mesmo? Pois que se vão, do mesmo modo, se pau- A MT nasce fora do paradigma da saúde pú-
tar em tributários científicos inequívocos, tais blica e fora dela permanece na maioria dos paí-
como a epidemiologia, as engenharias, a genéti- ses do mundo. A rigor, o único país de estrutura
ca, a estatística e as matemáticas e, entre outras, a capitalista que intenta resgatar o campo das rela-
própria medicina-ciência, para dar concretude a ções saúde-trabalho para o espectro de abran-
seus objetivos e formulações, calcadas na pesquisa gência das políticas públicas de saúde ou, me-
e na observação empírica prospectiva e ajustá- lhor, políticas de saúde pública, é o Brasil, a par-
vel, as ciências da saúde parecem ter em si a seiva tir da Lei Orgânica da Saúde, de 1990, no marco
da ciência stricto sensu. da estruturação do sistema e dos serviços de saú-
É evidente que, do mesmo modo que a me- de. É bem verdade que a Itália, fonte inspiradora
dicina, as ciências da saúde também se fundam da chamada “saúde do trabalhador” no Brasil,
em variáveis sociais, culturais, políticas e econô- também se arvorou nesta ousadia de pensar a
micas, não tão científicas, mas que não lhes reti- MT, ou medicina das fábricas como chamavam
ram o caráter de ciências, talvez rotuladas no plu- os italianos, como campo de intervenção das
ral para, justamente, firmar o seu caráter plural e políticas de saúde e de suas estruturas públicas.
conferir-lhes, assim, o grau de ciências lato sensu. Caminho contra-hegemônico interrompido pela
E, assim, as chamadas ciências da saúde sur- integração européia e os novos cenários políticos
gem no cenário como evidente contraponto, não que influenciaram na deflagração de uma con-
propriamente antagônico ao paradigma médico, juntura desfavorável à consolidação desse mo-
e mais como polegar e indicador fazendo, na rota delo inovador na Itália atual.
da modernização do pensamento científico quan- A tentativa de resgate da MT para o campo
to aos fatores causais dos males que afligem a saú- da saúde pública, no Brasil, como ferramenta téc-
de das pessoas, uma “pinça evolutiva” sanitarista nica componente da área de saúde do trabalha-
(polegar e indicador se encontrando – medicina dor, calcou-se, então, na intenção de mudar o seu
e saúde), resgate – ou inauguração – de uma abor- paradigma, centrado em algumas linhas princi-
dagem mais decisiva para mudar o rumo do “an- pais:
dar natural das coisas da vida”, evitando ou im- - A compreensão de que a matéria de que trata
pedindo aquilo que possa acarretar mudanças de a MT – relações saúde-trabalho – situa-se no
um andar natural “saudável”, ou intervindo no campo da saúde pública e não no campo das re-
mesmo. Ou, o mais saudável possível, considera- lações de trabalho e previdência, como é o mo-
dos os fatores culturais implicados em sua con- delo vigente na maioria dos países;
cepção. - A mudança de enfoque: direito à saúde e
E, pois, que a intervenção sobre os fatores de- segurança no trabalho com base em relações de
terminantes dos desequilíbrios à saúde calca-se contrato e delimitações normativas restritivas,
num novo paradigma, inicialmente o da saúde para o de direito à saúde, amplo e irrestrito;
pública, depois saúde coletiva, às vezes (mal) ro- - A ampliação do modelo de intervenção so-
tulado de medicina social e, mais recentemente, bre os fatores determinantes dos danos, com base
o da promoção da saúde, ainda confuso na de- na vigilância da saúde e não no modelo fiscaliza-
marcação de seus limites. dor da norma; e, principalmente, como ponto de
Definem-se, a partir disto, dois grandes pó- essência;
los, grosso modo: o da medicina (paradigma cu- - A incorporação do trabalhador como sujei-
rativo) propriamente dita e o da saúde pública to coletivo na definição das práticas e elemento
(paradigma preventivo), como todos sabemos. decisivo na transformação dos processos de
Ou a medicina-ciência cuida de curar ou as ciên- trabalho.
cias da saúde cuidam de evitar a necessidade de O movimento de reformulação do paradig-
curar. ma da MT para esse campo rotulado de Saúde
Para a Saúde Coletiva a análise crítica da me- do Trabalhador (ST), consolidado na lei do SUS
dicina representa duplo desafio: “epistemológico”, e incorporado gradativamente nos últimos anos
dada a complexidade dos objetivos envolvidos no pelas áreas das relações saúde-trabalho no âmbi-
estudo; e “ético”, uma vez que uma vertente de in- to acadêmico, sindical e dos serviços de saúde,
tervenção está presente com maior ou menor in- partiu da premissa de que o campo das relações
tensidade nesta área [...]9. saúde-trabalho tenderia a uma evolução natural,
Se a MT não se insere na medicina (curativa), no aspecto dos campos de conhecimento que lhe
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dizem respeito. Assim, a MT, hoje sendo supera- poderia se atribuir a decisão de transformar os
da pelo campo da saúde ocupacional, estaria ca- processos de risco à saúde no trabalho, por não
minhando para o campo da saúde do trabalha- ser de sua alçada a formatação, a organização e a
dor ou, em última instância, da saúde pública. manutenção dos processos produtivos, logica-
Essa evolução conceitual e operacional, em mente.
primeira instância da MT para a saúde ocupaci- Comparação entre a atuação do médico do
onal, estaria respondendo a uma relativa impo- trabalho e do profissional clássico de saúde pú-
tência da medicina do trabalho para intervir sobre blica, em que se poderia alegar que, do mesmo
os problemas de saúde causados pelos processos de modo que um sanitarista nada pode fazer para
produção com uma “resposta racional, ‘científica’ evitar a desnutrição, causada pela fome, ou
e aparentemente inquestionável” no sentido de as doenças decorrentes da ausência de saneamen-
ampliar a atuação médica, intervindo sobre o to básico, pela incapacidade de influir diretamen-
ambiente de trabalho, com a concorrência de ou- te no processo político e/ou no modelo econô-
tras disciplinas do conhecimento10. mico que as acarreta, não se sustenta. A saúde
Do mesmo modo, em segunda instância, a pública, ao trabalhar no marco da prevenção, li-
“passagem” da “saúde ocupacional” para a “saú- dando com os determinantes desde seu reconhe-
de do trabalhador” teria se dado em função de o cimento, sistematização das informações que lhes
modelo da saúde ocupacional – desenvolvido para desnudam e proposição de soluções para sua eli-
atender a uma necessidade da produção – não ter minação, atua necessariamente no paradigma
conseguido atingir os objetivos propostos. Entre as contra-hegemônico ao processo de sustentação
razões que justificam o fato, assinala-se: o mode- desses determinantes.
lo mantém o referencial da medicina do trabalho De modo semelhante à medicina-ciência, pa-
[...] não concretiza o apelo à interdisciplinaridade rece ser o objeto finalístico da saúde pública o
[...] [e] apesar de enfocar a questão no coletivo de “bem” coletivo, a “cura antecipada” a partir da
trabalhadores, continua a abordá-los como “obje- intervenção sobre os determinantes dos danos
to” das ações de saúde [...]10. à saúde, não mais do paciente, mas das pessoas
Nesse contexto, a formulação de um novo em geral.
campo de atuação das ciências da saúde (públi- O distanciamento da saúde pública entre a
ca, coletiva) – o da “saúde do trabalhador” – atu- formulação técnica, com base nas disciplinas do
aria em expressão de contra-hegemonia, supe- conhecimento que lhe dão suporte (comporta-
rando a saúde ocupacional e absorvendo a MT mento científico), e a capacidade de resolver pro-
como simples “ferramenta técnica” de apoio ao blemas em nível decisório (comportamento po-
desenvolvimento das linhas antes citadas que lítico) não lhe retira a identidade científica, no
compõem seu paradigma. campo das “ciências da saúde” lato sensu, man-
O paradigma secularmente alicerçado na MT tendo-a capacitada a servir-se de parâmetros ci-
clássica daria, desse modo, lugar a um novo en- entíficos para propor mudanças no cenário polí-
foque técnico-científico, em que a ênfase muda- tico e no modelo econômico, inclusive os relaci-
ria da devolução do trabalhador ao processo de onados aos problemas presentes nos processos
trabalho em regime de risco à saúde, para o de produtivos. Ou seja, a incapacidade da saúde pú-
transformação dos processos e ambientes de ris- blica de resolver muitos problemas não se deve à
co em outros que fossem garantidores da saúde. incapacidade de revelá-los e relevá-los, assim
Ocorre que, evidentemente, a MT não pode- como à medicina-ciência é reservada a incapaci-
ria cumprir esse papel, seja por se tratar de ferra- dade de resolver outros tantos, a despeito de ten-
menta da gestão de pessoas na linha de produ- tar escrutiná-los e tratá-los.
ção, no sentido de avaliar sua capacidade bioló- A MT, ao contrário, atua como braço de per-
gica de trabalhar ou não, seja por estar impedida petuação da hegemonia dos processos de susten-
de fazê-lo por obediência à norma, ou seja, ainda tação dos determinantes dos danos na relação
por estar implícita ou explicitamente constran- saúde-trabalho ao legitimá-los, na medida de sua
gida a não colidir com o interesse maior dos pro- atuação como elemento filtrante da aferição da
cessos produtivos, qual seja, o de produzir. E pro- intensidade dos danos à saúde. De outra forma,
duzir com o menor custo, a maior rapidez e a também, diante dos riscos presentes nos ambi-
maior eficiência, em que a saúde – insumo da entes e processos de trabalho, a MT age como
força de trabalho – é condição mediadora, e não elemento “científico” ao corroborar e auxiliar no
objetal, do processo produtivo. Mais decisiva- aperfeiçoamento e na utilização de equipamen-
mente se poderia acrescentar que à MT jamais tos que transferem ao corpo do trabalhador a
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responsabilidade de proteção contra os riscos: em catedrais, com Ellenborg (1440-1499), que es-
equipamentos de proteção individual11. Além dis- creve um livro sobre os riscos dos ourives, com
to, a MT atua como sensor de avaliação do nível Vigo, sobre a febre dos marinheiros e, entre ou-
de agentes físicos e químicos tóxicos, estabeleci- tros, com Agrícola, sobre a asma dos mineiros13.
dos em normas – limites de tolerância de exposi- Embora muito se tenha produzido e até sis-
ção no ambiente de trabalho. tematizado sobre essas doenças, é em 1700 que
Parece estarmos diante de um dilema episte- Bernardino Ramazzini (1633-1714), médico ita-
mológico ao olhar a MT como subciência médi- liano, com sua obra De Morbis Artificum Diatri-
ca, na medida em que não cumpre o objeto fina- ba (Tratado sobre as Doenças dos Trabalhado-
lístico da medicina-ciência. Do mesmo modo, na res), vai estabelecer uma sistematização e uma
tentativa de migração de seu paradigma curativo amplitude sobre o tema até então não experimen-
para o preventivo, colocando-a como área afim tada, a ponto de ser “impropriamente” reconhe-
ao campo da saúde pública, também não se ob- cido como o pai da Medicina do Trabalho.
serva o cumprimento do objeto finalístico das ci- Impropriamente, assumimos, pois cremos
ências da saúde. que o célebre e genial médico provavelmente não
Nem pretende e tampouco exibe competên- gostaria de ser tido como o fundador de uma prá-
cia científica para a cura – o “bem” individual tica, cuja possibilidade de reconhecimento e di-
(medicina-ciência), nem para a “antecipação da agnóstico de doenças e a capacidade de poder re-
cura coletiva” (ciências da saúde – saúde públi- solvê-las estivessem condicionadas a normas, li-
ca/saúde coletiva). mites e fronteiras duvidosas entre o dano efetivo
Em outras palavras, o eventual comporta- à saúde e o estabelecido em contratos de traba-
mento “científico” da MT antes se aproxima, e lho, em tudo contrário ao que ressaltava: Das ofi-
mesmo confunde-se ao comportamento políti- cinas dos artífices, portanto, que são antes escolas
co de bem cumprir a norma contratual, ao con- de onde saí mais instruído, tudo fiz [...], sobretu-
trário do que ocorre com a saúde pública, cujo do, o que é mais importante, saber aquilo que se
distanciamento entre o comportamento cientí- pode sugerir de prescrições médicas preventivas ou
fico e o comportamento político não lhe retira o curativas contra as doenças dos operários.14 Pro-
caráter finalístico de buscar o bem da coletivida- fessor que foi, diante da necessidade de agregar a
de, inclusive de trabalhadores nas linhas de pro- categoria trabalho ao rol de determinantes dos
dução. males que afligiam as pessoas, Ramazzini, no pre-
Corrobora a dificuldade de compreensão da fácio de sua magnífica obra, assinalava que se
MT, como subciência, quando se sabe que a nor- deveria acrescentar à anamnese hipocrática clás-
ma contratual é expressão hegemônica de ma- sica a pergunta “e que arte exerce?”14.
nutenção do corpo do trabalhador como força Considerando que o “ato médico laboral”
de trabalho capaz de manter sua capacidade de traduz uma espécie de desconstrução do ato mé-
produzir para o ato finalístico do processo de pro- dico clássico, como representação simbólica de
dução: a produção, e não o aprimoramento do uma “cultura de limites”, Waissmann12 assinala
“andar natural das coisas da vida”. que a MT tem como objetivo básico a não culpa-
De que se trata, então, a Medicina do Traba- bilidade do trabalho na gênese de patologias, cuja
lho? Vamos tentar definir. ação médica é dirigida à adequação dos indiví-
duos à produção e voltada para as patologias
individuais “para evitar que efeitos aparentes nos
Medicina do Trabalho – de que se trata? coletivos [de trabalhadores] pudessem vir a es-
clarecer vínculos entre eles e o trabalho”.
A descrição de doenças relacionadas ao trabalho Nesse sentido, o “pai” da Medicina do Traba-
ocorre desde a mais remota Antigüidade, em pa- lho seria Robert Baker: A Medicina do Trabalho
piros egípcios, textos judaicos, evidentemente em enquanto especialidade médica surge na Inglater-
Hipócrates, Platão, Aristóteles, Plautus, Virgílio, ra, na primeira metade do século XIX com a Revo-
Plínio, o velho, Lucrécio, chegando a Galeno, en- lução industrial. Naquele momento, o consumo da
tre tantas citações ao longo da história12. força de trabalho, resultante da submissão dos tra-
Pouco a pouco, ainda na Idade Média, as do- balhadores a um processo acelerado e desumano de
enças relacionadas ao trabalho foram sendo ob- produção, exigiu uma intervenção, sob pena de tor-
servadas com maior detalhamento, com Avicena nar inviável a sobrevivência e reprodução do pró-
(980-1037), que descreveu a cólica plúmbica, com prio processo. Quando Robert Dernham, proprie-
Dickerson observando a saúde de trabalhadores tário de uma fábrica têxtil, preocupado com o fato
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de que seus operários não dispunham de nenhum Medicina do Trabalho: subserviência
cuidado médico... procurou o Dr. Robert Baker,
seu médico, pedindo que indicasse qual a maneira A rigor, o que faz então a Medicina do Trabalho?
pela qual ele, como empresário, poderia resolver A profissão médica caracterizou-se, ao longo
tal situação, Baker respondeu-lhe: “Coloque no in- da história, como profissão tipicamente liberal,
terior de sua fábrica o seu próprio médico, que cuja práxis alcança nossos dias, embora cada
servirá de intermediário entre você, os seus tra- vez mais os médicos venham se assalariando e
balhadores e o público”10 (grifo nosso). proletarizando.
Como vemos, o papel intermediador do mé- Em virtude desta prática histórica, o consul-
dico do trabalho entre patrão e empregados bem tório médico é uma instituição solidamente re-
se ressalta desde a sua origem. Seria este fator in- conhecida e socialmente legitimada, especialmen-
termediário o de mitigar conflitos? Ou seria de te nos países capitalistas, como o espaço de exer-
selecionar os melhores? Ou, ainda, como assina- cício livre da medicina, onde o paciente vai bus-
lava Henry Ford, fator de lucratividade? : “O cor- car a sua cura.
po médico é a sessão de minha fábrica que me dá Como já vimos, o trabalhador enfermo de
mais lucro.”15. uma doença relacionada claramente ao trabalho
Para tentar responder a estas questões, é ne- não procurará um consultório de médico do tra-
cessário continuar com Baker, que assinalava ain- balho para curar-se, mas sim o do “verdadeiro”
da: Deixe-o [o médico do trabalho] visitar a fábri- médico capaz de curá-lo. Se, por coincidência,
ca sala por sala, sempre que existam pessoas traba- este for também médico do trabalho, o papel que
lhando, de maneira que ele possa verificar o efeito exercerá em seu consultório não será, evidente-
do trabalho sobre as pessoas. E se ele verificar que mente, o de médico do trabalho, mas o de clínico
qualquer dos trabalhadores está sofrendo a influ- geral ou especialista clínico, ou de cirurgião.
ência de causas que possam ser prevenidas, a ele Ou seja, a posição de médico do trabalho será
competirá fazer tal prevenção10. “sempre” a de médico subordinado a um contra-
Fica patente o espírito hipocrático de Robert to que o coloca na posição de cumpri-lo para
Baker, quando recomenda que o médico percor- servir como elemento filtrante da força de traba-
ra todo o ambiente de trabalho e conheça os pro- lho capaz ou incapaz de seguir trabalhando, em
cessos produtivos capazes de provocar dano à função de sua aptidão ou condição laborativa.
saúde, para, em consonância com o ente finalís- A Medicina do Trabalho exercida em consultó-
tico da medicina, promover o bem do paciente. rio médico serve, apenas, para a realização de
E com este mesmo espírito continua Baker: Des- exames vinculados a contratos de trabalho, tais
sa forma você poderá dizer: meu médico é a minha como exames admissionais, periódicos, demis-
defesa, pois a ele dei toda a autoridade no que diz sionais e periciais.
respeito à proteção da saúde e das condições físicas Trata-se, portanto, de uma inequívoca posi-
de meus operários: se algum deles vier a sofrer qual- ção institucionalmente estatuída de controle da
quer alteração da saúde, o médico unicamente é força de trabalho a serviço do contratante. O con-
que deve ser responsabilizado.10 tratante do médico do trabalho, por sua vez, é o
Ao chamar a si a responsabilidade sobre a saú- mesmo contratante da força de trabalho empre-
de dos trabalhadores, acreditando que poderia gada no processo produtivo. Desse modo, reser-
intervir nos processos produtivos, Baker reitera va-se ao médico do trabalho um papel interme-
o caráter finalístico da medicina vigente à época, diador (como previa Baker) do contrato de tra-
e não sujeita, ainda, a outras variáveis que não a balho, no sentido de fazer valer o contrato e não
de sua finalidade. O que Baker, segundo suas pró- o “bem” finalístico da cura individual, ou o “bem”
prias observações, não imaginava é que ao médi- finalístico da antecipação da cura coletiva (como
co jamais seria facultada a possibilidade de alte- não previa Baker).
rar os processos de trabalho com o objetivo de Responsabilizado por essa intermediação, ao
eliminar riscos à saúde. Ou seja, inaugurada a assumir um papel controlador, o médico do tra-
Medicina do Trabalho, de imediato rompe-se o balho, para bem servir ao seu desígnio, também
elo que a uniria ao objeto maior da medicina- contratual, necessariamente assume um perfil de
ciência: o bem ou a cura. subserviência ao contratante, como instância
“responsável” pelo controle da força de trabalho.
A expressão “controle” é tão marcante na MT,
que a norma brasileira (Norma Regulamentado-
ra – NR-7) que estabelece a obrigatoriedade da
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elaboração e implementação, por parte de todos os No caso do perito, a subserviência, do mes-


empregadores e instituições que admitam traba- mo modo, é total à norma que rege as controvér-
lhadores como empregados [...] com o objetivo de sias da contenda judicial.
promoção e preservação da saúde do conjunto dos Em todos os casos, ainda que imbuído de
seus trabalhadores16, a cargo do médico do traba- generosidade e índole hipocrática para com a
lho, chama-se Programa de “Controle” Médico força de trabalho, no sentido de propiciar o “bem”
de Saúde Ocupacional (grifo nosso). ao coletivo de trabalhadores, o médico de traba-
A despeito de haver uma clara inspiração ide- lho fica impedido de fazê-lo, por sua posição ins-
ológica na modelagem do paradigma da chama- titucionalmente estabelecida, salvo dentro do li-
da saúde do trabalhador, centrada na concepção mite estrito (e limitado) da norma contratual.
marxista de luta de classes, em que as questões Nos casos em que não existe norma contra-
pertinentes ao binômio saúde-trabalho estariam tual, a abordagem dos problemas relacionados
involucradas nas relações capital-trabalho, sem ao binômio saúde-trabalho, desde a intervenção
discordar deste enfoque, não tratamos propria- sobre os fatores determinantes dos agravos até a
mente aqui de analisar a MT como subciência sua reparação, é realizada por profissionais que
médica subserviente ao capital. prescindem de qualquer identidade cognitiva,
Em verdade, a expressão subserviência que corporativa, deontológica, ideológica ou ética
intentamos repousa no fato de que a MT contra- com a MT. São eles, entre os diversos profissio-
diz a teleologia médica e se configura como uma nais capazes de cumprir esse papel: o sanitarista,
área de gestão de pessoas, e não de “gestão” da o epidemiólogo, o toxicologista, o psicólogo, o
saúde das pessoas, no sentido inequívoco da cura antropólogo, o cientista social e o “verdadeiro”
de seus males. médico.
Grosso modo, pode-se dizer que o mercado de
trabalho que absorve o médico do trabalho, no
Brasil, centra-se em três ramos: Conclusão
1) o médico do trabalho que, direta ou indi-
retamente, serve a um empregador público ou Ao que se pretendia, inicialmente, ao tentar res-
privado como controlador da força de trabalho; gatar a MT para o campo da saúde pública, como
2) o médico do trabalho que serve ao aparato “ferramenta técnica” contributiva, contrapõe-se
estatal de fiscalização da norma trabalhista de uma questão: qual conteúdo técnico oferece a MT
saúde e segurança do trabalho, servidor do Mi- para a constituição de um acervo de conhecimen-
nistério do Trabalho; tos capazes de intervir sobre os fatores implica-
3) o médico do trabalho que serve como pe- dos na relação saúde-trabalho? A rigor, nenhum
rito judicial, nomeado pelo juiz em contendas ju- e, antes, ao contrário. Em outras palavras, na
diciais trabalhistas, praticamente para avaliação constituição de um ambiente interdisciplinar
da pertinência ou não de percepção dos adicio- como, por exemplo, na composição de força-
nais de insalubridade e de periculosidade, regi- tarefa de escrutínio sobre a relação saúde-traba-
dos pelas Normas Regulamentadoras de núme- lho, não cabe qualquer papel contributivo à MT,
ros 15 e 1616. pois sua finalidade como elemento filtrante da
Em outras situações passíveis de arregimen- força de trabalho é objeto de análise como man-
tação do médico do trabalho, tais como a perícia tenedor dos fatores determinantes dos agravos,
previdenciária de nexo laboral de doença, efetu- e não como sujeito técnico de mudança destes
ada pelo Instituto Nacional do Seguro Social fatores.
(INSS), e em perícias judiciais de nexo causal, Em síntese, submeter ao crivo epistemológi-
com o trabalho para apuração de responsabili- co o contingente de aplicativos da Medicina
dade civil ou criminal, não existe a exigência de do Trabalho, muitos deles baseados em conheci-
diploma de médico do trabalho. mentos científicos, e entendê-los como corolári-
No primeiro caso, é nítido o perfil de servi- os de um pragmatismo subserviente a fatores de-
lismo do exercício profissional. Já no caso do fis- terminantes que fogem à sua capacidade de in-
cal do Ministério do Trabalho, a submissão ocorre tervenção para cumprir a finalidade da medici-
numa escala hierárquica acima: a de fiscal na-ciência, mais do que buscar o exercício em si
controlador do controlador, na medida em que mesmo da crítica, pretende retomar o debate so-
o “bem finalístico” da medicina continua bre a questão e, se possível, recolocá-lo no cam-
sendo preterido em prol da fiscalização e bom po da saúde pública, em específico, na saúde do
cumprimento da norma de controle da força trabalhador.
de trabalho.
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Colaboradores

LCF Vasconcellos e WA Pignati participaram


igualmente de todas as etapas da elaboração do
artigo.

Agradecimentos
A Fermin Roland Schram, pelo incentivo para
publicar este artigo.

Referências

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Artigo apresentado em 13/01/2005


Aprovado em 12/09/2005
Versão final apresentada em 17/11/2005

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