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ARTIGO Subciencia Ou Subserviencia
ARTIGO Subciencia Ou Subserviencia
Abstract This article discusses a disquieting is- Resumo O artigo traz ao debate um tema inqui-
sue in the field of workers’ health, the mission of etante na área de saúde do trabalhador, qual seja,
the labor physician in the context of a change in o papel do médico do trabalho, no contexto de uma
the model of public politics with regard to the re- mudança de paradigma das políticas dirigidas às
lation health and work that began with the estab- relações saúde-trabalho, a partir do advento do
lishment of the new Unified Health System in Sistema Único de Saúde. Buscando ater-se às ques-
Brazil. The paper focuses on epistemological ques- tões epistemológicas de ser ou não a medicina uma
tions like Medicine being or not a science and an- ciência, analisa-se o papel da Medicina do Traba-
alyzes the mission of Labor Medicine on the basis lho neste contexto, dentro de uma breve análise
of a short historical analysis of its development histórica de seu desenvolvimento, sua apropria-
and its appropriation by the production systems ção pela lógica dos sistemas produtivos e sua tra-
and institutional trajectory since the appearance jetória institucional, desde o surgimento do pri-
of the first factory physician. The study comes to meiro médico de fábrica. Conclui-se pela inter-
the conclusion that Labor Medicine is not on a pretação de que a Medicina do Trabalho não aten-
level with the ethical and scientific principles tra- de aos postulados éticos e científicos que se requer
ditionally expected from Medicine and its special historicamente da medicina e de suas especialida-
fields, understanding this branch of medicine as a des médicas, entendendo aquela como prática sub-
practice subordinated to other hegemonic and not serviente a outras variáveis, hegemônicas e não
scientific variables. Finally, this article remits to científicas. Além disto, remete o debate às contra-
the debate about the contradictions involving the dições conceituais que envolvem a construção da
construction of the field of workers’ health in Bra- área de saúde do trabalhador no Brasil.
zil. Palavras-chave Medicina do Trabalho, Saúde do
Key words Labor Medicine, Workers’ health, trabalhador, Ciência médica
Medical science
1
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fiocruz. Rua
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ.
elfadel@globo.com
2
Universidade Federal do
Mato Grosso.
1106
Vasconcellos, L. C. F. & Pignati, W. A.
Pois bem que se tem, aqui, um novo dilema. como visto, poderia então estar inserida na saú-
Seriam as chamadas ciências da saúde ciências de pública (preventiva)? Vejamos.
mesmo? Pois que se vão, do mesmo modo, se pau- A MT nasce fora do paradigma da saúde pú-
tar em tributários científicos inequívocos, tais blica e fora dela permanece na maioria dos paí-
como a epidemiologia, as engenharias, a genéti- ses do mundo. A rigor, o único país de estrutura
ca, a estatística e as matemáticas e, entre outras, a capitalista que intenta resgatar o campo das rela-
própria medicina-ciência, para dar concretude a ções saúde-trabalho para o espectro de abran-
seus objetivos e formulações, calcadas na pesquisa gência das políticas públicas de saúde ou, me-
e na observação empírica prospectiva e ajustá- lhor, políticas de saúde pública, é o Brasil, a par-
vel, as ciências da saúde parecem ter em si a seiva tir da Lei Orgânica da Saúde, de 1990, no marco
da ciência stricto sensu. da estruturação do sistema e dos serviços de saú-
É evidente que, do mesmo modo que a me- de. É bem verdade que a Itália, fonte inspiradora
dicina, as ciências da saúde também se fundam da chamada “saúde do trabalhador” no Brasil,
em variáveis sociais, culturais, políticas e econô- também se arvorou nesta ousadia de pensar a
micas, não tão científicas, mas que não lhes reti- MT, ou medicina das fábricas como chamavam
ram o caráter de ciências, talvez rotuladas no plu- os italianos, como campo de intervenção das
ral para, justamente, firmar o seu caráter plural e políticas de saúde e de suas estruturas públicas.
conferir-lhes, assim, o grau de ciências lato sensu. Caminho contra-hegemônico interrompido pela
E, assim, as chamadas ciências da saúde sur- integração européia e os novos cenários políticos
gem no cenário como evidente contraponto, não que influenciaram na deflagração de uma con-
propriamente antagônico ao paradigma médico, juntura desfavorável à consolidação desse mo-
e mais como polegar e indicador fazendo, na rota delo inovador na Itália atual.
da modernização do pensamento científico quan- A tentativa de resgate da MT para o campo
to aos fatores causais dos males que afligem a saú- da saúde pública, no Brasil, como ferramenta téc-
de das pessoas, uma “pinça evolutiva” sanitarista nica componente da área de saúde do trabalha-
(polegar e indicador se encontrando – medicina dor, calcou-se, então, na intenção de mudar o seu
e saúde), resgate – ou inauguração – de uma abor- paradigma, centrado em algumas linhas princi-
dagem mais decisiva para mudar o rumo do “an- pais:
dar natural das coisas da vida”, evitando ou im- - A compreensão de que a matéria de que trata
pedindo aquilo que possa acarretar mudanças de a MT – relações saúde-trabalho – situa-se no
um andar natural “saudável”, ou intervindo no campo da saúde pública e não no campo das re-
mesmo. Ou, o mais saudável possível, considera- lações de trabalho e previdência, como é o mo-
dos os fatores culturais implicados em sua con- delo vigente na maioria dos países;
cepção. - A mudança de enfoque: direito à saúde e
E, pois, que a intervenção sobre os fatores de- segurança no trabalho com base em relações de
terminantes dos desequilíbrios à saúde calca-se contrato e delimitações normativas restritivas,
num novo paradigma, inicialmente o da saúde para o de direito à saúde, amplo e irrestrito;
pública, depois saúde coletiva, às vezes (mal) ro- - A ampliação do modelo de intervenção so-
tulado de medicina social e, mais recentemente, bre os fatores determinantes dos danos, com base
o da promoção da saúde, ainda confuso na de- na vigilância da saúde e não no modelo fiscaliza-
marcação de seus limites. dor da norma; e, principalmente, como ponto de
Definem-se, a partir disto, dois grandes pó- essência;
los, grosso modo: o da medicina (paradigma cu- - A incorporação do trabalhador como sujei-
rativo) propriamente dita e o da saúde pública to coletivo na definição das práticas e elemento
(paradigma preventivo), como todos sabemos. decisivo na transformação dos processos de
Ou a medicina-ciência cuida de curar ou as ciên- trabalho.
cias da saúde cuidam de evitar a necessidade de O movimento de reformulação do paradig-
curar. ma da MT para esse campo rotulado de Saúde
Para a Saúde Coletiva a análise crítica da me- do Trabalhador (ST), consolidado na lei do SUS
dicina representa duplo desafio: “epistemológico”, e incorporado gradativamente nos últimos anos
dada a complexidade dos objetivos envolvidos no pelas áreas das relações saúde-trabalho no âmbi-
estudo; e “ético”, uma vez que uma vertente de in- to acadêmico, sindical e dos serviços de saúde,
tervenção está presente com maior ou menor in- partiu da premissa de que o campo das relações
tensidade nesta área [...]9. saúde-trabalho tenderia a uma evolução natural,
Se a MT não se insere na medicina (curativa), no aspecto dos campos de conhecimento que lhe
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responsabilidade de proteção contra os riscos: em catedrais, com Ellenborg (1440-1499), que es-
equipamentos de proteção individual11. Além dis- creve um livro sobre os riscos dos ourives, com
to, a MT atua como sensor de avaliação do nível Vigo, sobre a febre dos marinheiros e, entre ou-
de agentes físicos e químicos tóxicos, estabeleci- tros, com Agrícola, sobre a asma dos mineiros13.
dos em normas – limites de tolerância de exposi- Embora muito se tenha produzido e até sis-
ção no ambiente de trabalho. tematizado sobre essas doenças, é em 1700 que
Parece estarmos diante de um dilema episte- Bernardino Ramazzini (1633-1714), médico ita-
mológico ao olhar a MT como subciência médi- liano, com sua obra De Morbis Artificum Diatri-
ca, na medida em que não cumpre o objeto fina- ba (Tratado sobre as Doenças dos Trabalhado-
lístico da medicina-ciência. Do mesmo modo, na res), vai estabelecer uma sistematização e uma
tentativa de migração de seu paradigma curativo amplitude sobre o tema até então não experimen-
para o preventivo, colocando-a como área afim tada, a ponto de ser “impropriamente” reconhe-
ao campo da saúde pública, também não se ob- cido como o pai da Medicina do Trabalho.
serva o cumprimento do objeto finalístico das ci- Impropriamente, assumimos, pois cremos
ências da saúde. que o célebre e genial médico provavelmente não
Nem pretende e tampouco exibe competên- gostaria de ser tido como o fundador de uma prá-
cia científica para a cura – o “bem” individual tica, cuja possibilidade de reconhecimento e di-
(medicina-ciência), nem para a “antecipação da agnóstico de doenças e a capacidade de poder re-
cura coletiva” (ciências da saúde – saúde públi- solvê-las estivessem condicionadas a normas, li-
ca/saúde coletiva). mites e fronteiras duvidosas entre o dano efetivo
Em outras palavras, o eventual comporta- à saúde e o estabelecido em contratos de traba-
mento “científico” da MT antes se aproxima, e lho, em tudo contrário ao que ressaltava: Das ofi-
mesmo confunde-se ao comportamento políti- cinas dos artífices, portanto, que são antes escolas
co de bem cumprir a norma contratual, ao con- de onde saí mais instruído, tudo fiz [...], sobretu-
trário do que ocorre com a saúde pública, cujo do, o que é mais importante, saber aquilo que se
distanciamento entre o comportamento cientí- pode sugerir de prescrições médicas preventivas ou
fico e o comportamento político não lhe retira o curativas contra as doenças dos operários.14 Pro-
caráter finalístico de buscar o bem da coletivida- fessor que foi, diante da necessidade de agregar a
de, inclusive de trabalhadores nas linhas de pro- categoria trabalho ao rol de determinantes dos
dução. males que afligiam as pessoas, Ramazzini, no pre-
Corrobora a dificuldade de compreensão da fácio de sua magnífica obra, assinalava que se
MT, como subciência, quando se sabe que a nor- deveria acrescentar à anamnese hipocrática clás-
ma contratual é expressão hegemônica de ma- sica a pergunta “e que arte exerce?”14.
nutenção do corpo do trabalhador como força Considerando que o “ato médico laboral”
de trabalho capaz de manter sua capacidade de traduz uma espécie de desconstrução do ato mé-
produzir para o ato finalístico do processo de pro- dico clássico, como representação simbólica de
dução: a produção, e não o aprimoramento do uma “cultura de limites”, Waissmann12 assinala
“andar natural das coisas da vida”. que a MT tem como objetivo básico a não culpa-
De que se trata, então, a Medicina do Traba- bilidade do trabalho na gênese de patologias, cuja
lho? Vamos tentar definir. ação médica é dirigida à adequação dos indiví-
duos à produção e voltada para as patologias
individuais “para evitar que efeitos aparentes nos
Medicina do Trabalho – de que se trata? coletivos [de trabalhadores] pudessem vir a es-
clarecer vínculos entre eles e o trabalho”.
A descrição de doenças relacionadas ao trabalho Nesse sentido, o “pai” da Medicina do Traba-
ocorre desde a mais remota Antigüidade, em pa- lho seria Robert Baker: A Medicina do Trabalho
piros egípcios, textos judaicos, evidentemente em enquanto especialidade médica surge na Inglater-
Hipócrates, Platão, Aristóteles, Plautus, Virgílio, ra, na primeira metade do século XIX com a Revo-
Plínio, o velho, Lucrécio, chegando a Galeno, en- lução industrial. Naquele momento, o consumo da
tre tantas citações ao longo da história12. força de trabalho, resultante da submissão dos tra-
Pouco a pouco, ainda na Idade Média, as do- balhadores a um processo acelerado e desumano de
enças relacionadas ao trabalho foram sendo ob- produção, exigiu uma intervenção, sob pena de tor-
servadas com maior detalhamento, com Avicena nar inviável a sobrevivência e reprodução do pró-
(980-1037), que descreveu a cólica plúmbica, com prio processo. Quando Robert Dernham, proprie-
Dickerson observando a saúde de trabalhadores tário de uma fábrica têxtil, preocupado com o fato
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Agradecimentos
A Fermin Roland Schram, pelo incentivo para
publicar este artigo.
Referências
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