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Ligia Chiappini Moraes Leite Doutora em Teoria Literdria e Literatura Comparada pela Universidade de Sao Paulo Professora titular da Universidade de Séo Paulo e da Universidade Livre de Berlim O foco narrativo eavoraanies 8 © Ligia Chiappini Moraes Leite Diretor editorial adjunto _Femando Paixo Raltor adjunto Carlos S, Mendes Rosa Ealitora assistente Tatiana Coréa Piments Revisio Ivany Pieasso Batista (coord) Estagidria Bianca Santana Ante Balgto Atonio Paulos Assstente CClaudemir Camargo Capa e projeto gréstco Homem de Mello & Troia Design Edltorasdo eletrénica Moacir K. Matsusaki Ebicko oniciNat Benjamin Abdala Junior ¢ Samira Youssef Campedelli so de texto José Pessoa de Figueiredo CIP-BRASIL, CATALOGACAO-NA-FONTE INDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, Ru. Lssér Ted, Leite, Ligia Chiappini Moraes, 1945- © foco narativo / Liga Chiappini Morses Leite. ~11.ed.~ Sfo Paulo Aviea, 2007 6p. = (Prineipios ; 4) Incl bibliografiacomentada ISBN 978-85-08-10789-6 |. FicgSo~ Técnica, 2, Ponto de vita (1 tert). 3. Naratva (Retéroa), 1. Titulo. Série, 06.2860, cpp 808.3 cou: ISBN 978 85 08 10789-6 (atuno) ISBN 978 85 08 10790-2 (profesor) 'MRORTANTE: Ka mipar iva, voc remunera erece seceemane ds code hn surpass ‘rvoiidos na produto etna a comerciaccgse dos Bra eres res dagreradoresuaors ates, Shears Sanne res rato ude ‘ota combate acopt legal Ua gers detemprepe predea ‘ifs da cultura eenearece ot vor que voce compra, 2007 Utedigéo Itimpressio Impress acabemento: Grifica da Ave Mar - Grea da Ave-Maria — ‘Todos os direitos reservados pela Editora Atica, 2007 i 4 ‘Av. Onviao Alves de Lima, 800 = Sto Paul, SP CEP 02909-900 brs, Tel: 11) 39902100" Fae (1) 3990-1980 Se Interetworw atic. com br“ wrewatiueducaionacom br as, Sumario 1. Narragio, fiegioe valor 5 Origens — Platao e Aristoteles: narrare imitar 6 Hegel e a objetividade épica 9 Kayser: narracdo e convengdo 14 A teoria do foco narrativo: Henry James e Percy Lubbock 42 Actitica a Lubbock: Wayne C. Booth e 0 “autor implicito” 15 As “vis6es" de Jean Pouillon 19 Revisando as “visées": Maurice-Jean Lefebve 24 A anilise estrutural da narrativa: Roland Barthes e Tzvetan Todorov 23 2. A tipologia de Norman Friedman 25 Autor onisciente intruso 26 ‘Narrador onisciente neutro 32 “Eu” como testemunha 37 : Narrador-protagonista 43 Onisciéncia seletiva miltipla 47 Onisciéncia seletiva sa Modo dramitico 58 Camera 62 Anilise mental, mondlogo interior e fluxo de conscigncia 66 3. Narragiio, flegao e historia 74 A objetividade contestada: a moderna opgdo do lirismo 74 Histéria e ficco: a concepgao aristotélica e seus desdobramentos 75 A historiografia e o escamotear do narrador 78. Conclusdo: uma questio de ponto de vista 86 4. Vocabulirio critico 87 5. Bibliografia comentada 91 1 Narracao, ficgAo e valor Origens — Platao e Aristételes: narrar e imitar Histérias sio narradas desde sempre. Forma vaga de que disponho para marcar, sem datar, o infcio da £PIcA?, no sentido de uma narracdo de fatos, presenciados ou vi- vidos por alguém que tinha a autoridade para narrar, al- guém que vinha de outros tempos ou de outras terras, tendo, por isso, experiéncia a comunicar e conselhos a dar a seus ouvintes atentos.? Assim, desde sempre, entre os fatos narrados e o piblico, se interpés um narrador. No decorier da Hist6ria, porém, as HISTORJAS narra- das pelos homens foram-se complicando, ¢ 0 NARRADOR foi mesmo progressivamente se ovultando, ou atrés de outros narradores, ou atras dos fatos narrados, que parecem cada vez mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se 10s versaletes destacam os conceitos principais. 2Sobre a narrativa primitiva, ver BENJAMIN, Walter. O narrador. In: — et alii, Textos escolhidos. Sio Paulo, Abril Cultural, 1983. (Os pensadores.) 6 oe a si préprios; ou, mais recentemente, atrés de uma voz que nos fala, velando € desvelando, ao mesmo tempo, narrador € personagem, numa fusao que, se os apresenta diretamente ao leitor, também os distancia, enquanto os dilui. * Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, © que desejou. Por isso, NARRACKO e FICCKO praticamente nascem juntas, E. M. Forster assim define 0 homem criado pela FIc- Gao, ou 0 homo fictus: Geralmente nasce, é capaz de morrer, requer pouco alic ‘mento ou sono, esté incansavelmente ocupado com relagées humanas, e — o mais importante — podemos saber mais sobre ele do que sobre qualquer dos nossos semelhentes, porque seu criador @ narrador 6 um 86, Estivéssemos pre- parados para uma hipérbole, a esta altura, poderiamos ex- clamar: Se Deus pudesse contar @ estéria do Universo, 0 Universo se tornaria ficticio. + Eis af um exemplo de escritor que, num determinado momento, como tantos outros na hist6ria da FICCAO, sen- tiu necessidade de refletir sobre ela, Na verdade, se nar- rar é coisa muito antiga, refletir sobre o ato de narrar também o é. Pelo menos é possivel recuar essa reflexdo teérica sobre as formas de narrar a Platao © a Aristételes. So eles que iniciam, na tradigéo do Ocidente, uma dis- Cussdo que ndo vai mais se acabar, sobre qual a relagdo entre 0 modo de narrar, a representagéo da realidade 98 efeitos exercidos sobre os ouvintes e/ou leitores. Diz Platéo, em A repiiblica, que o ideal é num dis- § Trata-se de um longo proceso que, se neste momento pode pa: recer abstrato ao leitor, deverd ficar’ mais claro até o final deste livro, que, apesar de didético, néo visa apenas a apresentar esque- maticamente 0 problema técnico do NARRADOR, mas quer situi-lo historicamente © relaciond-lo com questdes mais gerais da Ficcko. (Forster, E. M, Aspectos do romance. 2. ed. Porto Alegte. Globo, 1974. p. 43 curso longo, alternar IMITAGAO € NARRAGKO © 36 imita: diretamente aquelas acGes, tipos e gestos nobres: (...) hé uma maneira de falar @ contar que acompanha o verdadeiro homem honesto, quando tem alguma coisa a dizer; @ hé uma outra, diferente, @ qual se prende e se conforma sempre o homem de natureza e educacéo con- trérias (...). O homem ponderado, segundo me parece, quando tiver de referir, numa narragéo, uma frase ou uma acdo de um homem bom, procureré exprimir-se como se fosse esse homem e ndo se envergonharé de tal imitacéo, sobretudo se imiter qualquer aspecto de firmeza e de sa- bedoria. Imitaré menos vezes e menos bem o seu modelo quando este tiver falhado, sob 0 efeito da doenca, do amor, da embriaguez ou de qualquer outro acidente. £, quando tiver de falar de um homem indigno dele, ndo se permitiré imitélo a sério, a néo ser de passagem, quando esse homem tiver feito qualquer coisa de bem (...)5 Pelo trecho citado, da para perceber que a distincéo entre imitar e narrar (que voltaremos a encontrar séculos mais tarde sob rétulos como mostrar [showing] e contar [telling]) j& em Platéo vem carregada de valor. Na ver- dade, 0 julgamento de que é mais adequado 20 homem de bem. narrar do que imitar, sobretudo quando o objeto de imitacdo Ihe é inferior, esté diretamente relacionado com a filosofia platénica como um todo, alicergada basi- camente na idéia de imitago como cépia infiel, ?simulacro do Real ¢ da Verdade. Para Platéo, o mundo sensivel, a que estamos acorrentados, enquanto seres mortais e cor- porais, jé € uma imitaggo do Mundo das Idéias, de onde descendemos ou, literalmente, descemos (caimos). Ora, sendo a poesia (onde se inclui a tragédia, a épica e a liri- 5A repiblica, Publicagées Europa América, Mira — Sintra — Mem Martins, 1975. p. 90-1. (Trata-se de uma edigéo popular, de bolso. A melhor, em portu- ‘gués, porém, é a da Fundagao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1949.) pe ca) uma cépia desse mundo sensivel, ela é simulacro em segundo grau e, portanto, condendvel, servindo a amarrar mais cinda o homem ao dominio dos sentidos e das pai- xOes e dificultando sua ascensio, pelo intelecto, A Beleza, a0 Bem e 4 Verdade que, no seu estado puro de esséncias, 86 existem como uma luz que brilha acima e fora da caverna que habitamos. Sem o moralismo de Plato, Aristételes também dis- tingue a imitacdo direta das agdes e a sua NARRAGKO. Diz ele, na Poética: (... € possivel imitar os mesmos objetos nas mesmas situagées, numa simples narrative, ou pela introdugéo de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a propria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando @ imitagéo com a ajuda de personagens que vemos agirem e executerem elas prépries... Dai vem que alguns chemam @ essas obras dramas, porque fazem apa- recer e agir as prdprias personagens, ® No caso particular da Poética, como na sua filosofia de modo mais geral, Aristételes afirma 0 inverso de Platao. Se neste a poesia era imitagdo da imitacio, no sistema aristotélico a poesia continua a ser IMITAGKO, porém nao entendida como cépia das aparéncias, mas, ao contrdrio, como reveladora das esséncias. Imitar, para Aristételes, € uma forma de conhecer que inclusive diferencia 0 homem dos outros seres vivos ¢ Ihe d4 prazer. Por isso, quanto a imitar ou narrar, ele também in- verte 0 juizo platénico, preferindo para a épica a imitagao direta a narracio das acdes: © poeta deve falar 0 menos possivel por conta préprie, pois ndo € procedendo assim que ele & imitador. Os ARISTOTELES, Arte pottica. In: —. Arte retérica. Arte poética. ‘Sio Paulo, Difuséo Européia do Livro, 1964. p. 264, 9 outros poetas (...) a0 longo do poema procedem como atores em cena, Imitam pouco e raramente; a0 passo que Homero, apés curto preémbulo, introduz imediatamente um homem, uma mulher cu outra personagem, e nao so- mente nenhuma carece de caréter, senéo que de cada uma séo estudados os costumes. (ARISTOTELES, op. cit., p. 314) Hegel e a objetividade épica Platdo e Aristételes foran sucessivamente retomados, traduzidos (e trafdos), imitados, dilufdos, interpretados, pela retérica e poética da Roma antiga e da Idade Média; pela postica cléssica do Renascimento europeu; pelos ilus- trados do século XVIII; pelos romanticos, no século XIX; € seguem sendo revistos, citados, reinterpretados até os nossos dias, pela moderna teoria da literatura. Mas, hoje, irremediavelmente, os lemos pelo filtro de uma obra que os retomou e sistematizou: a Estética, de Hegel. 7 Procurando distinguir os géneros — épico, litico ¢ dramético —, Hegel caracteriza 0 primeiro como eminen- temente objetivo, o segundo como subjetivo, e o terceiro como uma'espécie de sintese dos outros dois, objetivo- -subjetivo, Assim, a poesia épica seria aquela em qué do con- junto dos homens ¢ dos deuses, brotaria a dindmica dos acontecimentos que o poeta deixaria evoluir livremente, sem interferir. Trata-se de uma realidade exterior a ele, com a qual nfo se identifica a ponto de se envolver com os sentimentos, pensamentos e agdes dos caracteres em jogo. Jé a LERICA teria por contetdo subjetivo “a alma agi- tada pelos sentimentos”, e, em lugar da acdo externa ao 7 Bsthétique; 1a poésie. Paris, Aubier-Montaigne, 1965. 10 me sujeito, o que se expde ¢ o seu extravasar; é ele que se expressa diretamente, e musicalmente, pela palavra que profere. O terceiro género — o dramatico —, como sintese dos outros dois, se constitui, ao mesmo tempo, de um de- senrolar objetivo de acontecimentos e da expresso vibrante da interioridade. Estudando o desenvolvimento histérico da EPorétA, desde os seus modos mais simples (epigramas, inscrigoes em monumentos, poemas didético-filosdficos, teogonias Cosmogonias) até chegar 4 EPOPEIA propriamente dita, Hegel se detém nesta, tentando caracterizé-la como uma “totalidade unitéria”, para, depois, vé-la se transformar no ROMANCE que, para ele, é a “epopéia burguesa moderna” © RoMaNce pressupde jé uma realidade tornada pro- saica, sem a transcendéncia do mundo épico onde habitam deuses ¢ herdis, mas procuraria, nessa realidade prosaica, restituir aos acontecimentos e aos individuos a poesia de que foram despojados. O tema basico do ROMANCE seria © conflito entre “a poesia do corago” e a “prosa das cir- cunstiincias”, # O RomaNce, a partir dai, comeca a ser visto como um género enciclopédico que se alimenta dos outros ante- riormente existentes. Nele 0 DRAMATICO e 0 EPICO convi Vem, ¢ essa distingdo, agora interiorizada, ser4, como vere- Mos, o eixo de toda a teoria do Foco NARRATIVO, Também © L{RIco iré progressivamente invadindo o ROMANCE e minando a objetividade épica, como veremos no capitulo 3, § Goldmann, interpretando Lukécs, falaria_em “busca de valores auténticos num mundo degradado". Ver; GoLDMANN, Lucien, So. clologia do romance. Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1967, e LUKACS, Georg. Teoria do romance. Lisboa, Presenga, s.d. nu Kayser: narragao e convengéo A sistematizagao que Hegel realiza dos filésofos do passado abre certas vias que se tornarao familiares a qual- quer estudante de Letras, mesmo que nao o tenha lido diretamente. Sua presenga se faz sentir, por exemplo, nos manuais mais freqiientados, como o de Wolfgang Kayser, Andlise e interpretagao da obra literdria. Kayser comeca a tratar do NARRADOR, lembrando jus- tamente a situagao primitiva, onde “um narrador conta a um auditério alguma coisa que aconteceu”, colocando-se externamente cm relagao aos acontecimentos narrados. E a insisténcia na objetividade da érica, tal como vimos em Hegel. Para Kayser, o passado, tempo usual nessa narra- tiva, referenda a sua objetivicade, fixando 0 acontecido. Mais livre que 0 DRAMA, nela os episédios sao relativamente independentes ¢ as digressdes ndo comprometem a totali- dade. © Romance, mais tarde, se beneficiaria igualmente dessa liberdade maior de narvar. Mas Kayser chama a atencao para a mudanga substancial do narrador de ROMAN- CE, em relagdo & poesia £PICA: nao se trata mais de falar a um piiblico reunido a sua volta — do qual o aproximam as mesmas experiéncias e os mesmos valores —; aqui, o nar- rador fala pessoalmente para um leitor também pessoal, individual, numa sociedade dividida (a sociedadg de clas- ses). E 0 fendmeno da particularizagdo em PERSONAGENS dos antigos HERdts universais, coletivamente aceitos como representagdes de valores comunitérios, Na Epopéta, 0 NARRADOR tinha uma visio de con- junto ¢ se colocava (e colocava o seu piiblico) & distan- cia do mundo narrado. O seu tom era solene; ele era o rapsodo, uma espécie de vate, de iniciado, de mediador entre as musas € seus ouvintes. Jd 0 narrador do ROMANCE — quando a narrativa se prosifica na visio prosaica do 2 mundo, quando se individualizam as relagées, quando a fa- milia se torna nuclear, quando o que interessa so os pe- quenos acontecimentos do quotidiano, os sentimentos dos homens comuns e nao as aventuras dos herdis — perde a distancia, torna-se intimo, ou porque se dirige direta- mente ao leitor, ou porque nos aproxima intimamente das personagens e dos fatos narrados. Essa proximidade pode nos dar a ilusdéo de que esta- mos diante de uma pessoa nos expondo diretamente seus pensamentos, quando, na verdade, tanto 0 NARRADOR como. © leitor ao qual ele se dirige so seres ficcionais que se relacionam com os reais, através das convengdes narra- tivas: da técnica, dos caracteres, do ambiente, do tempo, da linguagem. Jé Aristételes nos chamava a atengdo para isso, dis- tinguindo verdade de VEROSSIMILHANGA. Verossimil nao é necessariamente o verdadeiro, mas o que parece sé-lo, gracas 4 coeréncia da representacdo-apresentagio ficticia. E nem sempre o verdadeiro, na ficgdo, é verossimil. Pode ser verdade, mas nao convence o leitor, exatamente porque desrespeitou as convencdes necessérias a0 conjunto auté- nomo ca obra Desta forma, a “narrativa objetiva” seria um mito. Mesmo quando o narrador nfo se interpde diretamente entre nds e os seres ficcionais, eles sfo feitos de palavras, escolhidas e arranjadas num conjunto estraturado por al- guém — um autor implicito, segundo W. Booth, sempre, ao mesmo tempo, oculto e revelado pelo e no que narra. A teoria do foco narrativo: Henry James e Percy Lubbock © problema da relagao entre ficgdo e realidade e da necessidade da VEROSSIMILHANGA, to antigo, € 0 pressu- ———— eee posto de boa parte da teoria do FOCO NARRATIVO, desde que ela comega a se constituir mais sistematicamente. Podemos daté-la dos preficios do escritor Henry Ja- mes ® aos seus préprios livros, no final do século XIX, inicio do XX. James fez esses prefacios depois de escrever os ro- mances. Ou seja, ele agiu como qualquer tedrico, refle- tindo a posteriori sobre um conjunto de obras. Ai esto as principais idéias do escritor, a defesa de um PONTO DE visTA tinico, a sua antipatia peles interferéncias que comen- tam e julgam, pelas digressGes que desviam o leitor da nistoria. E tudo em nome da VEROSSIMILHANGA, como também em seu nome que ele ataca a NARRATIVA em primeira pessoa. © ideal, para James, e que passa a ser © ideal para muitos te6ricos a partir dele, € a presenca discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar equilibrados, possa dar a impresso ao leitor de que a histéria se conta a si propria, de preferéncia, alo- jando-se na mente de uma personagem que faca o papel de REFLETOR de suas idéias. Uma espécie de centro orga- nizador da percep¢do, que tenha uma rica sensibilidade, uma inteligéncia penetrante, para a expresso da qual tém de ser trabalhados coerentemente os outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente em que se movimen- tam as personagens. Dé-se af o desaparecimento estratégico do NARRADOR, disfargado numa terceira pessoa que se confund’ com a primeira. Em 1921, Percy Lubbock, critico inglés, preocupa-se pioneiramente em justificar o ju’zo critico pela andlise mais sistematica da arte (no sentido de RTESANATO) do romance, ° Henry James, escritor norte-americano, nascido em 1843 e morto em 1916, passou boa parte da vida na’ Inglaterra. Seus prefacios esto reunidos no livro péstumo The Art of Fiction and Other Essays. New York, Morris Robert, 1948. 14 da sua CONSTRUGAO. Detendo-se em obras de grandes au- tores da literatura ocidental (Tolstoi, Flaubert, Thackeray, Dostoievski, Richardson, Henry James, Balzac, Dickens), analisa como é trabalhada a NARRAGAO, para ele questo fundamental na construgéo do ROMANCE. Condenando, como Henry James, as interferéncias do NARRADOR, Lubbock chega a radicalizagio de s6 conside- rar “arte da ficgio” aquelas narrativas que néo cometem essa indiscrigo. Quanto as que o fazem se enquadrariam mais na “arte da narrativa”, situando-se ai, por exemplo, um escritor que € considerado por muitos 0 criador do romance: Daniel Defoe *, autor do famoso Robinson Crusoé. As andlises de Lubbock encaminham-se pouco a pouco para a obra que seria para ele modelar, na “arte da fic- giao": 0s romances de Henry James, Serve-lhe de guia tedrico desse percurso, de Tolstoi a Henry James, a dis- tingdio entre narrar (telling) © mostrar (showing), Na verdade, essa distingéo tem a ver com a interven¢do ou nado do NARRADOR. Quanto mais este intervém, mais ele conta € menos mostra, Por outro lado, completa essa dupla (narrar © mostrar) a oposigéo CENA © SUMARIO (PANORA- Ma) "4 Na CENA, 0s acontecimentos so mostrados ao leitor, dirctamente, sem a mediagéo de um NARKADOX que, a0 contrério, no SUMARIO, os conta e os resume; conden- sa-os, passando por cima dos detalhes e, as vezes, suma- riando em poucas paginas um longo tempo da HISTORIA. Na verdade, Lubbock distingue a APRESENTAGAO, que pode ser CENICA OU PANORAMICA, € 0 TRATAMENTO dado, que pode ser DRAMATICO ou PICTORICO, ou uma combina~ Gao dos dois, PtcTéRICO-DRAMATICO. 10 Escritor inglés, 1660-1731. Robinson Crusoé & de 1719. 41 Na tradugéo portuguesa esté PANORAMA, porém SUMARIO traduz melhor summary. 1s O TRATAMENTO é DRAMATICO quando a APRESENTA- Go se faz pela CENA, e é PICTORICO quando ele é predo- minantemente feito pelo SUMARIO. PICTORICO-DRAMATICO, combinacdo da cena e do sumério, sobretudo quando a “pintura” dos acontecimentos se reflete na mente de uma personagem, através da predominancia do ESTILO INDIRETO LIVRE. Lubbock nao defende diretamente uma dessas possi- bilidades, justificando a sua escolha pela adequacio da forma ao tema e ao efeito que se busque. Mas, na verdade, nota-se nele uma forte preferéncia pelo TRATAMENTO DRA- MATICO, €, mais ainda, pelo tratamento combinado deste com 0 PIcT6RIco, Como nos romances de Henry James, quando a narrativa em terceira pessoa se confunde com a narrativa a partir da mente de uma personagem que fun- ciona como uma espécie de espelho refletor das idéias do autor. A CENA restringe a ago, apresentando-a num tempo presente e préxima do leitor, enquanto o suMARIo a ampli fica, no tempo e no espago, cistanciando o leitor do nar- rado. No TRATAMENTO DRAMATICO e na CENA, predomina © DISCURSO DIRETO; NO PICTORICO, 0 INDIRETO; No DRAMA- TICO-PICTORICO, © INDIRETO LIVRE A critica a Lubbock: Wayne C. Booth eo “autor implicito” Depois de Lubbock foram muitos os tedricos que: se dedicaram & questo do NaRRADOR. Por isso mesmo, como nos alerta Frangoise Van Rossum-Guyon, é variada a ter- minologia utilizada para designar as categorias por eles inventariadas em diversos estudos, simultaneamente reali- zados em paises diferentes: especialmente Inglaterra, Esta- dos Unidos, Franca e Alemanha. Nao vamos aqui enume- rar todas as classificagSes relativas a0 FOCO NARRATIVO ou 16 ee PONTO DE visTA (duas das denominagdes mais comuns para © problema técnico do narrador), porque, para isso, reme- temos diretamente Aquelas obras que j4 o fizeram, tanto no Brasil como no exterior. (Veja-se a bibliografia co- mentada.) © que me parece interessante fazer aqui é, aprovei- tando aquelas categorias e classificagdes mais operacionais Para @ andlise dos textos, verificar como elas nos ajudam a esclarecer a sua organizagdo. Para isso, nosso ponto de referéncia sera sobretudo a sistematizacao feita, em 1955, por Norman Friedman, daquelas classificagdes que o ante- cedem e que ele expde na primeira parte do seu trabalho, que é um histérico do problema Mas, antes de nos determos na classificagao proposta por Friedman ¢ de ilustré-la com exemplos tirados da literatura brasileira e estrangeira, é preciso falar um pouco mais de algumas, posigdes tedricas que se seguiram A de Percy Lubbock e que, junto com as de Friedman, podem constituir o nosso ‘instrumental na andlise dos textos, no cap. 2: trata-se das criticas de W. Booth a Lubbock, da teoria de Jean Pouillon e de alguns estruturalistas, princi- palmente Roland Barthes, Tzvetan Todorov e Maurice-Jean Lefebve. A posig&io de Lubbock a respeito do problema foi considerada por muitos como, além de parcial, polémica um tanto dogmtica. Os primeiros a criticd-lo foram os préprios romancistas que reagiram contra o cardter nor- mativo da sua teoria do PONTO DE VISTA. E. M. Forster discute a afirmaco de Lubbock de que o expediente fun- damental na arte da ficgdo seja o PONTO DE VISTA. E com- bate 0 seu normativismo, sobretudo no que diz respeito A condena¢o ao NARRADOR que interfere na narragdo ou as mudangas do PONTO DE VISTA, num mesmo ROMANCE. Para Forster, tudo isso € valido, desde que corres- ponda a uma necessidade do tema e do efeito que se quer obter: “Um romancista pode mudar seu ponto de vista, 7 desde que obtenha o resultado esperado” 2, Vé, mesmo, nessa possibilidade de ampliar e restringir a percep¢ao, um direito e uma vantagem do ROMANCE que assim imitaria melhor a variedade da nossa percepgo na vida real: Somos mais estiipidos em algumas ocasides que noutres; podemos penetrar na mente das pessoss, as vezes, mas ndo sempre, porque 0 nosso proprio intelecto cansa: e esta descontinuidade empresta, no decorrer do tempo, ve- riedade e colorido as nossas experiéncias. (FORSTER, op. cit., p. 64.) Outro romancista e teérico do ROMANCE, E. Muir ®, acha Lubbock parcial quando considera um elemento da estrutura do ROMANCE — 0 PONTO DE VISTA —, ou um tipo especifico de estrutura (basicamente a dos romances de James), como a forma romanesca por exceléncia. Ten- tando uma tipologia mais abrangente das estruturas do ROMANCE, Muir tenta também fugir & normatividade, nao se preocupando em determinar qual a melhor, nem como deveria ser um ROMANCE bem feito, mas procurando sim- plesmente descrever como so os diferentes tipos de Ro- MANCE, de acordo com os diferentes ENREDOS que os caracterizam. Wayne Booth, no scu livro A retdrica da ficgdu, da © golpe de misericérdia no dogmatismo de Lubbgek, insis- tindo em que ha intimeras mane:ras de contar uma HISTORIA e que a escolha desses modos vai depender nao de uma necessidade de coeréncia para ndo romper a ilusio de realidade, néo da necessidade de fazer predominar 0 Mé- TODO DRAMATICO Sobre 0 METODO PICTORICO, nem das re- gras gerais que possamos estabelecer de antemao para a narrativa ideal, mas dos valores a transmitir e dos efeitos que se busca desencadear. Booth é contra o mito do desa- 12 Forster, op. cit. p. 64 33 Muir, Edwin, A esirutura do romance. Porto Alegre, Globo, s.d. eee parecimento do autor ou da narrativa objetiva defendida por Lubbock, porque, segundo ele, 0 autor nfo desapa- Tece mas se mascara constantemente, atr4s de uma perso- nagem ou de uma voz narrativa que o representa. A ele devemos a categoria do AUTOR IMPLIcITO, extremamente til para dar conta do eterno recuo do narrador e do jogo de méscaras que se trava entre os varios niveis da narracao. Comentando a utilidade e percuciéncia dessa categoria de Booth, diz Maria Liicia Dal Farra: (...) Booth, ultrapassando a nogéo de narrador, vai se deter no exame desse ser que habita para além da: més- cara, e do qual, segundo ele, emanam as avaliagdes e 0 registro do mundo erigido. Menejador de disferces, 0 autor, camuflado e encoberto pela ficedo, do consegue fazer submergir somente uma ‘sua caracteristica — sem duvida a mals expressive — a apreclagao. Para além da obra, na prdpria escolha do tl- tulo, ele se trai, e mesmo no Interior dele, @ complexa eleigdo dos signos, a preferéncla por determinado narra- dor, @ opgéo favordvel por este personagem, a distribulgao da matéria e dos capitulos, a prépria pontuagdo, denun- clam @ sua marca e a sua avaliagéo. (O narrador ensimes- mado, p. 20.) Do jogo de distancias que se instaura entre 0 AUTOR IMPLICITO, © NARRADOR € as personagens, sai preservada a fungao critica do AUTOR IMPLiciTO na criago de um “uni- verso ficcional” e na sua comunicagio ao leitor. Na ver- dade, ao deslocar a questio do PONTO DE visTA, de uma abordagem critica ¢ normativa para a abordagem RETORICA (preocupada nao em valorizar mas em entender os recur- sos utilizados para estabelecer essa comunicagéo mediada pela autonomia do mundo de Fic¢Ao criado), Booth esté se aproximando de uma postura extremamente moderna que 0 chamado estruturalismo veio desenvolver e que con- sidera a obra na sua MATERIALIDADE LINGUISTICA. Isso implica resistir a qualquer psicologismo que leve a con- 19 fundir Ficcko e realidade, personagens e pessoas, autor real e autor representado num mundo feito de palavras. E uma forma também de atualizar e de precisar, pela criagéo de uma categoria intermediéria, a distingio que Kayser j4 fazia entre 0 autor € © NARRADOR. O AUTOR IMPLicITO é uma imagem do autor real criaca pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronolégico ¢ psicolégico, do espaco e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na HISTORIA. ‘Assim como a poesia é feita de siléncios e sons, a narrativa ficcional é feita de “viséo e cegueira”, ainda na expresso feliz de Maria Lucia, O que 0 NARRADOR vé € deixa de ver est subordinado a “uma viséo mais extensa e dominadora”. Por isso n&o tasta considerar apenas os tipos de FOCo NARRATIVO (na tipologia de Norman Fried- man ou em outra qualquer). S6 a relagdo destes com o AUTOR IMPLicITO pode levar-nos a visio de mundo que transpira da obra, aos valores que ela veicula, a sua ideo- logia. As “visées” de Jean Pouillon Jean Pouillon, no seu livro O tempo no romance, pro- cura adaptar uma visio fenomenolégica do mundo, inspi- rada em Sartre '*, a uma teoria das visdes na narrativa, articulada A questéo do tempo. Para ele, haveria trés possibilidades na relacéo nar- rador-personagem: a VISAO COM, @ ISAO POR TRAS € a VI- sko DE FORA. Na VIsko POR TRAS, 0 narrador domina todo um saber sobre a vida da personzgem e sobre o seu destino. # onisciente, poderfamos dizer. Sabe de onde parte ¢ para 14 SantRE, Jean-Paul. L’éire er le néant; essai d’ontologie phéno- menologique. Paris, Gallimard, 1943. 20 A eeeesesesesesFsFsFsSsSsSssSSSSSSS onde se dirige, na narracdo, 0 que pensam, fazem e dizem as personagens; uma espécie de Deus, ou demiurgo que Ihes tolhe a liberdade. Exemplo: Nao obstante a0 ver Pedro — assim se chamava o jovem — @ apesar da saudacio.de categoria inferior, 0 seu rosto exprimiu uma impresséo semelhante & que se experimenta 20 ver um objeto colossal fora do lugar. Com efelto, Pe- dro era muito mais alto que os demais convidados, mas @ inquietagéo de Ana Palovna provinha de outra causa... Na visKo CoM, 0 NARRADOR limita-se ao saber da pré- pria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos Renunciando a visdo de um Deus que tudo sabe e tudo vé (e a quem, fatalisticamente, se submete o destino dos seres ficcionais, como © destino dos seres reais para a visio crist), assume-se aqui a plena liberdade da criatura jo- gada no mundo, capaz de, sartrianamente, assumir o nada para ser. '° Exemplo (...) eu sentlame cada vez plor, A mesma situagéo nove sgravou a minha paixdo. Ezequiel vivia agora mais fora a minha vista; mas @ volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando » semelhange, ero o volta se Escobar mais vivo e ruidoso, Até @ voz, dentro de ouco, jd me parecia @ mesma, Finalmente, a visio DE FORA, em que se renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limi: ta-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, 45 Toxstor, Leon. Guerra e paz. Sio Paulo, Brasil Editora, 1957, p. 12. Os exemplos, aqui, sf precdrios, porque fora de contexto, No cap. 2, haveré maiores esclarecimentos, 18 SARTRE, op. cit. 17 Assis, Machado de. Dom Casmurro. Sio Paulo, Saraiva, 8. p. 219-20. (Colesao Tabuti.) 21 sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emogées, inteng6es ou interpretagdes das personagens: Exemplo: Os dois homens estéo sentados & mesa do bar. (...) Ace barem de comer hé algum tempo. Depois disso devem ter palitado os dentes, 0 velho ocultando educedemente © palito com a outra mao, ou ent tendo dentes, ficado @ observar 0 filho galitendo sem o recato com que ele 0 teria feito; mas isso ele terle apenas observado, sem ys fazer qualquer reflexdo, ( Revisando as “visdes”: Maurice-Jean Lefebve Maurice-Jean Lefebve, no seu livro Estrutura do dis- curso da poesia e da narrativa, ao tratar desta, tenta reler Jean Pouillon e reaproveitar as suas categorias da visio, & luz de uma distingdo clara entre DIEGESE (ou HISTORIA) € DISCURSO (ou NARRATIVA). Segundo ele, a Visio POR pETRAS seria tipica do ROMANCE cléssico, especialmente o do século XIX; nele, DIEGESE € DISCURSO esto equil brados. No ROMANCE de visio CoM, tipico de certa linha dos romances do século XX, em primeira pessoa, que usain MONOLOGO INTERIOR € 0 FLUXO DE CONSCIENCIA € também tipico do romance epistolar do século XVIII, shaveria a predominancia da NARRAGAO sobre a DIEGESE. Finalmente, a Visko DE FORA, em que Lefebve aponta uma influéncia do cinema, caracteristica, portanto, do século XX — tanto num certo tipo de romance policial (um Dashiell Hammet, na esteira de um Hemingway, em “Os assassinos”), como no chamado nouveau roman francés (Robbe-Grillet, Jean Ricardou, entre outros) — em que haveria 0 predominio —. Tremor de Terra. Séo Paulo, 18 Viteta, Luiz. Dois homens. I Atica, 1977. p. 53. 2 Be da DIEGESE sobre a NARRACAO (embora, neste caso, esse predominio seja, a meu ver, discutivel). Comentando a preferéncia sartriana de Jean Pouillon pela visko com, Lefebve nota que toda visko é convencao ©, portanto, que todo NARRADOR finge, mesmo e especial- mente quando se limita a expressar o que s6 as personagens veriam. Se perde certos privilégios com isso (como prever © futuro ou conhecer o cardter, as MotivagGes € os senti- mentos da personagem, para além da consciéncia desta), ganha a vantagem de parecer nao ter privilégio algum, mantendo muitos apenas camuflados. Alongando-se um pouco mais sobre as motivacdes histéricas dos tipos de visdo, explica a convengio da visio com como tipica do século XVIII, na forma do ROMANCE epistolar ou do ROMANCE que invocava outros documentos (manuscritos encontrados e publicados por um suposto edi- tor fiel ao texto original), ambos sendo expressio de uma vontade de realismo empirico, bem ao gosto do enciclope- dismo. J4 a visko Por DeTRAS traduziria a confianca bur- guesa na objetividade, na possibilidade de explicacio ra- cional © exaustiva dos fatos psicolégicos e sociais. En- quanto a VISAO DE FORA e mesmo a VISko CoM do romance moderno, em primeira pessoa, seriam duas maneiras, quase polares, de expressar a desconfianga do homem moderno na sua capacidade de apreender um mundo cadtico e frag- mentado, em que nao consegue situar-se com clareza, Por outro lado, se Maria Liicia Dal Farra nos cha- mava a atenc&o sobre as coisas que 0 narrador nfo vé, sobre 0s pontos cegos que podem levar-nos a nos inter- Togar sobre as intengdes tiltimas do AUTOR IMPLicITo, Le- febve nos alerta para os siléncios da narracdo, as elipses, as indeterminagoes, os brancos, o que a nartativa omite, a comegar por tudo aquilo que ela faz supor ter acontecido antes de ela se iniciar. E, problematizando, entdo, a sua propria distingao entre DIScURSO e DIEGESE, vai mostrando as possibilidades de imbricamento entre eles, ou até mesmo 23 a impossibilidade de separé-los rigidamente, pois a DIEGESE acaba se confundindo com 0 ENUNCIADO, e este sé tem existéncia pela ENUNCIAGAO, que, por sua vez, s6 se mani- festa concretamente através daquele. Lefebve corrige, assim, a parcialidade de Jean Pouillon que nao considera a distingdo entre NARRADOR € AUTOR IMPLICITO, j4 que 0 NARRADOR, uma vez enunciado ou mes- mo pelo préprio ato de enunciagao, acaba se transformando num ser ficcional, uma das tantas méscaras do AUTOR IM- PLicITO sempre A espreita. Manter essa distingdo, porém, é condigo necesséria para passar da andlise meramente técnica para a anélise ideolégica dos textos literérios. A analise estrutural da narrativa: Roland Barthes e Tzvetan Todorov Esta mesma preocupacio — recolocar a questdo das vozes ¢ das VisOEs do NARRADOR em termos de uma and- lise lingiifstica — vamos ver em T. Todorov e em Roland Barthes. Este, num célebre ensaio denominado Introdugao @ andlise estrutural da narrativa®, distingue: 1. 0 nivel das funcdes, onde se passa propriamente a HISTORIA ou FABULA e onde se situam os elementos de caracterizagao das personagens ¢ de criago da atmosfera ou ambiente; 2. 0 nivel das agdes, onde se situam as personagens, mas, agora, enquanto AGENTES, fios condutores de certos niicleos de FUNGES que definem a 4rea de atuagdo de cada uma; 3. 0 nivel da narracdo, integrando os outros dois, e onde a simples pessoa verbal ndo é suficiente para esclarecer com quem esté a palavra, podendo uma narrativa em ter- ceira pessoa ser mero disfarce da primeira. 1 BartHes, Roland. Introdugdo @ cndlise estrutural da narrativa. 3. ed. Petrépolis, Vozes, 1973. 24 Jé Todorov 2° procura, em diversos momentos, apro- fundar a andlise lingiifstica do problema do NARRADOR, através de categorias como 0 pronome pessoal, o tempo, © aspecto e o modo verbal, considerando, como Roland Barthes e Paul Valéry, que a narrativa é uma extensio da frase ¢ a ela se aplicam certas propriedades da linguagem. Apoiado, por exemplo, em Emile Benveniste?" ¢ na sua distingdo entre DiscuRSO'(discours) — pessoal, domi nio do “eu-tu” — e HIsTéRIA (récit) — impessoal, domi- nio do “ele” —, Todorov inventaria os signos que designam diretamente 0 processo de enunciagdo como certos advér- bios (agora, aqui), certos pronomes (este, isto) e o tempo presente. Depois, passa a analisar o que denomina “dis- curso avaliatério”, pelo qual o processo de enunciagao in- vade 0 enunciado inteiro. Certos signos o caracterizam, como, por exemplo: talvez, certamente, deve, pode... ., que apontam diretamente para 0 SUJEITO DA ENUNCIACAO OU EMISSOR DA MENSAGEM. Todorov fala, ainda, de uma IMAGEM DO NARRADOR que corresponderia ao autor IMPLicito de Booth, bem como de sua contrapartida, a IMAGEM DO LEITOR. Se a IMAGEM DO NARRADOR ndo se confunde com o autor real, tampouco a IMAGEM DO LEITOR se confunde com o leitor real, mas é dada pelos indices do leitor, encontraveis no texto, aspecto para o qual, embora nao com o instrumental da lingiifstica, j4 Sartre havia chamado a atencéo em O que é literatura? *, 20 Tovokov, Tzvetan. As estruturas narrativas. Sto Paulo, Perspec- tiva, 1969; e Estruturalismo e poética. S80 Paulo, Cultrix, 1971. 21 Benveniste, Emile, Problemas de lingiiistica geral. Sio Paulo, acional/Edusp, 1976, especialmente a 5. Parte: “O homem na lingua’ 22SantaE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la littérature?. Paris, Galli mard, 1948. 2 A tipologia de Norman Friedman Tentando sintetizar as diversas teorias resenhadas na primeira parte do seu ensaio, para chegar a uma tipo- logia mais sistemética, e, ao meso tempo, mais completa, Norman Friedman comega por se levantar as principais questdes a que é preciso responder para tratar do NARRA- Dor: 1) quem conta a HISTORIA? Trata-se de um NARRA- DoR em primeira ou em terceira pessoa? de uma persona- gem em primeira pessoa? nao hd ninguém narrando?; 2) de que POSIGAO ou ANGULO em relagio & HISTORIA 0 NARRADOR conta? (por cima? na periferia? no centro? de frente? mu- dando?); 3) que canais de informagdo 0 NARRADOR usa para comunicar a HISTORIA ao leitor (palavras? pegsamen- tos? percepgdes? sentimentos? do autor? da personagem? acdes? falas do autor? da personagem? ou uma combinagao disso tudo?)?; 4) a que DIsTANCiA ele coloca o leitor da (6ria (préximo? distante? mudando?)? A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas questées em cada caso, mas vai basear-se também na distingao de Lub- bock e de outros teéricos examinados anteriormente, entre CENA € SUMARIO NARRATIVO. Segundo Friedman, 26 a diferenga principal entre narrativa e cena esté de acor- do com 0 modelo geral particular: sumério narrativo & um relato generalizado ou a exposi¢éo de uma série de even- tos abrangendo um certo periodo de tempo e uma varie- dade de locais, e parece ser 0 modo normal, simples, de narrar; @ cena imediate emerge assim que os detalhes especiticos, sucessivos @ continuos de tempo, lugar, a¢do, personagem e diélogo, comegam a apsrecer. Nao apenas © diélogo mas detalhes concretos dentro de uma estru- tura especitica de tempo-lugar so os sine qua non da cena, (Point of View in Fiction, p. 119-20.) Essa distingo, como dissemos, vai nortear a tipologia de Friedman, organizada do geral para o particular: “da declaragdo a inferéncia, da exposigéo a apresentagdo, da narrativa ao drama, do explicito ao implicito, da idéia a imagem”. (Op. cit. p. 119.) Friedman chama a atengdo, logo de inicio, para a predominancia da CENA, nas narrativas modernas, e do SUMARIO, nas tradicionais. Mas bom lembrar que, para a CENA € 0 SUMARIO, bem como para os diversos tipos de NARRADOR que estuda- remos a seguir, a partir da sua tipologia, trata-se sempre de uma questo de predominancia e nao de exclusividade, j4 que é dificil encontrar, numa obra de fic¢do, especial- mente quando ela é rica em recursos narrativos, qualquer uma dessas categorias em estado puro. Autor onisciente intruso (Editorial omniscience) E a primeira categoria proposta por Friedman. Have- ria af uma tendéncia ao SUMARIO, embora possa também aparecer a CENA. Esse tipo de NARRADOR tem a liberdade de narrar & vontade, de colocar-se acima, ou, como quer J. Pouillon, por rds, adotando um PONTO DE visTA divino, 27 como diria Sartre, para além dos limites de tempo e es-, paco. Pode também narrar da feriferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frenie, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente varias posigdes. Como canais de informacdo, predominam suas préprias palavras, pensa- mentos € percepgdes. Seu trago caracteristico ¢ a intrusio, ou seja, seus comentarios sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou néo estar entrosados com a histéria narrada. Os exemplos de Friedman para esse tipo séo Fielding, em Tom Jones, ¢ Tolstoi, em Guerra e paz, pois ambos intercalam capitulos inteiros de digressdes & narragio da histéria, como se fossem verdadeiros ensaios a parte. Em lingua portuguesa, podemos pensar em Camilo Castelo Branco, em Manuel Anténio de Almeida e, até mesmo, em Machado de Assis. Mas podemos, ainda, eleger aqui, como exemplo a explorar um pouco mais, um outro perito no assunto: Honoré de Balzac. Vejamos dois trechos reti- rados desses dois autores. ‘Machad« Nao, senhora minha, ainda ndo acabou este dia téo com- prido; néo sabemos 0 que se passou entre Sofia € 0 Pa- tha, depois que todos se foram embora. Pode ser até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado. Tende paciéncia; é vir agora outra vez a Santa Tereza. A sala esté ainda alumiada, mas por um bico de gés; apage- ram-se os outros, @ ia apagar-se o ultimo, quando o Palha mandou que o criado esperasse um pouco /é dentro. A mulher ia sair, 0 marido deteve-a, ela estremeceu. * Trata-se do capitulo L do livro Quincas Borba. Es- crito em 1891, 0 romance narré a histéria de Rubido, her- deiro da fortuna de Quincas Borba. Quando este morre, 1 Assis, Machado de, Quincas Borba. Rio de Janeiro Paris, Gar- nier, (1923). p. 85.

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