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Intercultural (Teatro) Fr: interculturel (thédtre); Ingl.: intercultural theatre; Al. interkuiturelles Theater. CRISE OU NORMALIZACAO? a. Referéncias Histéricas Recentes A queda do muro de Berlim eo fim do comu- nismo em 1989 marcam uma virada decisiva para 0 pensamento intercultural. Esse pensa- mento significa o desaparecimento do prin- cipio de universalidade, o do humanismo ocidental assim como o do internaciona- lismo proletario, florao fanado do socialismo. Ele pée fim a uma ideologia que mantinha pela forca os Estados da Europa do Leste e pretendia guardar as nacionalidades sob sua asa protetora (URSS, Iugoslivia). O tea- tro intercultural torna-se a férmula melhor armada para um mundo sem conflito poli- tico aberto entre as nagdes ourentre as clas- ses, a melhor adaptada e submetida as leis do mercado, a que est mais de acordo com o desaparecimento progressivo das frontei- ras e dos Estados-nacdes', Desde o inicio dos anos 1990, as fronteiras parecem escapar a todo controle: desde 1989, as fronteiras poli- ticas e geogrificas so movedicas; apés 2001, o terrorismoescapa a vigilincia; desde 2008, © capitalismo parece, ele também, quase incontrolavel. Numerosas migrag6es, mais ou menos organizadas pelos Estados-nagdes, mudam a identidade das cidades e das cul- turas no mundo inteiro. objetivos, referéncias e simbolos coletivos eram comuns. Tal cultura era comum ao povo ¢ A burguesia. Essa sociedade se fragmentou, por muitas razdes: em uma diferenciagao cada, ‘yez mais brutal entre os subiirbios ea cidade, entre populagdes vindas do exterior com sua propria cultura ea cultura francesa e europeia. Em lugar desse piblico coerente, multiplica~ ram-se microssociedades, micropiiblicos, que engendraram seu proprio teatro’ O interculturalismo funciona também (as pessoas se esquecem disso com frequéncia) no outro sentido: uma cultura extraeuropeia recorre a clissicos europeus utilizando suas proprias tradigdes cénicas (por exemplo, as encenagies de Shakespeare pelo coreano Oh Tai-sok ou pelo japonés Ninagawa). Cumpri- ria também abrir o debate sobre a mancira como essas culturas/nagies/teatros abordam 6 autores ou os temas europeus, com quais Nos anos 1970 € 1980, o interculturalismo foi antes bem acolhido pelos poderes poli- ticos de direita como de esquerda, pois ele parecia querer estabelecer uma ponte, um didlogo, entre culturas separadas ou grupos Einicos quese ignoravam’, Apés 011 de sete bro de 2001, todavia, um temor em relagao a culturas mal conhecidas péde conduzir « certa desconfianga com respeito as perfor- mances interculturais, Talver seja este o sinal de que a metafora da troca entre uma cul- tura ¢ outra, entre o presente € o passado, nao funciona mais tao bem e que seria pre- ciso ao menos rever a sua teoria. A teoria ea pratica do teatro intercultural dos anos 1980 se veem como que superadas pela mise en scéne ¢ a performance atuais. Como se nao se pudesse mais pensé-las em termos de iden- tidade nacional ow cultural. b. “O Teatro Estranho 4 Sociedade” Segundo Robert Abirached, d teatfd teria se tornado estranho & sociedade contempora- nea: “Até cerca de 1970, 0 piblico tinha cons- iéncia de sua unidade. Ele era nacional. Um teatro nacional popular era o da nacdo, cujos pressupostos, com que intengdes, com quais prevenges € quais interditos. Nao mais na Europa do que alhures, o teatro intercultural ocidental tornou-se um género que federa todos os outros: ele se reduziu a um teatro de pesquisa e de mise en scéne e, paradoxal- mente, ele se transformou ao mesmo tempo em um teatro globalizado. &. Crise da ldentidade Nacional Esta mutagao explica-se em grande parte por uma mudanga tanto de identidades culturais como nacionais, Com o fim, apés 1989, dos. dois blocos politicos em competigao, com o dominio de uma economia global, supra nacional, as diferentes nages e identidades “despertam’, nenhum poder central pode mais controla-las. M smo tempo, elas perdem seu poder econdmico e sim- bolico, porquanto dependem doravante de ao im uma economia global supranacional. A lenta, mas inexoravel pulverizagao dos Estados-na ses (no que tange ao verdadeiro poder, a0 menos) confirma o desaparecimento de cul- turas separadas, ligadas a nagdes ou a esta- dos, “enganchadas” em entidades distintas. Desde entao, o intercultural torna-se quase regra geral, nao é mais controlavel, ou pode ser gerado por Estados-nagGes e por intelec- tuais que afirmam (em vio) representi-los, Como na evolugio da populagio mundial e das migragoes segundo Appadurai, as cul. turas¢ 0s telespectadores sio “desterritoria lizados”, Em lugar de entidades separadas, encontramos daqui por diante diferentes “comunidades de sentimentos Em face dessa perda identitéria, dese- nham se duas reagdes opostas: ou bem um endurecimento identitrio, uma resisténcia crispada ¢ critica a toda mudanga, uma ati- tude rapidamente reacionéria, e até racista, procurando restabelecer a todo prego a iden- tidade nacional; ou entio, ao contrério, um laisser-aller, um deixar as coisas correr pés. -moderno*, um laisser-faire, um deixar que se faga econdmico neoliberal, uma accitagio de mudangas de tempo, uma recusa desa- busada de toda resistencia e de toda teoria explicativa e, finalmente, uma aceitacao da mereantilizagao da cultura. 2. GRISE POLITICA E TEORICA a. Crise da Political Correctness, do Politicamente Correto Um pecado original pesa sobre o teatro inter- cultural e esse argument & sem cessar, reto- mado pelos autoproclamados defensores de culturas nao europeias utilizadas pelos encenadores europeus: o interculturalismo explora desavergonhadamente as culturas estrangeiras, ele se comporta como colo- nizador®. Assim, na visio de Dan Rebellato, “nos anos recentes estudiosos de teatro ten- diam a consider4-lo como uma instancia do ‘interculturalismo' teérico: a histéria contes- tada controversa do teatro ocidental tenta cooptar (costumeiramente) formas do tea- tro asidtico para revigorar sua propria cul- tura” (Rebellato, 2009, p. 3) encontramos a mesma linguagem demagégica em Kno- wles (2010). Lembremos dos ataques de um Bharucha’ contra 0 orientalismo de Brook ‘ou contra os tedricos ocidentais desse movi- mento. Tratava-se, a cada ver, de acusagoes de colonialismo do Ocidente em relagdo a paises indefesos; os encenadores “pilhariam” temas e estilos sem considerar sua identidade cultural de origem. O intercultural seria um esforgo desesperado para revitalizar com for- mas estrangeiras uma cultura ocidental ane- mizada, e até moribunda, Tal é a intengao atribuida a Artaud, ou, segundo Knowles, desde 0 inicio do século xx, a Yeats, Craig ou Copeau, Meierhold ou Reinhardt’ Esses ataques puderam firear as pesquisas interculturais de artistas ou esftiar os ardores de tebricos, mas eles nfo brecaram um movi- mento irreprimivel. Eles explicam em parte 0 malogro ea perda de velocidade dessa cor- rente da produgao teatral. E preciso também confessar, com Dennis Kennedy”, que 0 tea- tro intercultural nem sempre soube se posi- cionar entre as encenacdes tradicionais dos, clissicos e as desconstrugoes. A época também mudou: a mise en scéne nao tenta mais significar metaforicamente um pais ou uma época através de outra cultura afastada no tempo e no espaco. Ela néo sente mais a necessidade de confrontar o teatro doméstico com formas que ela julgaria exd- ticas, como outrora 0 teatro balinés que ins pirou tanto Artaud. Nao ousa mais afirmar demasiado que “o teatro ¢ oriental” (Mnou- chkine). A relagdo com a alteridade cultural se complicou de maneira considerivel. Se os artistas tm uma relagio natural e descom- plexada com outras culturas, os politicos, cer- tos intelectuais e os responsaveis pela political correctness ficam aterrorizados com a ideia de ‘um paso em falso na representagio do Outro ena apreciagio da outra cultura, b. A Crise da Teorizagao A teoria das trocas culturais e do interculta ralismo atravessa uma crise, pois o modelo de troca, de comunicagao e de tradugio, mas também a de dom e de comunhio, nao funcionam mais tao bem, quando se trata de descrever essas obras hibridas, mesmo quando sio globalizadas. Os tex- tos ¢ os espeticulos de nossa época globa- lizada nao sofrem mais a necessidade de se definir como uma confluéncia de culturas, como se a coisa avangasse por si. E, de ato, que sentido teria a interculturalidade se as culturas ja se encontram tio “misturadas”? A antiga distingao entre o intracultural e 0 intercultural nao € mais hoje facil de estabe- lecer. Aquela entre cross-cultural e intercul- tural (¢ transcultural) é titi, mas totalmente tedrica: cross indicaria a mistura, a hibride7. (como em cross-breeding), enquanto inter ou trans assinalariam a passagem ¢ a similari- dade universal, maneira de um Grotowski, de um Barba ou de um Brook. A esses trés encenadores censurou-se, por exemplo, a busca abstrata de universais tea. trais, quaisquer que sejam as culturas; f gou-se sua falta de anilise politica ou historica conereta. Brook teria uma visio essencialista Go ser humano, reduzida a um liame ea uma esséncia perceptivel quaisquer que fossem. 0s contextos. Barba procuraria no pré-ex- pressivo caracteristicas supra- ¢ até pré-cu turais comuns a todas as formas existentes de jogo teatral ¢ de danga. © reproche nao 6 injustificado, mas ele se aplica bem menos as produgdes recentes de um Barba, de uma Mnouchkine ou de um Brook. A teoria per- manece, por certo, maioritariamente ocidental (anglo-americana), mas 0 Ocidente nao possui mais 0 monopélio da reflexao tedrica, mesmo se os paises onde se pratica o intercultural nao tenham as mesmas expectativas que o intercul- tural dos anos 1970 no Ocidente, e pratiquem, eles préprios, empréstimos 4 cultura ¢ litera- tura ocidentais sem temor de serem taxados de imperialismo ou de neocolonialismo (China, Coreia, Japio, notadamente). teatro intercultural conhece duas ten- tagoes: seja a de fornecer uma visto uni- versal, e até universalista, do ser humano, e de atrair sobre si os raios dos chantres da diferenga cultural; seja, ao contririo, a de insistir no particularismo de cada cultura, recusar toda aproximacio e toda sintese, € escorregar para um particularismo extremo, que degenera depressa em um multicultura- lismo, e até em um comunitarismo sectario. Como mostra Ernesto Laclau, a esquerda ¢ areflexio democrética durante muito tempo hesitaram entre essas duas posicées: “O dis curso democratico centrara-se na igualdade além da diferenca. Isso é verdade no tocante a vontade geral de Rousseau como a do jaco- binismo ou da classe emancipadora do mar- xismo. Hoje, a0 contririo, a democracia esta ligada 20 reconhecimento do pluralismo e das diferengas”" O teatro intercultural nao mais escapa desse debate. Ele nio poderia doravante nem cludir a questao de sua anco ragem socioecondmica, nem se desinteres- sar de uma anélise politica e econdmica das mutagées engendradas pela globalizagior c. Mutagées das Experiéncias Espetaculares Interculturais ica-se hoje em dia impressionado pela grande diversidade do teatro intercultural e dos géne- ros que lhe so aparentados. A denominagao de “teatro intercultural” & cada vez. menos usada. O teatro intercultural se distingue dos generos seguintes, dos quais ele constitui amitide variagiies ou especializagie: O teatro multilingues, om regides mul- tilingues como a Catalunha ou Luxemburgo, que se baseiam no bi- ou multilinguismo do piblico para mudar constantemente de lingua, efetuando uma alusio € um pis- car de olho para uma parte do publico. Um humorista argelino, como Fellag, passa seus sketches do francés ao arabe ou ao berbere conforme as alusdes culturais ou as expres- ses idiomticas intraduziveis, O teatro “em vo" (em Versio Original ~ expressio da tevé) é com frequéncia legen- dado, o que permite uma recep¢ao original e adaptada, mas deixa entender o texto original, com a possibilidade, sem duvida constrangedora, da leitura das legendas intercaladas. O teatro sincréticor utiliza materiais tex- tuais, musicais, plisticos emprestados de muitas culturas, especialmente das culturas indigenas que se veem assim misturadas As formas europeias, tratando imimeras vezes de problemas do colonialismo ou do neo- colonialismo. teatro pés-colonial inscreve a escri- tura dramética, a de um Derek Walcott ou de um Wole Soyinka, por exemplo, na lin- gua e na cultura do colonizador, ao mesmo, tempo enriquecendo essa lingua e essa cul- tura. A encenagao se inspira em técnicas do jogo teatral da cultura de origem, confron- tando-as com praticas mais europeias do antigo colonizador. O teatro e, mais frequentemente, a poesia crioulizada buscam o recontro, a diferenga, a relagio da escritura “em presenga de todas as Linguas do mundo” (Edouard Glissant), para melhor lutar contra a mundializagao e sua uniformizagao. Eles designam antes de tudo lingua enriquecida em um “Todo mundo’, por certo castico e imprevisivel, mas afastado do multiculturalismo, (Hibridez*) O teatro multicultural: é um teatro que combina varias culturas, linguagens, tradi- sGes dentro da mesma pega ou da mesma performance. No sentido estrito e politico do termo, 0 teatro multicultural nao existe, na medida em que negaria 0 contato e as trocas salutares entre culturas diferentes. Do mesino modo, um teatro comunitarista que seencerrasse em uma s6 cultura, religiao ou comunidade fechada, teria visibilidade ape- nas interna, apenas para sua comunidade, vontade de se isolar da sociedade amitide multicultural em que se desenvolve. Certos dramaturgos saidos de minorias negras ou asidticas na Gra-Bretanha (¢ 0 caso de Roy Williams com sua pega Joe Guy (2007) ou nos Estados Unidos (é 0 caso de Sung Rno com w(A)ve). O teatro para turistas*, por certo no anunciado como tal, mas muito presente em paises que vivem do turismo e desejam proporcionar de sua cultura, aos turistas ‘ocidentais, uma imagem acessivel, exotica ¢ “apresentavel”". O teatro para festival dirige-se a um piblico amitide internacional, as vezes muito enten- dido. Ele procura adaptar-se as modas e as expectativas do momento, esforga-se em tor- nar sua cultura acessivel ao puiblico por todas as espécies de compromisso (Festivalizagao"). O teatro cosmopolitar, assim chamaco em consequéncia dos trabalhos de Appadurai, de Reinelt® ou de Rebeliato, pretende se dife- renciar do teatro mais globalizado do que intercultural. © cosmopolita, com efeito, “se distingue da ética que governa a globaliza- Go", Resta saber no que exatamente! Essas categorias que dependem pouco ou muito do movimento intercultural se entre- cortam frequentemente e sua lista nao esta fechada. Todas se ressentem do impacto da globalizacao. O teatro intercultural se reduziria progressivamente a um “teatro globalizado"? Apostemos que, para se prolongar ou mesmo para existir, o teatro intercultural ever reencontrar, ou antes, encontrar, o sen tido do humor: nao se levar demais a sério, saber trocar de si mesmo, de seus limites, de O community theatre (teatro de proximi- seu futuro e de suas origens, por mais sagra- dade) por contraste é criado pela comuni- das que elas sejam, e sobretudo lembrar-se dade* local ou regional no sentido amplo, de que nao se trata finalmente senao dearte € nao por uma comunidade recolhida em _ teatral, simesma. O teatro das minorias* nao é necessaria- mente intercultural. Ele se dirige a mino- 1 rigs ¢tnicas ou linguisticas, sem poder nem

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