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A REPRESENTAÇÃO DA LIBERDADE

NA ILÍADA DE HOMERO
THE REPRESENTATION OF FREEDOM IN ILIAD’S HOMER

Luciano Coutinho
Luciano Coutinho é professor da linha de “Estética, Hermenêutica e Semiótica”
do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Brasília – UnB. É Doutor em Estudos Clássicos/Filosofia pela
Universidade de Coimbra – UC (com bolsa CAPES para Doutorado Pleno no
Exterior). Fez dois Pós-Doutoramentos em Filosofia pelo Instituto de Filosofia
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU; um deles com bolsa CAPES. É
Pesquisador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (CECH) da Universi-
dade de Coimbra – UC. Este trabalho foi elaborado parte de projeto de pesqui-
sa, quando Luciano Coutinho era Professor de Língua Portuguesa do Instituto
Federal de Brasília – IFB.

Resumo Abstract

A crítica literária tem grandemente acomodado a Literary criticism has, for the most part, described
Ilíada, de Homero, em um tipo de interpretação with Homer’s Iliad based on a kind of interpretation
que reduz a obra a uma paideia militar. Nesse that reduces the work to a military paideia. In this
tipo de leitura reducionista, tanto Aquiles quanto kind of reductionist reading, both Achilles and Hector
Heitor têm sido exemplificados como modelo de have been exemplified as models of a virtue linked to
uma virtude ligada ao exercício militar. No entanto, military exercise. However, I intend to demonstrate
pretendo demonstrar, neste trabalho, como a in this paper how the figure of Hector, contrary to
figura de Heitor, ao contrário do que a tradição vem what tradition has been largely attesting, is an
largamente atestando, é um exemplo de liberdade example of freedom of spirit, thus emphasizing his
de espírito, marcando, assim, sua humanidade e humanity and his antagonism as to the attitude of
seu antagonismo quanto à postura de caráter em character in relation to the figure of Achilles..
relação à figura de Aquiles.
Keywords: Homer; Achilles; Hector; Human Freedom.
Palavras-chave: Homero; Aquiles; Heitor;
Liberdade humana.

https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v9.n1.2019.06
APRESENTAÇÃO DO militar3, que sem perceber acaba por reduzir seu
valor poético. Aquiles, nesse sentido, ganhou o
PROBLEMA estatuto de protótipo de guerreiro, elaborado por
Homero, para esse tipo de sustentação diminutiva
da obra. 1
A Ilíada é inegavelmente uma obra mergulhada
A esse respeito, Ferreira
em princípios militares que permeiam o
É claro que não se pode negar a presença da apresenta Esparta como
imaginário do Ocidente até os dias atuais. Mas uma “verdadeira cidade-
temática militar na Ilíada. A insegurança é, aliás,
reduzi-la a tais princípios é menosprezar uma quartel” (Ferreira, 2010,
um problema social e cultural que toda Grécia
das obras que mais fundamentam a liberdade p. 20).
arcaica pré-homérica enfrentava, e essa temática
humana nas bases do pensamento ocidental.
militar teria sido um tipo de resposta poética a
Homero, segundo gostaria de propor neste
tal insegurança, que, aliás, passaria a influenciar
trabalho, é antes um poeta preocupado em
também a própria formação das cidades-estados
refletir a liberdade de espírito, a partir da
posteriormente à obra. Micenas entra em declínio
postura de caráter de cada guerreiro, diante da
no século XII a.C. e leva a Grécia arcaica a um
batalha. 2
contexto de incessantes lutas travadas por várias
pequenas comunidades, que, posteriormente, A esse respeito, Grillo
Mais que a temática militar, portanto, a grandeza (2010) apresenta
da obra estaria na postura de cada guerreiro diante organizam-se em cidades-estado em busca de interessantes
da liberdade de suas ações no contexto da guerra. meios para estabelecer cada uma delas unidade e observações acerca
Em outras palavras, Homero parece estar mais soberania. de temáticas ligadas à
preocupado com o caráter de cada guerreiro, que Guerra de Troia em vasos
Aquiles representa, de fato, essa força e essa atenienses da época.
determina o grau de liberdade quando movido
intempérie aparentemente invencíveis pela força
pelo estresse da batalha, que propriamente com
humana. Basta lembrar que ele é a maior força
o resultado da guerra, motivado pela força física e
de combate contra os troianos. Seus excessos,
pelo auxílio dos deuses.
todavia, parecem, em vários momentos, colocar
Nesse sentido, este trabalho pretende verificar, na em demasiado risco a batalha para os gregos,
Ilíada de Homero, a representação da liberdade tornando-se, também por vezes, um tipo de 3
em duas figuras centrais da obra: Aquiles e Heitor. intempérie para seu próprio povo: sua ira contra Essa perspectiva
Para tanto, o artigo será divido em duas partes: a seu líder Agamenon (justificada, é claro, pelo foi defendida
primeira, intitulada “Aquiles: o arrependimento caráter aproveitador e covarde deste) é prova principalmente por
disso.4 Vernant (1996).
da glória”; a segunda, “Heitor: a participação da
liberdade”.
A irascibilidade de Aquiles depõe contra os
guerreiros gregos, e a finalidade banal dos espólios
de guerra denuncia a arrogância autodestrutiva
desse povo. Mais que uma obra militar, fruto de
AQUILES: O uma experiência empírica da época, Homero, um 4
ARREPENDIMENTO DA grego, parece criticar a postura de caráter de seu Cf. Homero (Ilíada 1 e 9).
próprio povo, pelo menos quando mergulhado no
GLÓRIA estresse da batalha.

Desde sua postura militar até seu espírito pseudo-


Aquiles tem sido largamente considerado um
desprendido da vida, Aquiles tem sido associado,
modelo de guerreiro, elaborado por Homero, 5
como uma proposição homérica, a um tipo de
a ser seguido pela humanidade. Tornado pela
modelo de virtude. No entanto, a obra de Homero A esse respeito Redfield
tradição um guerreiro grego exemplar, Aquiles afirma: “Poetry is not
não pode ser assumida propriamente como uma
é um semideus destinado à glória. Ao abrir mão about the typical but
mímese de acontecimentos do passado, tampouco
de uma vida longa e sem glória, ele escolhe uma about the wonderful,
como modelo proposital para influenciar
morte prematura, mas gloriosa. because the wonderful
militarmente as cidades-estado constituídas gives rise to questions
Algumas cidades-estado gregas dedicaram-se posteriormente. Afinal, ela é antes uma reflexão about probability and
à guerra e tomaram a obra homérica como um daquilo que os seres humanos deveriam ser diante necessity.” (Redfield,
modelo a ser seguido no contexto da batalha. da batalha.5 1975, p. 79); cf. também:
Esparta, por exemplo, distinguiu-se, dentre as “Men are as they have
O modelo que Aquiles representa, portanto, learned to be, and
demais poleis, pelo tipo de educação rigorosamente they think as they
precisa ser revisto.
militar1, e, mesmo a Atenas dos séculos VI e V a.C. have learned to think.”
apresentava esse mesmo tipo de postura2. (Redfield, 1975, p. 79).
A noção de “bela morte” tem sido utilizada como Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos pés
prova por boa parte dos comentadores para definir prateados,
a obra de Homero a um poema praticamente que um dual destino me leva até ao termo da
morte:

A REPRESENTAÇÃO DA LIBERDADE NA ILÍADA DE HOMERO 64


se eu aqui ficar a combater em torno da não há, no poeta, a noção de inteligibilidade
cidade de Tróia, psíquica; 2) todavia é importante elucidar que
perece o meu regresso, mas terei um renome a ideia de psyche como aquela que, no Hades,
imorredouro; “permanece como ‘imagem’ espectral do defunto,
porém se eu regressar a casa, para a amada sem vida, sem capacidade de sentir, nem de
terra pátria, conhecer, nem de querer”, já que é “uma imagem
perece o meu renome glorioso, mas terei uma emblemática do não-estar-mais-vivo” (Reale, 2002,
vida longa, p. 70), conforme Reale radicalmente sustenta em
e o termo da morte não virá depressa ao meu Corpo, alma e saúde: o conceito de homem de Homero a
encontro. Platão, é preciso ser repensada – esta leitura parece
(Homero, Ilíada 9, vv. 410-416). equivocada, quando ficamos diante da passagem
em questão, na Odisseia, afinal ela antecipa, mesmo
Na medida em que ele tem a suposta liberdade que timidamente, uma reflexão das escolhas de
para abrir mão de sua própria vida, ele se entrega Aquiles que conduziram prematuramente sua
a um embuste que o arruína, afinal se entregar à psyche ao Hades; nela, a psyche do semideus deixa
morte para a glória de seu nome revela-se, mais de ser mera imagem, sem consciência e sem
tarde, como um tipo de pseudo-liberdade. sentimento ou desejo, para assumir um papel
autocrítico acerca de sua caminhada até o além,
Essa pseudo-liberdade só é definitivamente
percebendo que suas escolhas o desviaram de
revelada, quando sua própria psyche, no Hades,
uma possível vida longa e próspera, sob qualquer
reflete sua condição pós-morte. Esta revelação
hipótese melhor que a morte prematura.
surge, entretanto, na Odisséia. Nela, Homero dá voz
à psyche de Aquiles, para responder aos elogios de Aquiles perde sua glória diante da morte prematura,
Ulisses acerca da vida no Hades, após sua morte fruto de sua própria escolha. Ele não apenas se
gloriosa: lamenta por isso como também conclui que teria
sido melhor ser escravo em vida que rei na morte. A
Não tentes reconciliar-me com a morte, ó vida, sob qualquer circunstância, teria sido melhor
glorioso Ulisses.
que a morte prematura, revela-nos a própria psyche
Eu preferiria estar na terra, como servo de de Aquiles. A morte gloriosa, ou a bela morte, se
outro,
preferirmos, perde seu valor diante de tal reflexão
Até de homem sem terra e sem grande e anula-se no próprio vazio de caráter do guerreiro
sustento,
grego glorioso.
Do que reinar aqui sobre todos os mortos.
(Homero, Odisseia 11, vv. 488-491) A grandeza da obra homérica baseada na heroica
morte do guerreiro parece perder seus alicerces. A
Em Homero, os mortos vão para o Hades, mas, postura diante da vida e o caráter de cada guerreiro
diferentemente de uma morte comum, uma diante da guerra sustentam a base que dá grandeza
morte heroica garantiria ao guerreiro uma posição à obra. A liberdade de Aquiles em poder escolher a
privilegiada no além. Herói de morte gloriosa, vida longa sem glória ou a vida curta interrompida
Aquiles é mencionado por Ulisses, na Odisseia, pela morte gloriosa em batalha, revela-se um
como um privilegiado no Hades. A resposta de engodo, um aprisionamento em seu próprio vazio
Aquiles a Ulisses, todavia, demonstra bastante de caráter e de espírito.
bem seu arrependimento acerca da escolha que
Sua postura amoral diante da batalha – como por
fizera de uma morte prematura na guerra de Tróia.
exemplo a ganância desenfreada pelos espólios
A ideia de que morrer prematuramente em batalha de guerra ou o desrespeito ao cadáver de Heitor
é motivo de glória é – se os dois poemas não forem (conforme veremos a seguir) – é exemplo de seu
divorciados um do outro – derrubada pela própria modelo de pseudo-liberdade. Sua força invencível
psyche de Aquiles ao refletir sobre sua suposta e sua coragem intemerária tornam-se, ao fim, sua
gloriosa condição no Hades. própria fraqueza e sua própria prisão.

A respeito dessa reflexão da psyche de Aquiles no É da pseudo-liberdade de Aquiles, subjugado à


Hades, é importante fazer duas considerações: 1) indução da deusa Tétis, sua mãe, ao lhe colocar
em As origens da alma: Os gregos e o conceito de alma uma segunda alternativa disfarçada de covardia (a
de Homero a Aristóteles (2010), Thomas Robinson faz vida longa sem glória), que o semideus se faz preso
uma aprofundada leitura acerca da mudança de em sua própria imprudência, tornando-se, assim,
significado, de Homero a Aristóteles, da expressão um privilegiado no Hades, demonstrando que sua
psyche, propondo que, apenas em Platão, a psyche força semidivina nada vale no além.
assume inteligibilidade – as observações de Para esta leitura, todavia, é preciso ter cuidado
Robinson estão em plena concordância com a com possíveis anacronismos, por isso é importante
compreensão geral de psyche em Homero, afinal elucidar que não se propõe aqui algum tipo de

REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 9 |Número 1


antecipação da moralização clássica por parte de morrido junto das naus!
Homero. O que se pretende é elucidar a proposta Ai de mim, de todo amaldiçoado! Eu que gerei
homérica de consciência e respeito diante de filhos excelentes
um estado de guerra. Homero parece querer na ampla Tróia, mas deles não me resta nem 6
nos ensinar que a guerra humana exige de cada um único: Essa tradição perdura
participante uma postura de caráter, mesmo nem o divino Nestor nem Troilo condutor de ainda nos dias de
diante dos estresses que ela provoca. Nesse cavalos; hoje: “Heitor, mesmo
sentido, mais importante que o exercício militar ou nem Heitor, que era um deus entre os homens convencido de que
uma educação para a guerra é o caráter e a postura e não parecia filho de um mortal, mas de um perecerá diante de
proveniente desse caráter diante da guerra. O deus!” Aquiles, deseja, em sua
condição de guerreiro,
respeito ao inimigo não é, para Homero, apenas (Homero, Ilíada 24 vv. 253-259)8 transformar sua morte
uma regra mítica de guerra, é antes um princípio em ‘glória imperecível’
mínimo a se ter em conta em situações como estas, A tradição da valorização da heroica morte de Heitor (HOMERO. Ilíada, XXII,
afinal o fim da guerra seria o mesmo para todos os já está dada na própria obra, mas é Aristóteles vv.304-305)” (Grillo,
mortais: o Hades. A liberdade, portanto, não nasce que a fundamenta filosoficamente, e, em suas 2010, p. 34). A grandeza
na ambição, mas antes no caráter e na força de de Heitor ainda é
considerações, a morte virtuosa parece ter mais grandemente apenas
espírito de cada um, para reagir contra as próprias valor que as causas de caráter que o conduziram à associada a seu espírito
limitações. morte. Neste momento específico de desabafo de de bravura como
Príamo, o cadáver de Heitor está desfigurado, e seu guerreiro.
Aquiles não age contra suas limitações. Ao
pai pretende, sem qualquer medo da morte pelas
contrário, é por causa dos limites de sua natureza
mãos de Aquiles, amá-lo uma última vez.9
semidivina que ele se sente tentado a se entregar
à morte prematura para a glória imortal de seu Esta imagem está mais para um lamento
nome. apologético de um pai para um filho amado
que propriamente uma divinização da figura de
É nesse sentido que Heitor, e não Aquiles, torna-se
Heitor. Homero parece, aqui, valorizar o humano
o exemplo de participação da liberdade na Ilíada.
que supera seus próprios limites, para que sua 7
Sua liberdade se torna o modelo elaborado por
nação não se torne escrava, sem dar luta, frente à τὴν ὑπὲρ ἡμᾶς ἀρετήν,
Homero para a humanidade diante dos estresses
crueldade do inimigo. Um cadáver ultrajado não ἡρωικήν τινα καὶ θείαν,
de uma situação de guerra.
é propriamente uma imagem de um ser divino,
pelo menos não para um grego arcaico. Mas é esta
a imagem que se faz presente nos versos quase
finais do poema. Homero parece, por um lado,
HEITOR: A PARTICIPAÇÃO DA chamar a atenção para as fraquezas humanas que
conduziram o troiano até sua morte e desrespeito
LIBERDADE a seu cadáver, mas, por outro, também parece
chamar a atenção para o caráter humano que, 8
Se contraposto à força física semidivina de buscando garantir sua postura de liberdade diante Cf. Aristóteles (Ética a
da vida e da morte, levou-o à maximização de seu Nicômaco 1145a21-22).
Aquiles, Heitor é frágil, preso à sua natureza e à
sua condição humanas. Temerário, Heitor passa ultrajante fim.
por um processo de autorreconhecimento e de
O fato é que Heitor não esconde seu medo, nem
superação de seus limites, por meio de um tipo
conseguiria fazê-lo diante da ameaça divina de seu
de ‘força de espírito’, que parece conduzir a uma
rival, Aquiles. Heitor não é divino como Aquiles e
liberdade não participada por Aquiles na obra.
precisa aprender a lidar com seus medos. Nesse
O resultado de seus esforços militares, em si, sentido, Heitor representa o autorreconhecimento
parecem, todavia, ter chamado mais as atenções de seus próprios limites e, posteriormente, a
dos comentadores6 que as causas de caráter de seus busca de superação de tais limites, confirmando,
esforços. Já Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, assim, a força de caráter que o leva à participar da
por exemplo, elogia Heitor por sua virtude. O liberdade. 9
estagirita chega a dizer que Heitor apresenta um Cf. Homero (Ilíada 24, v.
Um exemplo que pode, a esse respeito, ser, aqui,
tipo de “hiper virtude, de tipo heroico e divino”7 226-227).
explorado é o momento em que sua mãe lhe roga
(Aristóteles, Ética a Nicômaco 1145a19-20).
para não ir à batalha:
Naturalmente, Aristóteles tira a ideia da própria
Ilíada, quando os elogios de Príamo divinizam o A ela respondeu em seguida o alto Heitor do
elmo faiscante:
filho Heitor:
“Todas essas coisas, mulher, me preocupam;
Apressai-vos filhos ruins, vis nulidades! Quem as muito eu me
me dera envergonharia dos Troianos e das Troianas de
que todos vós em vez de Heitor tivésseis longos vestidos,

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10 se tal como um cobarde me mantivesse longe Homero, ainda no início da obra, parece relativizar
da guerra. o tema da força física e da beleza. Todos esses
καλὸν εἶδος (Homero,
Ilíada 3, v. 44-45). Nem meu coração tal consentia, pois aprendi atributos são problematizados, ao contrário
a ser sempre do que nossa tradição tem incansavelmente
corajoso e a combater entre os dianteiros dos resgatado enquanto elogio. Ser “belo de forma”10
Troianos, não garante a grandeza de um guerreiro para
11 esforçando-me pelo grande renome de meu Heitor. A causa da coragem humana parece estar
βίη φρεσὶν (Homero, pai e pelo meu. associada a um tipo de “força de espírito”11. É
Ilíada 3, v. 45), Pois isto eu bem sei no espírito e no coração: dessa força que o humano pode buscar superar
literalmente um tipo de virá o dia em que será destruída a sacra Ílion, seus próprios limites e não se permitir entregar às
“força no coração”. forças míticas.
assim como Príamo e o povo de Príamo da
lança freixo.”
Homero, em uma passagem subsequente,
(Homero, Odisseia 6, vv. 440-449)
12 apresenta, na voz de Alexandre, a ideia bastante
οὔ τοι ἀπόβλητ’ ἐστὶ θεῶν comum à época de que o ser humano é um tipo
Heitor, comparado ao semideus Aquiles, é humano, de fantoche das atribuições divinas: “Não se
ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν
fraco, e precisa superar suas fraquezas, tornando- devem rejeitar os dons gloriosos dos deuses, / que
αὐτοὶ δῶσιν, ἑκὼν δ’ οὐκ
ἄν τις ἕλοιτο·(Homero, se digno diante da vida, para não se permitir eles próprios outorgam e que nenhum homem
Ilíada 3, vv. 65-66). entregar às forças míticas sem lutar. alcançaria / por sua vontade”12. Sem concordar
A dilaceração do cadáver de Heitor parece reforçar com esta ideia, no entanto, Homero questiona-a
sua fraqueza humana, mas ao aprender a ser com a postura de Heitor, que, indo contra tais
corajoso, nem esse ultrajante fim diminui seu valor atribuições divinas, solicita de Alexandre uma
13 de caráter. Ao contrário, enquanto Aquiles revela postura de superação contra essas possíveis
Essa postura de Homero sua fraqueza de cadáver diante de seu desejo atribuições. Isto depende, no entanto, da
é um primeiro sinal, pela imortalidade de seu nome, Heitor passa a liberdade que cada um tem diante de sua própria
embora tímido, de natureza e condição. Assim, enquanto Alexandre
representar a força de caráter tornada superação
questionamento contra
de seus limites. considera que princípios como força e coragem
a ideia de que a vontade
humana é submissa à são atribuições divinas, Heitor considera-as fruto
Contra as forças míticas, a força física nada pode da liberdade, causa da força de espírito e do
vontade dos deuses. Essa
ideia é tão importante
fazer. Apenas a força de espírito oferece liberdade autorrreconhecimento dos próprios limites e da
para os gregos que necessária para superar as fraquezas e os medos que busca de autossuperação.13
Platão se debruça subjugam a humanidade às forças incompreensíveis
contra ela em uma de da natureza. Heitor, nesse sentido, representa a Se Alexandre tem atributos de Afrodite (“não
suas imagens mais liberdade humana. Assim, a postura de Heitor me lances à cara os dons amáveis da dourada
importantes: a recriação diante da batalha é exaltada, revelando seu caráter Afrodite.”, cf. Homero, Ilíada 3, vv. 64-66) e Menelau
que faz do mito de diante dos estresses da guerra e sua força de espírito tem atributos de Ares (“coloca-me no meio, assim
Prometeu, no Protágoras
(320c8-d6), em que para participar da liberdade. como a Meneleau dilecto de Ares”, cf. Homero,
a distribuição das Sua repreensão ao medo que Alexandre tem de Ilíada 3, v. 69), o confronto seria, por natureza, ao
qualidades aos animais Menelau é exemplo disso: olhar de Alexandre, injusto e um contrassenso às
terrestres é feita por seu forças míticas. Mas, ao olhar de Heitor, a luta é a
irmão Epimeteu e, ao representação da liberdade humana contra as
humano, por Prometeu. Isso quereria eu, pois seria muito melhor
assim, em vez forças míticas; dito de outra maneira, a liberdade
de seres para todo motivo de censura e gera uma força de espírito, um tipo de força no
desprezo. coração, capaz de superar até mesmo as pré-
Na verdade rir-se-ão os Aqueus de longos disposições congênitas impostas a alguém.
cabelos,
ao pensarem que combates na linha de frente Na Odisseia, por exemplo, Ulisses é um ser humano
porque és belo que também enfrenta as forças míticas14. Ulisses é
de corpo, a despeito de te faltar força de um grego, e Homero estaria a elogiar, com isso, sua
espírito e coragem. própria raça não fosse o fato de que, ao retornar
(Homero, Ilíada 3, vv. 41-45) a Ítaca, Ulisses torna-se um estrangeiro em sua

14 Adorno e Horkheimer sustentam a ideia de superação do mito não como negação e anulação das forças míticas, mas
como um processo de interiorização de tais forças, como se o ser humano as deslocasse de sua possibilidade real no mundo
exterior para uma existência imaginária no interior do espírito humano: “Ele (Ulisses) se livra delas (das imagens) depois
de tê-las reconhecido como mortas e de tê-las afastado, com o gesto imperioso da autoconservação, do sacrifício que só
oferece a quem lhe concede um saber útil para sua vida, na qual o poder do mito só continua a se afirmar como imaginação
transposta para o espírito.” (Adorno; Horkheimer, 2006, p. 68).

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própria terra. Ulisses representa, de tal maneira, a Faz como te indicar teu ânimo; já não precisas
capacidade humana de se tornar implacável com de te refreares.’
sua própria cultura.15 (Homero, Ilíada 22, vv. 168-185)

Assim, não apenas o Ulisses da Odisseia representa O segundo resultado de sua liberdade é ser
um grande passo da humanidade contra as forças enganado pelos deuses:
míticas primitivas da natureza. Heitor representa,
também, um dos grandes fundamentos para a Ah, na verdade os deuses chamaram-me para
liberdade humana de lutar contra aquilo que a morte.
parece ser incompreensível e incombatível. Mas, na Pois eu pensava que o herói Deífobo estava ao
Ilíada, o elogio à força de espírito e de liberdade de meu lado.
um estrangeiro representa o elogio à capacidade Mas ele está dentro das muralhas e foi Atena 15
da espécie humana de lutar contra suas limitações que me enganou.
Isto vai na linha do que
congênitas, culturais, individuais, dentre outras. (Homero, Ilíada 22, vv. 297-299) diz Schiller, nas Cartas
sobre a educação
A morte é inevitável para Heitor, tanto quanto o é estética da humanidade,
A deusa Atena cria-lhe um embuste,
para Aquiles, mas enquanto este se prende a ela, a respeito do mal que é
metamorfoseando-se em seu irmão Deífobo,
preso à sua condição e prostrado diante da glória, um artista ser pupilo de
para que ele se sinta fortalecido e encorajado a
Heitor enfrenta a morte superando seus limites e seu tempo ou de ser seu
finalmente lutar contra Aquiles fora das muralhas, protegido; por isso, um
libertando-se das imposições míticas. Com sua
sem fugir novamente por causa do medo. artista deveria ser como
morte, Heitor se torna um modelo de liberdade e
de força de espírito, para não se permitir entregar, um jovem arrancado de
seu leito, para, quando
diante do medo, às intempéries da vida. homem, voltar, como
Atena deixou-o e foi ter com o divino Heitor,
Assemelhando-se a Deífobo no corpo e na voz um estrangeiro, para
Tudo isso tem um preço: ser abandonado seu povo, não para
pelos deuses. Este é o primeiro resultado de indefectível.
comprazer, mas para
sua liberdade, conforme podemos perceber na Postando-se junto dele proferiu palavras purificar seu tempo; cf.
declaração de Zeus aos outros deuses, diante da apetrechadas de asas: Schiller (1992, p. 64).
situação de Heitor: ´Caro irmão, não há dúvida de que o veloz
Aquiles te violenta,
‘Ah, estou a ver com os meus olhos um perseguindo-te com pés velozes em torno da
homem que amo cidade de Príamo.
a ser perseguido à volta da muralha. Meu Mas enfrentemo-lo os dois e repulsemos o seu
coração chora ataque.
por Heitor, que para mim queimou muitas (Homero, Ilíada 22, vv. 226-231)
coxas de bois,
tanto nos píncaros do Ida de muitas escarpas, Embora isso possa parecer um castigo divino, os
como últimos momentos da vida de Heitor representam
na cidade de Tróia. Mas agora o divino Aquiles o enfrentamento dos excessos da vida mítica.
persegue-o com pés velozes em torno da Embora o alto preço da morte e da humilhação
cidade de Príamo. possa parecer um castigo, Heitor torna-se o maior
Reflecti então vós, ó deuses, e modelo de liberdade contra as intempéries míticas.
aconselhadamente deliberai 16
se o salvaremos da morte, ou se agora será Esta é a representação humana da liberdade.
Para esta questão da
pelo Pelida Aquiles subjugado, valoroso Homero, portanto, sugere que enquanto Aquiles glória do nome, com
embora seja.’ consequências que
se torna fraco diante dos desígnios no Hades, perduram mesmo
A ele deu resposta a deusa, Atena de olhos entregando-se a uma morte prematura para
garços: depois da morte
a glória de seu nome16, Heitor não se permite para os que ficam, cf.
‘Pai do candente relâmpago, deus da nuvem entregar ao inimigo e, libertando sua psyche das Edwards (1987).
azul! Que disseste!
limitações das condições de sua natureza, enfrenta
A homem mortal, há muito fadado pelo a natureza mítica de Aquiles e ganha a liberdade.
destino,
queres tu salvar de novo da morte funesta?
Fá-lo. Mas todos nós, demais deuses, te não
louvaremos.’ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respondendo-lhe assim falou Zeus que
comanda as nuvens:
O legado de Heitor, ao que se pode ver, está em
‘Anima-te, ó Tritogenia, querida filha. Não é sua participação da liberdade.
com séria
intenção que falo; pelo contrário, quero ser-te Aquilo que tem sido apontado como um tipo de
favorável. degradação da figura de Heitor na epopeia, ao ser

A REPRESENTAÇÃO DA LIBERDADE NA ILÍADA DE HOMERO 68


17 situado como um herói trágico17, é o que vemos Heitor: 1) sua natureza e condição humanas; 2) sua
A respeito dessa linha, como consequência de sua força de espírito. força de espírito para buscar superar sua natureza
que entende a evolução Assim, ele se esvazia da característica tradicional e condição humanas. Este encadeamento é o que
de Heitor como um tipo da ideia de guerreiro para se tornar o maior herói, o faz Heitor participar da liberdade, tornando-o
de degradação trágica,
cf. Redfield (1975). Em
em liberdade, da Ilíada. capaz de combater as intempéries míticas,
contraponto a essa representadas pela figura de Aquiles.
Homero traz à tona dois importantes princípios em
linha, é importante
abrir o diálogo com torno da representação da liberdade na figura de
Combellack (1978, p.
82), que aponta os
“erros” de Heitor assim
descritos por Redfield, REFERÊNCIAS
não como erros, mas BIBLIOGRÁFICAS
como arrogância e tolice.
Essa arrogância e tolice,
podemos considerar FONTES PRIMÁRIAS EDWARDS, Mark W.. Homer, poet of the Iliad.
neste trabalho, são Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1987.
partes realísticas de um HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço.
ser humano em busca Lisboa: Cotovia, 2012. GRILLO, José Geraldo Costa. “A guerra de Troia no
de auto-superação. _______. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: imaginário ateniense: sua representação nos vasos
São nesses momentos Cotovia, 2014. áticos dos séculos VI-V a.C.” in Phoînix, v.16, 2010,
bastante realistas de pp. 32-49.
excesso humano que Platão. Protágoras, in Platone, tutti gli scritti. Trad.
Heitor não se permite Giovanni Reale. Milano: Bompiani, 2008. __________________________. “A ira de Aquiles
entregar às intempéries e as sensibilidades à violência na Grécia antiga” in
representadas por História: Questões & Debates, nº 48/49, 2008, pp. 37-
Aquiles. Nesse ponto, FONTES SECUNDÁRIAS
59.
temos de concordar
com Vernant, na ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética
do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. KING, Katherine Callen. Achilles, paradigms of the
linha de Redfield,
ao dizer que a Ilíada Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. war hero from Homer to the Middle Ages. Berkeley; Los
“funciona, assim, como a Angeles: The University of California Press, 1991.
estilização narrativa das COMBELLACK, Frederick M. Review: Nature and
ambiguidades da guerra” Culture in The Iliad: The Tragedy of Hector. By James REALE, Giovanni. Corpo, alma e saúde - O Conceito de
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São essas ambiguidades, 1978, pp. 81-84. São Paulo: Paulus, 2002.
aliás, que garantem a
grandeza da obra. COUTINHO, Luciano. A recriação do orfismo no mythos REDFIELD, James M.. Nature and culture in the Iliad:
de Er: a descoberta da escolha do futuro da psyche em the tragedy of Hector. Chicago, The University of
Platão in Cosmópolis – mobilidades culturais às origens Chicago Press, 1975.
do pensamento antigo (Orgs. Cornelli, Gabriel; Fialho,
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e o conceito de alma de Homero a Aristóteles. Trad.
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_______ (2015). Intuitions about neuroscientific
SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação
problems of the cure in Plato: the communication
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Coimbra University Press, 2010. Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 2002.

REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 9 |Número 1

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