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Juliobrasil, 8
Juliobrasil, 8
NA ILÍADA DE HOMERO
THE REPRESENTATION OF FREEDOM IN ILIAD’S HOMER
Luciano Coutinho
Luciano Coutinho é professor da linha de “Estética, Hermenêutica e Semiótica”
do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Brasília – UnB. É Doutor em Estudos Clássicos/Filosofia pela
Universidade de Coimbra – UC (com bolsa CAPES para Doutorado Pleno no
Exterior). Fez dois Pós-Doutoramentos em Filosofia pelo Instituto de Filosofia
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU; um deles com bolsa CAPES. É
Pesquisador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (CECH) da Universi-
dade de Coimbra – UC. Este trabalho foi elaborado parte de projeto de pesqui-
sa, quando Luciano Coutinho era Professor de Língua Portuguesa do Instituto
Federal de Brasília – IFB.
Resumo Abstract
A crítica literária tem grandemente acomodado a Literary criticism has, for the most part, described
Ilíada, de Homero, em um tipo de interpretação with Homer’s Iliad based on a kind of interpretation
que reduz a obra a uma paideia militar. Nesse that reduces the work to a military paideia. In this
tipo de leitura reducionista, tanto Aquiles quanto kind of reductionist reading, both Achilles and Hector
Heitor têm sido exemplificados como modelo de have been exemplified as models of a virtue linked to
uma virtude ligada ao exercício militar. No entanto, military exercise. However, I intend to demonstrate
pretendo demonstrar, neste trabalho, como a in this paper how the figure of Hector, contrary to
figura de Heitor, ao contrário do que a tradição vem what tradition has been largely attesting, is an
largamente atestando, é um exemplo de liberdade example of freedom of spirit, thus emphasizing his
de espírito, marcando, assim, sua humanidade e humanity and his antagonism as to the attitude of
seu antagonismo quanto à postura de caráter em character in relation to the figure of Achilles..
relação à figura de Aquiles.
Keywords: Homer; Achilles; Hector; Human Freedom.
Palavras-chave: Homero; Aquiles; Heitor;
Liberdade humana.
https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v9.n1.2019.06
APRESENTAÇÃO DO militar3, que sem perceber acaba por reduzir seu
valor poético. Aquiles, nesse sentido, ganhou o
PROBLEMA estatuto de protótipo de guerreiro, elaborado por
Homero, para esse tipo de sustentação diminutiva
da obra. 1
A Ilíada é inegavelmente uma obra mergulhada
A esse respeito, Ferreira
em princípios militares que permeiam o
É claro que não se pode negar a presença da apresenta Esparta como
imaginário do Ocidente até os dias atuais. Mas uma “verdadeira cidade-
temática militar na Ilíada. A insegurança é, aliás,
reduzi-la a tais princípios é menosprezar uma quartel” (Ferreira, 2010,
um problema social e cultural que toda Grécia
das obras que mais fundamentam a liberdade p. 20).
arcaica pré-homérica enfrentava, e essa temática
humana nas bases do pensamento ocidental.
militar teria sido um tipo de resposta poética a
Homero, segundo gostaria de propor neste
tal insegurança, que, aliás, passaria a influenciar
trabalho, é antes um poeta preocupado em
também a própria formação das cidades-estados
refletir a liberdade de espírito, a partir da
posteriormente à obra. Micenas entra em declínio
postura de caráter de cada guerreiro, diante da
no século XII a.C. e leva a Grécia arcaica a um
batalha. 2
contexto de incessantes lutas travadas por várias
pequenas comunidades, que, posteriormente, A esse respeito, Grillo
Mais que a temática militar, portanto, a grandeza (2010) apresenta
da obra estaria na postura de cada guerreiro diante organizam-se em cidades-estado em busca de interessantes
da liberdade de suas ações no contexto da guerra. meios para estabelecer cada uma delas unidade e observações acerca
Em outras palavras, Homero parece estar mais soberania. de temáticas ligadas à
preocupado com o caráter de cada guerreiro, que Guerra de Troia em vasos
Aquiles representa, de fato, essa força e essa atenienses da época.
determina o grau de liberdade quando movido
intempérie aparentemente invencíveis pela força
pelo estresse da batalha, que propriamente com
humana. Basta lembrar que ele é a maior força
o resultado da guerra, motivado pela força física e
de combate contra os troianos. Seus excessos,
pelo auxílio dos deuses.
todavia, parecem, em vários momentos, colocar
Nesse sentido, este trabalho pretende verificar, na em demasiado risco a batalha para os gregos,
Ilíada de Homero, a representação da liberdade tornando-se, também por vezes, um tipo de 3
em duas figuras centrais da obra: Aquiles e Heitor. intempérie para seu próprio povo: sua ira contra Essa perspectiva
Para tanto, o artigo será divido em duas partes: a seu líder Agamenon (justificada, é claro, pelo foi defendida
primeira, intitulada “Aquiles: o arrependimento caráter aproveitador e covarde deste) é prova principalmente por
disso.4 Vernant (1996).
da glória”; a segunda, “Heitor: a participação da
liberdade”.
A irascibilidade de Aquiles depõe contra os
guerreiros gregos, e a finalidade banal dos espólios
de guerra denuncia a arrogância autodestrutiva
desse povo. Mais que uma obra militar, fruto de
AQUILES: O uma experiência empírica da época, Homero, um 4
ARREPENDIMENTO DA grego, parece criticar a postura de caráter de seu Cf. Homero (Ilíada 1 e 9).
próprio povo, pelo menos quando mergulhado no
GLÓRIA estresse da batalha.
14 Adorno e Horkheimer sustentam a ideia de superação do mito não como negação e anulação das forças míticas, mas
como um processo de interiorização de tais forças, como se o ser humano as deslocasse de sua possibilidade real no mundo
exterior para uma existência imaginária no interior do espírito humano: “Ele (Ulisses) se livra delas (das imagens) depois
de tê-las reconhecido como mortas e de tê-las afastado, com o gesto imperioso da autoconservação, do sacrifício que só
oferece a quem lhe concede um saber útil para sua vida, na qual o poder do mito só continua a se afirmar como imaginação
transposta para o espírito.” (Adorno; Horkheimer, 2006, p. 68).
Assim, não apenas o Ulisses da Odisseia representa O segundo resultado de sua liberdade é ser
um grande passo da humanidade contra as forças enganado pelos deuses:
míticas primitivas da natureza. Heitor representa,
também, um dos grandes fundamentos para a Ah, na verdade os deuses chamaram-me para
liberdade humana de lutar contra aquilo que a morte.
parece ser incompreensível e incombatível. Mas, na Pois eu pensava que o herói Deífobo estava ao
Ilíada, o elogio à força de espírito e de liberdade de meu lado.
um estrangeiro representa o elogio à capacidade Mas ele está dentro das muralhas e foi Atena 15
da espécie humana de lutar contra suas limitações que me enganou.
Isto vai na linha do que
congênitas, culturais, individuais, dentre outras. (Homero, Ilíada 22, vv. 297-299) diz Schiller, nas Cartas
sobre a educação
A morte é inevitável para Heitor, tanto quanto o é estética da humanidade,
A deusa Atena cria-lhe um embuste,
para Aquiles, mas enquanto este se prende a ela, a respeito do mal que é
metamorfoseando-se em seu irmão Deífobo,
preso à sua condição e prostrado diante da glória, um artista ser pupilo de
para que ele se sinta fortalecido e encorajado a
Heitor enfrenta a morte superando seus limites e seu tempo ou de ser seu
finalmente lutar contra Aquiles fora das muralhas, protegido; por isso, um
libertando-se das imposições míticas. Com sua
sem fugir novamente por causa do medo. artista deveria ser como
morte, Heitor se torna um modelo de liberdade e
de força de espírito, para não se permitir entregar, um jovem arrancado de
seu leito, para, quando
diante do medo, às intempéries da vida. homem, voltar, como
Atena deixou-o e foi ter com o divino Heitor,
Assemelhando-se a Deífobo no corpo e na voz um estrangeiro, para
Tudo isso tem um preço: ser abandonado seu povo, não para
pelos deuses. Este é o primeiro resultado de indefectível.
comprazer, mas para
sua liberdade, conforme podemos perceber na Postando-se junto dele proferiu palavras purificar seu tempo; cf.
declaração de Zeus aos outros deuses, diante da apetrechadas de asas: Schiller (1992, p. 64).
situação de Heitor: ´Caro irmão, não há dúvida de que o veloz
Aquiles te violenta,
‘Ah, estou a ver com os meus olhos um perseguindo-te com pés velozes em torno da
homem que amo cidade de Príamo.
a ser perseguido à volta da muralha. Meu Mas enfrentemo-lo os dois e repulsemos o seu
coração chora ataque.
por Heitor, que para mim queimou muitas (Homero, Ilíada 22, vv. 226-231)
coxas de bois,
tanto nos píncaros do Ida de muitas escarpas, Embora isso possa parecer um castigo divino, os
como últimos momentos da vida de Heitor representam
na cidade de Tróia. Mas agora o divino Aquiles o enfrentamento dos excessos da vida mítica.
persegue-o com pés velozes em torno da Embora o alto preço da morte e da humilhação
cidade de Príamo. possa parecer um castigo, Heitor torna-se o maior
Reflecti então vós, ó deuses, e modelo de liberdade contra as intempéries míticas.
aconselhadamente deliberai 16
se o salvaremos da morte, ou se agora será Esta é a representação humana da liberdade.
Para esta questão da
pelo Pelida Aquiles subjugado, valoroso Homero, portanto, sugere que enquanto Aquiles glória do nome, com
embora seja.’ consequências que
se torna fraco diante dos desígnios no Hades, perduram mesmo
A ele deu resposta a deusa, Atena de olhos entregando-se a uma morte prematura para
garços: depois da morte
a glória de seu nome16, Heitor não se permite para os que ficam, cf.
‘Pai do candente relâmpago, deus da nuvem entregar ao inimigo e, libertando sua psyche das Edwards (1987).
azul! Que disseste!
limitações das condições de sua natureza, enfrenta
A homem mortal, há muito fadado pelo a natureza mítica de Aquiles e ganha a liberdade.
destino,
queres tu salvar de novo da morte funesta?
Fá-lo. Mas todos nós, demais deuses, te não
louvaremos.’ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respondendo-lhe assim falou Zeus que
comanda as nuvens:
O legado de Heitor, ao que se pode ver, está em
‘Anima-te, ó Tritogenia, querida filha. Não é sua participação da liberdade.
com séria
intenção que falo; pelo contrário, quero ser-te Aquilo que tem sido apontado como um tipo de
favorável. degradação da figura de Heitor na epopeia, ao ser