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Francisco Jamess

contos laconizados

CHICO EDITORA

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--- Jamess, Francisco
contos laconizados / Francisco Jamess.
- São Paulo: Chico Editora, 2011. 88 pp.

1. Contos brasileiros I. Título.

---

CHICO EDITORA

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minha menina
que queria
histórias
maiores.

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Índice

uma breve introdução 09


Tácito Ledor 11
Placa 12
ele não fumava 14
O Carcereiro dos Sonhos 19
formigas flutuam nos rios do inferno 21
meu último Marlboro 23
a estrada e a sombra 31
só mais um vagamundo 34
ratos se alimentam de blues 41
onicofagia 48
por uma moeda 50
fábula soviética 55
sob a chuva sem capa 58
a breve morte do sono 60
a doença da alma limitada 65
Valquíria 73
a chama que dança para sobreviver 85
o pires devolvido com um pedaço de bolo 87

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uma breve introdução

Meio ano após ter editado e impresso por conta meu


primeiro livro de poesias, vista seu capote e cubra o peito, eu
decidi que tenho uma boa coleção de contos, e que elas já
poderiam preencher muito bem um livro pequeno. Contos
laconizados é o conjunto de todos os contos que escrevi e
publiquei no meu blog “Baiúca do Bardo” até o presente
momento (fevereiro de 2011). Por serem contos destinados a
uma leitura na internet – onde, hoje em dia, ler mais de 140
caracteres cansa a mente dos menos aptos – todos eles
acabaram sendo “terminados” antes do tempo, enxutos e
espremidos para caber no formato de um blog e não
desanimar os visitantes ao se depararem com um texto grande
demais para se ler em uma tela de computador.
Eu decidi adiantar o lançamento de um livro de contos
porque não quero mais escrever com a minha consciência
sobre a escrivaninha para me avisar quando o texto estiver
grande demais. A partir de agora pretendo escrever no
formato de um livro de histórias, por assim dizer. Não vou
mais encurtar nenhum texto meu, o que não significa que eu
só vá escrever textos homéricos e dantescos daqui pra frente,
pois o laconismo sempre foi uma regra na minha escrita:
nunca gostei de estender um assunto ou cansar o leitor com
meu léxico. Mas, quando eu tiver uma história interessante
para contar, não vou mais ter preguiça de prender a atenção
dos ouvintes por um longo tempo, e quem estiver com sono,
que durma ouvindo meus contos, pois acabarão sonhando com
outros universos e eventos do apocalipse.
Mas isso vocês só vão ver no meu próximo livro, por
enquanto eu vos deixo meus contos laconizados.

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Tácito Ledor

Um escritor se encontra sentado em uma poltrona atrás


de uma mesa na qual estão empilhados alguns exemplares do
livro que acabara de escrever. Há uma boa explicação para a
expressão jovial em seu rosto, contrariando sua habitual
apatia. É a noite de lançamento de seu primeiro livro, a obra
da sua vida, onde se encontram impressas todas as idéias que
um dia rascunhara em seu caderno roto com seu lápis B2,
antes que se perdessem para sempre.
A ocasião é simples. É apenas uma daquelas sessões de
autógrafos em uma das lojas da editora, com alguns parentes
próximos e poucos amigos, que estão felizes pelo seu êxito.
Eles o saúdam com alguns comentários animados e vão
conversar entre si enquanto o escritor fica sentado para
receber as pessoas que vêm até sua mesa. Mas essas pessoas
são inexpressivas. Elas se aproximam e parecem se interessar
pelo seu título. Pegam um exemplar em suas mãos, avaliam a
capa, abrem aleatoriamente e lêem um ou outro texto. Vêem a
foto na orelha do livro, olham para a face do escritor e, sem
esboçar comentário ou sequer uma expressão facial, devolvem
o livro para a pilha original ou o levam até o caixa da loja, em
ambos os casos indo embora sem olhar para trás. O escritor vê
essa cena se repetir sucessivamente e se vê confuso, sem saber
o que aquelas pessoas acharam do que ele escreveu. Sente-se
feliz por elas terem curiosidade em ler seus escritos, mas volta
para casa frustrado ao fim da noite, tentando imaginar o que
cada uma daquelas pessoas pensava quando, portando seu
livro, olhava para seu rosto sem mover uma pestana e viravam
as costas sem dizer palavra.

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Placa

Na última esquina duma avenida havia uma placa com


uma seta negra envolta por um círculo vermelho num fundo
descorado apontando para a direita. Um punk que andava por
ali a viu e sem muito pensar tirou de seu bolso fundo uma das
latas de tinta spray que carregava e começou a pintar de
branco a placa, encimado no poste de metal. Um leão-de-
chácara que fumava um breve intervalo, viu sua ação e gritou
“Desce daí, seu porra!” O punk tinha ainda a metade de baixo
da placa para cobrir, mas percebendo a velocidade do
brutamontes que se aproximava descartou com pesar sua lata
quase cheia, sacou rapidamente a outra que havia em seu
bolso, traçou três linhas entrecruzadas e as rodeou com um
círculo, deixando um “A” feito em piche manchar a parte que
havia pintado. Pulou pra calçada antes que o segurança o
tivesse alcançado e disparou em contramão pela rua que a
avenida encontrava, sequer ouvindo os palavrões incomuns
que o homem de preto aprendeu no trabalho. Este se virou e
ignorou completamente a placa. Não se importava com
aquilo. Só queria alguém em quem dar uma coça. Os rufiões
andaram na linha a semana inteira. “Foda-se, daqui a pouco
vou pra casa.”
Acabou seu turno, sentou-se ao volante com os olhos
doloridos de sono e luzes piscantes, saiu do estacionamento,
seguiu a avenida, parou ao vermelho e percebeu a placa na
habitual luz cinza da manhã. Ela ostentava um sorriso rubro e
idealista e tinha uma charmosa pinta na face esquerda, que
não foi coberta pela maquilagem branca que usava. Sobre o
poste, parada, prazenteira, prometedora. Os semáforos,
ruborizados com tal presença, só depois de vários minutos
permitiram que o motorista pisasse o acelerador. Dormente,

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ele virou à esquerda e seguiu a estrada sem tráfego até
encontrar uma rua conhecida. Chegou em casa, vinte e sete
minutos antes do comum, deitou-se de terno, tirou os sapatos
com os pés e desmaiado sonhou com uma puta de esquina
esguia e exoticamente maquiada, em detrimento das suecas
que defendia e que comumente eram donas de suas manhãs.

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ele não fumava

Havia milhões de palitos de fósforo espalhados pelo


chão de pedra suja da praça. Parecia que todos os habitantes
da cidade iam ali para fumar seus cigarros, bagulhos,
charutos, e que nenhum deles tinha um isqueiro e se pareciam
mutuamente asquerosos demais para que alguém quisesse
acender seu cigarro na chama do cigarro de outra pessoa. Há
anos não se via um gari por aquelas bandas. Tudo ali parecia
lembrança visual e você só não pensava que estava sonhando
com o passado porque de vez em quando via coisas insanas,
como um garoto de 10 anos dançando techno como um índio
do Equador:
— Curtiu, hein, mano?
O moleque nunca deixava os dois pés juntos no chão,
intercalava batendo e erguendo eles à altura do joelho,
chutando o ar. Era quase como o Chaves empolgado. Seu
amigo observava sentado em um banco, segurando uma
bicicleta pelo selim.
— Lindo... Você tá parecendo um babuíno no cio!
— Babuíno no cio é a sua avó!
— A sua, aquela cafetina.
— O que é cafetina?
— É quem ensina sua mãe a trabalhar.
— Ah tá... se liga nessa então. – a música do seu celular
mudou para um psy trance e o garoto passou a remexer cada
pedaço do corpo.
— Cê tá brincando de mímica, mano? Agora você é uma
enguia elétrica, acertei?
— Vai tomar no cu.
— Ô, choque! – chamou outro jovem de longe, em uma
bicicleta.

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— Tá chamando você, enguia.
— Cala a boca!
— Choque! Bora logo, caralho, a gente ainda tem que
pegar aquelas chinas hoje, lembra?! – gritou de novo o rapaz.
— Guentaí, Paulão! Sobe aí, moleque.
— Moleque é o caralho.
— Cê é embaçado, hein, mano? Sobe logo aí, porra!
E os dois desceram pela rua lateral em direção às chinas.

Um monge budista surgiu de uma das ruas e foi em


direção ao centro da praça, onde estava o memorial de
inauguração. Ele tinha a cabeça raspada e vestia uma única
peça de roupa clara manchada que vinha dos seus ombros e ia
até os joelhos, cobrindo seu corpo magro. Trazia um
headphone na cabeça, cobrindo seus ouvidos com Clarence
“Gatemouth” Brown. O bloco de concreto tinha a altura de
um homem. O monge subiu nele de um salto, e se equilibrou
em pé formando um 4 com as pernas e juntando as mãos
espalmadas. Fechou os olhos e assim ficou, ouvindo o blues e
meditando, perfeitamente imóvel.

Manos não gostam de blues, mas um deles tinha uma


coleção de cds, The Blues Collection, que era seu tesouro,
guardado em uma caixa debaixo da sua cama, que ele havia
ganhado de um tio que morava em Louisiana e era um artista
de rua – gaitista – muito famoso por lá. Ele era apaixonado
por blues e queria ser Lightin’ Hopkins. De fato havia
comprado um óculos escuro no camelô para se parecer mais
com o “gato preto”. Este rapaz agora discutia com dois
amigos em um banco próximo ao centro da praça.
— Juro, cara, não sei que graça você vê nessa música. –
disse um de seus amigos, um rapaz de nick Orelha.
— Oreba, você não sabe de nada, mano! Não conhece
nada além desse rap importado, que chega aqui fedendo a

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merda, e quer criticar o blues! Você devia ouvir, Carol, ia
saber do que eu estou falando.
— Que bluuuss?!... – respondeu Carol, a amiga que
estava na discussão, sentada do encosto do banco, com os pés
no acento – Vê lá se eu vou ouvir “bluuuss”, olha a minha cor,
Botega!
— Justamente, Carol, olha a sua cor! – respondeu
Botega, que tinha que se esforçar para se lembrar de um
bluesman branco. – Blues de respeito só negro sabe fazer.
— Isso não importa, Botega. – interveio Orelha – Eu
continuo achando esse seu som muito caipira.
— Foi mal aí, metropolitano.
— Vamos parar, caralho! – gritou Carol – Vocês já
viram aquele cara por aqui? – ela apontava para o monge, que
já meditava há uma hora.
— Eu já vi ele uma vez. Ele estava daquele mesmo jeito.
— Quero ver de perto.
Ela pulou do banco e andou em direção ao monge. Os
outros a seguiram.
— Por que ele faz isso?
— Ele deve estar querendo bater um recorde.
— Ele deve estar meditando – disse Botega – queria
saber o que ele está ouvindo.
— Deve ser alguma música new age idiota. – disse
Carol.
O monge não se abalava, não estava sequer escutando o
que diziam. Estava tão concentrado que talvez não ouvisse
nem mesmo o Memphis Slim solando nos seus ouvidos.
— Mano, isso é muito idiota.
— Concordo.
— Vocês deviam deixar o cara em paz, vamos sair
daqui.
— Dá um dinheiro pra ele então, já que se importa tanto.
Ele tá precisando de uns pano novo pra vestir.

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— O mano não tem nem chinelo, doido – observou
Carol.
— Não vou tirar o cara da paz pra dar dinheiro pra ele –
respondeu Botega.
— Então enfia no cu. Vamo embora. – disse Orelha.
E seguiram por uma das ruas até muito longe.
— Vou deixar a Carol na casa dela, Botega. Se da minha
casa der pra ouvir aquele seu som de viado quando eu chegar,
eu te pego amanhã.
— Vá a merda... – disse Botega, entrando na sua casa,
que era vizinha da de Orelha. Puxou sua caixa debaixo da
cama e pegou um cd da sua coleção, B. B. King – The King of
Blues, colocou no seu rádio, com o volume em boa altura e se
deitou para ouvir o rei: “The Thrill Is Gone...”

O monge ficou na sua meditação até o blues acabar. Já


eram 3 da manhã quando um homem atirou no seu pescoço,
de baixo para cima, e o derrubou para lhe tomar o Ipod. Por
algum motivo inexplicável, o monge ainda se encontrava na
mesma posição em que meditava quando foi encontrado por
um gari na manhã seguinte.
— Olha a paz no rosto desse rapaz.
— É como se ele estivesse sorrindo sem estar.
— Esse buraco no pescoço dele tá horroroso, será que
ninguém viu isso?!
— Cala a boca, Agenor! Todo mundo viu que o cara tá
morto.
— É – disse o gari – e se vocês me dão licença, eu tenho
que fazer meu trabalho.
— O que você vai fazer?!
O gari pegou o corpo do monge, com certa dificuldade,
pois este se encontrava duro com as pernas formando um 4 e
as mãos espalmadas juntas, e o colocou dentro do seu carrinho
de lixo com um grande saco preto.

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— Cara! Você tá maluco?
— A gente tem que chamar a polícia!
— Você não pode fazer isso!
— Quietos! – disse o gari, cuspindo no chão e olhando
cada um daqueles cidadãos assustados com um rosto feroz –
EU limpo o lixo que VOCÊS fazem. Vocês mataram esse
mendigo, e eu vou levar ele comigo. É assim que acontece.
Não é como se vocês se importassem. Ninguém se importa.
Vocês nunca olharam na cara desse rapaz, nunca deram
comida pra ele, e agora o matam com um tiro e eu tenho que
enterrar ele no aterro sanitário da cidade. VOCÊS são
responsáveis por isso. Então calem essas malditas bocas e me
deixem limpar sua sujeira.
O gari deu o nó no saco e fechou a tampa da lata no
carrinho. Seu serviço na praça tinha acabado.
Ele já ia embora quando um cidadão disse:
— Você deveria era varrer esses fósforos do chão...
E o gari, sem olhar para trás, se deu ao trabalho de
responder:
— Foda-se, isso é problema de vocês! Parem de fumar,
seus filhos da puta.

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O Carcereiro dos Sonhos

Ele, meu rapaz, sofria de um mal


Que afeta qualquer ser racional
Existente: pensar que sua Memória
É a deusa mãe, das Musas senhora.

Era conhecido como o Carcereiro dos Sonhos.


Pois tinha ideias que não o deixavam dormir,
As quais ele jurava libertar em breve porvir,
Mas que eram lançadas nas trevas do sono.

Lá se tornavam sonhos absurdos


Cativos inacessíveis, mudos e surdos
Que quando viam o sol nascer oval
Pelos bastonetes do olho central
Na testa terceiro e invisível
Ficavam cegos, sem tato ou cheiro,
E perdiam qualquer sentido possível.
Essa era a maldição do Carcereiro.

Você é bastante esperto, rapaz,


Mas ele... tinha ideias demais.
Tantas que encheu todas as prisões
E manicômios do mundo, sem exceções.

Os loucos o cultuam e os tolos


Com dança e bebida o festejam;
Os cães pelas ruas o farejam
E as mães, para ele, fazem bolos.

O Carcereiro tinha uma menina

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De ouvidos pequenos ávidos por contos.
Ela era tão viva quanto uma celestina,
Mas sem histórias não entregava os pontos.

Um dia o Carcereiro acordou esquecido


De tudo, sem saber sequer o nome que levava.
Levantou-se e sentiu que a cabeça pesava
Com todas as ideias que havia prendido.

Sua menina o viu em pé e o chamou:


"Vem cá, amor, e conta-me uma história."
Mas o pobre Carcereiro sem memória
Olhou para a criança desconhecida e chorou.

Na semana seguinte a menina foi embora


Apagada, sem fantasia que a alimentasse.
E o Carcereiro se viu só, sem senhora,
Menina ou deusa parideira que o apoiasse.

Solitário, olhou para aquelas mãos estranhas


Imaginando se ainda eram suas servas
E cerrou-as tentando socar as trevas
Que o massacravam chutando suas entranhas.

Em um último golpe alcançou papel e pena


E junto com a ideia do próprio desespero
Libertou do cárcere por inteiro
Ideias que ultrapassaram a centena.

Destas histórias, cada um conhece as suas


Mas da lenda do Carcereiro eu sou o guardião
E por mais que avistes todas as musas nuas
Esta história só irás conhecer pelo meu refrão.

20
formigas flutuam nos rios do inferno

Havia um formigueiro na porta de madeira oca do


banheiro daquela casa em Rondônia. Clarice dizia que as
formigas comiam os cupins ou mesmo a própria madeira
velha, e insistia que a porta era, no máximo, um refúgio
seguro para elas fora do formigueiro. Marcos tinha certeza
que havia uma rainha no centro daquela porta, à altura do seu
umbigo, e que esse era o motivo pelo qual eles não
conseguiram exterminá-las desde o princípio: a rainha sempre
punha mais ovos e criava mais operárias. As formigas
tomaram conta não só da porta do banheiro como também de
todo o forro do teto da casa. Marcos as adorava. Para ele, elas
já faziam parte da matéria que constituía a porta, o teto e as
paredes e sem elas preenchendo os túneis que criaram, a casa
ficaria menos sólida. Ele também gostava dos caminhos que
elas faziam nas paredes sem azulejos do banheiro e como elas
nunca atacaram a dispensa ou morderam os donos da casa,
Clarice se acostumou com elas sem problemas.
Clarice saiu do chuveiro e foi para o quarto, nua, sem
toalhas, gotas de água fria pingando por todo chão atrás dela,
deslizando pelo seu corpo, escorrendo dos cabelos negros e
longos até os pés leves no chão vermelhão. Marcos estava
sentado à escrivaninha, trabalhando em um conto, e não
percebeu quando sua mulher entrou pela porta e só a notou
quando ela o girou na cadeira e sentou no seu colo,
enlaçando-o com as pernas. Sua pele estava gelada, mas sua
boca estava fervendo e quando ela o beijou, o choque o
acendeu rápido, o que a fez sentir mais desejo do que antes,
sentindo a vontade do seu marido roçando sua boceta nua. Ela
beijou seu pescoço e desceu do colo do marido, indo deitar-se
na cama olhando para ele e sorrindo como se tivesse se

21
banhado no Letes1 e esquecido todos os seus problemas.
Marcos nunca vira Clarice de Bervian tão linda como naquele
momento e seja lá o que ele estivesse escrevendo evaporou na
meia luz do quarto.
Ele se livrou das roupas gastas que usava em casa e se
pôs sobre ela na cama, lambendo a água do seu corpo todo,
deixando apenas o longo cabelo dela encharcando o
travesseiro grande. Ele secou todo o corpo de Clarice com os
lábios e ela agora estava molhada como nunca e mesmo
sabendo que não podia enxugar seu desejo ele se pôs a tentar,
enquanto alisava suas coxas grossas e limpas. Inspirando ar
novo pelo nariz, Clarice sorriu mais contentamento que
malícia para seu marido entre suas pernas e acenou com a
cabeça, fechando os olhos, pedindo silenciosamente um
abraço completo. Querendo todo o seu homem sobre si, junto
de si. Sentindo seu calor lutando com o dele e perdendo
sempre. Sentindo a pele do seu amor aquecendo seu corpo
entregue. E não havia mundo quando ela o sentia assim. Só
havia o coração forte do seu homem, que ela queria que
batesse dentro de si, apertando seu peito contra o dele,
cravando as unhas em suas costas largas.
Para Marcos aquele momento era o filtro pelo qual sua
mente tinha que passar para que não adoecesse. Todo seu
complexo, sua preocupação, seu marasmo, se afogava no
carinho de Clarice e se algum dilema sobrevivesse e viesse a
tona novamente, estaria um tanto enfraquecido. E mesmo que
ainda formulasse essa idéia no escuro, enquanto Clarice
dormia no seu peito, o cobrindo de fios negros ondulados, ele
refletia sorrindo, sentindo a paz do primeiro Buda.
Uma formiga mordeu o pé trêmulo de Marcos no meio
da noite, mas este nem a notou, aninhado que estava ao corpo
da sua inspiração sobre os panos úmidos da cama.
1
Letes: rio dos infernos cujas águas davam àqueles que a bebiam o
esquecimento (em grego lethe) e a despreocupação.

22
meu último Marlboro

Joe abria e fechava seu isqueiro de prata lisa enegrecida.


Abria-o com um movimento do punho, olhava a chama com
interesse quase científico e o fechava empurrando a tampa
com o polegar.
Mac, que o acompanhava há anos fechando bares nas
noites cansadas, acendeu um cigarro com um fósforo da
caixinha que pediu ao dono do bar. Nunca havia pedido o
isqueiro de Joe pois desconfiava que ele não o emprestaria.
Deu uma boa tragada no cigarro, tomou um gole do seu scoth
com gelo, pôs o copo na mesa e continuou o assunto:
— Ainda não acredito que você parou de fumar, Joe.
— Se você tivesse visto o que eu vi, você também
pararia.
— O que aconteceu?
— Esqueça.
— O que você viu que te fez largar um vício de 17
anos?
— Você não acreditaria.
— Tente! Esse já é meu sétimo scoth hoje. Eu não
ofereço resistência a nenhuma informação a essa hora da
noite. Tente!
Joe foi diminuindo a velocidade do abrir e fechar do
isqueiro de prata, pensando, até fechá-lo uma última vez e
colocá-lo sobre a mesa, junto do seu bourbon.
— Ok.
— Maravilha.
— Você se lembra do que me disse sobre a Travessa do
Gato Cego?
— “Mantenha-se a pelo menos três quadras de distância
dela.”

23
— Exatamente. Bom, eu ouvi seu conselho, mas não
obedeci completamente.
— Ah, merda... O que você fez, Joe?!
— Há umas duas semanas, quando você ainda tava
viajando, eu fiquei muito deprimido uma noite e saí pra dar
uma volta na rua. E cheguei mais perto do que deveria
daquela rua sem saída.
— QUANTO mais perto?
— Eu entrei nela, Mac.
— Não acredito...
O cigarro se apagou esquecido entre os dedos de Mac e
ele acendeu mais um fósforo e tragou um bocado até avivar
novamente a chama. Seu rosto parecia um talo de palmito
num vidro de conserva.
— Eu falei que você não ia acreditar.
— Não, não... Pelo amor de deus, Joe. Agora eu quero
saber o que aconteceu. Fizeram alguma coisa com você?!
— Calma, deixa eu te contar. Já era tarde da noite
quando eu comecei a andar no meio da rua da travessa. O
asfalto de lá era o menos gasto que eu vi na minha vida. Não
tinha nenhum carro nas calçadas ou nas garagens das casas.
Parecia que não morava ninguém lá. As casas pareciam
vazias. Todas escuras. Nenhuma com aquela maldita luz
vinda da TV atravessando a janela. Mas depois eu descobri
por quê.
Joe tomou seu bourbon de um gole e pediu outro ao
dono do bar. Ele servia sozinho aquele pequeno boteco. Era
um lugar agradável. Não tinha muito movimento àquela hora
da noite. Podia-se conversar sem ser interrompido.
— No fim da travessa tinha um bar: “Boca do Belzebu”.
— Puuuta que pariu...
— É. Nome forte. Mas o lugar era simples que nem esse
aqui. Quando eu vi a luz do bar de longe eu achei que todo
mundo que morava na travessa estava lá. Mas o lugar tava tão

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vazio quanto o resto. Eu fui até o balcão e pedi uma cerveja de
trigo, porque você sabe que eu não bebo destilado quando
estou deprimido.
— Você é um masoquista intelectual, Joe. É quando
você tá assim que você devia tomar uma garrafa de gim
sozinho. Mas não, você quer continuar pensando nos seus
problemas, e com a lucidez apurada que o pouco álcool te dá.
Você é louco.
— Pronto?
— Pronto.
— Ok, então eu perguntei pro dono do bar, “por que não
tem nenhuma luz saindo das casas dessa travessa? até parece
que ninguém mora por aqui.”, e ele respondeu, “dormir e
transar são coisas que se faz melhor no escuro.”
— Toma, cavalo.
— Na cara. Fechei meu bico e fui pra uma mesa. Tomei
aquela garrafa em pouco tempo e pedi outra, o cara não
parecia preocupado em fechar o bar. Toma esse whisky e pede
outro logo, a melhor parte vem agora.
— Ok.
Mac tomou o scoth que estava pela metade e foi pegar
outro no balcão. Acendeu um cigarro com o isqueiro de lá e
voltou segurando ele na boca, com dois copos na mão.
— Trouxe outro bourbon pra você.
— Valeu, e pára de jogar fumaça na minha cara, filho da
puta.
— Foi mal.
— Então. Eu tava lá olhando pro meu copo, aquela cor
de mel maravilhosa da weiss.
— Aquilo é uma beleza.
— É sim. Tava lá olhando pro copo, tava até sorrindo,
tinha até esquecido um pouco o que tava me deprimindo.
Tateei no bolso e peguei meu maço de Marlboro. Só tinha um.
Peguei meu isqueiro no bolso da camisa. Acendi o cigarro e

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dei umas boas tragadas. Deixei o isqueiro na mesa e me
recostei mais na cadeira e fiquei fumando. Naquele momento
eu já não sabia mais o que tava me afligindo. Mas aí ele
apareceu.
— Quem, mano?
— Eu não sei de onde aquele cara saiu, Mac. A rua tava
deserta e ele despontou na porta do bar. Do nada. Um cara
enorme. Com uns 2 metros de altura. Ele não era forte, nem
fraco, nem gordo, nem magro. O cara era GRANDE entende?
O corpo dele todo era proporcional à altura.
— Entendi.
— Ele tinha um puta bigode de Leminski e tava com
uma jaqueta de couro preto que parecia que ele mesmo tinha
arrancado do boi. A jaqueta ficava pequena pra ele, Mac!
— Ah, cê jura?
— E, meu, os olhos do cara eram pretos que nem breu e
ele parecia irritado. Com o cabelo curto bagunçado.
Ofegando. Mas, mano, não dava pra dizer que o cara era feio.
— Como assim, Joe?
— O cara parecia um vilão de filme de velho oeste. Um
vilão daqueles de Hollywood.
— Entendi, cê curtiu o cara.
— Curti o cu da sua mãe, caralho!
— Calma, Joe. Tô zoando, continua aí.
— Ele foi pro balcão e acho que falou alguma coisa. Eu
não ouvi. Só ouvi o dono do bar dizendo, “você sabe que eu
não vendo cigarros desde que me pegaram na lei antifumo,
Kasparov. Sinto muito.”
— Russo sem vergonha!
— Puta merda, nem me fale. O cara ficou parado uns 10
segundos olhando pro dono do bar e virou pra mim. O russo
tava furioso, Mac. Veio andando na minha direção sem tirar o
olho do meu e eu não conseguia baixar a cabeça. Fiquei
olhando pra ele com o meu cigarro na boca, paralisado.

26
— Nossa, Joe...
— É... Ele olhou pro maço vazio de Marlboro vermelho
na mesa e olhou pro cigarro na minha boca e eu conseguia me
mexer de novo, mas não movi um dedo. Uma ponta de cinza
caiu do cigarro e queimou minha camisa.
Joe apontou para uma mancha marrom escura na camisa
branca fechada no peito que ele vestia. Tomou seu whisky já
com as pedras de gelo muito pequenas e aproximou de si o
copo que Mac havia lhe trazido do balcão, esse sem gelo.
— Cacete...
— O maldito continuava olhando pra mim e quando eu
notei ele já tinha tirado uma faca do cu, porque eu não sei de
onde ele tirou aquilo.
— Uma faca?
— É! Uma daquelas malditas facas que a gente vê em
tabacarias do lado das estrelas ninja e eu juro por deus que eu
nunca achei que alguém compraria uma porcaria daquelas.
— Isso é coisa de idiota.
— Mac, o cara era um psicopata. Ele apontou um dedo
pro meu isqueiro em cima da mesa e eu o peguei tremendo e
entreguei na mão dele. Adivinha pra que ele queria o isqueiro,
Mac.
— Puta que pariu, fala logo.
— Aquele desgraçado abriu meu isqueiro e começou a
esquentar a lâmina da faca com a chama. Ele ficou muito
tempo assim, mano, e acho que na proporção que a faca ia
esquentando eu ia gelando. Eu tava desesperado, mas
continuei parado lá, não tinha pra onde correr, e do jeito que
eu tava eu não queria mesmo correr, naquela hora seria bom
se ele acabasse comigo porque eu lembrei de todas as merdas
que estavam acontecendo e não era má idéia dar um fim a
elas.
— Não fala isso, Joe.

27
— Eu tava pensando nisso na hora, mano. Mas você não
vai acreditar no que ele fez depois.
— Pode falar, Joe. Eu não vou beber mais nada hoje,
quero lembrar disso amanhã de tarde.
— Acho que você vai lembrar disso por muito mais
tempo.
— Então conta logo.
— O cara colocou o isqueiro na mesa e espalmou a mão
no canto dela. Mexeu os dedos de modo que ficasse só o dedo
médio em cima da mesa. Aquele dedo devia medir uns 15
centímetros, Mac, e era grosso. Como eu disse: proporcional.
E, mano, ele encostou a faca na base dele. Eu ouvi o “tssss”
da pele tostando e deu pra ver os pelinhos do dedo queimados.
— Ai...
— Ele ergueu a faca na altura da cabeça e desceu ela
com tudo. TAW!
Joe estava ilustrando o movimento com a própria mão
imitando uma lâmina golpeando seu dedo na mesa. Mac,
puxou o ar entre os dentes e franziu todo o rosto.
— Sssssssssss...
— O dedo dele foi um pouco pra frente na mesa, solto,
com a força do golpe, e quase não sangrou. Aquele maldito
deixou a faca pressionando o toco de dedo que sobrou
“tsssssssssssssssssssssss” e quando ele tirou a faca ela tava
com uma mancha feia na lâmina e o dedo do cara tava
cauterizado.
— Caralho, que maníaco. Pra que isso, velho?!
— Ele pôs a faca na mesa, Mac, e pegou o dedo médio
cortado. Virou ele na mão de um lado pro outro e sabe o que
aquele psicopata fez? Ele mordeu a ponta do dedo, Mac!
Arrancou a unha e a ponta da falangeta com uma mordida,
como quem morde um maldito charuto! E você sabe o que ele
fez?! Ele segurou o dedo entre os dentes com as digitais pra
cima praquela merda não dobrar! Ele segurou o dedo em riste

28
na boca. Pegou meu isqueiro e começou a queimar a falange!
Deixou o isqueiro aberto queimando aquela pele fresca e
começou a tragar o dedo como se fosse um maldito Havano!
— Catso!
— Ele chupava o dedo ficando cada vez mais irado e
bufava mais que a besta cigana. E o dedo começou a crepitar
na chama do isqueiro. A pele começou a soltar uma fumaça de
cheiro horrível e o sangue coagulava cada vez mais depressa,
mas a ponta tava queimando mais e mais forte.
— Meu deus.
— Quando parecia que ele ia explodir de cólera ele deu
uma tragada com toda a força que tinha, apertando os olhos, e
encolheu os ombros de satisfação. Ele segurou o dedo entre os
dedos... caralho, ele fez mesmo isso... soltou uma baforada de
fumaça rubra pra cima e arreganhou os dentes sujos de sangue
pra mim como um maldito cachorro com raiva. Eu me
levantei rápido da cadeira. Derrubei ela com a adrenalina. Ele
olhou pra mim por uns segundos, segurou o dedo entre os
dentes de novo, jogou meu isqueiro perto do meu copo na
mesa e saiu pela porta do bar, fumando o dedo. Ele esqueceu
a faca na mesa. Eu olhei pro balcão e o dono não estava lá.
Olhei pra mesa e vi meu cigarro apagado e eu nem lembrava
mais quando ele caiu da minha boca. Aquele foi meu último
Marlboro. Eu o deixei lá junto com a faca, a garrafa e o copo
de cerveja. Peguei meu isqueiro e saí, esquecido da cara velha
do taberneiro. Saí daquele lugar tremendo, sem olhar pra trás.
Acho que nunca andei tão rápido em toda a minha vida.
Mac olhou para Joe um bom tempo ainda depois que
este parou de falar. Seu cigarro pendia de sua boca ainda
aceso, metade dele cinzas que teimavam em não cair. Ele deu
uma última tragada no cigarro e o segurou com os dedos,
apontando-o para Joe:
— Aquele psicopata devia ter fumado o SEU dedo, Joe.
Aí você ia aprender a me ouvir.

29
— Eu acho que sou sortudo, não?
— Você é um filho da puta, Joe. Você é um filho da
puta.
Joe concordou com a cabeça e Mac apagou seu cigarro
no cinzeiro com o rosto assombrado. Seria seu último Pall
Mall.

30
a estrada e a sombra

— eles já te falaram de hombritude?


— não.
— honradez?
— não.
— já te ensinaram a arrebitar o nariz?
— não também, mas o líder deles me mandou ter
postura, que o que eu dissesse poderia ser usado contra mim.
— por eles, né?
— não sei.
— o que os julgadores pensam? que os vagamundos se
importam com ombros levantados? nossas costas são
circulares por isso.
— eles ainda não repararam isso em mim.
— mas vão reparar, pode ter certeza que vão...
— eu também acho.
— ...e quando notarem sua impostura, você vai ser um
estranho entre eles.
— você fala como se eu já não fosse.
— por que diabos você quis entrar na árvore deles
mesmo? eu já me esqueci. sempre esqueço as coisas ruins que
me dizem.
— eu quero dar uma vida boa para as minhas crias.
— boa vida como a que você teve? seus pais são
julgadores! juro que ainda não sei como você foi nascer
vagamundo.
— é, eles são julgadores, e por isso nunca me faltou
nada. meu ócio até hoje está seguro sob o jugo deles.
— eles são do tipo que não tem o bastante nunca. vão
sempre querer mais do que já tem, e isso vai acabar os

31
matando. bom é querer cada vez menos e viver contente com
seu pão e seu chão.
— eu não consigo me contentar com isso.
— você hospedou demais o opressor. age igualzinho a
ele, agora que tem chance de agir.
— eu não sou um julgador!
— não. não é mesmo, meu barato. mas você tem os
hábitos caseiros de um. e, se continuar sob esse jugo, vai
aprender os hábitos mundanos deles também.
— posso aprender, mas não vou usá-los.
— então eu não entendo o porquê de você continuar
junto deles. você vai se sentir mal entre eles. vai se sentir
diferente de forma negativa. vai se sentir inferior porque não
levanta os ombros como eles. você é um ombros-baixos!
— eu já me sinto mal entre eles. não há nenhum
vagamundo lá além de mim. há alguns vidamansas, mas
aqueles são os seres mais estúpidos que eu conheço.
— vidamansas se tornando julgadores, isso não é raro de
acontecer. eu imagino que você também viria a ser um
vidamansa se não me conhecesse.
— isso não é bom... isso não é nada bom... mas você não
devia ficar me pondo pra baixo porque eu estou tentando me
tornar julgador. eu vou ser uma espécie híbrida sempre.
— e suas crias serão o que?
— serão o que elas quiserem ser.
— antes de ter a sua idade, elas não poderão querer ser
nada além do que são por natureza e destino. só espero que,
quando elas tiverem força suficiente para isso, elas não
escolham ir contra sua própria natureza. você é forte demais
para mutilar a si mesmo, garoto. o vento do mundo já nos
mutila suficientemente desde quando se juntaram bastantes
bocas para soprar.
— o que você quer dizer com isso?

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— que você é um vagamundo! e seu lugar é pegando
carona naquela charrete de palha logo adiante, sem querer
saber aonde ela vai. você vai ser um galho seco na sombra
daquela árvore. e eu vou ficar com os braços escuros,
chupando esse sol com a pele, mas ainda vou sempre ter meu
cantil de água pura pra tomar. e meu paladar não está viciado.

o jovem vagamundo tomou um grande gole de água que


acabou molhando os pelos no seu peito branco. pulou da
pedra na margem da estrada de terra onde estavam e foi
andando até a charrete. deitou-se sobre o monte de palha e
pegou um pedaço pequeno para morder, cumprimentando o
condutor, “como vai, Seu Ventura? só alegria?”. “só alegoria,
meu rapaz.”

o filho-de-julgadores ficou parado perto da pedra,


olhando pra charrete e pro amigo em cima da palha seca,
pensando no que havia acabado de ouvir. o sol golpeou forte
sua cabeça confusa. a charrete ainda estava parada.

33
só mais um vagamundo

Era uma noite de dezembro. Estava no computador


ouvindo Johnny Cash e olhando para uma página em branco
do Word, pensando em um começo pro meu livro. No
momento só tinha um enredo em mente, porém nada muito
desenvolvido. Escrevia alguma frase sem sentido e a apagava
em seguida. Devia ter feito isso umas 20 vezes só naquela
noite.
“Boa Noite, rapaz”.
Sabe quando você está ouvindo música e parece que tem
alguém está chamando?
“Está sem inspiração?”.
Nesse caso havia mesmo alguém. Olhando para o lado
vi que havia alguém sentado na minha cama, que ficava ao
lado da escrivaninha, pouco atrás do meu campo de visão. Era
um homem de aparência jovem e com um sorriso de orelha a
orelha. Vestia uma camiseta preta, uma calça jeans escura e
um allstar preto. Tinha grandes cabelos loiros caídos na altura
dos ombros
— Olá.
Caí pra trás com a cadeira, tamanha a ousadia daquele
cara, mais por causa do susto mesmo. O fato é que ele
apareceu de repente e eu não o vi entrando.
— Puta que pariu que susto do caralho!
— Acalme-se, rapaz! Meu nome é Baco e eu estou aqui
para conversar com você.
— Conversar é? – levantei e coloquei a cadeira de volta
no lugar – Ai, que pontada no peito… Você quase me matou!
Quem é você pra início de conversa, e como você entrou aqui.

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— Como eu já disse, meu nome é Baco, eu entrei por
aquele portal ali – disse ele apontando para o que havia atrás
dele, o portal do meu quarto, que não tinha porta.
— Beleza, mas eu não me lembro de nenhum Baco.
— Claro que não se lembra, você está me conhecendo
agora.
— Aff. O que você quer comigo?
— Que é isso cara, você é sempre rude assim com os
outros humanos?
— Ah claro! Você invade a casa dos outros e eu que sou
rude?
— A porta estava aberta.
— Isso não te dá o direito de entrar assim!
— Você não tem medo de que alguém estranho entre
aqui com más intenções?
— VOCÊ é um estranho! – disse apontando pra ele.
— Vê? Estás sendo rude de novo…
— Beleza. Você disse que quer conversar, né? Sobre o
que exatamente?
— Tudo bem, é melhor começarmos do começo: eu sou
Baco, filho de Júpiter e deus das vinhas. Eu vim até aqui para
conhecer alguém digno de representar os humanos perante os
Deuses.
— Hum, então você é Baco? Também conhecido como
Dioniso pelos gregos…
— Exatamente.
— Putz, quem te mandou aqui, hein?
— Venho em nome dos deuses do Olimpo.
— Isso não é tarefa pro Mercúrio?
— Normalmente seria, mas ele anda muito ocupado, e
como eu estava à-toa…
— Não. Falando sério agora, você é muito engraçado,
mas eu sou ateu. Não me venha dizer que é um deus que essa
é a última brincadeira na qual eu cairia.

35
— Ora, diga-me o que tenho que fazer para que acredite
em mim. Quer que eu me faça presente como eu realmente
sou?
— E morrer como sua mãe morreu?2
— Como você sabe dessa história?
— Ora, eu conheço bastante sobre mitologia grega, e
pelo jeito você também conhece.
— Como eu não a conheceria? É minha história.
— Claro que é. – disse em tom irônico.
— Bem, eu não seria tolo de fazer isso mesmo, mas
diga, o que faço pra provar quem sou?
— Você não é o deus das vinhas? Por que não faz nascer
uvas no meu cabelo?
— Que assim seja – nem bem terminou de dizer essas
palavras e eu senti um peso extra na minha cabeça – acredita
agora? – disse ele, pegando uma uva das muitas que haviam
saído do meu cabelo, como se brotassem de uma videira.
— Putaquepariuputaquepariuputaquepariu!
— Acalme-se! – disse ele, mordendo a uva que tinha
tirado do meu cabelo - Foi você quem pediu para que eu
fizesse isso!
— Caralho, como é que você fez isso?
— Isso é simples de ser feito, quando se é um deus. –
disse ele pegando mais uma uva da minha cabeça.
— Pára com esse papo de deus, e tira a mão do meu
cabelo, tá me achando com cara de videira é?
— Bem que está parecido – disse rindo.
2
Hera, descobrindo mais uma traição de Zeus, enganou sua amante
Sêmele, fazendo com que ela pedisse a Zeus, sob juramento divino, que
ele a mostrasse sua verdadeira forma. Zeus, não podendo descumprir a
promessa, se fez presente em sua forma divina, e o corpo mortal de
Sêmele não suportou a energia emanada pelo deus e se desintegrou. O feto
de Baco se destacou nas cinzas da mãe e Zeus, abrindo um talho na
própria coxa, enfiou ali o pequeno embrião, protegendo-o até que estivesse
bem desenvolvido para “nascer”.

36
— Muito bem, Zé Graça, agora tira isso do meu cabelo.
— Tá bom. – disse isso e fitou minha cabeça. Eu
imediatamente a senti mais leve.
— Aff, que susto meu.
— Espera, sobrou uma aqui. – e pegou uma uva grande
e rosada que havia sobrado na minha cabeça.
— Pára, caralho!
— Tá bom! - e jogou a uva pra cima – Acredita agora? –
perguntou aparando ela com a boca aberta.
— Ainda não, foi uma péssima idéia essa minha. – disse
isso indo pra cozinha, seguido por Baco.
— Quem mandou ser irônico?
Passando pelo banheiro dei uma olhada no espelho. Não
havia nada de anormal na minha cabeça.
“A quem estou enganando? Isso foi incrível”, pensei,
“mas preciso me acalmar”.
Chegando na cozinha, abri a geladeira e peguei água
para beber. Depois do primeiro gole, senti que ela estava com
um gosto adocicado muito bom. Encarei a garrafa e percebi
que a água estava com uma cor viva entre o vermelho e o
azul.

— Não é muito educado beber direto do gargalo – disse


ele me olhando com ar de zombaria.
Engoli o que ainda havia na minha boca e perguntei:
— Isto é…?
— É. Deus do vinho, certo?
— Incrível.
— Você não viu nada. Está convencido agora? - pegou a
garrafa de minha mão e tomou um gole do vinho recém-
fermentado.
— Acho que sim.
— Você é duro na queda, hein?

37
— Você arrumou uma roupa interessante para se
apresentar.
— Gostou?
— Muito boa. Você pode mudar de forma sem voltar a
sua forma divina?
— Isso é fácil – nem bem disse isso e os cabelos dos
lados de sua cabeça entraram de volta pelas raízes até
sumirem, deixando apenas um longo penteado no meio da
cabeça, que ia da testa até a parte baixa da nuca.
— Vixi, isso foi legal. Sabia que eu já fiz um moicano
desse na minha cabeça?
— Sabia. Foi proposital. – disse ele rindo. Balançou a
cabeça e sua cabeleira loira estava lá de volta como antes.
— Tudo bem. Vamos sentar pra conversar, você deve
saber que agora terá que me contar tudo. Eu sou curioso
demais para ignorar todas essas dúvidas na minha cabeça.
Pode transformar mais uma garrafa? – peguei outra garrafa
com água na geladeira e dois copos.
— Sem problemas – e o líquido da garrafa já não era
mais incolor, fiquei ainda mais impressionado agora, vendo o
líquido se tornando escarlate – Você gosta de vinho?
— Nunca gostei, mas esse seu é excelente! – me servi e
deixei a garrafa na mesa pra que ele se servisse.
— Bom mesmo é o néctar do Olimpo, só que ele não te
deixa alegre. – se serviu da bebida enchendo um copo até a
metade.
— Cara, eu costumo ser tranqüilo e sempre procuro uma
explicação racional para esse tipo de coisa... Você deve
imaginar como isso é surreal pra mim, Deuses não existem!
Tem certeza que você não veio do futuro ou coisa parecida?
— Que futuro?
— Ora, o futuro. Algum cientista pode ter criado uma
máquina ou...
— Você disse isso sem pensar, não é?

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— Pois é...
— E eu sei que você sabe por que isso é impossível.
— Eu imagino... Do jeito que as coisas vão a
humanidade só vai durar mais uns dois séculos, talvez menos.
Eu não posso prever o futuro, mas posso imaginar infindáveis
hipóteses para que o ser humano deixe de existir em um
futuro próximo. E é óbvio que não haverá tempo suficiente
sequer pra alguém perder pensando em coisas como viagens
no tempo. – tomei o meu vinho de um só gole e quando olhei
para ele de novo, ele estava com um sorriso de satisfação no
rosto.
— Criança, você é bem realista! Se todo mundo
enxergasse isso com a mesma facilidade, a humanidade teria
mais chances de progredir. Percebo o porquê de Minerva ter
te escolhido.
— Mi-Minerva? – um arrepio súbito correu todo o meu
corpo – Atena me escolheu?
— Sim. A Deusa de olhos glaucos, filha de Astúcia,
mais sábia que os Deuses e os homens mortais.
— Vocês também usam esses termos? Pensei que fosse
coisa dos poetas.
— Usamos por causa deles, achamos divertido. E todo
mundo sabe que Zeus “gravitroante” sofre de gases.
— HAHAHAHAHAHAHAHA! – me encolhi rindo, só
para depois me esticar todo, muito assustado, com um raio
que caiu tão perto que pareceu quebrar a janela.
— Parece que vai chover. – disse Baco, rindo.
— Não gosto de raios.
— Você já amou sua esposa dentro de uma tempestade?
— Não.
— Devia fazê-lo. É sublime. Uma vez amei uma bacante
durante uma tempestade. – ele dizia isso segurando o copo na
mão como um cafetão, e olhando para alguma parte do teto,
completamente perdido em sonhos. – O agrega-nuvens devia

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estar furioso por algum motivo e despejou raios sobre a relva
do campo aberto, queimou o chão em certos pontos,
evaporando a água em chiados surdos, mas eu protegi a
mortal com minha sombra e a amei por toda uma noite e mais
alguns sonhos.
— Fantástico.
— Fará isso quando tiver chance.
— E muitas coisas mais, se puder.
— Sua amante é uma bela mortal.
— Uhum... – disse com os olhos baixos no copo.
— Você deve sentir falta dela.
— Muita. – abaixei mais a cabeça.
— É como Hades aguardando o retorno de Deméter.
Seis meses sozinho. Seis meses a amando. Você a viu há
pouco tempo, não?
— Sim. – ergui a cabeça.
— E a amou por quanto tempo?
— 19 dias. – enchi o copo de vinho.
— É muito pouco tempo, garoto. É menor que a
primavera na Antártida, e mais frio.
— Eu sei como é. – virei o copo. – Eu sei como é...
— Gostaria de fazer alguma coisa para te ajudar.
— EU também gostaria. Mas eu só posso esperar por
ela. Só esperar.
— Podemos conversar enquanto espera.
— Nenhuma objeção. – me levantei – Pode transformar
isso pra gente? – tirei um garrafão de 3 litros e meio de água
da geladeira. – Não tenho muita comida aqui em casa, mas
tenho água em profusão.
Baco sorriu com o canto da boca e ergueu a mão
espalmada teatralmente.

40
ratos se alimentam de blues

— Tem alguém nesse banco, meu jovem?


O rapaz no bar era alto e se curvava sobre o balcão
olhando para uma parte do vazio que não se podia identificar.
Aparentava uns 25 anos, talvez mais, com um penteado à
Elvis um pouco bagunçado e barba de alguns dias. Vestia um
jeans escuro amassado e uma camisa simples preta. Ouvindo
o estranho, ergueu os olhos do seu copo de aguardente e
piscou algumas vezes, como despertando de um devaneio,
antes de dizer:
— Senhor?
— Não me recordo de ter adquirido nenhum escravo,
não sou seu senhor.
— E eu não costumo tratar ninguém como superior, só
não entendi o que você disse.
— Perguntei se havia alguém sentado aqui.
— Podia haver alguém aí até antes de eu chegar.
— Está sozinho?
— Na maior parte do tempo.
Não era possível definir a idade daquele senhor. Vestia
um terno negro com uma camisa branca aberta no peito. Um
chapéu de feltro negro com uma fita de seda cinza cobria seu
cabelo grisalho. Tomou lugar no balcão, acendeu um cigarro e
pediu uma dose de uísque. O balconista serviu a bebida e lhe
ofereceu um cinzeiro. O velho tragou demoradamente seu
cigarro, virou-se para o jovem e perguntou:
— Onde estão seus amigos?
— Em algumas das cidades por onde passei.
— Não tem amigos aqui?
— Não na minha definição de amigo.
— E sua namorada?

41
— Não tenho uma.
— Por quê?
— “Por quê”?
— Sim, por quê?
O jovem tomou sua aguardente de um trago, estalou os
dedos pro balconista e apontou o copo vazio. Pensou um
pouco enquanto observava a cachaça envelhecida sendo
despejada no pequeno copo até enchê-lo e disse:
— É uma boa pergunta.
— Já teve uma namorada?
— Não.
— Como! Você já teve tempo suficiente para se
apaixonar a essa idade.
— A que idade, vovô?
— Bom, você tem quantos anos? Vinte e cinco, vinte e
seis?
— Vinte.
— Não minta pra mim, rapaz.
— Eu nunca minto, acho um erro estúpido de se
cometer. Não raro as pessoas pensam que sou mais velho.
Deve ser minha aura amena, meu ki em repouso: “ar de
velho”. Mas como esse tipo de coisa não faz sentido, creio
que meus trejeitos acabam expressando a tranqüilidade que eu
penso ter. Jovens não são calmos.
— Realmente. Você é sempre assim?
— Sempre, pouca coisa me abala.
— Isso é muito bom, rapaz.
— Pois é. Ambrose Bierce diz que a paciência é uma
forma menor de desespero, disfarçada em virtude.
— Você não me parece desesperado.
— E não sou. Sou indiferente demais para me
desesperar.
— Então você não se importa com nada?

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— Com muito pouco. Não conheço muitas coisas que
importem.
O velho deu uma boa puxada no seu cigarro e tomou um
gole de uísque. Demorou a soltar o ar. Soprou a fumaça na
direção do copo e aquela imagem, iluminada pela luz fraca do
bar, era inegavelmente bonita. O balcão brilhava com algumas
manchas de copos de meia hora atrás.
— Aceita um cigarro, rapaz?
— Eu não fumo.
— Se importa que eu fume perto de você?
— Nem um pouco.
— Você não parou de contrair as narinas desde que eu
acendi o cigarro.
— Eu não gosto do cheiro.
— Então você se importa – disse o velho, puxou a
chama do cigarro quase até o filtro e o apagou no cinzeiro.
Soltou a fumaça pelas narinas devagar.
— Se você não tivesse falado comigo, eu teria saído do
balcão.
— Não me parece justo.
— Nem a mim, mas prefiro isso a pedir para a pessoa
apagar o cigarro.
— Ela tira seu direito de respirar e você não quer tirar o
dela de fumar, você é mesmo muito tranqüilo.
— Pelo menos eu tenho direito de me afastar de pessoas
assim.
— Tem razão, me desculpe.
— Relaxa – disse o jovem erguendo uma mão
espalmada e sorrindo com os lábios. Tomou mais um gole da
sua cachaça.
— Que espécie de lugar é esse?
— Qual lugar?
— Esse bar.
— É agradável, nunca entrou aqui?

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— Não. Tem um rádio tocando Bukka White. Quem
conhece Bukka White?!
— Você.
— E você, pra saber que é o próprio.
— Eu venho muito aqui, conheço toda a maldita coleção
de blues desse cara.
— Achei que ninguém mais ouvia blues, meu jovem.
— E não ouvem. Não eles. Mas seres como esse
taberneiro aí se alimentam de blues.
— Que tipo de seres?
— Poetas, esses ratos.
O velho se recostou no balcão para enxergar o outro
lado e viu um sujeito vestindo uma bermuda e chinelos, com
uma camisa aberta até o último botão mostrando sua pança
respeitável e seu peito peludo, sentado numa poltrona,
batendo um pé ritmado no chão e balançando a cabeça, com
um sorriso no rosto e olhos fechados.
— Eu o conheci. – disse o jovem – Costumava atender
os clientes pessoalmente. Pelo menos alguns deles. Mas parou
há um bom tempo.
— Por que ele parou? – quis saber o velho.
— Percebeu que ninguém valia o que ele servia em seus
copos americanos.
— Ele deve ter ficado muito amargurado para pensar
que um homem não vale sequer um copo de uísque.
— Não foi o que eu disse.
— Eu não entendo.
— Aqui não se servia essa bebida ordinária que nós
tomamos para esquecer quem somos.
— Há tempos eu não esqueço – disse o velho, virando o
copo abandonado no balcão de um trago e pedindo outro para
o garçom com o mesmo estalar de dedos do jovem. Percebeu
ser eficiente. Tinha um copo cheio em mãos quando
perguntou: “e o que se servia aqui?”

44
— Ausência, delírio, luxúria, melancolia, memória,
silêncio, sonho, amor... O amor desse rato faria você chorar
antes de tomar fôlego para um segundo gole. A luxúria dele
deixaria você de pau duro em segundos, e depois de senti-la
descendo pela sua garganta, você bateria uma punheta e
gozaria no copo que acabou de esvaziar antes que percebesse
que abaixou as calças.
— Mas isso é...
— Repugnante. Todos achavam isso. E mesmo assim
continuavam vindo aqui. Vermes atraídos por uma satisfação
maior que a vida que levavam, se arrastando por aí. Eu
conheço esse buraco há um bom tempo. Devo ser a única
pessoa da época da névoa que ainda vem aqui.
— Por que época da névoa?
— Era o que serviam pra gente. Idéias nubladas. Idéias
são muito tênues. Mesmo sendo destiladas pelo poeta, ainda
não passavam de névoa. Uma névoa deliciosa de se tragar.
Pelo menos para mim era. Aposto que para todos os que se
enfiavam porta adentro atrás daquelas garrafas preciosas.
Luxúria era a mais procurada. Mas ninguém sabia apreciar a
luxúria. São todos tolos no fim das contas. Eu me servi de
luxúria uma vez. Saí pela porta antes que pudesse pensar em
pagar a conta. Com uma ereção me cortando a glande. Fui à
casa de uma amiga de infância que eu sempre amei, mas que
nunca conheceu minhas intenções. Até o dia em que ela foi
até o portão ver quem estava tocando a campainha e se
deparou comigo nu na calçada. Não devia haver ninguém em
casa aquela noite. Entrei fechando o portão atrás de mim e
antes que ela pudesse perguntar o que acontecera às minhas
roupas, já estava com minhas bolas roçando seus lábios, e
uma glande pulsando na sua garganta. Eu a joguei na grama e
abri suas pernas com força, me enfiei entre elas e beijei sua
boca úmida de sêmen. Nunca soube se o hálito dela era bom.
A fodi. Suguei cada poro da pele macia e branca, cada

45
terminação nervosa da pele vermelha. A fodi por horas sem
gozar, e quando o fiz ela já estava tão sufocada de prazer que
não conseguiu dizer mais nada. Ela agüentou as duas horas e
meia muito bem disposta. A deixei deitada na grama e fui
embora, vendo aquela buceta rosa regando a terra. A vadia
obviamente não era virgem, e nem eu queria que fosse. Teria
sido horrível pra ela.
O velho não disse nada por um longo tempo e, embora o
jovem achasse que veria uma expressão abismada naquele
rosto estranho, ele sorriu com o canto da boca, mostrando
algumas poucas rugas nas bochechas idosas.
— A poesia tem muitas faces não é, meu jovem?
— Muitos sabores, eu diria.
— Creio que se você tivesse tomado amor naquela noite,
você estaria acompanhado agora e eu não teria ocupado um
banco ao seu lado no balcão.
— Quem sabe? Eu não gostaria de voltar no tempo e
testar. Talvez minhas próximas garrafas fossem melancolia,
memória, ausência e, de todo modo, o rato não as serviria
mais.
— Você nunca mais a viu?
— Vi, claro que vi. Mas a partir daquele dia ela não era
nada além de uma buceta molhada na minha presença. E eu
não tinha mais tesão nenhum por ela. O gênio dela é que me
excitava, mesmo ela tendo seios ótimos.
— E quando foi que o poeta deixou de servir sua poesia
engarrafada?
— No dia seguinte ao que eu saí sem agradecer a ele. Eu
era o único cliente que considerava o que ele fazia como algo
incrível, que o cumprimentava pelo seu talento. Quando até
EU saí sem ao menos erguer um copo em homenagem ao rato,
ele desistiu de destilar idéias. Ou ainda o faz, mas não as tira
mais da cabeçorra redonda. Ele tem uma aparência muito
melhor desde então. Parece mais feliz.

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— Pelo menos os bluesmen o entendem. – disse o velho,
olhando mais uma vez para o poeta sentado, agora com as
mãos postas sobre a barriga e o pescoço recostado na
poltrona, ouvindo Professor Longhair assobiar uma canção
bucólica.
— NÓS o entendemos, mas eu nunca consegui me
desculpar. Só posso vir aqui e beber um pouco dessa
aguardente. – virou o copo, fechando os olhos e batendo no
balcão com a garganta queimada – Nenhum outro buraco me
acolhe tão bem. Não me sinto bem lá fora. A indiferença me
consome nas ruas.
— E aqui dentro não?
— Não... – disse o jovem estalando os dedos para o
garçom – Porque aqui eu ainda tenho uma esperança. O
garçom me disse que o rato tem uma garrafa que ninguém
jamais pediu. Eu tenho esperança de que ele me perdoe um
dia e me sirva essa garrafa, em nome dos velhos tempos.
— Que garrafa é essa?
— O entusiasmo... eu me tornei indiferente. Livrei-me
da dor, dos casos de amor fracassados, da decepção pelos
prazeres inalcançáveis, da preocupação, da culpa, da insônia.
Mas com tudo isso se foi a inspiração para a única coisa que
eu sabia fazer bem.
— E o que você fazia, rapaz? – disse o velho curioso,
fechando o terno com frio.
— Blues.

47
onicofagia

"Você acha os juízes injustos, rapaz? Eles não criam mal ao


qual o homem já não estivesse habituado. Minos apenas
exterioriza o inferno interno que cada condenado tem dentro
de si."

Ele estava só e ansioso. Quando acordou seus braços


estavam esticados à sua frente e seus pulsos estavam presos
por algemas folgadas que não tinham o intuito de machucar.
Quando ergueu as mãos caídas viu que estavam bem e as
articulações respondiam sem dor. Seus dedos estalavam
quando se mexiam e suas unhas estavam enormes. Isso o
atormentou. Estava nervoso e sua memória não o animava.
Ele havia sido julgado e condenado. Um golpe forte na sua
nuca o havia apagado e quando acordou estava ali, sozinho.
Estava ansioso, nervoso e uma angústia ilimitada havia se
apoderado do seu coração desde que abrira os olhos. Desde
que vira suas unhas brancas pulando dos dedos como garras
de gato. Ele não podia suportar aquela visão. Forçou as mãos
para fora das algemas de bronze com todo o impulso que sua
dor permitiu usar. Seu sangue escorreu pelas correntes quando
ele rasgou a pele da mão direita, livrando-a. Dor. Seu braço
direito era mais forte e as costas da sua mão expunham na
pele viva toda a coragem masoquista do seu impulso nervoso.
Sua boca estava seca e não havia reflexo de água em canto
nenhum. Agonia. As unhas dos dedos grossos se encolhiam
quando delas se aproximavam os dentes nervosos, e quando o
ímpeto febril o levou a mordiscar a pele frágil das falangetas
trêmulas os demônios saíram das sombras e espremeram suas
dez unhas contra a carne com alicates aquecidos em brasa de
carvão tornando-as tão duras quanto seus chifres que nunca

48
deixavam de crescer. Os diabretes riam triunfantes e raspavam
seus cornos nas rochas magmáticas as quais os olhos dele
alcançavam para atormentá-lo com a idéia de que eles podiam
se mutilar no ócio, mas o humano, aflito, não.

49
por uma moeda

— Você é um homem de Deus, não é?


Eu tinha acabado de sair da estação Largo Treze do
metrô, e estava parado olhando em volta esperando meu pai.
— Senhor! - ouvi a mesma voz, me virei e vi esse
homem se aproximando - Eu olhei você saindo ali da estação
e vi que você era um homem bom.
Ele era baixo e tinha a postura muito ereta. Vestia uma
camiseta azul muito gasta, uma bermuda branca encardida e
um chinelo de dedo, tinha um pouco de barriga que já devia
ter sido cheia e grande, mas que hoje era mais pele. Ficou do
meu lado e me estendeu a mão e eu a segurei e disse “oi.”:
— Tudo bem, senhor? Você é um homem de Deus, não
é?
— Sou. - menti para evitar qualquer questionamento.
Ele fechou os olhos e o punho direito quando ouviu isso.
Parecia estar feliz:
— Eu tô pedindo uma ajuda hoje, de uma moedinha que
seja, pra comer alguma coisa. Desde manhã eu não como
nada.
Fui andando até a beira da calçada e sentei no meio fio.
— Senta aqui, cara, vamos conversar.
— Vamos, vamos. - ele disse aparentemente animado -
Qual seu nome?
— Jamess.
— Jamess?
— Jamess.
— Ja-mess?
— Isso. Jamess. E o seu?
— Meu nome é Antônio.
— Você mora na rua faz muito tempo?

50
— Faz.
— Por que você acabou aqui?
— Minha mãe morreu quando eu tinha menos de um
ano de idade e meu pai era alcoólatra e batia muito na gente.
Meus irmãos fugiram de casa um com 10 e outro com 12
anos. Eu ainda era novo demais para a rua só saí de lá com 14
anos. Fiquei uns meses na rua e depois quis procurar ajuda de
uns poucos parentes que eu tinha mas ninguém quis por um
filho da puta drogado pra dentro de casa. - se levantou.
— Você era? - perguntei, e me levantei também.
— Eu? Eu era um fodido! Me acabei na droga, mas
agora eu não quero mais isso, nem cachaça mais eu bebo. Eu
peço dinheiro pra comer. Eu tô com a barriga vazia desde
manhã. - levantou a camiseta e mostrou uma barriga lisa e
caída de quem emagreceu demais e batia nela com a mão
espalmada, barulhento - Nem um pão eu comi. Nem um pão.
Olhei pra ele em silêncio por um tempo e perguntei:
— Onde você fica de noite?
— Eu durmo no albergue que tem ali depois da igreja. O
povo da igreja ajuda a gente, leva roupa, dá janta
e a gente dorme lá. Você é da igreja?
— Não, não sou.
— Mas você é cristão.
— Não.
— Então você é o que?
— Eu não sou nada.
Silêncio.
— Você não quer ir lá no albergue? Eu te levo. É
pertinho.
Eu fiquei curioso para saber como era o lugar mas
respondi:
— Não posso. Tenho que esperar meu pai.
— Cê não pode comprar uma marmita pra mim?
— Eu não tenho tanto dinheiro.

51
— Mas você se veste bem. É tão bonito.
— Isso é roupa de brechó, cara.
— Mas seu rosto, sua pele é tão boa.
— Eu tomo água, não trabalho no sol, só isso. Não me
preocupo.
— Mas por que você é tão bonito?
— Eu não sei, cara. eu não sei. - respondi ficando ao
mesmo tempo feliz e triste. - Também sou pobre.
— Pobre é o Diabo! - ele respondeu - Pobre é o Diabo!
— Tá bom então...
— Você acha que eu me importo com dinheiro?
— Não.
— Dinheiro não importa, meu senhor... Essa camisa que
eu visto! não importa... Essa bermuda rasgada aqui!
não importa... Esse chinelo! que até tá bom ainda de
usar...
— Tá bom, tem bastante sola ainda.
— Pois é - ele riu - Esse chinelo aqui, não importa...
Nada dessa merda toda em volta da gente - e girava o
indicador sobre a cabeça - Nada disso importa, meu senhor. O
que mais importa na vida ninguém mais pode me dar que é
amor... - disse isso e cobriu os olhos com os dedos grossos.
Parecia querer segurar seu choro.
— Você quer que eu me ajoelhe, senhor?
— Não! - eu disse, tentando puxar ele que já se
ajoelhava.
— Você quer que eu me ajoelhe? Eu me ajoelho.
— Por que você faria isso?
Ele ainda segurava minha mão e agora estava ajoelhado
e os passantes não pareciam notar.
— Porque, meu senhor, - a maioria do que ele falava
parecia carregado de uma emoção muito sincera e
triste - eu tenho um Deus que cuida de mim e que eu
amo muito.

52
— Que bom. - eu disse, sorrindo.
— É muito bom. - ele disse, e começou a cantar um hino
da igreja, segurando minha mão, ajoelhado, e eu olhava ao
redor embaraçado, mas ninguém parecia ver. Se levantou e
disse - Ele salvou minha vida sabia?
Não respondi.
— Teve um tempo que eu fiquei triste demais as ruas
tavam sendo muito duras comigo. E eu desisti.
— Desistiu?
— Fui até a ponte do Santo Amaro e olhei pra baixo um
bom tempo pensando e vi que não tinha por que eu continuar
aqui. Tentei subir no parapeito e uma mão me segurou.
— Ham.
— Eu olhei pra trás e tinha um velho com o dobro da
minha idade e uma barba enorme, cabelo grande e uma roupa
esfarrapada branca. Ele olhou pra mim com raiva e me puxou
tão forte que eu quase caí e eu gritei "me deixa em paz!" e
corri pro parapeito de novo e ele me puxou de novo, "não vai
pular.", e eu gritei, "me deixa, eu vou pular!" e ele me puxou
de volta muitas vezes e eu fiquei cansado e nem consegui
mais subir no parapeito. Olhei pra trás e não vi mais ninguém
e fiquei sentado no chão chorando.
Eu fiquei em silêncio um tempo sem reação ou resposta.
Ele se sentou no chão e eu sentei também
e vi que ele começava a chorar como que ofendido.
— Você não acredita, né, filho da puta?
— Não.
— Você não acredita... - ele disse e tinha lágrimas no
rosto queimado de sol - Eu tô aqui te dando meu testemunho.
Dizendo que Deus me salvou da morte e você não acredita.
— Não. Eu não estava lá pra ver.
— Você não acredita... Se você não quiser, não precisa
nem me dar nada. Pode ir embora. - ele disse
com raiva nos olhos chorosos.

53
Eu olhei pra ele ainda alguns segundos com lamento e
disse, “tá bom então...”, e me levantei.
— Mas se você quiser me dar um trocado eu aceito. Mas
só se você quiser.
— Toma.
Estendi uma nota de 2 reais que ele pegou enquanto se
levantava rápido e feliz, agradecendo:
— Obrigado, senhor. obrigado mesmo. - e me abraçou
com novo ânimo - Cê tá esperando seu pai, né? Não tem como
você conversar com ele pra ele me arrumar uma cesta básica
ou algo assim?
— Meu pai é pintor, cara, ele não tem condições pra
isso. Não sou filho de rico não.
— Ooora... então, boa noite, meu senhor. - e beijou
minha mão.
— Tchau, fica com Deus.
Dois segundos depois ele estava abordando outra
pessoa, talvez com a mesma fala inicial, talvez a adaptando
para um sujeito diferente. Eu nunca soube. Virei o rosto e vi
meu pai com olhar sério:
— Onde você tava? Eu tava te esperando lá na outra
saída do metrô.
— Eu tava aqui esperando também.
— Vamos logo. Tem dinheiro pra outra passagem?
— Não. Acabou.
— Eu te dou um passe.
— Tá.
Meu pai não teria notado o mendigo também. Eu
continuo notando cada um deles mas não consigo mais falar
com tantos.

54
fábula soviética

Conta-se que em 1974, na cidade de Baku, República


Socialista Soviética do Azerbaijão, existiu um gato que
sonhava ser jogador de xadrez. Seu nome era Roque e seu
maior problema era não conseguir falar com os humanos, pois
não esperava que houvesse outro gato que soubesse mover
sequer um Peão. Em julho desse ano, Roque decidiu montar
seu velho tabuleiro de xadrez em uma das mesas da Praça da
Fonte, onde ficava a maioria dos bares e pubs da cidade.
Imaginava que algum dos apostadores de cartas notaria sua
presença e também saberia jogar xadrez. Sentou-se à beira do
tabuleiro, sobre a mesa, e esperou. Um pequeno garotinho,
aparentando pouco mais de 10 anos, passava pela praça e viu
o gato olhando atento para as calçadas do outro lado da rua.
Notou o tabuleiro armado na mesa e sentou-se do lado das
brancas muito interessado. O gato do outro lado se assustou
quando viu o garoto sentado olhando para ele e pensou, "sai
daí garoto, vai estragar minha idéia!", e o garoto disse:
— Olá, gatinho, que jogo bonito o seu. - e moveu um
dos Cavalos.
O gato quis chiar com o garoto, mas viu que ele moveu
o cavalo corretamente, então mordeu o Peão da Rainha e o
colocou duas casas a frente.
— Meu nome é Garry e o seu? - o garoto moveu o Peão
do Rei.
O gato ficou quieto e continuou jogando, não sabia falar,
mas sabia jogar muito bem, e não ia ser um garotinho a
ganhar sua primeira partida com um humano. Ele estava
muito atento ao jogo e quando perdia uma peça seus pelos se
eriçavam. O garoto ria disso e esperava o gato mover outra
peça. Quando o gato tomava um peça branca, ele mordia ela e

55
jogava longe da mesa. O garoto apenas colocava as peças
pretas do seu lado da mesa. Eles jogaram durante toda a tarde
e o jogo continuava sem um ganhador.
— Eu tenho que ir embora, gatinho. Que tal a gente
continuar amanhã?
Roque meneou a cabeça em um sim certo, e ficou
olhando o garoto pôr a mochila nas costas e ir embora pela
praça. Os fanfarrões dos bares começavam a chegar em uma
onda uniforme e estufada. O gato olhou para o jogo e viu as
peças pretas que havia perdido do outro lado da mesa. Pulou
para o chão e pegou, uma por uma, as peças brancas que havia
derrubado. Colocou-as no seu lado da mesa, bem arrumadas,
como as do garoto. Enrolou-se em si mesmo e dormiu um
pouco, atento. Acordou com o barulho dos homens saindo dos
bares todos juntos, expulsos para que se pudesse fechar as
portas e contar a féria do dia. Cambaleavam em uma onda de
águas-vivas, disforme e murcha, deixando alguns membros
soltos pela calçada. "Eu não posso ser inferior a uma raça
como essa.", pensou o gato, tentando descansar mais um
pouco para vencer o filhote de humano quando o sol nascesse.
— Bom dia, gatinho!
Roque acordou com o cumprimento e se espreguiçou na
mesa, derrubando um Bispo que havia tomado do garoto no
dia anterior.
— Eu pego pra você. Você organizou as peças tomadas.
Muito bem, gatinho, a gente tem que tratar bem os
prisioneiros de guerra.
O gato olhou o garoto com os olhos semicerrados sem
entender muito bem e se aprumou para continuar o jogo.
Garry já havia se sentado e olhava para o tabuleiro, pensando.
Era a vez do gato e ele moveu um Bispo ameaçando a Rainha
do garoto e ficou olhando para outro canto do tabuleiro, para
dissimular qual era realmente a sua intenção.

56
— Você é muito malandro, gatinho. Mas eu tenho que
defender a minha Dama, não? - e moveu a Rainha para longe
da ameaça.
O gato chiou baixinho e olhou feio para o tabuleiro. O
garoto o estava aborrecendo. Ele era orgulhoso de seus
bigodes e não ia perder para uma criança de rosto liso. Moveu
sua peça e o garoto moveu a dele tomando uma Torre. O gato
eriçou os pelos e chiou forte com raiva. O garoto se assustou
um pouco, mas não se moveu. Era a vez do gato. Roque
estava muito nervoso e impaciente para que o jogo terminasse
logo. Nunca jogou com um humano porque não podia desafiá-
los miando e quando teve uma ideia boa, aquele garoto
sentou-se na mesa para humilhar sua espécie. O gato moveu
sua Rainha Negra ameaçando o Rei Branco e miou rouco
anunciando o Xeque. Garry olhou para o tabuleiro dizendo,
"odeio quando a religião destrói um reino, mas...", moveu um
Bispo de uma ponta à outra do tabuleiro e derrubou o Rei
Negro dizendo:
— Xeque-Mate.
E o gato, que por não saber falar teve aquele infortúnio,
derrubou as peças sobre o tabuleiro com uma patada e,
furioso, finalmente disse:
— Tomá no cu!3

3
Garry Kasparov nasceu em 13 de abril de 1963, em Baku, União
Soviética e se tornou o maior enxadrista de todos os tempos.

57
sob a chuva sem capa

ele não temia os elementais


água, terra, fogo
eram seus brinquedos.

ele não temia o ar


os raios
ou o frio
e andava sob a chuva sem capa
via as pessoas debaixo dos toldos
e exclamava
"a água não corrói a pele!"
e achava graça da falta de vida
de querer lutar contra os elementais.

queria andar nu com a pele à mostra


mas se contentava em descalçar as sandálias
e pisava o asfalto molhado
sentindo frio nos calcanhares.

ele queria ter estado perto de uma fogueira


para que sua pele estivesse quente
quando as gotas geladas a tocassem
e se pudesse sentir o choque.

ele olhava para o céu cinza


e a chuva molhava os planetas atrás dos cílios
e cada nervo óptico vibrava com a cor do relâmpago azul
que iluminava a rua
de postes apagados.

58
cravou os pés na terra molhada da praça
e sentiu a lama cobrindo seus poros.
relaxou
e o viram demente.

as pessoas tremiam sob os toldos de ferro


e um relâmpago amarelo acertou o menino
correu pelo seu corpo molhado
pulverizou sua roupa
e se enfiou na terra fofa.

depois
ele abriu os olhos
e percebeu uma garoa aborrecida caindo na janela
se viu deitado nu numa cama de hospital
e sentiu vergonha do vento tocando sua pele
entrando pelas brechas no lençol.

a poesia havia escoado para dentro da terra


e se dispersado pela praça
com sua memória perdida.

59
breve morte do sono

PERSONAGENS
Hipnos: personificação do sono.
Thanatos: personificação da morte.

CENOGRAFIA
O Tártaro Nevoento, morada dos filhos da Noite e prisão dos seres
odiados pelos deuses. Mais profundo que o próprio Hades.

“Nove noites e dias uma bigorna de bronze cai do céu e só no


décimo atinge a terra. E nove noites e dias uma bigorna de
bronze cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro.”
- Hesíodo

*CLANG!*

HIPNOS
AAAAAAAAAARRRRRRHHHHHH! Eu não ACREDITO!

THANATOS
Caralho, irmão, o que aconteceu?

HIPNOS
Guarda o que estou te dizendo, Thanatos! GUARDA O QUE
ESTOU DIZENDO! Se mais um filho de bacante jogar uma
bigorna de bronze lá de cima só pra se divertir... se acontecer

60
MAIS UMA VEZ! Eu juro que ninguém mais vai dormir por
cinqüenta gerações!

THANATOS
Mas Hipnos, isto criaria uma raça que não duraria sequer 20
anos.

HIPNOS
Eles duram o quanto você quiser!

THANATOS
Você sabe que isso não é verdade, irmão. Tudo depende do
que Cloto fia, Láquesis desenrola e Átropos corta.

HIPNOS
Só depende delas o destino dos humanos!

THANATOS
Mas se a sua ira fosse cair sobre os humanos, as Parcas4 já
saberiam disso, com certeza! Acalme-se, irmão, afinal não é
de você que os humanos têm medo, eles te adoram. Venha,
levante-se, deixe-me ver esta cabeça.

- Thanatos ajuda Hipnos a se levantar e tenta ver se a bigorna


de bronze machucou seu irmão, o que sabia que não havia
acontecido, mas com certeza o havia irritado. -

HIPNOS
Você não sabe o quanto esses atos impensados dos humanos
me enfurecem, Thanatos. Eu estou até com vontade de ir ao
Hades para torturar algum de seus condenados.
4
Parcas: divindades gregas que punham e dispunham do destino e da vida
dos humanos.

61
THANATOS
Por Zeus, Hipnos, você está mesmo perturbado. Você devia
dormir um pouco...

HIPNOS
E VOCÊ DEVIA MORRER, THANATOS! CONSEGUIRIA
FAZER ISSO CONSIGO MESMO?! EU NÃO POSSO
DORMIR!

THANATOS
Me desculpe, irmão. Me desculpe. Eu vou buscar uma coisa
pra passar sua dor.

HIPNOS
Céus...

- Thanatos caminha para qualquer direção nas trevas, a fim de


se distanciar de onde o irmão estava flutuando. Toma em suas
mãos um pedaço de rocha negra e o lapida com os dedos
fortes, de modo que se tornasse um recipiente. Dentro dele
condensa um pouco de água das nuvens tempestuosas ao seu
redor e, friccionando as mãos por bastante tempo, faz com
que um pó fino e escuro se solte de sua pele e caia no copo,
fazendo a mistura vaporar sem ferver. -

THANATOS
Aqui, Hipnos, beba isto. Você vai se sentir melhor.

HIPNOS
Obrigado, irmão.

- Hipnos sorve a bebida aos poucos, pois apesar de insípida,


ela era densa e difícil de tragar. Um segundo depois, o copo

62
de rocha cai das mãos de Hipnos, que estava desacordado,
mas ainda respirava. Tranqüilo, como os humanos o gostavam
de ter. Durante nove dias e noites o Sono provou aquela
migalha de Morte que os humanos experimentam todas as
noites, necessária para deixar preocupações e rancores
esquecidos no Tártaro. Durante nove dias e noites os bares
não fecharam, pois o balconista não estava com sono, as
prostitutas não estavam com sono e nem mesmo quem havia
entornado vinte litros de vinho sozinho estava com sono. Mais
velas foram gastas e parte da produção das fazendas se
perdeu, pois os trabalhadores estavam exaustos pela falta de
uma noite de sono. Ficavam na cama com as pernas moles e,
sem conseguir dormir, olhavam para o teto e redescobriam o
que é pensar. E foi assim com todas as pessoas, pois até os
bebuns tiveram que cair em algum momento. Os filósofos, os
poetas, os atores, todos tiveram alguma inspiração brilhante
depois do quarto ou quinto dia e os homens comuns se
tornaram tristes com tanto tempo para lembranças e
formulações. As crianças romperam as portas das casas na
oitava noite, loucas em sua hiperatividade ferina e a fila à
frente do oráculo de Delfos nunca fora tão magnífica. -

THANATOS
Bom dia, Hipnos. Como foi seu primeiro sono?

HIPNOS
Irmão... eu vi o nascimento da nossa mãe...

THANATOS
É isso que eles chamam de sonho, irmão, mas não é você que
provoca isso, é o Morpheus5. Não o vi passando por aqui...
5
Morpheus: personificação do Sonho.

63
HIPNOS
Céus...

- Tudo se normalizou aos poucos depois que Hipnos acordou,


mas este trecho da história humana se tornou um dos mais
interessantes da tapeçaria das Parcas. O oráculo disse a um
mendigo qual era o motivo de sua falta de sono e este passou
todos os dias de insônia amaldiçoando os homens na praça
por fazerem com que ele perdesse o único momento do dia em
que podia esquecer sua miséria. E mortal algum jamais lançou
uma bigorna de bronze ao Tártaro novamente. -

64
a doença da alma limitada

Eu estava deitado na minha cama, com minha menina já


dormida ao meu lado, e pensava em injustiça. Inquieto demais
para dormir, me levantei tentando fazer pouco barulho e fui
até a cozinha pensando em escrever. Abri a geladeira para
pegar uma garrafa de água e uma luz laranja e forte atraiu
minha atenção, atravessando a janela de vidro. Abri a janela e
vi uma pequena fogueira acesa, provavelmente queimando
lixo e caixas velhas, fazendo uma enorme fumaça cinza subir,
deixando as luzes dos postes nebulosas, mas não esmaecendo
nem um pouco as luzes de natal das casas. E minha visão
daquela cena me fez redobrar a confiança no texto que
pretendia escrever. Peguei o notebook no quarto e o coloquei
sobre a centrífuga que nós deixamos sob a janela, puxei uma
cadeira da mesa de jantar e me sentei para apresentar para
vocês mais um espetáculo da autoridade débil mental:

† A DOENÇA DA ALMA LIMITADA †


As cortinas se abrem, entram em cena dois doutores da
igreja, Kramer e Sprenger, este com um grande volume de
papel sob o braço esquerdo. É uma encomenda, feita pelo
papa Inocêncio XIII anos antes. Nele estão listadas todas as
maneiras de identificar uma feiticeira, todos os malefícios que
ela pode causar a um homem, e todos os meios de fazê-la
sofrer pelos seus pecados contra a Santa Igreja Católica. O
papa o folheia com interesse, ainda desconhecendo o
conteúdo do livro, mas tendo certeza de que seria maravilhoso
à Santa Inquisição ter um forte seguro onde se basear. Pega
uma pena e, à mão, escreve uma bula certificando cada

65
palavra escrita no Malleus Maleficarum como verdade e
reiterando o fato de que quem fosse contra tal obra seria
considerado herege e julgado como tal. A Faculdade de
Teologia da Universidade de Colônia o elogia prontamente
como um marco para a fé e um inquisidor que o tivesse nas
mãos se tornava um homem com poder sobre qualquer pessoa
com quem ele não simpatizasse, pois você não precisava
exatamente ser pego em um ato de heresia para ser condenado
à morte. Os métodos de tortura da inquisição fariam qualquer
jovem de 17 anos confessar que beijou o cu de Satanás.

"Nesse momento eu olhei para trás com medo do escuro


às minhas costas. Fui até o quarto para ver se minha menina
estava bem e voltei para a cozinha. Um catador de lixo surgiu
de alguma esquina e está alimentando o fogo com madeira
velha das barracas da feira. O fogo cresceu e o barulho de
garrafas de vidro estourando nas chamas me fizeram perder a
concentração, mas voltemos às fogueiras santas. O que vou
lhes descrever a seguir são cenas de horror terríveis, mas
nenhuma delas é ficção. Minha mente não é tão perversa
quanto as dos doutores da igreja. Eu não conseguiria inventar
tais aberrações."

Kramer e Sprenger saem do palco, as cortinas se fecham


por um minuto inteiro e, quando se abrem, mostram uma
dúzia de homens vestidos com mantos brancos presos à
cintura por cordas rústicas banhadas em ouro. A platéia fica
apreensiva. O terceiro homem da direita pra esquerda desce
do palco e vai em direção às galerias do teatro, onde os pobres
se ajeitam para assistir a tragédia. Se demora olhando para
uma mulher de meia idade que o encara com desprezo. O
inquisidor olha para o resto da platéia e grita:
— Esta mulher tem um caldeirão grande demais para
uma simples sopa! Só Deus sabe o que ela anda fervendo

66
nesse recipiente nefando! Pode o filho de vocês ter sido
cozido ontem por essa mulher malévola! Ela alimenta-se de
sua carne e com o tutano de seus ossos faz a pomada voadora,
com a qual unta as vassouras e esfregões nos quais ela pode
voar sobre suas casas! Assim diz o Martelo das Feiticeiras,
assim o crê o fiel católico!
As outras galerias e toda a platéia das primeiras filas
treme diante de tal verdade e o "amém" sai seco de suas
bocas. O inquisidor arrasta a mulher para o teatro com
violência, o chão do palco se abre e um caldeirão gigantesco
surge do buraco, subindo lentamente à medida que os dois se
aproximam dele. Uma chama faz ferver o azeite dentro do
caldeirão. O homem ata os braços e as pernas da mulher e
com a ajuda de outro homem, sobe uma pequena escada que
leva à boca do diabo, puxa a corda presa ao teto do palco,
suspende a mulher sobre o caldeirão e pergunta:
— Você confessa que devorou os filhos ainda não
batizados dos nossos irmãos?
— Não! Por favor...
AAAAAAAAAARHHHHHHHHH!
A platéia toda suga o ar entre os dentes "sssssss". As
mulheres fecham os olhos horrorizadas. Os amigos da mulher
se desesperam em agonia, e o irmão desamparado chora a dor
mais forte já sentida. A mulher é levantada do azeite. A pele
de suas pernas totalmente queimada. Ela olha para o teto do
palco, olha além do topo do mundo, e pergunta em segredo ao
seu Deus onde está a piedade dos homens santos. Os outros
10 inquisidores não olham para o caldeirão. Eles mantêm os
olhos fixos na platéia, observando sentimentos exacerbados
de pena em relação a uma feiticeira. Heresia é um pecado
contra o divino espírito santo e contra o filho de Deus, e só o
que a igreja quer é purificar essas almas pecadoras para que
alcancem a salvação diante do Pai. As lágrimas, as feridas e as
dores que os hereges sentem ali no palco duram algumas

67
horas, talvez dias, e são libertadoras, mas a tortura e a agonia
do inferno são eternas e de lá não se pode escapar. "Nós
somos o bem!", grita a santa igreja católica, e toda mulher e
homem têm que aceitar isso como verdade sob ameaça de
tortura por heresia.
O outro inquisidor se manifesta:
— Você ouviu a pergunta, feiticeira, confesse seus
crimes e seu sofrimento acaba.
E a mulher delirante de dor diz:
— Eu não sou bruxa, eu não sou...
AAAARHHHHAHAAAAAARRRRR! SOCORRO! ME
TIREM DAQUI!
A corda que a suspendia no ar é solta, e o azeite cobre
seu corpo todo até o pescoço, derretendo sua pele e
cozinhando sua carne. Ela pára de gritar depois de alguns
segundos. Os inquisidores puxam a corda e o corpo queimado
faz alguns espectadores vomitarem. Alguns não conseguem
conter o desespero. Outros sorriem a morte de uma pecadora
suja, e há esperma de dois homens diferentes nos vãos de seus
dentes. A morte de pessoas inocentes os mantém vivos. A
mulher morreu com o choque de tanta dor cobrindo seu corpo.
Os padres a desamarram e jogam-na em um canto do palco
onde não há luz. O chão se abre novamente e engole o
caldeirão. Um grande silêncio paira sobre os cabelos
arrepiados.
Ouve-se um baque e um grito de dor e todos se viram
assustados para ver de onde veio o som. Um homem dentro de
uma armadura enorme surge dos fundos do teatro arrastando
um homem magro pelos cabelos. A platéia o segue com os
olhos, virando o pescoço a medida que o guarda se aproxima
do palco. Ele pára logo à frente da primeira fila e faz uma
reverência ao superior mais próximo dizendo:
— Este homem foi pego tentando deixar o teatro,
Santíssimo.

68
— Obrigado, cavaleiro, nós vamos cuidar dele. -
respondeu o inquisidor, erguendo o homem pelo colarinho e
puxando-o para cima do palco.
Um dos padres sai da cena e volta empurrando uma
mesa de madeira. Dois outros inquisidores o ajudam a
preparar a mesa enquanto o que segura o prisioneiro se
aproxima. Ele deita o homem magro na mesa de madeira,
acorrenta suas mãos e prende cada uma de suas pernas entre
chapas de madeira que as comprimem cruelmente. Uma voz
estrondosa e assustadora vem do alto e brinca de
ventriloquismo se escondendo nas bocas fechadas de cada
padre.
— Nosso espetáculo não o agrada, senhor?
Um dos padres pega do chão uma marreta enorme, com
a cabeça maior que seu antebraço, e o homem preso se
desespera:
— Não me matem! Pelo amor de Deus, não me matem!
Ao que a voz gravitroante responde:
— Ora, meu filho, você não morrerá esta noite, mas
aprenderá uma lição valiosa: o que nós fazemos é para o bem
de vocês.
O algoz deixa a marreta cair sobre o joelho direito do
homem, e seu grito de dor se sobrepõe à voz sem corpo. Um
longo espasmo de agonia ecoa por todo o teatro e, quando
retorna o silêncio assustado da platéia, a voz começa de novo,
dessa vez saindo da boca do carrasco com o martelo.
— Por em dúvida a verdade da Santa Igreja Católica e
questionar as ações dos padres é um ato de heresia, é um
crime contra Deus e a única pena adequada para tal vilania é a
morte purificadora. Você estava tentando fugir do nosso meio,
logo, deve achar que o que fazemos é cruel e desprezível, mas
o que nós fazemos é libertar essas mulheres de suas vidas
imundas e garantir a segurança de vocês. Você não acha isso
válido?

69
— Vocês torturam as pessoas! Vocês arrancam a pele
delas, esmagam seus seios, as queimam com ferro, as afogam
com AAAAAAAAAARRRRGH-AAAAAARHHH!
— Resposta errada. O desespero de ter o joelho
esquerdo destruído pela marreta continha mais ódio que dor.
Os rostos ao redor do homem na mesa eram impassíveis. Não
havia mais nenhum traço de humanidade em suas faces velhas
e duras. Nada poderia mudar suas convicções falidas. A voz
voltou a falar, vinda do verdugo que segurava sua cabeça.
— Ir contra a vontade de Deus não leva a nada além de
sofrimento, meu filho. Tudo o que nós fazemos é para o bem
de vocês. Ser vítima das armadilhas de Satanás é comum entre
as pessoas de alma torta, e assim como um ferreiro habilidoso
faz um pedaço de ferro tosco se tornar uma espada magnífica
nas mãos dos soldados, nós transformamos espíritos de
luxúria em almas retas e integras usando nossas
FOGUEIRAS, nossos ALICATES e nossas MARRETAS!
Dois golpes de marreta descem com toda a força e
destroem os dois pés do homem deitado e respingos de sangue
pobre sujam os trajes da primeira fila, que protesta em
silêncio carrancudo. Os olhos do homem se tornam nascentes
de água salgada, e sua mente se encolhe em si mesma,
temendo um golpe direto no crânio. Os padres se retiram do
local e as cortinas se fecham. O medo causa náuseas na platéia
assustada, mas ninguém se levanta. Por duas horas inteiras as
pessoas ficam sentadas olhando para as cortinas vermelhas e
atrás delas o herege sangra, chora, agoniza, "pelo seu bem".
Era um exemplo. As cortinas se abrem pouco depois da
segunda hora e os padres começam a soltar o homem. Eles o
tiram da madeira rubra e dois deles o apóiam nos ombros
descendo do palco. Eles percorrem um dos corredores da
platéia levando a sombra do que há algumas horas foi um
questionador insensato. Suas pernas destruídas se arrastam
pelo chão e o carpete ganha uma listra vermelha escura. Dois

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homens se levantam em uma das filas de poltronas e
começam a seguir o padre, mas nenhum inquisidor do palco
percebe o movimento, atarefados que estão fazendo
preparativos. Os algozes do herege entram na galeria e jogam
o corpo na direção dos pobres sentados ali, dão meia volta e
se deparam com os dois homens que os seguiram parados no
portal:
— Chega de ópio, senhores.
— Chega de cegueira.
Dois socos diretos derrubam os padres no chão
ensanguentado. Abismados demais para se levantar, eles
olham em direção ao herege e vêm o ódio estampado nos
rostos de todas as mulheres e homens que o acolhiam e, sem
apoio de nenhum lado, eles se apavoram. Lobos em fúria
cercam os cordeiros de deus e os despedaçam com garras
sólidas e bocas famintas, não com malefícios. Caçadores
surgem das sombras e investem sobre os lobos com flechas e
lanças, matam centenas, mas conseguem prender muitos deles
vivos. Todos são hereges agora. Culpados sem grandes
julgamentos, afinal atacaram agentes inquisidores - atacaram a
igreja - atacaram Deus. Uma fila de mulheres e homens segue
em direção ao palco, onde os cordeiros sedentos por vingança
já preparam dezenas de postes erguidos sobre palha seca. A
platéia que antes olhava aterrorizada para trás, ansiosa pelo
sucesso dos lobos, agora estava cabisbaixa e direcionava seu
olhar de pena ao chão, com medo de que os padres vissem o
remorso que sentia pelos prisioneiros. Um a um, necromantes,
feiticeiras, homossexuais, adúlteros, hereges, amantes do
Diabo, confessos ou inconfessos, foram sendo acorrentados
aos postes de madeira. Os doze inquisidores se organizaram
com suas tochas para que todos os prisioneiros fossem
queimados ao mesmo tempo. E o fogo das dezenas de
fogueiras acesas se uniu em uma chama gigantesca que
lambeu o teto do palco antes que ele pudesse ser aberto. O

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buraco sobre as chamas não foi suficiente para expulsar toda a
fumaça, que se espalhou pelo teatro e pelas galerias. A fumaça
entrando nos olhos das pessoas as fazia lacrimejar e assim
elas puderam chorar de verdade, sem medo das lanças e
flechas mirando suas cabeças. Ninguém tentou se levantar e
lutar contra aquela injustiça, por mais que seus impulsos
ordenassem isso. Ninguém queria alimentar as chamas, ou ser
morto por um dos cavaleiros que cercavam a platéia, mas
todos sentiam um remorso monstruoso devorando seus
intestinos. Os atores não tinham razão, mas a platéia não tinha
armas.

72
Valquíria

“Pois é, menina, seu marido anda olhando pra bunda de tudo


quanto é mulher no escritório. Ele é um safado mau caráter!
Você devia era dar um jeito nele!”
Aumentando cada detalhe, como era de se esperar de
uma fofoqueira, Marcinha conta tudo o que o marido de
Valquíria andou fazendo longe do alcance de seus olhos. Ela
ouve o discurso emocionado da amiga com interesse, mas
demonstra pouca surpresa ou indignação diante dos fatos
apresentados. Quando o falatório acaba, Marcinha se despede
e deixa Valquíria sentada em sua poltrona carmesim olhando
para a porta sendo fechada. Ela ouve os passos da vizinha
atravessando o quintal e passando pelo portão em direção à
calçada, conta 37 passos em direção à casa ao lado até ouvir a
porta sendo fechada ao longe e uma chave dando duas voltas,
trancando a cobra em seu buraco. Descansa a cabeça no
encosto da poltrona e vê seu gato, Shuster, ronronando
baixinho, olhando para dentro dos seus olhos verdes, como
quem pergunta qual é o próximo passo. Ela o chama, e ele
sobe em uma de suas coxas de costas para a dona e ambos
ficam olhando para a porta da sala de estar, esperando.
Pierre voltava para casa em seu Rolls-Royce, fumando
seu havano, no trânsito que seu dinheiro não conseguia fazer
desaparecer da sua frente. Olhava para a calçada distraído,
soltando fumaça pelas ventas, avistando aqui e ali uma
cocotte da qual tentava descobrir a marca do absorvente
apenas olhando para suas ancas. Entrou em uma avenida
menos movimentada e, poucas esquinas depois, apertou o
botão de um controle que abriu os portões de sua casa em uma
vizinhança burguesa. Saiu pelo mesmo portão que entrou e

73
cruzou o quintal e o jardim bem cuidado para entrar pela porta
da frente em seu reino.
Valquíria ouviu ao longe o som do velho leão cruzando
o asfalto, voltando para sua caverna. O rugido que antes se
aproximava depressa, com urgência de chegar em casa logo e
se esconder do mundo, agora se aproximava cada dia mais
devagar, vadio, sem pressa de perder a luz de fora da gruta.
Ouviu um pequeno "bip" e o portão se abrindo, e sentiu o leão
entrando na garagem e deixando lá sua pele. Contou os passos
lentos cruzando o quintal e percebeu que foram muitos mais
do que os necessários. Notou que ele havia voltado até o
portão e parado um momento para só depois seguir uma linha
reta até a porta de casa e abri-la devagar, tendo um leve
sobressalto ao notar sua mulher sentada na poltrona da sala
escura.
— Oi, amor.
— Olá.
— Tá tudo bem?
— Sim.
— Hum.
Nesse momento Valquíria alisou a orelha esquerda de
Shuster e ambos olharam fixamente para Pierre. Este, por sua
vez, sentiu que o ambiente não estava muito bom e subiu as
escadas em direção ao quarto. Tirou sua roupa, jogou-a no
chão e sentou-se em sua cama king size, sentindo sua cabeça
latejar. Entrou no banheiro e urinou com muita dificuldade,
ligou o chuveiro e o deixou esquentar até que o box estivesse
cheio de vapor e entrou no banho. Ensaboou os braços, o
peito, a barriga e quando foi em direção à virilha o sabonete
escorregou de sua mão. Ele se abaixou irritado procurando o
sabonete ao redor dos pés e notou seu membro caído no chão.
Valquíria não se levantou da poltrona um segundo e
ainda alisava Shuster quando ouviu acima de sua cabeça o
som de algo caindo no chão molhado.

74
Pierre recolheu seu membro e o observou curioso.
Colocou-o sobre a saboneteira, achou o sabonete no chão e
continuou tomando seu banho.
Valquíria sorriu.
Pierre terminou seu banho, secou-se e desceu as escadas
enrolado na toalha segurando seu pênis. Avistou Valquíria
sorrindo e disse-lhe:
— Olha, amor, meu pau caiu.
Shuster pulou do colo de sua dona e ela se levantou
sorridente:
— Interessante, querido. Vou pedir para Otsu servir
nosso jantar.
— Quero ver o que essa bruxa velha preparou hoje.
— Não seja grosseiro, Pierre.
Otsu era uma senhora de traços orientais muito distintos
e trejeitos de uma matriarca rígida. Entendia tudo sobre
misturas de ingredientes para alcançar os fins desejados. Era a
única cozinheira da casa, sendo vez ou outra, a contragosto,
auxiliada pelos outros empregados. Preferia trabalhar sozinha.
— Onde está a comida, Otsu?! - resmungou Pierre.
— Está a caminho, seu cão resmungão! - respondeu
Otsu.
— Ora, sua cadela idosa - disse Pierre se levantando e
segurando a toalha para que não caísse.
— Pierre! - gritou Valquíria, o mandando sentar - Não
liga para ele, Otsu, ele está nervoso porque perdeu o membro.
— Ora! Esse homem faz drama por qualquer coisinha! -
disse Otsu, servindo a mesa desinteressada.
— Pra mim chega, eu vou subir. - disse Pierre. Pegou o
prato de comida e saiu da cozinha, deixando a toalha no
caminho e o pênis sobre a mesa.
Valquíria o seguiu e quando entrou no quarto viu Pierre
sentado na cama com o prato de comida intocado no criado
mudo, sentou-se ao lado dele e perguntou com voz amena:

75
— Querido, o que você tem?
— Nada... só não quero ficar ouvindo ofensas de
ninguém.
— Mas você sempre respondeu a Otsu a altura.
— Não consegui pensar em nada.
— Você tá bem?
— Não... acho que tive um dia ruim no trabalho.
— Ô, meu amor, não fica assim.
Valquíria abraçou Pierre e o sentiu frio. Pegou o
membro que tinha trazido da cozinha e o esticou com as
mãos, o deixando teso, tocou o baixo-ventre nu de Pierre e
pôs o seu orgulho no lugar. Ele esticou a coluna e se manteve
ereto como sempre ficava. Beijou Valquíria e a deitou na
cama, despindo-a, beijou seu corpo todo e a amou com o
mesmo ânimo de quando eram jovens. Valquíria se sentiu
bem por perceber como o marido a amava quando tinha o
desejo acumulado. O plano ia bem.

No dia seguinte Pierre acordou pela manhã e rolou para


fora da cama, esquecendo seu membro enrolado nas cobertas
junto de Valquíria. Ele não deu mais pela falta do falo
perdido. Foi ao banheiro, olhou para o rosto que amanheceu
com menos barba do que o comum e não se deu o trabalho de
apará-la, sentou-se no vaso sanitário e mijou como uma
mulher, sem pensar muito no assunto. Tomou banho, vestiu o
terno e foi para o trabalho sem falar com ninguém da casa.
Ninguém o notou passando.
Valquíria acordou às 9:30 da manhã e se espreguiçou na
cama sem abrir os olhos. Esticando um dos braços, sentiu a
pele do marido tocar sua mão e ficou feliz com a ideia de ele
ter faltado ao trabalho e ainda estar na cama com ela àquela
hora. Virou o corpo para o lado dele na cama, e viu que ele
não estava lá, mas seu membro esticado estava na palma de
sua mão fechada. Olhou para o órgão lembrando-se do que

76
havia feito e levou-o consigo até o banheiro. Olhou para o
cabelo bagunçado no espelho e sentou-se no vaso que estava
com o assento abaixado, o que foi estranho porque Pierre era
do tipo raro que levanta a tampa do vaso para mijar.
Levantou-se adivinhando o que havia acontecido, tirou a
camisola e entrou no box do banheiro. Lavou o corpo todo e
pegou o mastro que estava repousando sobre a pia do
banheiro para lavá-lo também, pois o marido era muito
cuidadoso com isso. Saiu do banheiro com a toalha enrolada
no corpo e deixou a lembrança do marido sobre o criado
mudo.

Pierre estava no escritório e, por trás da escrivaninha,


viu sua secretária entrando pela porta. Camila era nova demais
para a função de secretária do chefe de finanças, mas era
benquista na empresa, e por Pierre.
— Bom dia, Camila.
— Bom dia, Pierre, como vai?
— Bem... bem... e você?
— Eu estou ótima, chefe. O senhor parece abatido.
Precisa de alguma coisa?
— Acho que não, Camila. Acho que não. Me trás só um
café, acho que acordei meio doente.
— Certo, chefe, em um minuto.
Camila se virou para sair e um documento caiu dos
papéis que estava carregando. Ela se abaixou para pegar o
documento e suas coxas cresceram sob a meia calça quando
sua saia subiu. Olhou para trás sorrindo e viu Pierre
concentrado na tela do notebook. Se recompôs e saiu pela
porta, pensando que o chefe devia estar mesmo doente.

Valquíria se vestiu com roupas leves e se preparou para


subir ao sótão, onde seu velho baú se cobria de poeira e
fuligem. Subiu as escadas e viu o baú sob uma caixa de

77
quinquilharias sem valor que logo pôs de lado para que
pudesse abrir a sua arca preciosa, de onde saiu um brilho
prateado que iluminou todos os vultos do cômodo escuro. As
aranhas tremeram em suas teias e as mariposas revoaram por
um pedaço quebrado na janela oval próxima ao teto. Seus
casulos abertos e secos crepitavam sob o calor que emanava
da arca. Valquíria tocou cada objeto fantástico que havia no
baú com ternura, saudosa, mas o que ela buscava de verdade
era a palha eterna que mantinha todos os seus bens em
segurança, protegendo-os da visão dos não iniciados e os
mantendo intocáveis ao Tempo.
Era costume de algumas bruxas criadoras de pintos
acalentarem seus balangandãs em palha das Estinfálides, as
aves mais singulares que os gregos tiveram chance de
apreciar, mas que, exatamente por sua singularidade, eram
temidas e evitadas a todo custo: tinham asas, garras e bico de
ferro e podiam disparar penas como setas. Elas viviam no lago
Estinfalo e eram soberanas do local, dominando todo o
bosque que cercava as águas. Nessa região da Acádia vivia
uma feiticeira que conversava com aves e que não temia as
Estinfálides. Ela ia ao lago buscar água todos os dias e assim
conhecera o segredo de seus ninhos. A ave apanhava as hastes
secas com suas garras, atirava quatro penas em um galho forte
da árvore, ajeitava a palha com seu bico usando as penas
como escoras e lufava o ninho com suas asas de ferro,
checando se suporta sua revoada. Este ritual antigo e mágico
dava ao ninho o poder de manter seus ovos frágeis intactos e
imunes ao efeito do tempo. Só a temperatura exata de seus
corpos de ferro era capaz de fazê-los chocar. A ave que não
obtivesse sucesso nesse ritual estava fadada a não ter
descendentes.
Certa tarde, a feiticeira sem nome foi pegar água e
percebeu que quanto mais perto se aproximava do lago, mais
escuro o céu ficava sobre as árvores. Imaginou que fossem

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nuvens de chuva, mas apurando um pouco mais a vista,
percebeu que eram as Estinfálides voando todas juntas, coisa
que raramente faziam, pelo risco de se machucarem. A
feiticeira apressou o passo para perguntar a elas o que estava
acontecendo, mas quando chegou bem perto do lago notou
que havia algumas aves estendidas no chão entre as árvores.
Correu até uma delas e só conseguiu ouvir, “a pele dele é
muito grossa... nossas penas... são inúteis...”. A mulher fechou
os olhos da ave morta e correu para ver que monstro era este
que estava matando suas amigas. Na beira oposta do lago, viu
uma figura do tamanho de um homem, com cabeça e pele de
leão. Vendo mais atentamente, percebeu que era um homem
muito forte, que vestia a pele de um leão morto como se fosse
um capuz e atirava flechas para o ar com um arco enorme.
Cada flecha que lançava acertava uma das aves, que caia com
estrondo na água do lago ou no chão do bosque. A revoada
das aves gigantescas cobriu o sol e foi como se uma
tempestade de ferro se fechasse sobre o homem, mas a cada
rajada de penas ele respondia com uma flecha que era fatal.
Havia muitas penas afiadas fincadas em seus braços, mas
qualquer parte vital do seu corpo estava coberta pelo manto de
pele que parecia ser impenetrável. A feiticeira preparou um
malefício e tentou lançá-lo contra o homem, mas ele parecia
imune até a magia. Era noite quando o homem conseguiu
trespassar a última Estinfálide com uma flecha envenenada,
cobrindo as clareiras do bosque de cinza. A feiticeira chorou a
morte das amigas até amanhecer e, desta vez, não se via mais
as belas sombras que as aves lançavam ao chão quando
cobriam a luz do sol com seus corpos magníficos.
Ela subiu em cada uma das árvores com a ajuda dos
Silfos e pegou todos os ovos que conseguiu encontrar.
Removeu também a palha eterna de todos os ninhos das
Estinfálides e levou-a para sua casa no bosque. Tentou
alquimizar toda sorte de metais para cobrir os ovos e chocá-

79
los, mas nada se comparava ao ferro do corpo das aves. A
feiticeira não conseguiu dar vida aos herdeiros de suas amigas
e as aves do lago Estinfalo se tornaram uma lenda. A feiticeira
forrou todas as paredes da sua casa com a palha eterna e viveu
dezenas de anos que sua juventude e sua magia não viram
passar. Viu nascer suas netas e as netas de suas netas, e
sempre contava a elas a lenda do lago, o qual nunca deixou de
visitar. Acontece que toda vez que ia buscar água e prestar
homenagem o tempo caia sobre ela, impiedoso, e as horas que
ela passava no lago, somadas, fizeram com que ela
envelhecesse pouco a pouco depois de algumas centenas de
anos. Quando a feiticeira se viu doente e velha demais até
para ir ao lago sem ajuda de alguma outra bruxa, chamou suas
descendentes mais jovens e contou a elas o segredo de sua
longevidade, legando a elas o dever de repassá-lo para as
gerações seguintes. Pediu para ser levada até o lago e passou
lá seu último dia de vida, esperando o sol se pôr e lembrando
cada detalhe do massacre de suas amigas. Morreu ao cair da
noite e foi lançada ao rio em cujo fundo repousava o ferro de
garras, bicos e penas das maiores aves que já tocaram o ar.
Quanto às bruxas, elas dividiram a palha eterna entre si
e se dispersaram mundo afora. Sem disputas. Sem luta para
ter toda a palha e manter sua juventude por séculos. Nenhuma
bruxa estava disposta a ficar presa em um cubículo cercado de
hastes secas para se manter viva mais que o necessário. Elas
queriam apenas viver, e cada bruxa tinha suas preferências de
como gozar a vida. Mas toda bruxa, em verdade, tinha
consigo um baú forrado de palha eterna onde guardava os
seus objetos e ingredientes mais secretos. Valquíria fechou o
baú depois de apanhar um punhado de palha e limpou uma
lágrima que escorreu pelo seu rosto quando se lembrou da
história que sua mãe havia lhe contado muitos anos atrás.

80
Pierre continuou estranhamente quieto no trabalho.
Quando entrou em seu Rolls-Royce ao final do dia, não havia
orgulho em seu semblante e ele dirigiu para casa sem olhar
muito para os lados. O motor do carro parecia triste quando
Pierre estacionou na garagem de casa. Ele subiu as escadas
sem chamar atenção dos empregados e Valquíria se assustou
quando ele abriu a porta do quarto, pois ela não havia sentido
sua presença.
— Oi, querido, como foi o trabalho?
— Tranquilo, eu diria.
— Tira esse terno, deixa eu te dar um banho. – disse
Valquíria sorrindo, e ajudou o marido a se despir.
Ela tirou a própria roupa também e seguiu o marido, que
já havia ligado o chuveiro e entrado no box, sem esperar a
água esquentar. Valquíria esperou o vapor levantar-se para
que Pierre não notasse o que ela trazia nas mãos, e quando ele
sentiu seu membro teso restituído, tomou a mulher em seus
braços e levantando uma de suas coxas, a penetrou com
luxúria, dizendo tudo que Valquíria sempre rogou ouvir. Na
cama, com os corpos molhados, eles trocaram carícias até a
madrugada, e o jantar se foi, esquecido, e quando Pierre
finalmente dormiu, Valquíria ficou receosa em remover o
membro do marido de novo, e o ninho de palha sobre o criado
mudo ficou vazio até o banho da manhã seguinte.

Os dias seguiram-se assim, com Pierre manso durante o


dia e ferino durante a noite, e tudo parecia caminhar bem, até
que Valquíria chegou à semana do mês em que seu corpo
produzia um dos mais poderosos ingredientes de feitiçaria do
mundo, o mênstruo. Ela decidiu que não reporia o membro de
Pierre até que esses dias acabassem, pois ele havia se tornado
um amante insaciável, e ela não queria decepcioná-lo
recusando sua carne quando ele a pedisse. Durante seis dias
Pierre chegou do trabalho, jantou e assistiu TV até pegar no

81
sono. Valquíria não disse nada, pois sabia que o marido só
estava fazendo isso porque não tinha mais um pau entre as
pernas. Ele nunca havia ligado para televisão afinal. Então ela
esperou pacientemente, tendo Shuster por companhia.
Ao fim do sétimo dia, Valquíria estava magnificamente
sexy com suas meias arrastão, cinta-liga e rendas, esperando o
marido chegar do trabalho para surpreendê-lo. Seu corpo
estava coberto por perfume de lírios e seus olhos faiscavam de
desejo. Pierre entrou no quarto e foi direto para o banheiro
sem se despir e sem notar a mulher incrível deitada em sua
cama. Valquíria não se chocou com isso e, despertando
cuidadosamente o pinto que repousava no ninho, o levou para
o banheiro e entrou no box beijando o marido e restituindo
seu ego.
Pierre gritou de forma assustadora, primeiro por dor, e
depois por desejo. Tomou Valquíria nos braços com força
desmedida e mordeu sua boca em um beijo violento. Apertou
um dos seios da mulher com fúria e com a outra mão arranhou
suas costas, deixando cinco fios de sangue correndo sob a
água quente. Seus músculos se contraiam e relaxavam como
se houvesse um coração sob cada ligamento. Valquíria ficou
horrorizada ao ver o membro do marido inchado e sólido, seus
nervos pulsavam como se fossem explodir. Ele agarrou seus
cabelos puxando sua cabeça para baixo e a mulher fechou a
boca machucada, mas um soco cruzado a fez abri-la e engolir
o órgão com repulsa só para depois mordê-lo com toda a força
que sua mandíbula podia usar. Antes que ela pudesse fazer
alguma coisa, Pierre a lançou contra a parede molhada, e a
penetrou com ódio, seu pênis sangrando dentro da mulher,
seus olhos eram de um Íncubo faminto. Valquíria tentou se
concentrar o máximo que podia sendo violada, e fechando sua
concha em uma contração violenta, conseguiu arrancar o
membro do marido e o isolar de novo, fazendo Pierre cair
inconsciente sobre a água vermelha que corria para o ralo.

82
Quando Pierre acordou na manhã seguinte se assustou
com o horário e ficou aflito até se lembrar que era seu dia de
folga. Percebeu que sua mulher não estava na cama e sentiu
uma dor forte vinda do seu baixo-ventre e quando se levantou
para ir mijar, percebeu que havia um curativo com unguento
em torno do seu pênis e que ele devia estar bastante ferido.
Ele não fazia ideia de como poderia ter se machucado tanto, e
pensando melhor, percebeu que não se lembrava de nada que
havia acontecido na última semana. Mijar doía horrores. Sem
conseguir imaginar nenhuma resposta para isso tudo, ele
desceu as escadas de pijama e foi descontar sua irritação da
manhã em Otsu, a cozinheira. Ele jamais iria saber o que se
passou.

Valquíria havia saído de casa antes de amanhecer.


Depois de preparar o unguento e fazer o curativo no marido,
ela preparou um feitiço simples para que ninguém pudesse ver
as feridas de seu corpo, além dela mesma. Ela queria que as
feridas fossem um lembrete para que nunca mais lançasse um
malefício contra seu amante, logo elas sumiriam sem deixar
cicatrizes. Valquíria sentiu medo, e decidiu não deixar o
membro do marido longe de seu corpo nem mais um segundo.
Queria o homem que amava de volta, e ele havia deixado de
sê-lo há semanas, e Valquíria conhecia os culpados. Ainda
havia um assunto a tratar antes de voltar à sua vida normal.
Valquíria saiu de casa de antes de amanhecer levando
consigo seu gato. Caminhou até o prédio onde Pierre
trabalhava e durante todo o percurso, recitava mentalmente
um encantamento que seria eterno e atingiria muitas pessoas
ao mesmo tempo. Ela entrou pela porta principal e se
aproximou da recepção mantendo o passo firme, de modo que
o porteiro não a impediu de acessar o prédio, mesmo sem
crachá ou cartão-passe. Subiu o primeiro lance de escadas e

83
caminhou pelo primeiro andar encarando todas as mulheres
que avistava, enquanto alisava a cauda de Shuster, que se
eriçava todo em seus braços. Subiu o segundo lance de
escadas e fez o mesmo no segundo andar, e no terceiro, e em
todos os outros 14 andares do prédio, pacientemente e com
muito cuidado. Chegando ao 17º andar do prédio ela percebeu
que neste só havia escritórios abandonados, chamou o
elevador e desceu até o térreo para ir embora. Quando saiu do
prédio falou baixinho para o gato, “Está feito, amigo.
Obrigada.”, e antes que tivesse terminado de atravessar a rua o
prédio todo estremeceu com um grito de horror feminino e
Valquíria sorriu ao ouvir a prova de que todas as bundas das
mulheres do prédio haviam murchado para sempre.

84
a chama que dança para sobreviver

A chama de uma vela se alimentava do ar seco de


janeiro e iluminava parcialmente um cômodo pouco
mobiliado. A vela estava apoiada sobre um copo de geléia
usado, que depois de limpo servia muito bem para servir uma
dose de aguardente. O rosto iluminado pela chama se
lembrava bem do dia que sua mulher riu do romantismo de
uma vela daquelas posta sobre candelabro tão impróprio.
"Não encontrei uma daquelas com aroma de flores no
mercado", foi sua desculpa, que não precisava ter sido
proferida afinal, já que nada do que ele fazia tinha valor para
ela há meses. Ele estava sozinho agora, e a luz bruxuleante da
vela iluminava uma mesa cheia de farelos e contas vencidas
manchadas de café. Sua luz fora cortada há duas semanas, e
ele não se importou nem um pouco, pois não iria trabalhar
para pagar nada a ninguém.
O vento quente que vinha da rua apagou a vela e ele
ficou no escuro por um momento, sem perceber, pois a luz
dos postes refletida nas nuvens entrava pela janela e produzia
uma meia-luz embaciada que o fazia desconfiar do vulto do
seu capote sobre o velho cavalete que ela deixou para trás
quando se foi. Por um segundo ele se perguntou quando viria
a ordem de despejo para tirá-lo logo daquele lugar, mas
lembrou-se que ninguém viria chutá-lo para a sarjeta, pois a
casa era só sua desde o divórcio. Por isso, talvez
inconscientemente, ele estava fazendo com que aqueles dois
cômodos se tornassem um beco escuro e sujo, pois ele se
sentia um rato e achava que merecia morar no esgoto. Seu
banheiro, por sinal, já cheirava como um.
Ele riscou um fósforo e acendeu a vela, inclinou o palito
para baixo e aproveitou o mesmo fogo para acender um

85
cigarro. Encheu um copo americano de rum, que sua mulher
não fizera questão nenhuma de levar, e chupou o cigarro
demoradamente. Soprou a fumaça em direção à vela, devagar,
para não apagá-la, e viu a chama oscilar, procurando por ar
sem toxinas para consumir. A chama que dançava para
sobreviver o transportou para uma boate do passado. A rainha
do fogo se apresentara em um striptease, e foi a última vez
que ele foi a um puteiro. Sua paixão por ela foi maior que
qualquer punheta que os clientes da "Sex Symbol" pudessem
pagar. Ele a convenceu a abandonar a vida com seu dinheiro e
seu charme. Ele vivia bem, mas não era médico nem
advogado, por isso não se tornara um carrancudo aborrecido.
Vinha administrando tão bem a pequena herança que seu avô
deixou que não precisava trabalhar, e isso o tornou um
boêmio tranquilo e bem humorado, de um carisma irresistível,
que seduziu a rainha do fogo em uma noite.
Em pouco tempo estavam morando juntos, e o ócio da
boa vida que ela passou a levar permitiu que ela se dedicasse a
outra coisa que fazia maravilhosamente bem: telas
impressionistas. Os dias passavam rápidos e as noites se
estendiam como um tapete persa, sobre o qual eles se
devoravam, lambuzando o tecido caro sem nenhuma
preocupação. O clichê de tal história tomou conta de suas
reminiscências, e o que se sucedeu a essa história, é a tela na
qual ele se percebeu: um homem de rosto vago, sentado na
mesa da cozinha, com a luz cortada, tomando rum, fumando
um cigarro, olhando para chama de uma vela e vendo nela
uma mulher dançando. O fato de ele se lembrar
especificamente de uma meretriz com a qual se casou é só
uma licença poética para que um conto possa ser escrito, pois
eu gostaria que isso fosse um quadro simples que se põe em
um bar, mas, infelizmente, eu não sei pintar.

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o pires devolvido com um pedaço de bolo

Ele vinha andando apressado pela rua sem luz. Queria


chegar logo em casa, pois tinha tanto medo de escuro quanto
de um ladrão de ocasião escondido atrás de um dos postes
apagados. Há duas quadras ele marchava como um tenente e
só não olhava para trás a todo minuto porque estava
preocupado demais em ver onde pisava. Ao menos já estava
em seu bairro de asfalto esburacado, pensou. Quando chegou
a sua rua foi logo sacando as chaves do portão e apertou um
pouco mais o passo para se ver livre daquele breu agonizante.
Vários segundos se passaram até que ele conseguisse acertar a
chave que ia na fechadura e prometeu a si mesmo que iria
marcá-la com fita adesiva. Trancou o portão em silêncio para
não acordar os vizinhos do sobrado e se virou para encarar os
dois lances de escadas que teria de subir. Os degraus mal
construídos não foram problema, mas ele se assustou
pensando que havia outro degrau no fim da primeira escada.
Maldito degrau fantasma.
Quando finalmente chegou ao seu andar, percebeu
pequenos pontos de luz atravessando a janela de vidro do seu
vizinho. "Será que eu ainda tenho minha lanterna?", pensou, e
enquanto tentava se lembrar onde a havia enfiado, lutava de
novo com o molho de chaves, procurando a que abria sua
porta.
— Toma, isso vai te ajudar.
Perdido em frustração, ele mal notou que a varanda
havia se iluminado, e quando olhou para o lado, viu seu
vizinho de cueca, com o braço estendido oferecendo-lhe uma
vela acesa presa a um pires.
— Opa. – foi só o que ele conseguiu dizer, e pegou o
pires da mão do vizinho com um aceno de cabeça. Este se

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virou e desapareceu antes que ele pudesse agradecer por ter
conseguido abrir a porta.
Ele entrou em casa e achou a lanterna em uma gaveta
do guarda-roupa, sem pilhas, e só com a luz da vela conseguiu
requentar o almoço. Sentou-se para comer e se assustou com o
barulho da geladeira quando a energia voltou, mas não
acendeu as luzes.

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