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Sp peed pel NO CAMPO E NA CIDADE: PERSPECTIVAS ORICAS aT ie C3 ee Cl nN AU Dy UT) Pore CAPITULO 19 TRABALHO ESCRAVO E GENERO: NOTAS SOBRE A INVISIBILIDADE DAS MULHERES A LUZ DO PENSAMENTO FEMINISTA Flavia de Almeida Moura Jeyciane Elizabeth Sé Santos INTRODUCAO Este artigo busca contribuir para a anélise do contexto em que se desenvol- veram as iniciativas de combate ao trabalho escravo contemporaneo levando em consideracao questdes de género. Partimos do levantamento sobre o perfil das mulheres escravizadas, organizado pela ONG Repérter Brasil a partir dos registros de fiscalizacdes do Ministério da Economia. A pesquisa resultou na produgio de um fasciculo!, organizado por Natalia Suzuki (2020) e apresenta dados sobre escolaridade, local de origem, atividade econémica desempenha- da no ato do resgate e raca dessas mulheres. O material faz parte do Programa Escravo, nem pensar!? A proposta é analisar, 4 luz do pensamento feminista, como a divisio se- xual do trabalho contribui para a subnotificaco de mulheres resgatadas e os impactos da invisibilidade nas estatisticas, Para esta reflexdo, apresentamos como arcabougo tedrico-metodoldgico estudos sobre relagdes de género par- 1 Esta publicaglo foi baseada no artigo cientiico “Questio de género e trabalho escravo: Quem sao a trabalhadoras escraviradas no Brasi?", de autoria de Natalia Suzuki e Thiago Castel, apresentado na Xil Reunio Cientifica Trabalho Escravo Contemporaneo © Questdes Correlatas da UFR, em outubro de 2019 2 E um programa da ONG Repérter Brasil. Fundado em 2004, € o nico programa nacional dedi- cado & prevengio do trabalho escravo. Defende a miss3o de utilizar a educaco para diminuir 0 nidmero de trabalhadores alicados por meio da educacdo. SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 343 tindo do pensamento apresentado por Scott (2008), no artigo Género: uma catego- ria dil para andlise histérica, de abordagem apresentada por Wittig (2019) na obra Néo se nasce mulher; além de Harding (1986) sobre A instabilidade das categorias analiticas na teoria feminista, Angela Davis (2016) sobre as questdes de género, raca ¢ classe ¢ Ribeiro (2018) na discuss4o Quem tem medo do Feminismo Negro? Ainda trazemos algumas reflexes de Adichie (2019), que discorre sobre 0 perigo de uma histéria dnica e buscamos apoio nas contribuicdes sobre trabalho escravo contemporineo em Neide Esterci (1994) e Flivia de Almeida Moura (2016). Buscamos em Laurentino Gomes (2021) reflexdes sobre a heranca da naturalizagao do trabalho de mulheres desde a escravidao colonial até os dias atuais no Brasil. O LUGAR DA MULHER NO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORANEO Nossos estudos partem de um contexto em que lugar da mulher est rela- cionado com fungées que exigem 0 cuidado com a casa, filhos e companheiro, Jogo, quem sai para trabalhar é o homem. Esse olhar que estrutura fortemente a sociedade patriarcal tem efeitos cruéis também no chamado trabalho escravo contempordneo, entendido por Neide Esterci (1994) como todas as formas de exploraao onde hé a imobilizagao da mao de obra por meio da coacao fi e/ou moral, além da restrigao da capacidade de ir e vir dos subordinados e da limitagdo de sua liberdade de oferecer a outros seus servicos. De 1995 a 2018", os dados da fiscalizagdo apontam que o perfil de traba- Ihadores resgatados no Brasil sio 95% homens e apenas 5% mulheres. Com © passar do tempo, o surgimento de novos olhares exige que outros que: namentos sejam levantados. Atualmente, ha um esforco por parte de pesqui- sadores sociais para compreender quais fatores contribuem para que esses resultados apresentem dados tao discrepantes. io- fasciculo organizado pela ONG Repérter Brasil destaca que assim como no caso dos homens, os registros de mulheres escravizadas esto espalhados por todo o Brasil. Os principais estados de origem dessas trabalhadoras so Maranhao (16,49), Para (12,8%), Minas Gerais (10,6%), Bahia (10,4%) e Sao Paulo (10,2%). 3 Desde 1995, quando foram iniciados 0s primeiros resgates de trabalhadores escravizados por meio dos Grupos de Fiscalizacao Especiais Méveis, até 2018, 50.106 mil trabalhadores foram libertados de condicdes de trabalho escravo em todo 0 pais. No entanto, os dados utilizados para 2 publicagdo do fasciculo partem de 2003, quando os trabalhadores resgatados passaram a ter direito ao recebimento de trés meses de Seguro-Desemprego. Para o recebimento deste benefi- cio, so emitidas guias em que constam os dados pessoais desses trabalhadores. Essas informa- Ges foram sistematizadas e geraram um banco de dados sobre os trabalhadores resgatados. 344 ESCRAVIDAO CONTEMPORANEA NO CAMPO E NA CIDADE Em relacAo as atividades econémicas em que foram exploradas, aquelas do meio rural compreendem mais de 80% dos casos, desde o corte de cana-de- -acticar e a producdo de carvao até o trabalho doméstico nas frentes de tra- balho no campo. Contudo, o problema ¢ também recorrente no meio urbano, incluindo grandes metrépoles, como Sao Paulo, onde sio frequentes os casos de trabalho escravo em oficinas de costura e também no trabalho doméstico, como vem sendo recentemente midiatizado nos ultimos anos. Um levantamento da Subsecretaria de Inspecio do Trabalho do Ministério Puiblico do Trabalhomostrou que de 2017 a 2020, foram resgatados 2.378 tra- balhadores rurais em condigGes andlogas & escravidao. Nesse mesmo periodo, 21 trabalhadores e trabalhadoras domésticos foram resgatados nessas condi- es. Mas essa distdncia entre os ntimeros do campo e do ambiente doméstico no tem a ver apenas com a existéncia de menos dentincias ou menos casos. Ha um fator que dificulta as comprovagdes e até os resgates de trabalhadores domésticos que sao escravos contemporaneos: a questo da inviolabilidade do lar, garantida pela Constituicdo Federal de 1988 no Art. 5°, em que diz: “XI-a casa € asilo inviolavel do individuo, ninguém nela podendo penetrar sem con- sentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinasao judicial “ No dia 20 de dezembro de 2020, 0 Fantastico, da TV Globo, mostrou 0 caso de Madalena Gordiano, empregada domestica, vitima de trabalho escravo na casa em que trabalhava desde os 8 anos, sem direito 4 remuneragao ou férias, tendo vivido 38 anos em regime de escravidao. Madalena foi resgatada em uma operagao do MPT (Ministério Pablico do Trabalho). Segundo ela, chegou a pegar comida do lixo para se alimentar. Do total de 1.889 trabalhadoras resgatadas no pais, 178 (7,8%) eram cos- tureiras, 0 que faz com que a ocupacdo aparega em terceira posic’o dentre aquelas com maior néimero de mulheres resgatadas. Na cadeia téxtil em S40 Paulo, hd uma alta concentracao de trabalhadoras imigrantes, principalmente latino-americanas. As peculiaridades de como o crime se apresenta em determinadas regioes do Brasil é um dos pontos destacados na publicacdo. As questdes de traba- Iho escravo e género partem de uma realidade em que ha o apagamento da imagem de mulheres porque reproduz a invisibilidade presente na sociedade como um todo. Ademais, é possivel que a quantidade de mulheres escravizadas seja subnotificada, j4 que muitas néo sio consideradas trabalhadoras, como € 0 caso de domésticas, cuidadoras e profissionais do sexo, até SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 345 mesmo pelas autoridades puiblicas. Além de nao serem contabiliza- das nos dados oficiais, elas tém seus direitos e beneficios trabalhistas negados, mesmo sendo vitimas de um crime. (SUZUKI, 2020, p. 2) il e 0 fato de Ao refletirmos sobre quem é a trabalhadora escravizada no Bras nao conseguirmos enxergar as mulheres est diretamente relacionada 4 ocupa- do em que essas trabalhadoras s4o exploradas. Muitas desempenham “tarefas domésticas”, como cozinhar, organizar, lavar e, no so consideradas trabalha- doras, como € 0 caso das conhecidas “donas de casa”, cuidadoras e profissionais do sexo. Logo, essa realidade nao é um privilégio do trabalho escravo contem- poraneo. O nao reconhecimento de certos tipos de ocupacdes no ambito do trabalho escravo € reflexo do que estd colocado no modelo capitalista. Vargas e Figueira (2018, p. 94) explicam que essa relacao existe no Brasil desde a escravidao colonial. “Segundo Bentivoglio (2004, p. 221), entre os anos de 1530 e 1888, muitos africanos foram trazidos ao Brasil para trabalhar no ambito doméstico, sendo um ntimero expressivo de mulheres, utilizadas como criadas e cozinheiras”. CAssio Casagrande (2008) aponta como heranga escravocrata uma desva- lorizacao do trabalho manual, em especial do trabalho doméstico no Brasil [...] escravagismo permeou as relagdes sociais brasileiras para além da questao racial, uma vez que aquele regime influiu também no modo como a sociedade brasileira valora o trabalho manual, em espe- cial © prestado no ambito doméstico, por servicais, do que é prova a situacao de notéria discriminagao a que estio relegados, até hoje, os trabalhadores domésticos. (CASAGRANDE, 2008, p. 21) E relevante também o fato de que as mulheres sao a maioria entre os em- pregados domésticos e sao diretamente afetadas por todas as questées liga- das ao patriarcado e a0 machismo que constituiram essa profissdo no pais. No comego de 2020, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), © Brasil tinha 6,62 milhGes de trabalhadores domésticos, 93% eram mulheres. Entre elas, 63% eram negras. Ainda de acordo com a PNAD do IBGE referente ao primeiro trimestre de 2020, 0 rendimento médio real habitual do traba- Ihador doméstico no Brasil era de 920 reais, podendo variar entre 1,292 reais para trabalhadores com carteira assinada e 778 reais para trabalhadores sem carteira assinada: os menores valores entre todas as categorias listadas. Por mais que o Brasil tenha sido a tiltima nacio do mundo ocidental a abolir 0 trabalho escravo, atualmente a poli pratica é referéncia mundial. Segundo 0 artigo 149 do Cédigo Penal Brasileiro, a brasileira de combate a essa 346 ESCRAVIDAO CONTEMPORANEA NO CAMPO E NA CIDADE © trabalho escravo contemporaneo & caracterizado pelos seguintes elemen- tos: trabalho forgado; jornada exaustiva; condigdes degradantes e servidao por divida, O trabalho forcado se configura como um tipo de explorag4o em que ameagas, violéncia fisica ou psicolégica sao utilizadas para manter a produti- vidade mesmo contra a vontade do trabalhador. Na jornada exaustiva, o traba- Ihador é obrigado a realizar fungdes além do que o seu corpo permite, sendo submetido & sobrecarga de trabalho que desconsidera o tempo de descanso necessario para recompor sua forga. As condigdes degradantes sio caracteri- zadas principalmente pela violagao dos direitos fundamentais. Muitas vezes o trabalhador escravizado tem sua dignidade negada sendo obri- gado a viver em alojamentos precirios, com alimentagio insalubre ou mesmo a auséncia dela, falta de saneamento bisico e até égua potdvel. A serviddo por divida prende o trabalhader ao local de trabalho. Nela, o trabalhador € obrigado a contrair dfvidas ilegais referentes & cobranca de taxas como 0 transporte até o local do servigo, gastos com alimentagio inclusive compra de ferramentas de tra- balho, tudo com o preco acima do que foi estabelecido no mercado. No dia do pa- gamento, o dinheiro que deveria ser entregue ao trabalhador permanece no bolso do patrao, Esse contexto de exploracao é comum, sobretudo, nas regides rurais do pais, por exemplo, locais onde os trabalhadores convivem com diverses tipos de vulnerabilidade social e econémica que associadas 4 pobreza, desemprego e violéncia facilitam a ocorréncia do trabalho escravo. (MOURA, 2016). A INVISIBILIDADE DE TRABALHADORAS ESCRAVIZADAS NO BRASIL Entre 2003 e 2018, do total dos 35.943, a maior parte é homem, eles re- presentam 95% dos escravizados. Diante dessa maioria, ha presenga de 1.889 mulheres, 0 que contabiliza 5% das vitimas libertadas no Brasil. O primeiro caso de trabalho escravo realizado pelo Grupo Especial de Fiscalizaco Mével ~ GEFM* noticiado e registrado no relatério aconteceu no dia 15 de maio de 1995, em carvoarias dos municipios de Ribas do Rio Pardo, Agua Clara e Brasilandia, em Mato Grosso do Sul ¢, contou com auxilio do frade capuchinho Alfeo Prandel, da Comissao Pastoral da Terra (CPT)*. 4 Griado em 1995, 0 Grupo Especial de Fiscalizacao Mével (GEFM) é responsavel por coordenar operagdes de fiscalizagao no campo. Composto pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, tem ainda a participagao de diversas instituigdes, como Defensoria Publica da Unigo, Ministério Publico do Trabalho, Ministerio PUblico Federal, Policia Federal e Policia Rodovidria Federal 5 Fol Prandel quem repassou as informagdes para o planejamento da primeira operacdo do GEFM, ue deu inicio 8 politica publica brasileira de combate ds formas contemporaneas de escravid3o, SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 347 A primeira operagdo do Grupo Especial de Fiscalizacdo Mével (GEFM) foi em carvoarias e, dentre as primeiras vitimas resgatadas no Brasil, constavam homens, mulheres e criancas. Contudo, os documentos da fiscalizagao da época dao conta apenas dos 27 trabalhadores homens. Das mulheres ¢ das criangas, nao se informam os nomes, a procedén- e nem quantas eram. (SUZUKI, 2020, p.12) A presenga de mulheres nao péde ser questionada quanto sua veracida- de devido aos registros fotograficos feitos na operacao, nos quais juntamente com as criangas sao classificadas como “familia do trabalhador” De acordo com matéria veiculada no site do Sindicato Nacional de Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT) sobre relatos de experiéncias na atua- 40 dos grupos méveis, ha um destaque que mesmo sem assisténcia médi- ca, a trabalhadora continuow se dedicando as suas tarefas na carvoaria nessa condigao, Essas reflexes colocam em pauta um problema que ndo é s6 de desconhecimento dos dados, mas de como a rede de combate tem olhado para as mulheres no contexto da escravidao contemporanea. De acordo com dados da Subsecretaria da Inspecdo do Trabalho do Ministério da Economia sistematizados pela Repérter Brasil®, os registros das atividades em que homens ¢ mulheres foram submetidos ao trabalho escravo so apresentados da seguinte forma: O numero de trabalhadoras resgatadas por ocupacao mostram que 71,3% dessas mulheres sdo resgatas como tra- balhadoras rurais, seguido de 8,1% cozinheiras; 7,8% costureiras; e a menor porcentagem de resgates acontece em carvoarias com apenas 1,3%. A realidade enfrentada por mulheres vitimas da escravidao demonstra que ha naturalizacao daquilo que € determinado na sociedade pelo simples fato de ser homem ou ser mulher. Sera que a menor porcentagem de resgates aconte- ce em carvoarias com apenas 1,3% condiz com a realidade vivida por trabalha~ doras na lida com o carvao? No classico Mutheres, raga e classe, a intelectual e feminista estadunidense Angela Davis (2016) destaca que da mesma forma que os sistemas econd- micos surgem e desaparecem, 0 escopo e a qualidade das tarefas domésticas passaram por transformagées sociais radicais, Durante as primeiras eras da histéria da humanidade, a divisdo sexual do trabalho no interior do sistema de producao econémica era complementar, ¢ nao hierarquica, ou seja, mes- mo desempenhando fung6es domésticas as mulheres eram valorizadas como 6 Dados organizados pela Repérter Brasil de janeiro de 2003 a junho de 2018. A classificacao nas guias segue 0 Cédigo Brasileiro de Ocupagées (CBO). 348 ESCRAVIDAO CONTEMPORANEA NO CAMPO E NA CIDADE membros produtivos da comunidade. Por dois séculos, quase tudo que a fami- lia usava ou comia era produzido em casa sob sua orientacio, diferentemente das sociedades capitalistas avancadas em que a dona de casa é simplesmente serva do seu marido a vida toda, A medida em que a industrializag4o avangava, transferindo a produgao econémica da casa para a fabrica, a importancia do trabalho doméstico das mulheres passou por um desgasie sistematico. Elas foram as perde- doras em duplo sentido: uma vez que seus trabalhos tradicionais foram usurpados pelas fabricas em expansio, toda a economia se deslocou para longe da casa, deixando muitas mulheres em grande parte despo- jadas de papéis econdmicos significativos. (DAVIS, 2016, p. 240-241) Os efeitos desse novo formato econdmico contribufram para o surgimento de um importante subproduto ideolégico: as “donas de casa”, uma nova classe que define as mulheres como guardias de uma desvalorizada vida doméstica. Para Wittig (2019), “Nés fomes forcadas em nossos corpos € em nossas mentes a corresponder, sob todos os aspectos, a ideia de natureza que foi determinada para nés” (pag. 83). A autora explica que ninguém consegue ir além da imaginagao. Mas © que nés acreditamos ser uma percepsio fisica e direta é ape- nas uma construgdo sofisticada e mitica, uma “formac&o imaginaria”, que reinterpreta atributos fisicos (em si mesmos tao neutros quan- to quaisquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relacionamentos nas quais eles s4o percebidos (eles sao vistos como negros, portanto so negros; elas so vistas como mulheres, portanto s4o mulheres. Mas antes de serem vistos assim, eles primei- ro tiveram de ser feitos assim. (WITTIG, 2019, pag. 85) Uma verdade aceita na s ciedade sobre trabalhadores escravizados é de que eles protagonizam o nimero de vitimas porque so homens e os traba- Thos para 0 quais sao recrutados exigem forea fisica. Acontece que as discus- ses elencadas até aqui demonstram que muitas mulheres sao escravizadas na atualidade em frentes de trabalhos durissimos; elas sao encontradas também em carvoarias, pecudria, plantagées, corte de cana exercendo o mesmo tipo de trabalho que os homens. E esta realidade nao vem de hoje. Laurentino Gomes (2021) afirma que o papel da mulher na sociedade colonial brasileira foi muito além da satisfacao sexual do homem, da procriagao e do cuidado com a casa. Desde o prim donas de engenhos, fazendas, minas de ouro, vendas, tabernas e va- ‘0 século da ocupacdo portuguesa, muitas delas foram SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 349 membros produtivos da comunidade. Por dois séculos, quase tudo que a fami- lia usava ou comia era produzido em casa sob sua orientacio, diferentemente das sociedades capitalistas avancadas em que a dona de casa é simplesmente serva do seu marido a vida toda, A medida em que a industrializag4o avangava, transferindo a produgao econémica da casa para a fabrica, a importancia do trabalho doméstico das mulheres passou por um desgasie sistematico. Elas foram as perde- doras em duplo sentido: uma vez que seus trabalhos tradicionais foram usurpados pelas fabricas em expansio, toda a economia se deslocou para longe da casa, deixando muitas mulheres em grande parte despo- jadas de papéis econdmicos significativos. (DAVIS, 2016, p. 240-241) Os efeitos desse novo formato econdmico contribufram para o surgimento de um importante subproduto ideolégico: as “donas de casa”, uma nova classe que define as mulheres como guardias de uma desvalorizada vida doméstica. Para Wittig (2019), “Nés fomes forcadas em nossos corpos € em nossas mentes a corresponder, sob todos os aspectos, a ideia de natureza que foi determinada para nés” (pag. 83). A autora explica que ninguém consegue ir além da imaginagao. Mas © que nés acreditamos ser uma percepsio fisica e direta é ape- nas uma construgdo sofisticada e mitica, uma “formac&o imaginaria”, que reinterpreta atributos fisicos (em si mesmos tao neutros quan- to quaisquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relacionamentos nas quais eles s4o percebidos (eles sao vistos como negros, portanto so negros; elas so vistas como mulheres, portanto s4o mulheres. Mas antes de serem vistos assim, eles primei- ro tiveram de ser feitos assim. (WITTIG, 2019, pag. 85) Uma verdade aceita na s ciedade sobre trabalhadores escravizados é de que eles protagonizam o nimero de vitimas porque so homens e os traba- Thos para 0 quais sao recrutados exigem forea fisica. Acontece que as discus- ses elencadas até aqui demonstram que muitas mulheres sao escravizadas na atualidade em frentes de trabalhos durissimos; elas sao encontradas também em carvoarias, pecudria, plantagées, corte de cana exercendo o mesmo tipo de trabalho que os homens. E esta realidade nao vem de hoje. Laurentino Gomes (2021) afirma que o papel da mulher na sociedade colonial brasileira foi muito além da satisfacao sexual do homem, da procriagao e do cuidado com a casa. Desde o prim donas de engenhos, fazendas, minas de ouro, vendas, tabernas e va- ‘0 século da ocupacdo portuguesa, muitas delas foram SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 349 riados outros negécios. Realizaram servicos domésticos, mas também trabalharam nas lavouras de cana de agiicar € nos engenhos, em jor- nadas to extenuantes quanto a de seus companheiros homens. No Nordeste, chegaram a labutar na criacdo de gado, como vaqueiras e curraleiras. (GOMES, 2021, p. 352) No trabalho escravo contemporaneo, as mulheres so equivalentes aos seus companheiros; 0 que demonstra a existéncia de igualdade sexual do tra- balho porque elas sofrem como os homens. Apesar de pertencerem ao mesmo contexto, talvez esse sofrimento seja incomensuravel quando ha tentativa de comparar tais realidades: Escravizada, resgatada junto com 0 companheiro ea chance de ter acesso aos mesmos direitos ser negado pelo simples fato de ser mulher. Neste sentido, Wittig (2019) critica a tentativa de definir mulheres apenas pelo viés biolégico. A autora feminista descreve “as categorias “ho- mem” e “mulher” como categorias politicas e nao dados naturais” (p. 87). E fato que 0 preconceito existente na sociedade machista contribui para a invi- iadas, além de acompanharem os homens em tarefas duras, também exercem atividades sibilidade de trabalhadoras resgatadas porque muitas vezes as mulheres al domésticas. Nesse ponto, a questo de genero é colocada porque ela cozinha, lava, desempenha as mesmas fung6es realizadas por empregadas domésticas. Neste sentido, existe uma divisio sexual do trabalho também no contexto trabalho es- ctavo contemporaneo e muitas vezes, as mulheres escravizadas nao tem seus direi- tos garantidos pelo simples fato de ndo serem consideradas trabalhadoras, porque aquilo que elas faziam no momento do resgate nao foi considerado trabalho. Os esforcos para pensar o assunto a partir de uma teoria feminista tiveram ins- piragao a partir de leituras como da filésofa Sandra Harding (2019), que afirma: Quando comegamos a pesquisar as experiéncias femininas em lugar das masculinas, logo nos deparamos com fenémenos tais como a re- lacZo emocional com 0 trabalho ou os aspectos “relacionais” positivos da estrutura da personalidade -, cuja visibilidade fica obscurecida nas categorias e conceitos tedricos tradicionais”. (HARDING, 2019, p.08) O mesmo problema ocorre com profissionais do sexo que foram escraviza- das. Até 2018 nao houve um tinico registro, ainda que 0 Cadastro Brasileiro de Ocupacées (CBO) considere como categoria profissional. As mulheres resgata- das desse tipo de exploracao s&o classificadas como dancarinas ou garconetes © registro dessa realidade acontece pela primeira vez na Operagao Cinderela, sendo que a operacao resultou na prisao de seis pessoas, ¢ até a publicacao da matéria jornalistica consultada para a realizacdo desta pesquisa, quatro esta- vam foragidas por suspeita de aliciar, explorar ¢ agredir transexuais. 350 ESCRAVIDAO CONTEMPORANEA NO CAMPO E NA CIDADE Do total dos 35.943 trabalhadores resgatados no Brasil entre 2003-2018, foi registrado também o resgate de 1.889 mulheres. De acordo com dados do fasciculo, 0 Raio-X das trabalhadoras escravizadas apresenta o perfil muito parecido com dos homens: baixa escolaridade, idade economicamente ativa, maioria negras (somando pardas e pretas). Observamos que as mulheres no tém um perfil muito diferente dos ho- mens. Os resultados da pesquisa apontam que 53% das mulheres resgatadas so negras, niimeros que confirmam a situacao da mulher negra é radicalmen- te diferente da mulher branca. Com relacao a isso, a fildsofa do feminismo ne- gro Djamila Ribeiro (2018) expde que no inicio das lutas feministas enquanto aquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para ser consideradas pessoas. Existe ainda, por parte de muitas feministas brancas, uma resisténcia muito grande em perceber que, apesar do género nos unir, ha ou- tras especificidades que nos separam e afastam. Enquanto feministas brancas tratarem a questao racial como birra e disputa, em vez de re- conhecer seus privilégios, o movimento nao vai avancar, 6 reproduzir as velhas e conhecidas logicas de opressao. (RIBEIRO, 2018, p. 53). Outro aspecto que chama bastante atengZo com relagao a esses ntimeros € 0 modo como Sao Paulo apresenta algumas peculiaridades, sendo que a propor¢ao de homens € de 82% e mulheres 18%. Essa diferenca acontece, principalmente, porque grande parte dos resgates acontecem em oficinas de costura clandesti- nas. Nelas, esto empregadas muitas mulheres, principalmente imigrantes. GENERO COMO CATEGORIA DE ANALISE Na sociedade machista com herangas de uma cultura extremamente escra- vocrata, lugar da mulher est relacionado com a responsabilidade biolégica de cuidar do outro, e © homem, por ser mais “forte”, pode cagar, ou seja, sua fun (0 est direcionada ao comprometimento com a economia familiar. Como embasamento da discussao, buscamos apoio nas consideragdes que a histo- riadora norte-americana Joan Scott (2019) direciona as mulheres a partir da perspectiva de género. Scott destaca que O termo género também é utilizado para designar as relacGes sociais entre 05 sexos, Seu uso rejeita explicitamente explicacbes bioldgicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de subordi- nacfo feminina, nos fatos de que as mulheres tm a capacidade para dar & luz ede que os homens tém uma forga muscular superior. (SCOTT, 2019, p. 75). SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 351 Com relacao a isso, Suzuki (2020) ressalta no fasciculo que existe 0 pro- blema para reconhecer o trabalho doméstico, de cuidados como trabalhos que exigem remuneracio ¢ direitos previstos. Consideracées acerca do sexismo, maternidade, violéncia doméstica e informalidade no mundo do trabalho devem fazer parte da politica piiblica para a erradicacao do trabalho escravo para evitarmos a rei- teragao das desigualdades relacionadas 4 questo de género também nesse contexto. (SUZUKI, 2020, p. 2) Para entendermos a desigualdade de género, ¢ importante, primeiramente, entender género. Scott (2019) propde pensarmos género como uma categoria analitica, que ultrapassa a constru¢do de sentidos sobre homens e mulheres penas como categorias fixas. F um termo que surge, contribui e se transfor- ma constantemente dentro do universo das praticas feministas. Tal concep¢a0 enraizada no pensamento de que o homem é o responsdvel pelo sustento da familia influencia também nas questées do trabalho escravo contemporaneo, sibilidade da mulher, sendo o principal responsdvel pela dimensfo de in A histéria do pensamento feminista é uma historia da recusa da cons- trucdo hierarquica da relago entre masculino e feminino, em seus contextos especificos, ¢ uma tentativa para reverter ou deslocar suas operacées. Os/as historiadores/as feministas agora estao bem-posi- cionados/as para teorizar suas praticas para desenvolver © género como uma categoria analitica”. (SCOTT, 2019, p. 84) Desde 1995, ano de reconhecimento do trabalho escravo contempordneo no Brasil, os homens so os principais beneficidrios das politicas piiblicas de erradi- cago desse tipo de crime. O fato de serem o perfil de vitimas que protagonizam a vivéncia desse tipo de violacao contribui para que o olhar do Estado e dos mo- vimentos sociais esteja voltado aos trabalhadores em situasao de vulnerabilidade. Outro destaque é sobre a importancia de pensar também 0 assunto de forma contextualizada com a realidade das diferentes éreas em que o trabalho vo é identificado. A capital paulista € 0 foco dessa exemplificacao, devido a quantidade relevante de casos que se referem a mulheres imigrantes traba- Ihando em oficina de costuras. A diferenciacao existente entre esses ntimeros aponta como a politica pit- blica de combate ao trabalho escravo vem se estruturando. A dificuldade de obter recursos para coibir tal pratica obriga a pensar na maioria dos afetados, entio as pesquisas académicas, os cursos e beneficios sao voltados para o pu- blico masculino. Sao realidades que ajudam a pensar, sobretudo, no acesso das 352 ESCRAVIDAO CONTEMPORANEA NO CAMPO E NA CIDADE mulheres as politicas piiblicas. Ser que esses 5% correspondem a realidade da exploracao feminina do trabalho escravo no Brasil? CONSIDERACOES FINAIS A proposta deste artigo é analisar, & luz do pensamento feminista, como a divisdo sexual do trabalho contribui para a subnotificagéo de mulheres res- gatadas e os impactos da invisibilidade nas estatisticas bem como na formu- lacdo de politicas ptiblicas de enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil contemporneo. A discussao atual que envolve mulheres resgatadas da escraviddo contem- porineo coloca em evidencia a importancia do pensamento feminista; isto &, de realizar estudos acerca do lugar das mulheres neste contexto de forma critica Apontamos aqui uma necessidade de reexaminar os trabalhos cientificos existentes para promover o alargamento das questGes tradicionais a fim de ampliarmos os olhares para o combate ao trabalho escravo contemporaneo com mais equidade de género. acesso aos dados nacionais comprova 0 despreparo até mesmo dos ér- gos governamentais que atuam na fiscalizagio. Ha casos em que as proprias autoridades responsaveis nao reconhecem o vinculo trabalhista em relacao as mulheres porque a atividade econémica desempenhada no ato do resgate nao € considerada trabalho (nem reconhecida, muitas vezes, pelos proprios gesto- res) ¢a consequéncia disso é que seus direitos trabalhistas ndo so garantidos. Também vale a pena pensar na formagio de agentes do movimento so- cial que compéem a rede de combate ao trabalho escravo contemporéneo no Brasil a partir desta leitura de género para que haja uma cobranga mais efetiva de politicas puiblicas voltadas as trabalhadoras que, muitas vezes, participam dos processos de superexploracio e, por vezes, naturalizam © préprio labor, historicamente naturalizado e sujeitado a condigdes que nao chegam a serem iderados trabalho. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma histéria nica, Traducdo: Romeu. - I. Ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2019. Julia CBO, Ministério do Trabalho e Emprego, 2020. Disponivel em https://www.ocu- pacoes.com.br/cbo-mte/519805-profissional-do-sexo. Acesso em 3 de agosto de 2022. SECAO V ~ DIREITOS HUMANOS, TRABALHO ESCRAVO E 353 DAVIS, Angela. Mulheres, raga e classe. Traducéo: Heci Regina Candiani. - 1. ed. - Sao Paulo: Boitempo, 2016. ESTERCI, Neide. 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