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PARADIGMAS CONTEMPORANEOS DE EDUCACAO: ESCOLA TRADICIONAL E ESCOLA CONSTRUTIVISTA DENISE MARIA MACIEL LEAO. Psicéloga, mestre e aluna especial do Doutorado no Programa de Pés-Graduagdo em Educacdo Brasileira — PACED — UFC RESUMO (Ottexto proaura demonstrar as prindais caracterétcas dos paradigmas de educagio da atuakdlade ~ a Escola Tradicional e a Escola Construtivista — 2 partir da andise dos aspectos filosdficos, epistemoldgicos, tedricos e metodolégicos de cada tipo de escola. Também faz uma critica de ambos os paradigmas levando em considerago 0s aspectos mais marcantes do ensino tradicional e do ensino construtivsta. ESCOLA TRADICIONAL ~ CONSTRUTIVSMO- PARADIGMAS. ABSTRACT EDUCATION PATERNS IN THE PRESENT TIMES: TRADITIONAL SCHOOLAND CONSTRUCTIVIST SCHOOL. The text intends to show the pringpal characteristics of the education pattems in the present times — Tradicional School and Constructivist Schoo! — from the analisys of philosophical, episternological, theoretical and methodological aspects of each type of school. Italso comments upon both the patterns, taking into account the most remarkable aspects of both the traditional and constructivist education. Este artigo ¢ uma verso modifcada de um capituo da dissertacio de mestrado apresentada em junho de 1996 190 Programa de Pés-Graduacio em EducacSo Brasileira da Faculdade de Educago da Universidade Federal do Cearé - FACED/UFC, intitulada A aquisiczo da lingua escrita na crianga: escola tradicional X escola construtivsta, ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, p. 187-206, julho/1999 187 Menos de cinco anos nos separam do século XX! e quase nada mais impede ao homem 0 pleno acesso a informagao. A era da informatica chegou e explodiu neste final de século XX. © futuro nunca foi tdo imprevisivel quanto agora. E a educaco formal para onde caminha? Tarefa nao menos dificil é descrever e situar nossos atuais modelos de educacéo. A “invasao" do construtivismo em nossa sociedade é uma realidade da qual nao podemos fugir. ‘escola tradicional — que sofreu intimeras transformagées ao longo de sua existéncia e que, paradoxalmente, continua resistindo ao tempo —, dia-a-dia, vem sendo questionada sobre sua adequagao aos padrées de ensino exigidos pela atualidade, mas ao mesmo tempo é retentora da grande maioria das escolas do nosso pais. Tudo 0 que rodeia a educacio institucionalizada é fruto de nossa prépria historia de sociedade em suas mais variadas ramificagdes (politica, econdmica, etc.). As concepcdes sobre a educagdo também fazem parte dos caminhos tomados pela humanidade em sua incansavel procura de cultura e conhecimento. Descreveremos a seguir os aspectos princi- pais das duas teorias que iremos abordar: a educaco tradicional e a educacao construtivista. Apresentaremos os suportes dessas escolas a partir de seus aspectos filoséficos, epistemoldgicos, tedricos e metodolégicos. A ESCOLA TRADICIONAL As teorias da educagao que nortearam a escola tradicional confundem-se com as préprias raizes da escola tal como a concebemos como instituigéo de ensino. Nao é falso afirmar que 0 paradigma de ensino tradicional foi um dos principais a influenciar a prética educacional formal, bem como o que serviu de referencial para os modelos que o sucederam através do tempo. Interessante é perceber que a escola tradicional continua em evidéncia até hoje. Paradoxo? E possivel, mas é necessdrio reconhecer que 0 cardter “tradicional atual” da escola passou por muitas modificagdes ao longo de sua histéria. E necessario situar no tempo a escola tradicional que interessa a esta discussdo. Ela surgiu a partir do advento dos sistemas nacionais de ensino, que datam do século passado, mas que sé atingiram maior forga e abrangéncia nas tiltimas décadas do século XX. Como inicio de uma politica estritamente educacional foi possivel a implantagéo de redes publicas de ensino na Europa e América do Norte (Pato, 1990). A organizacao desses sistemas de ensino inspirou-se na emergente sociedade burguesa, a qual apregoava a educagio como um direito de todos e dever do Estado. Assim, a educagao escolar teria a fungao de auxiliar a construgao e consolidagao de uma sociedade democratica: O direito de todos & educagéo decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia... Para superar a situago de opressio, propria do “Antigo Regime", e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato socal celebrado “livremente” entre os individuos, era necessério vencer a barreira da ignordncia... A escola é erigida, pois, no grande instrumento para converter stiditos em cidadaos. (Saviani, 1991. p. 18) 188 ‘Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/!999 A organizagao dessa escola do século passado seguia os passos determinados por essa teoria pedagégica que permanece atual em seus pontos principais: ‘Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar com um professor razoavel- mente bem preparado. Assim, as escolas eram organizadas em forma de classes, cada uma contando com um professor que expunha as ligdes que os alunos seguiam atentamente e aplicava os exercicios que os alunos deveriam realizar disciplinadamente. (Saviani, 1991. p.18) A historia da educagéo mostrou que tudo néo passou de um sonho embora no saibamos quem realmente o sonhou. A universalizago da educagdo é uma realidade na maioria dos paises ocidentais; porém, no dizer de Gadotti (1995), uns receberam mais educagao do que outros. A igualdade entre os homens permanece um sonho ainda muito distante do nosso planeta, Apesar de tudo a escola como instituigao destinada a “todos” surgiu nessa época e faz parte do nosso cotidiano e das obrigagées da familia e do Estado para com suas criangas e adolescentes. Nao € propésito desse estudo analisar as diversas tendéncias que se opuseram & Escola Tradicional em nosso pals, tais como a Escola Nova e o Tecnicismo. Essas e outras teorias educacionais tiveram seus momentos histéricos devidamente discutidos pelos pesqui- sadores e levamos em conta que podem ter trazido certas modificagées a estrutura original da escola tradicional. Mas o que interessa analisar sobre a escola tradicional que ela conti- nua existindo de modo semelhante a0 que foi no seu inicio. Isso nos intriga e nos desafia. Afinal, nao somos nds mesmos produtos dessa escola tio criticada? A aprendizagem escolar nessa escola tio tradicional dependeu dos bons professores ou de nossos interesses pessoais? Nao temos as respostas para essa Ultima questo, mas procuraremos mostrar agora os pilares da escola tradicional a fim de entendermos sua trajetéria. Aspectos filoséficos da escola tradicional O ensino tradicional fundamentou-se na filosofia da esséncia, de Rousseau, passando & pedagogia da esséncia (Saviani, 1991). Tal pedagogia acredita na igualdade essencial entre os homens: a de serem livres, e essa igualdade vai servir de base para estruturar a pedagogia da esséncia respaldando o surgimento dos sistemas nacionais de ensino, que, por sua vez, foram fundamentais para proporcionar a escolarizacio para todos: Esse ensino tradicional que ainda predorrina hoje nas escolas se consttuiu ap6s a revolugo industrial se implantou nos chamados sistemas nacionais de ensino, configurando amplas redes ofciais, ctiadas a partir de meados do século pasado, no momento em que, consolidado o poder burgués, aciona-se a escola redentora da humanidade, universal, gratuita e obrigatéria como um instrumento de consolidagio da ordem democritica. (Saviani, 1991. p.54) Em Misthria das idéas pedagégicas(|995), Moacir Gadotti nos remete & €poca de constitui- fo da escola como instituiglo de ensino, bem como inspiracfo filosdfica em que foi baseada: ‘Cadernos de Pesquisa, n® 107, julho/1999 189 Nunca se havia discutido tanto a formacgo do cidaddo como durante os seis anos de vida da Revolugdo Francesa. A escola publica ¢ filha dessa revolucéo burguesa. Os grandes teéricos iluministas pregavam uma educacéo civica e patriética inspirada nos princfpios da democracia, uma educagéo laica, gratuitamente oferecida pelo Estado para todos. Tem inicio com ela a idéia da unificagio do ensino piblico em todos os graus. Mas ainda era elitsta: 6 os mais capazes podiam prosseguir até a universidade, (Gadotti, 1995. p.88) Sobre o surgimento dos sistemas nacionais de ensino, Gadotti (1995) segue um pensamento semelhante ao de Saviani (1991): iluminismo educacional representou 0 fundamento da pedagogia burguesa, que até hoje insiste, predominantemente na transmissio de contetidos e na formaggo social individualis- ta. A burguesia percebeu a necessidade de oferecer instrucio, minima, para a massa trabalhadora. Por isso, a educacio se dirigiu para a formacdo do cidadio disciplinado. O surgimento dos sistemas nacionais de educagdo, no século XIX, é resultado e a expresséo que a burguesia, como classe ascendente, emprestou a educacéo. (Gadotti, 1995. p.90) Auniversalizagao da escola, em grande parte do Ocidente, é uma conquista que nao. podemos deixar de reconhecer. Nao podemos dizer o mesmo, porém, dessa igualdade que ela representaria entre os homens que foi embasamento para a escola tradicional. Nao sabemos por quanto tempo ainda haveré uma educagao para os pobres e outra para os ricos, mas jd temos certeza de que a escola, por si s6, nao € redentora da humanidade. Acredita- mos que vamos entrar no terceiro mil&nio com uma escola tradicional nada revolucionéria se comparada as suas origens. Aspectos epistemoldgicos da escola tradicional ‘Aabordagem tradicional do ensino parte do pressuposto de que a inteligéncia 6 uma faculdade que torna o homem capaz de armazenar informacées, das mais simples as mais complexas. Nessa perspectiva é preciso decompor a realidade a ser estudada com 0 objetivo de simplificar o patriménio de conhecimento a ser transmitido ao aluno que, por sua vez, deve armazenar tao somente os resultados do processo. Desse modo, na escola tradicional © conhecimento humano possui um caréter cumulativo, que deve ser adquirido pelo indivi- duo pela transmisséo dos conhecimentos a ser realizada na instituiggo escolar (Mizukami, 1986). © papel do individuo no processo de aprendizagem é basicamente de passividade, como se pode ver: .»atribui-se ao sujeito um papel irrelevante na elaboragdo e aquisi¢éo do conhecimento. Ao individuo que est4 “adquirindo" conhecimento compete memorizar definigées, enunciados de leis, sinteses e resumos que Ihe so oferecidos no processo de educagio formal a partir de um esquema atomistico, (Mizukami, 1986. p.! 1) 190 ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, jutho/1999. Ao abordarmos os aspectos epistemoldgicos da escola construtivista discutiremos as trés diferentes estratégias utilizadas pelas ciéncias humanas, na modernidade, para resolver 0 problema do conhecimento humano: o essencialismo, o fenomenismo e 0 historicismo. Acreditamos que a escola tradicional ora se utilizou do inatismo — que tem origem no essencialismo do século XVII ~ e ora do ambientalismo — originado do fenomenismo do século XVIII — para seu suporte epistemolégico, ndo importando, inclusive, 0 fato de serem contraditdrios. Grosso modo, ou 0 aluno aprendia os contetidos escolares porque era por- tador de uma inteligéncia inata, ou sua aprendizagem estava diretamente relacionada 4 quantidade ou qualidade da experiéncia escolar em determinado contetido. Conseqtiente- mente, como 0 historicismo veio superar essas duas primeiras estratégias, foi a partir dessa epistemologia historicista que se originou o construtivismo. Aspectos tedricos da escola tradicional De acordo com Mizukami (1986), a abordagem tradicional do processo de ensino- aprendizagem nao se fundamenta em teorias empiricamente validadas, mas sim numa prdti- ca educativa e na sua transmissdo através dos anos, Dessa forma, os pressupostos teéricos da escola tradicional partiram de concepgdes e praticas educacionais que prosseguiram no tem- po sob as mais diferentes formas. As criticas 4 escola tradicional marcaram 0 inicio do surgimento das novas abordagens de ensino que tiveram de partir da propria abordagem tradicional como referencial tedrico e pratico de ensino. Saviani (199 1) mostra, porém, o caréter cientfico do ensino tradicional em suas origens e que se estruturou através de um método pedagégico, que & 0 método expositivo, que todos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estdo passando ainda, cuja matriz tebrica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart. Esses passos, que 40 0 passo da preparacio, © da apresentagio, da comparacio e assimilagio, da generalizagao e da aplicaglo, correspondem ‘a0 método cientifico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, método que podemos ‘esquematizar em trés momentos fundamentals: a observagSo, a generalizagio a confirma- do. Tata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filos6- fico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciéncia moderna, (Saviani, 1991. p.55) O ensino tradicional pretende transmitir os conhecimentos, isto é, os contetidos a serem ensinados por esse paradigma seriam previamente compendiados, sistematizados incorporados ao acervo cultural da humanidade. Dessa forma, é 0 professor que domnina os contetidos logicamente organizados e estruturados para serem transmitidos aos alunos. A €nfase do ensino tradicional, portanto, est na transmissao dos conhecimentos (Saviani, 1991). Em trabalho que analisa as tendéncias pedagdgicas na pritica escolar, José Carlos Libaneo (1992. p.23-4) mostra detalhadamente as caracteristicas da escola tradicional que transcre- vemos no quadro a seguir: ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 191 CARACTERISTICAS DA ESCOLA TRADICIONAL, Papel da Escola ‘* A atuagao da escola |» So 0s conhecimentos | ‘consiste na preparagio | e valores sociais intelectual e moral dos} acumulados pelas alunos para assumir sua _| geragées adultas € aque exige atitude demonstragio; receptiva dos alunos e posicdo na sociedade; repassados ao aluno como |e tanto a exposicéo ‘impede qualquer verdades; quanto a andlise da ‘comunicagio entre eles no | « ‘as matérias de estudo | matéria sfo feitas pelo | decorrer da aula; visam preparar o aluno | professor; © 0 professor transmite 0 para a vida, sfo ‘© ospassos a serem —_| contetido na forma de determinadas pela observados s0 0s verdade a ser absorvida; sociedade e ordenadas na | seguintes: a disciplina imposta legislacao; % preparagio |omeiomaiseficaz para |~ ‘© 08 conteidos so * apresentagdo | assegurar a ateng&o ¢0 esforcem. separados da experiéncia * associaggo | sil€ncio. do aluno e das reatidades sociais; © éctiticada por ser intelectualista ou ainda cenciclopédica. © aavaliagio se dé por vverificagdes de curto escritas, trabalhos de casa. ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 192 Aspectos metodolégicos da escola tradicional Como dito anteriormente, 0 ensino tradicional estruturou-se através do método pedagégico expositivo, cuja matriz tedrica pode ser identificada nos cinco passos formais de Herbart. A seguir veremos uma sintese dos métodos de Herbart (1776-1841) e de Bacon (1561-1626) que transcrevemos de Saviani (1991. p.55): Método de Herbart ‘Método de Bacon, 1 | Preparagao Tecordagio da ligio Passo anterior, ou seja, do que é conhecido. 2 | Apresentagdo | oaluno & colocado ° | Observacto dentificar ¢ destacar 0 Passo diante de um novo Passo | (os trés primeiros | diferente entre os ‘conhecimento que deve passos de Herbart | elementos ja assimilar. correspondem 20 1° | conhecidos. Passo de Bacon) 3° | Assimilagao- | a assimilaco ocorre Passo | comparacdo | por comparago onde o novo é assimilado a partir do velho, 4 — |Generalizagéo Jo alunodeve ser capaz | |2° | Generalizacio ‘Subsungéo sob uma lei Passo de identificar todos os Passo | (corresponde ao4° | extrafda dos elementos fenémenos Passo de Herbart) | observados, correspondentes 30 pertencentes a conhecimento determinada classe de irido. fenémenos, de todos os elementos (observados ‘ou no) que integram a mesma classe de fendmenos. 50. | Aplicago verificar, através de 30. | Confirmagso Seo aluno aplicou Passo ‘exemplos novos, se 0 Passo | (corresponde a0 So. | corretamente 08 aluno efetivamente Passo de Herbart) | conhecimentos assimilou 0 que Ihe foi adquiridos a ensinado. assimilagdo est confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino ‘correspondeu urna aptendizagem. Saviani (1991) elabora uma sintese interessante sobre essa estrutura do método tra- dicional, que vale ser lembrada: Eis, pois, a estrutura do método; na ligdo seguinte comeca-se corrigindo os exercicios, porque essa corregdo 0 passo da preparagio. Se os alunos izerem corretamente os exercicos, eles assimilaram ‘oconhecimento anterior, entdo eu posso passar para o novo. Se eles ndo fizeram corretamente, ento eu preciso dar novos exercicios, é preciso que a aprendizagem se prolongue um pouco mais, {que o ensino atente para asrazGes dessa demora, de tal modo que, finalmente, aquele conhecimento anterior seja de fato assimilado, 0 que sera condigo para se passar para um novo conhecimento. (Saviari, 191. p.56) Mizukami (1986) também enfatiza o método expositivo como sendo o que caracte- riza, essencialmente, a abordagem do ensino tradicional. A metodologia expositiva privilegia ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 193 © papel do professor como o transmissor dos conhecimentos e o ponto fundamental desse processo sera o produto da aprendizagem (a ser alcancado pelo aluno). Acredita-se que se © aluno foi capaz de reproduzir os contetidos ensinados, ainda que de forma automatica e invaridvel, houve aprendizagem. A autora demonstra também que outros fatores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, tais como os elementos da vida emocional ou afetiva do sujeito, sd negligenciados e, por que nao dizer, negados nesta abordagem, por supor-se que eles poderiam comprometer negativamente © proceso. A autora descreve também outra vertente do ensino tradicional, o chamado ensino intuitivo, o qual se pretende provocar certa atividade no aluno: Esta forma de ensino pode ser caracterizada pelo método “maiéutico”, cujo aspecto bisico € 0 professor drigi-a classe a um resultado desejado, através de uma série de perguntas que represen- tam, por sua vez, passos para se chegar 20 objetivo proposto. (Mizukami, 1986. p.17) Essa metodologia seria ainda muito comum atualmente em nossas salas de aula. Segundo a autora os que defendem tal método acreditam que ele provoca a pesquisa pessoal no aluno, Quando os alunos conseguem chegar ao objetivo proposto pelo professor, infere- se que eles compreenderam o contetido total proposto. De acordo com Saviani (1991), 0 método tradicional continua sendo o mais utilizado pelos sistemas de ensino, principalmente os destinados aos filhos das classes populares. Ao nosso ver, porém, uma anélise da escola privada destinada as classes privilegiadas da socieda- de chegaria 4 conclusdo de que o ensino tradicional continua a ser o mais utilizado. As escolas mais conceituadas do mundo, entre elas, as inglesas e as suicas, so as mais tradicionais possiveis, até por serem mesmo muito antigas. Em se falando da realidade brasileira e, especificamente cearense, podemos nos certificar de que esse é 0 modelo de ensino mais utilizado e até mais desejado pela sociedade. Podemos questionar, no entanto, a qualidade do ensino da escola tradicional na atua- lidade. Constatamos, informalmente, que ela est4 empobrecida se comparada as institui¢des ‘existentes nas décadas passadas. Os conhecimentos nao estdo sendo transmitidos com o mesmo rigor daquela antiga escola tradicional que instruiu nossos pais e avés. Cremos ter mostrado as caracteristicas principais do método tradicional de ensino. O importante é reconhecermos que © suporte tedrico da escola tradicional jé atravessou déca- das e mais décadas no tempo, o que possibilitou varias modificagées em sua esséncia original. Podemos dizer que o método expositivo atual guarda sensivel semelhanga com os passos de Herbart, mas, ao mesmo tempo, traz as peculiaridades dos paradigmas de ensino que vie~ ram posteriormente. E verdadeiro falar até de uma certa contaminacao dos outros métodos que tomaram 0 método tradicional como base (para criticé-lo e/ou ultrapassé-lo). E talvez nao exista, sequer, um método puro. 194 Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 A ESCOLA CONSTRUTIVISTA Poderiamos comecar perguntando: em que se baseia uma pratica docente construtivista? Este questionamento se faz necessério para esclarecer um primeiro ponto antes de adentrarmos na teoria construtivista. Construtivismo nao é um método. Construtivismo nao € uma técnica. Veremos que esse novo paradigma de ensino na verdade nao é exata- mente uma metodologia e sim uma postura em relacao 4 aquisi¢éo do conhecimento: Construtivismo significa isto: a idéia de que nada, a rigor, esté pronto, acabado, e de que, especiicamente, 0 conhecimento néo & dado, em nenhuma instinda, como algo terminado. Ele se constitui pela interagdo do individuo com © meio fsico e socal, com © smbolismo humano, com © mundo das relacées se constitui por forga de sua agio e no por qualquer dotagso prévia, na bagagem hereditria ou no meio, de tal modo que podernos afrmar que antes da ago ro ha psiquismo nem consciénca e, muito menos, pensamento. (Becker, 1993. p.88) Para uma melhor compreensio, a exemplo do que fizemos com o estudo da escola tradicional, dividimos essa discussfio em t6picos que se complementam e server para es- clarecer a teoria construtivista. Aspectos filoséficos do construtivismo O construtivismo fundamenta-se no iluminismo, Por sua vez, a filosofia iluminista preceitua que o homem 6 um ser dotado de razio. Segundo Freitag (1993), a novidade introduzida é que a faculdade de fazer uso da razao nao é transmitida geneticamente, mas uma potencialidade que precisa se desenvolver no decurso da vida. Para a autora, de acordo com Piaget e Kolberg, o ser humano tem, sim, uma predisposigéo para pensar ¢ julgar com bases racionais, isto é, uma predisponibilidade para o racional, que, no entanto, nao é uma heranga genética. A construco do conhecimento humano pelo uso da razio tem 0 objetivo de alcangar os patamares mais elevados do pensamento légico, do julgamento e da argu- mentago, sempre no sentido de haver reciprocidade na transmissaéo e na compreensao das idéias ditas pelo outro: Opressuposto flosético do Construtivismo &, de fato, um pressupostoiluminista, Sem a razio, terfamos a des-razio, terfamos a loucura, terfamos a impossblidade de pensar o mundo, de ordenar, de construir uma visio, uma concepgio sobre o mundo, da natureza e o mundo social, ou seja, a sociedade. Portanto, exsteimplito no Construtvisrno um postulado que eu chamara de universalsmo comnitvo. Potencialmente, o homem é um ser dotado de razdo. Ousea, ele tem um potencial cognitivo de pensar o mundo, de reconstruir no pensamento, nos concetos, o mundo da natureza ede ordenar co mundo (ndusive o mundo social), com 0 auxfio de critérios racionais. (Freitag, 1993. p.28) ‘Aqui vale relembrar que os sistemas nacionais de ensino criados no século passado e que so © berco da escola tradicional desfrutaram da mesma inspiracio filoséfica que a escola ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 195 construtivista. Os passos da pratica pedagdgica seguidos pela escola tradicional e pela escola construtivista so, no entanto, muito diferentes de acordo com os aspectos pedagdgicos e metodoldgicos de cada escola discutidos neste estudo. Aspectos epistemolégicos do construtivismo Epistemologia 6 uma ci@ncia que tem como objeto o estudo do conhecimento ou a compreensdo de como chegamos a conhecer. O conhecimento humano é tema que vem sendo estudado ao longo de toda a histéria da humanidade. V4rias tentativas tém sido feitas de formulagao de uma teoria, capaz de chegar a uma concluséo ou, ao menos, a uma aproximagao sobre essa capacidade unicamente humana de reter, criar e elaborar conheci- mento. Ao analisar o problema da fundamentacao tedrica das ciéncias humanas, Domingues (1991) descreve as trés diferentes estratégias da Episteme moderna: 1. Essencialista — Século XVII voltada para o modus essendidas coisas, seu elemen- to préprio é 0 ser (esséncia) e as qualidades do ser (acidentes, atributos, modos etc.); toma a verdade como esséncia a des-velar; 2. Fenomenista ~ Século XVIII - voltada para o modus operandiidos fendmenos como notas da observacdo e da experiéncia, isto é, nao como esséncias a desvelar, mas fatos a descrever; seu elemento proprio € o fendmeno e as correlagdes dos fendmenos; 3. Historicista — Século XIX — voltada para o modus faciendidas coisas, seu elemento préprio € 0 devir e as correlagdes do devir. Domingues (1991) indica como a estratégia historicista superou as duas anteriores que vigoraram nos séculos XVII e XVIII: ‘Ao fim e ao cabo do conflto dessas duas estratégias contraditbrias, que ocupou demasiadamente os espiritos dos dois séculos, emerge uma terceira estratégia discursiva, nem essencialista nem fenomenista, mas histbrica, que vai alterar profundameente o programa de fundamentaco do conhe- cimento e dar-Ihe ura configuragio absolutamente nova: |) a realidade histérica estA composta numa superficie que comporta dois planos ou niveis: em cima, a Zona ruidosa dos acontecimentos, 4 que corresponde o mundo dos fendmenos da estratégia fenomenista; embaixo, a regido instavel do devir ou do ser-advento, algo parecida com o universo das esséncias da via essencialista; 2) para compreendermos © que se passa em cima é preciso saber o que se passa embaixo, e reconduzir os acontecimentos ao ser-advento ou ao devir. (Domingues, 1991. p.50) 196 Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 Para os empiristas, inspirados pela estratégia fenomenista, o conhecimento tem ori- gem e evolui a partir da experi€ncia acumulada pelo individuo. £ 0 chamado determinismo ambiental: 0 homem € produto do ambiente. Por sua vez, para os inatistas, influenciados pela estratégia essencialista, o conhecimento é pré-formado; j4 nascemos com as estruturas do conhecimento, que se atualizam 4 medida que nos desenvolvemos. Finalmente, o construtivismo, que se baseou na estratégia historicista, veio superar essas duas visdes ao afirmar que o conhecimento resulta da interagao do individuo com o ambiente: As estruturas do pensamento, do julgamento e da argumentacao dos sujeitos nao sao impostas as criangas, de fora, como acontece no behaviorismo.... também no s4o consideradas inatas como se fossem uma dadiva da natureza. A concepgo defendida por Piaget e pelos pés-piagetianos é que .essas estruturas so 0 resultado de uma construgSo realizada por parte da crianca em longas etapas de reflexdo, de remanejamento. Poderfamos dizer que essas estruturas resultam da aco da crianga sobre 0 mundo e da interagdo da crianga com seus pares e interlocutores. (Freitag, 1993. p.27) A mesma autora considera que os pressupostos epistemolégicos do construtivismo se fundamentam na idéia de que o pensamento nao tem fronteiras: ele se constréi, se destréi, Aspectos teéricos do construtivismo Virios estudiosos deste século podem ser classificados como teéricos do construtivismo. Entre eles, os principais so: Jean Piaget (considerado 0 precursor, ao mesmo tempo que sua obra extensa continua baseando as pesquisas mais atuais sobre aquisi¢do do conhecimento), Henri Wallon, L.S. Vigotsky, A. N. Leontiev, A. R. Luria e Emilia Ferreiro. Esses dois ultimos pesquisadores foram a fundo no estudo sobre a aquisi¢ao da escrita pela crianca, sendo suas obras consideradas referenciais tedricos. Dos autores citados Piaget 6, sem duvida, o mais importante tedrico do construtivismo. Sua obra cientifica é tao vasta que apds mais de quinze anos de sua morte a leitura de indmeros de seus livros ainda é privilégio para estudantes completamente apaixonados por este génio do conhecimento humano. Os dois pressupostos bésicos de sua obra sio o Interacionismoe 0 Construtivismo Sequencial, Para 0 bidlogo sulgo o desenvolvimento resulta de combinagées entre aquilo que o ‘organismo traz e as circunstancias oferecidas pelo meio. O eixo central de sua teoria sobre o desenvolvimento mental é justamente a interagdo entre o organismo e o meio ambiente em que esté inserido: ‘Cingitenta anos de experiéncias ensinaram-nos que ndo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observag6es, sem uma estruturacdo devida as atividades do individuo. ‘Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 197 Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: s6 © funciona- mento da inteligéncia € hereditério, e sé gera estruturas mediante uma organizagio de agdes sucessivas, exercidas sobre objetos. Daf resulta que uma epistemologia em confor- midade com os dados da psicogénese no poderia ser empirica nem pré-formista, mas nao pode deixar de ser um construtivismo, com a elaboragio continua de operagées e de novas estruturas, (Piaget apud Macedo, 1990. p.14) O interacionismo piagetiano pretende superar as concepgées inatistas e comporta- mentalistas sobre como o homem adquire conhecimentos e condutas. Como vimos na discusséo dos aspectos epistemoldgicos, essas duas posturas séo contrarias 4 concepgao construtivista de aquisicao do conhecimento e, ao mesmo tempo, so fundidas para dar lugar essa nova concep¢io chamada interacao. Para Piaget essa interacao se dé por dois proces- sos simultaneos: a organizagdo interna e a adaptagao ao meio. ‘Aadaptagao ao meio é definida por Piaget como a propria fungao do desenvolvimen- to da inteligéncia. Ocorre por meio de dois processos complementares — assimilagao € acomoda¢ao: «8 adaptagéo intelectual, como qualquer outra, & um estabelecimento de equilfbrio progres- sivo entre um mecanismo assimilador e uma acomodagio complementar... em todos os casos, sem excegéo, a adaptacao s6 se considera realizada quando atinge um sistema estével, isto 6, quando existe equilbrio entre a acomodacéo e a assimilagéo. (Piaget, 1975. p.18) E sempre bom lembrar que 0 significado desses dois termos utilizados por Piaget nao se refere ao senso comum. Cotidianamente, assimilar refere-se a aprender, apreender ou fixar idéias ou ensinamentos; acomodar significa conformar-se ou adequar-se a uma situacéo. Em “O Nascimento da Inteligéncia na Crianga”, Piaget esclarece o sentido que dé a esses dois, termos. Vejamos primeiro a assimilagio: Com efeito, a intelig&ncia ¢ assimilagdo na medida em que incorpora nos seus quadros todo e qualquer dado da experiéncia. Quer se trate do pensamento que, gragas 20 juizo faz ingressar © novo no conhecido e reduz assim o universo 3s suas nocdes préprias, quer se trate da inteligéncia sens6- rio-motora que estrutura igualmente as coisas percebidas, integrando-as nos seus esquemas, a adaptacio intelectual comporta, em qualquer dos casos, um elemento de assimilagio, isto 6, de estruturagio por incorporacéo da realidade exterior a formas devidas a atividade do sujeito, Piaget, 1975. p.17) Em relagdo a acomodagio, Piaget define: A vida mental também & acomodagio a0 meio ambiente. A assimilagéo nunca pode ser pura, visto que, ao incorporar novos elementos nos esquemas anteriores, a inteligéncia modifica incessantemente os titimos para ajusté-los aos novos dados. Mas, inversamente, as coisas nunca so conhecidas em si mesmas, porquanto esse trabalho de acomodacio s6 & possivel em fungio do processo inverso de assimilagéo. (Piaget, 1975. p.18) 198 ‘Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 Os esquemas de assimilacao vo se modificando, progressivamente, configurando os estdgios de desenvolvimento, os quais, na teoria piagetiana, representam os suportes para 0 construtivismo seqiiencial. A idéia central do construtivismo seqiencial & que os estdgios evoluem como uma espiral, na qual cada um engloba o anterior e o amplia: desenvolvimento mental da crianca surge, em sintese, como sucesso de trés grandes construgées, cada uma das quais prolonga a anterior, reconstruindo-a primeiro num plano novo para ultrapassé-la em seguida, cada vez mais amplamente. Isto jé € verdade em relacdo a primeira, pois a construco dos esquemas sens6rio-motores prolonga e ultra- passa a das estruturas organicas ao longo do curso da embriogenia. Depois a construgao das relagées semidticas, do pensamento e das conexées interindividuais interioriza os esquemas de ago, reconstruindo-os no novo plano da representagio e ultrapassa-os, até constituir © conjunto das operacées concretas e das estruturas de cooperacéo. Enfim, desde ‘© nivel de 11-12 anos, 0 pensamento formal nascente reestrutura as operages concretas, subordinando-as a estruturas novas, cujo desdobramento se prolongard, desde a adolescén- cia € toda vida ulterior (com muitas outras transformagoes ainda). (Piaget, 1975. p.13!) Piaget nao definiu idades rigidas para os est4gios por ele descritos. E certo que o construtivismo seqiencial baseia-se exatamente na constatago de que esses estagios apre- sentam-se em uma seqliéncia constante. A divisdo piagetiana da evolugao mental em grandes periodos ou estadios e em subperiodos ou subestadios obedece aos seguintes critérios: 1) Aordem de sucessio € constante, embora as idades médias que os caracterizam possam variar de um individuo para outro, conforme o grau de inteligéncia, ou de um meio.social a outro. O desenrolar dos estadios €, portanto, capaz de motivar aceleragSes ou atrasos, mas a ordem de sucesso permanece constante nos do- minios (operag6es etc.) em que se pode falar desses estddios; 2) Cada estddio 6 caracterizado por uma estrutura de conjunto em fungao da qual se explicam as principais reagGes particulares. Nao seria possfvel, portanto, que agente se contentasse com uma referéncia a elas ou se limitasse a apelar para a predomi- nncia de tal ou qual caréter (como € 0 caso dos estddios de Freud ou de Wallon); 3) Asestruturas de conjunto so integrativas e no se substituem umas as outras: cada uma. resulta da precedente, integrando-a na qualidade de estrutura subordinada, e prepara aseguinte, integrando-se a ela mais cedo ou mais tarde. (Paget, Inhelder, 1994. p.129) Piaget, Inhelder (1994) mencionam quatro fatores gerais estabelecidos para a evolu- fo mental: 1) O crescimento orginico e, especialmente, a maturacao do complexo formado pelos sistema nervoso e pelos sistemas endécrinos. Nao hé diivida, com efeito, de que certo ntimero de condutas depende, mais ou menos diretamente, dos Cademnos de Pesquisa, n° 107, julho/!999 199 primérdios do funcionamento de alguns aparelhos ou circuitos...; a maturagao desempenha um papel durante todo o crescimento mental; 2) Um segundo fator fundamental é 0 papel do exercicio e da experiéncia adquirida na ago efetuada sobre os objetos (por oposi¢go & experiéncia social). Esse fator é também essencial e necessério, até na formagdo das estruturas lgico-matemiéticas; 3) O terceiro fator fundamental, mas também insuficiente por si s6, € 0 das interagdes. e transmissées sociais. De um lado, a socializagdo & uma estruturago, para a qual © individuo contribui tanto quanto dela recebe: donde a solidariedade e o isomorfismo entre as “operagdes" e a “cooperagio” (numa ou duas palavras). Por ‘outro lado, mesmo no caso das transmissdes, nas quais © sujeito parece mais receptivo, como a transmissdo escolar, a ago social é ineficaz sem uma assimilagao ativa da crianga, 0 que supée instrumentos operatérios adequados; 4) processo de equilibracio, néo no sentido de simples equilibrio de forgas, como em mec4nica, ou de aumento de entropia como em termodinamica, mas no sentido, hoje preciso gragas a cibernética, de auto-regulacio, isto é, de seqiiéncia de compensagées ativas do sujeito em resposta as perturbacdes exteriores e de regulagem ao mesmo tempo retroativa e antecipadora, que constitui um sisterna permanente de tais compensacées. (p.131-2) Este Ultimo aspecto constitui um dos conceitos mais importantes de sua obra, o da Equilibragao Majorante, que, em ultima instancia, € 0 processo que permite que a crianga ultrapasse um estdgio inferior para chegar ao préximo imediatamente superior por sucessivas desequilibracdes e reequilibragées. Esta é, sem divida, uma parte bastante densa de sua teoria e tem importancia fundamental em sua utilizagSo. Sobre © papel da maturacao orgénica no desenvolvimento mental da crianga, Piaget (1.994) considera que o crescimento biolégico dos drgaos é fundamental, porém representa um dos fatores entre outros: 200 Mas que papel é esse? Cumpre notar, em primeiro lugar, que Ihe conhecemos ainda muito mal os pormenores € ndo sabemos, em particular, quase nada das condicées de maturagio que possibilitam a constituiggo das grandes estruturas operatérias. Em segundo lugar, nos pontos de que temos informagées, vemos que a maturacao consiste, essencialmente, em abrir possibilidades novas e constitui, portanto, condiggo necess4ria do aparecimento de certas condutas, mas sem fornecer as condig6es suficientes, pois continua a ser igualmente indispensdvel que as possibilidades assim abertas se realizem e, para isso, que a maturagio seja acrescentada de um exercicio funcional e de um minimo de experiéncia. Em terceiro lugar, quanto mais as aquisigdes se afastam das origens sensério-motoras tanto mais variével & a sua cronologia, ndo na ordem de sucessfio, porém nas datas de aparecimento: esse fato basta para mostrar que a maturacdo esté cada vez menos sé nessa tarefa e que as influéncias do meio fisico ou social crescem de importancia. (Piaget, 1994. p.130) Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 Piaget nao foi um educador como muitos ainda hoje pensam e sua obra destinada 4 educacio nao é extensa se comparada a outros temas. Mesmo assim, ele deixou contribui- es incalculdveis quando conseguimos interpretar sua obra com vistas a pratica escolar. Para ele a educagio deve possibilitar & crianga o desenvolvimento amplo e dinamico desde 0 periodo sensério-motor até o periodo operatério abstrato. A escola deve levar em conside- ragdo os esquemas de assimilacdo da crianca e partir deles. Deve favorecer a realizac4o de atividades desafiadoras que provoquem desequillbrio (“conflitos cognitivos”) e reequilibracoes sucessivas, para que promovam a descoberta e a construgao do conhecimento. € vital que a escola reconhega nessa construgdo do conhecimento infantil que as concepcées das criangas (ou hipdteses) combinam-se as informages provenientes do meio. Assim, 0 conhecimento nao € concebido apenas como espontaneamente descoberto pela crianga, nem como mecanicamente transmitido pelo meio exterior ou pelo adulto, mas como resultado dessa interagao na qual o individuo € sempre ativo. Contrariando todas as formas de modismos educacionais, Piaget efetivamente elabora uma teoria do conhecimento e nédo um. método de ensino. Em relagao a aplicacdo pedagégica das teorias construtivistas, entre as quais a teoria de Piaget tem papel de destaque, devemos reconhecer a importancia do papel do professor. E © professor 0 mediador do processo de aprendizagern da crianga, isto é, ele é quem vai propiciar a interacdo entre os alunos e entre ele e seus alunos: Criando situacdes problemiticas estara permitindo o surgimento de momentos de conflto para o alfabetizando e, conseqiientemente, 0 avanco cognitivo; estaré considerando 0 aprendiz como um ser ativo, aquele que ndo espera passivamente que alguém venha Ihe ensinar alguma coisa para comecar a aprender, uma vez que por si sé compara, ordena, classifica, reformula e elabora hipéteses, reorganizando sua ago em dirego & construgio do conhecimento. (Eiias, 1991. p.50) Macedo (1994) acredita que a formacao de professores numa proposta construtivista é possivel levando-se em consideracio quatro pontos, que ele considera fundamentais: Primeiro: é importante para o professor tomar consciéncia do que faz ou pensa a respeito de sua pratica pedagégica. Segundo, ter uma visdo critica das atividades e procedimentos na sala de aula e dos valores culturais de sua funcéo docente. Terceiro, adotar uma postura de pesquisador e ndo apenas de transmissor. Quarto, ter um melhor conhecimento dos contet- dos escolares e das caracteristicas de aprendizagem de seus alunos. (Macedo, 1994. p.59) ‘A nosso ver, © mais importante em relacdo ao papel do professor na utilizagdo do construtivismo é sua capacidade de aceitar que nao é mais o centro do ensino e da aprendizagem. O professor deve saber que a crianga e o adolescente aprendem em interacao com 0 outro, que pode ser o préprio professor ou seus colegas de classe. Novas figuras so introduzidas nesse processo; a supremacia do professor deve dar lugar 4 competéncia para criar situagdes problemnatizadoras que provoquem o raciocinio do aluno e resultem em aprendizagem satisfat6ria. ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 201 Aspectos metodolégicos do construtivismo A questo da metodologia a ser adotada numa pratica pedagégica construtivista é um dos aspectos que mais t8m gerado controvérsias na aplicagao da teoria a realidade da sala de aula. No caso da alfabetizaciio isso fica claro em virtude de que, na escola tradicional, h4 uma valorizagéo dos métodos e/ou técnicas de ensino da leitura e da escrita. O professor construtivista, por sua vez, tem consciéncia de que ndo pode mais utilizar essas velhas técnicas de alfabetizagao; no entanto, o ensino da leitura e da escrita e de outros aspectos préprios a alfabetizacio deverd também seguir uma metodologia coerente com os objetivos da proposta construtivista. Apritica de sala de aula deverd ter um norte, uma orientacao, € isso néo é deixar de ser construtivista. Ao contrério, as orientagGes metodolégicas baseadas nas teorias construtivistas devem explicar ndo apenas os detalhes das técnicas utilizadas, mas principalmente, justificar teoricamente como se chegou até essas técnicas, quais s4o os objetivos em relagao 4 apren- dizagem e suas provaveis conseqiiéncias em termos pedagégicos. A técnica por si sé nao tem mais sentido algum na alfabetizacéo. Quando, por exern- plo, a professora da escola tradicional aplica o método sildbico, ela se utiliza da técnica das familias sildbicas e no questiona por que as criangas devem aprender a ler e a escrever daquela maneira. Simplesmente aplica a técnica, sabe que ela funciona e, se funciona, nao ha ‘© que questionar. O método e a técnica esto acima do contedido. A leitura e a escrita nao so percebidas como um meio, mas como um fim em si mesmas. O importante é saber decifrar as silabas, as palavras, as frases € 0 texto. Os problemas com a interpretacao da leitura e com a produgio de textos so deixados para as séries seguintes. Na alfabetizacao o que interessa é que a crianga /eia, ou melhor, decifre. Mas nao é preciso elaborar um tratado sobre leitura para chegar & conclusdo de que ler nao & a mesma coisa que decifrar. E isso e muito mais... Segundo Pimentel (1992), esta é uma das criticas feitas & prética pedagdgica que se sustenta na teoria construtivista: a no utilizago de um método para a alfabetizaco. Quando isso se confunde com um espontanefsmo irresponsdvel por parte do professor, pode gerar muitas deformacdes e prejulzos para a pratica pedagdgica: CO construtvismo é incompativel sim com um método fechado, do tipo dos que sao tradicionalmente usados na aprendizagem da leitura e da escrita, porque este tipo de instrumento didatico veicula uma generaizagio de conhecimento que todos sabemnos ndo ser verdadeira: as crancas na alfabetizaco ‘do se encontram todas no mesmo ponto de partida e nem aprendem, ao mesmo tempo, a ler e escrever: (Pimentel, 1991. p.30) De acordo com esta autora, adotar um método exclusivo de ensino para a leitura e aescrita seria ignorar que as criangas ndo tém as mesmas experiéncias anteriores 4 prépria escola, os mesmos interesses e necessidades e a mesma capacidade e velocidade de 202 ‘Cademnos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 aprendizagem na alfabetizago. Isto nao significa que uma postura construtivista seja incompa- tivel com a aquisigéo dos contetidos curriculares. A maneira como estes contetidos séo trabalhados em sala de aula é que é diferente da utilizada na escola tradicional: Mas isto néo significa dizer que nao se tenha, numa prética construtivista, uma metodologia de trabalho, uma organizagéo curricular, uma vez que néo hé nenhuma incompatibilidade do construtivismo com os contetidos curriculares. Na realidade 0 que muda € a forma como estes contetidos séo trabalhados pedagogicamente. (Pimentel, 1991. p.30) ESCOLA TRADICIONAL E ESCOLA CONSTRUTIVISTA: CRITICAS Um aspecto importante da escola tradicional é que ela se preocupa em transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade. Possibilitar que todo esse acervo cultural seja objeto de aprendizagem é um dos méritos da escola tradicional. E ébvio que os contetidos escolares tém de ser valorizados e efetivamente ensinados ao aluno. O que se discute é a forma mais adequada de realizar este contato dos alunos com os contetidos curriculares. De acordo com Franco (1991), por muito tempo se pensou que saber “de cor” era ‘(© mesmo que conhecer algo. No entanto, sabemos que 0 fato de decorar nao significa que se tenha compreendido o que tentamos aprender. Ao nosso ver a verdadeira aprendizagem & a que consegue gerar conhecimento e desenvolvimento. Dessa forma a relagao que se estabelece entre professor e alunos quando o primeiro expde € os segundos anotam e deco- ram, néo propicia a aprendizagem, ao contrério, dificulta ou impossibilita que ela ocorra: Em relacéo a0 construtivismo, & na aplicagdo pedagigica de suas teorias a0 cotidiano da sala de aula que encontramos as mais diversas critcas e dificuldades. Talvez seja a partir desse obstéculo que muitas experiéncias tenham se equivocado quando se intitulavam construtivistas. E provavel que essas escolas ndo tenham conseguido adequar a teoria construtivista & pratica pedagogica. Macedo (1994) alerta para o reconhecimento de que as dificuldades da aplicagao pedagégica da obra de Piaget pode ser em razdo de que, apesar de Piaget e a escola terem interesse comum pelo desenvolvimento da crianga, seguem orientagdes diferentes para che- garem aos seus objetivos, que sdo tedricos para Piaget, e praticos para a escola: Em suas pesquisas, o interesse fundamental era de natureza epistemolbgica © no psicolégica ou pedagigica. Pretendia ele, com base em dados experimentais, recuperar a génese das nocbes 08 diferentes modos de sua estruturagao cognitiva, desde um nivel mais simples até um mais complexo. Assim, o interesse fundamental de Piaget foi o problema do conhecimento e sua construgio, resultante das interagbes da crianca com objetos ou pessoas. (Macedo, 1994. p.48) Ainda para Macedo © interesse da educacio é bem diferente dos interesses de Piaget descritos acima, Aeducagéo estd muito mais preocupada em promover o desenvoWimento da crianga: ‘Cadernos de Pesquisa, n° 107, julho/|999 203 O propésito da escola & retiré-la de seu estado atual e conduzi-la, to sistematicamente quanto possivel, para um estado diferente. Se a crianga é analfabeta, a escola cuida de tornd- la alfabetizada. Se a crianga néo sabe fazer contas, a escola cuida de ensinar-the regras de célculo. Em uma palavra, a escola, qualquer que seja seu método, esté interessada no aprendizado da crianga como um resultado de sua agdo sobre ela. (Macedo, 1994. p.48) © reconhecimento das diferencas apontadas por Macedo (1994) entre os objetivos de Piaget e os objetivos da escola leva a pensar que a aplicagao pedagdgica da obra de Piaget requer muito esforco e cuidados e nao se faz diretamente, simplesmente aplicando-se a teoria a pratica de sala de aula. De acordo com esse autor, existem algumas maneiras interessantes de aplicar a obra de Piaget na pritica pedagdgica: * o modo mais interessante refere-se ao esforco incessante de, na escola, se movi- mentar nas duas direcdes — teoria e pritica - diferenciando-as e integrando-as até onde for possivel; * & fundamental o estudo da obra de Piaget ou de parte dela, tal como ele a desenvolveu (0 estudo dos originais de Piaget); * énecessdria uma constante pesquisa voltada para as possibilidades de aplicacao da obra de Piaget, com uma andlise do modo concreto e particular como essa aplica- fo estd sendo feita, Anosso ver, no caso especifico da alfabetizagao infantil, o professor, a partir do conhe- cimento imprescindivel sobre a lingua portuguesa e do conhecimento dos pressupostos da teoria construtivista, deve elaborar sua forma de trabalhar com as criangas. Nao hé receitas prontas para se trabalhar em sala de aula. Cada escola deve procurar um caminho para possibilitar a aquisi¢ao dos contetidos curriculares A sua clientela. Os criticos de Piaget acreditam que sua teoria enfatiza os aspectos cognitivos em detrimento dos aspectos social, afetivo e lingiiistico. Chegou-se a criticar Piaget partindo da interpretagéo de que o conhecimento dos estdgios do desenvolvimento infantil pode ser tomado como Unico critério para a agéo do educador, minimizando-se os fatores sociais ¢ politicos da educagao. De acordo com essa critica, considerar o desenvolvimento da inteli- géncia como prioridade do trabalho pedagégico traria o risco de uma pedagogia elitista, centrada em propostas norteadas por uma teoria “cienttfica” e implementada por educadores supostamente néutros. Dando énfase ao tema da aprendizagem, hd tedricos de inspiraco psicanalitica que apontam para a dimensao afetiva do saber, ou seja, o desejo de aprender. Serd essa mais uma tentativa de desvendar os mistérios sobre a capacidade humana de aprender? O préprio Piaget preocupava-se com a relagdo entre a evoluco intelectual e cognitiva da crianga e 0 desenvolvimento da afetividade e da motivagao: 204 Cademos de Pesquisa, n° 107, julho/1999 Sustentar-se-& até, eventualmente, que os fatores dinmicos fornecem a chave de todo o desenvolvimento mental, e so, afinal de contas, as necessidades de crescer, airmar-se, amar e ser valorizado que constituem os motores da prépria intelgéncia, tanto quanto das condutas em sua totalidade e em sua crescente complexidade. (Piaget, Inhelder, 1994. p.133) Os criticos que afirmaram que 0 bidlogo sufgo nao questionou os aspectos afetivos envolvidos na aprendizagem, de certo, nunca leram as linhas a seguir: Virno-lo mais de uma vez, a afetividade constitul a energética das condutas, cujo aspecto cognitivo se refere apenas as estruturas. Nao existe, portanto, nenhuma conduta, por mais intelectual que seja, que ndo comporte, na qualidade de méveis, fatores afetivos; mas, reciprocamente, no poderia haver estados afetivos sem a intervencdo de percepcOes ou compreensio, que constituem a sua estrutura cognitiva. A conduta é, portanto, una, mesmo que as estruturas ndo Ihes expliquem a energética e mesmo que, reciprocamente, esta no tome aquelas em consideracdo: os dois aspectos afetivo e cognitivo séo, ao mesmo tempo, insepardveis e irredutiveis. (Piaget. Inhelder, 1994. p.133) Em nossa opinio, o que sempre deve ser enfatizado é que 0 construtivismo néo 6, em sentido amplo, uma teoria da educagao e nao é, em sentido estrito, uma metodologia de ensino. & uma concepgio tedrica acerca de como o homem chega ao conhecimento, podendo alcangar varios campos da realidade contemporanea. REFERENCIAS —BIBLIOGRAFICAS BECKER, F O que é construtivismo. /déias. Sao Paulo: FDE, n.20, p.87-93, 1993. DOMINGUES, |. 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