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Além do Alcance

ANDRÉ BIGLER · SEXTA-FEIRA, 10 DE JANEIRO DE 2020 ·

“Beyond Reach”, por Robert Denton III


Tradução: André Bigler
Publicação original: 09/01/2020

Ao menos o chá estava bom. Um ponto menor a favor das terras Kaiu, mas a esta altura
Asako Tsuki aceitaria qualquer conforto que pudesse encontrar. As semanas de viagem foram
um predicamento após o outro. As grandes fazendas de chá e os pantanosos campos de arroz
da Planície do Vento Quieto foram um oásis em meio às sombrias e hostis províncias do
Caranguejo. Sua missão, apesar de não trazer prestígio, poderia melhorar a posição de Tsuki
no clã. Mas, verdade seja dita, ela não queria estar ali. As correntes de seu coração eram
puxadas para o norte, para seu lugarzinho aconchegante na biblioteca do Distrito Meiyoko,
uma pequena mesa suja de cera derretida, uma janela que se abria para a Baía do Sol
Dourado, e um pergaminho contendo a biografia do nono século do herói popular Shiba
Katsue, cujos preciosos textos sumiam dia após dia, implorando para serem transcritos em
um papel que não estivesse se deteriorando.

Eu devia estar lá, não aqui, ela pensou, tentando não imaginar quantas transcrições daquele
tipo a receberiam quando finalmente retornasse. Poderia levar dias até atualizar tudo.

A mulher diante dela pigarreou, e trouxe Tsuki de volta ao local atual: uma sala austera na
torre Kaiu de um pequeno forte cujo nome ela já havia esquecido.

“Temo que não possa aprovar seu pedido,” Kaiu Hitsuko disse. Ela era uma mulher de
aparência rígida com olhos castanhos e costeletas suaves, e um sorriso que nunca tocava os
olhos. “Mesmo se soubéssemos o paradeiro atual do daimyô Kuni, viajar pelas províncias do
sul é algo atualmente restrito. Não posso aprovar seus documentos de viagem. Talvez seja
melhor que você volte para casa.”

Tsuki trocou olhares com o jovem Shiba a seu lado. O yôjimbô não parecia particularmente
surpreso, mas ele só havia previsto a situação algumas horas antes. Ela praticamente já podia
ouvi-lo falar sobre aquilo.

Tsuki pôs o chá sobre a mesa. “Eu prefiro ouvir isso de Kaiu Shihobu-sama.”

De trás da mulher Kaiu veio uma risada alta. Sua fonte era, talvez, o homem mais peludo que
Tsuki já havia visto, com um tapete de pêlos saindo pelo colarinho do kimono e uma lagarta
negra desdobrada sobre a testa. “Como se a daimyô Kaiu tivesse tempo para você! Talvez não
tenha notado, mas existe uma guerra…”

A boca do homem fechou com o baque repentino do leque de Hitsuko no chão. “Nossa irmã
está indisposta,” ela disse calmamente. “Foi apenas por respeito pelo relacionamento de
nossas famílias que interrompi meu próprio trabalho para encontrar você, Asako-san.”
Tsuki contava com isso. Após ter sido
repelida pelos Kuni, ela esperava que o
casamento pendente entre a daimyô Kaiu e
um aluno Asako pudesse ser usado em sua
vantagem. Suas suspeitas foram
confirmadas. O Caranguejo não queria que
ela “incomodasse” seus líderes.
Provavelmente sequer a queriam lá.

Desejo o qual compartilho, ela pensou.

Mas aquilo não alterava suas obrigações.

“As ordens de minha campeã deixam pouco espaço para interpretação, Hitsuko-san. devo
entregar minha mensagem para o Mestre da Terra. Já que ele está atualmente ligado à
honrada daimyô Kuni, não vejo outro meio a não ser pedir uma audiência.”

“A solução é simples,” Hitsuko lembrou. “Diga-me sua mensagem, e quando eles retornarem,
farei com que seja entregue a ele.”

Boa tentativa, pensou Tsuki. Mas não havia chance de que ela entregasse as palavras de sua
campeã à hatamoto de um clã sedento por guerra: palavras sobre a vaga do Mestre do Vazio
no Conselho dos Mestres Elementais estar vazia, sobre a saúde do Mestre do Ar ter dado uma
guinada para pior, e sobre a Fênix estar desesperadamente necessitada de líderes, devido ao
desequilíbrio elemental estar se espalhando. Havia muita jade abençoada nos templos da
Fênix para admitir vulnerabilidade. O Caranguejo não estava acima do desejo de pegar o que
quisesse quando achassem que podiam. Já haviam feito isso antes.

“Temo ser impossível,” ela disse.

Hitsuko não disse nada. Por um tempo, só houve o som de Yukiti, o cabeludo, mastigando.
Folhas de chá, provavelmente. Tsuki sabia que este era um hábito comum da família Kaiu.
Eles achavam que aquilo lhes dava rompantes de energia, apesar de a experiência de Tsuki na
semana anterior não ter surtido tais resultados. Era mais provável que as propriedades
energizantes das folhas secas exigiam líquido quente para funcionar, e ela imaginou que…

Eles estavam olhando para ela. Ela repreendeu a si mesma por sonhar acordada, então se
endireitou.

“Neste caso, devo pedir um favor,” ela disse. “Já que você deseja que eu diga a minha campeã
que o Caranguejo não pode me apresentar o Mestre da Terra, devo pedir que dite as
motivações e me permita escrever em pergaminho, em suas próprias palavras.” Ela pausou.
“Para evitar desentendimentos.”

Não era exatamente uma acusação. Ela não estava exatamente sugerindo que aquela negação
era a declaração de que Isawa Tadaka era um refém.

Os olhos de Hitsuko se estreitaram. “Quanta sinceridade.”


O homem cabeludo bateu com uma palma pesada no chão. A sala estremeceu. “Típico de um
nortista fazer exigências tão arrogantes! É o trabalho importante de Kuni-ue e de outros que
mantém horrores inimagináveis do outro lado da Muralha, e mesmo assim nortistas perdem
o tempo de seus protetores. Deviam se lembrar que a única razão pela qual apreciam suas
vidas opulentas e disputas menores é porque elas são pagas com sangue Caranguejo. Alguém
poderia acreditar que a Fênix se importa com o destino do Império se ela se incomodasse em
honrar os pedidos do Grande Urso!”

Tsuki se levantou. Os dois Kaiu se aproximaram, a boca barbada de Yukiti com um sorriso
amargo. O homem corpulento não era o idiota que aparentava; soltara uma isca, esperando
que ela respondesse da mesma forma, dando a ele motivos para resolver a disputa com uma
luta, que era o que ele obviamente desejava.

Ao invés disso, ela se curvou.

“Minhas desculpas,” Tsuki disse. “Falei apressadamente e sem a devida consideração. Os


deixarei agora, e não trarei mais problemas.” Ela se virou e seguiu para a porta, resistindo à
tentação de olhar para as expressões paralisada dos Kaiu, seu yôjimbô seguindo de perto.

Em seu caminho para os estábulos, Tsuki sentiu o desapontamento dele. Shiba Koetsu
provavelmente esperava por uma chance para ampliar a reputação da escola de espadachins
Penas sobre Galhos. Enquanto o homem da estrebaria estava buscando seus cavalos, Koetsu
finalmente falou. “O que irá dizer a Shiba-ue?”

“Não vamos voltar para casa,” ela disse. “Vamos para o sul.”

Ela sentiu alguma satisfação com a surpresa dele. Ele era mais jovem que ela por pelo menos
uma década, e mesmo assim ele sempre achou que sabia mais que ela. “Hitsuko disse que as
viagens estão restritas nas províncias do sul, o que sugere que Kuni Yori está a nosso sul. Ela
não podia assinar nossos documentos de viagem, o que significa que ele está em uma
província onde os Kaiu e os Himura não podem permitir as viagens. Baseado na lei de
viagens do Caranguejo, isso sugere terras dos Hida. Finalmente, Yukiti disse que Kuni Yori
está realizando algum trabalho importante, sugerindo que ele está fora com seus afazeres. Só
existem cinco templos nas terras Hida sob os cuidados dos Kuni. Isso estreita a localização
dele para um destes cinco templos.” Ela sorriu. “Então, agora, iremos encontrá-lo.” E se eu
estiver errada, não será mais perda de tempo que ficar aqui!

Koetsu coçou o pescoço. “Como sabe disso tudo?”

“Eu leio, Shiba-san.” Ela se permitiu um gracejo. Ele aprenderia algum dia. Bibliotecários
não eram um grupo a ser subestimado.

“Isso irá irritar os Hida,” ele disse, finalmente.

Definitivamente. Mas este é um problema seu, Shiba-san. “As objeções do Caranguejo não
me dizem respeito. Meu dever é encontrar Isawa Tadaka.” E quanto mais cedo eu fizer isso,
mais cedo iremos para casa!
Finalmente ele assentiu. “Talvez tais habilidades dedutivas encontrem lugar em seu
romance.”

Ela esperava isso. Os Festejados Casos do Magistrado Yuzo estava na oitava versão,
perpetuamente inacabados em papéis, prosas e versos espalhados sobre a mesa dela. Bastou
a sugestão para aumentar a saudade do lar. Ela só queria retornar a seus escritos, terminar os
projetos de transcrições e continuar sua escrita.

Ela já poderia ter terminado, é claro. Mas não estava pronto. Precisava ficar exato.

O cavalariço a trouxe de volta ao presente com um suspiro. Outra razão para encerrar ali.
Enquanto Koetsu pensava em como evitariam as patrulhas das estradas, Tsuki observou o
céu que escurecia, na direção que ela imaginava estar seu lar.

==========
Os três primeiros templos não continham nada. Tsuki prestou respeitos em cada um deles,
encontrou os Kuni residentes e, quando eles confirmaram sua ignorância sobre a localização
de seu daimyô, ela continuou o caminho, ficando nas estradas de comércio, evitando
patrulhas. Os serviçais dos templos, surpreendentemente, fizeram poucas perguntas,
aparentemente aceitando que eles eram apenas viajantes, assumindo que eles tinham
permissão para estar ali. Mas então, Tsuki supôs, que razão teriam para assumir que ela não
havia sido questionada antes nas estações da estrada? Assim como a maioria dos sacerdotes e
guardiões de templos, eles eram simples e sem maldade, dedicando-se completamente à
adoração às Fortunas.

Sendo assim, ela achou estranho descobrir que o quarto templo estava completamente
abandonado.

“Sem alojamentos,” Koetsu relatou. “Se houvesse algum guardião de templo, sacerdotes ou
um shugenja residente, não tenho certeza de onde ficariam. Eu diria que este lugar está
abandonado.” Mesmo assim, a mão dele jamais saiu de perto do cabo da katana.

“Eles podem estar no honden,” Tsuki supôs. Mas até onde sabia, apenas os Kaito faziam isso;
poucos não-shugenja sabiam como residir no santuário de um templo sem ofender o espírito
do lugar.

Ela não gostava daquilo. A fonte de água de purificação estava em cuidada, o chão estava
limpo, as cordas shimenawa trocadas recentemente. Mesmo assim, não havia ninguém ali.
Havia o silêncio de um túmulo, nenhuma canção sagrada ou sino para desfazer a mortalha. E
também era o quarto templo que visitavam. Isso trazia má sorte.

Mas ela não podia deixar um templo aparentemente abandonado para trás. Ela precisava
investigar. Era obrigação da Fênix. Ela levava suas obrigações a sério.

“Vou entrar,” ela disse. “Fique aqui.”

Ele começou a protestar, mas Koetsu sabia tão bem quanto ela que bushi eram proibidos de
atravessar o limiar do santuário interior. Fosse este um templo para Bishamon ou Hachiman,
talvez pudesse ser aberta uma exceção. Mas ela não podia dizer apenas olhando quem era o
kami do templo, ou qual Fortuna abençoava estas terras. Talvez um espírito local?

Normalmente guardiões de templos estariam varrendo e fazendo oferendas, mas a estrutura


principal do templo estava sem vida. De pés descalços, Tsuki seguiu até o honden, onde
ficava o shintai, onde residia o espírito. Passou por cordas shimenawa abençoadas e afastou
cortinas pesadas. Uma porta de ferro trancada a impediu brevemente, mas ela enganou a
fechadura com um calço improvisado de papel, um truque que sua irmã delinquente uma vez
a ensinara. Com tal obstáculo deixado para trás, ela esperou encontrar um sacerdote
assustado ou um shugenja enraivecido, já com as desculpas preparadas.

Não havia santuário interior. O coração de Tsuki parou diante do início de uma escadaria em
espiral. Levava para baixo. Ela desceu cuidadosamente na escuridão. Apoiando-se nas
paredes, ela considerou por um instante as oferendas na bolsa, mas estava hesitante em
evocar os kami para ter luz tão ao sul. Ela havia lido que evocar os kami perto das Terras
Sombrias poderia atrair espíritos bem menos benevolentes, que ela preferia não chamar. Ela
não arriscaria isso.

As escadas terminaram repentinamente. Estava completamente escuro. Seu passo seguinte


chutou uma lamparina de metal com um barulho estremecedor. Quando nenhuma voz
furiosa se levantou, ela procurou às cegas por ela, acendendo-a com a pederneira.

Ela não tinha certeza do que esperava encontrar. Mas não era aquilo. estantes de tabelas e
papéis presos nas paredes. Troféus estranhos - caveiras, chifres, escamas, e uma língua
espinhosa seca - pendiam como pesos de papel ou à mostra. A luz da lamparina cintilou em
dúzias de garrafas de vidro cristalinas, algumas tão antigas que estavam ficando púrpura.
Dentro delas líquidos e partes enrugadas que Tsuki não conseguiu identificar.

De maneira sombria, ocorreu a ela que o templo era uma mentira, uma fachada para um
laboratório pessoa. Mas para que objetivo?

Selos com o emblema pessoal de Kuni Yori confirmavam que o laboratório era dele. Um
berço com roupas cuidadosamente dobradas sobre ele estava próximo de um suporte que
continha maquiagem Kabuki. Descobrir tal sala parecia uma violação, como se ela estivesse
bisbilhotando a vida dele.

Mais detalhes lentamente foram sendo percebidos, e com eles uma sensação que afundava
mais e mais. Algumas das garrafas continham um líquido, marrom ou vermelho, quase preto.
Um cheio de cobre pendia no ar. Havia um esqueleto humano empilhado em um canto.
Hesitante, Tsuki se aproximou e observou os ossos espalhados. Já havia muito tempo que ela
estudara as ilustrações de Notas Sobre o Corpo Humano de Asako Michi, mas pareceu a ela
que os ossos dos dedos, assim como alguns outros, faltavam.

Então a luz brilhou sobre o implemento na mesa central: um cabo feito de osso encaixado em
uma lâmina de aço, curvada de forma rude. Criada para fazer cortes superficiais no
antebraço. Uma ferramenta para tirar sangue.

Para mahô-tsukai.
Tsuki observou a lâmina por várias respirações. certamente havia um bom motivo para
aquilo estar ali. Yori devia tê-la retirado de um mahô-tsukai criminoso. Ele era um Caçador
de Bruxas, afinal de contas. Sim. Isso explicava tudo…

Mais além havia uma quantidade de pequenos pergaminhos, amarrados com couro polido. O
estômago dela se revirou ao ver as capas. Pele humana.

Ela não os abriu. Ela não precisava. Podia


imaginar o que continham.

Uma busca breve encontrou o diário de


Yori. Ela só pôde olhar de relance as notas
rabiscadas antes de deixá-lo cair de
desgosto. Era uma confissão. Yori estava
evocando kansen, kami corrompidos pelas
Terras Sombrias. Aquilo era mahô. Magia
de sangue. Proibida.

E os pergaminhos estavam escritos pelas


mãos dele.

A sala girou em torno de seu coração acelerado. O daimyô Kuni era um mahô-tsukai. E seu
covil, seu laboratório, estava sob um templo dedicado aos kansen, à corrupção. Quantos
outros da família eram cúmplices daquilo? Quantos mais sabiam?

Logo, ela percebeu que o dever era necessário. Respirou controladamente e sussurrou uma
oração silenciosa.

Bishamon, me dê forças.

Cortando uma das mangas, ela enrolou os pergaminhos sem tocá-los. Foram postos em sua
bolsa. A adaga do feiticeiro, também coberta, ficou sob suas roupas de baixo. O diário, a
evidência mais amaldiçoada, ela escondeu sob o obi. Isso seria mais que suficiente para
apresentar ao Conselho dos Mestres Elementais. Ela precisava avisá-los da corrupção dos
Kuni.

Mas e Tadaka? Ela afastou o pensamento. Se Kuni Yori era um mahô-tsukai, então o Mestre
da Terra certamente estaria morto. E, se não estivesse, ele iria preferir que ela informasse os
membros restantes do conselho ao invés de ir resgatá-lo. Expôr e encerrar a corrupção era
mais urgente. Qualquer que fosse o destino de Tadaka, ele precisaria enfrentá-lo sozinho.

Havia bastante óleo de lamparina nas posses de Yori. Ela a jogou em cada superfície que
pôde encontrar. Revirou gavetas e ensopou papéis. Derrubou garrafas e alambiques até os
vapores ferirem seus olhos. Pausou apenas para orar pela alma dos restos humanos. Quando
saiu, atirou a lamparina na sala e se virou para evitar o clarão.

O ar fresco era uma bênção aos pulmões. Ela seguiu para a fonte de purificação. Sentia como
se tivesse chafurdado em podridão. “Koetsu, estamos indo embora. Kuni Yori é um herege.
Precisamos informar o conselho.”
Estava a meio caminho da fonte quando viu a linha de samurai, armaduras cintilando, armas
em mãos. Quatro Caranguejos a cavalo, arcos a postos. Três outros a pé, porretes de ferro já
preparados. Um Shiba Koetsu amarrado e amordaçado pendia nas costas de um cavalo, suas
armas desaparecidas. Os Caranguejos franziram as testas ao observar o pilar de fumaça que
se levantava do templo.

“Asako Tsuki,” o líder deles grunhiu. “Você virá conosco.”

Talvez os serviçais dos outros templos não fossem tão simples e sem maldade, afinal.

==========
Os guardas chamavam aquilo de “sala de espera”. Havia móveis para parecer uma, e até
serviram chá a ela. Mas Tsuki sabia que era uma cela, apesar de ser uma reservada para
aqueles com posição de samurai. Ela não seria atirada em uma masmorra e acorrentada nas
paredes como uma camponesa, mas também não receberia liberdade. Do lado de fora das
portas corrediças, ela podia ver as silhuetas de dois guardas. A visão da janela dava para o
lado errado da Muralha Kaiu, uma queda mortal para a Baía do Peixe Terremoto.

Eles haviam tomado sua bolsa, suas oferendas, até mesmo suas sandálias. Levaram o diário,
também. Mas não levaram suas roupas, então não haviam descoberto a adaga. Ela podia
senti-la contra o corpo, sob o obi. Quando ela saísse dali, ao menos ainda a teria como
evidência.

Sons no piso-rouxinol. As sombras se separaram. Tsuki sentou-se no travesseiro. Finalmente,


o Campeão do Clã Caranguejo havia atendido seus chamados. Mesmo sendo ela uma
prisioneira, o Caranguejo tinha as obrigações de honra de atender os pedidos da
representante de Shiba Tsukune.

Tsuki não esperou que a porta se abrisse por completo. “Grande Urso, devo protestar contra
o tratamento…”

As palavras morreram nos lábios. Não era o Grande Urso, mas seu filho. Hida Yakamo entrou
na sala com o andar dos incertos, seu longo bigode emoldurando feições severas. A cabeça
quase tocou o teto quando ele cruzou os braços, os guardas fechando a porta atrás dele. No
cinto, uma tetsubô pendia de forma ameaçadora.

Ela ouvira histórias sobre Yakamo. Ele havia esmagado a cabeça do filho do daimyô
Mirumoto por causa de um insulto menor. Ninguém conseguiu impedi-lo.

“Onde está Koetsu?” ela conseguiu perguntar.

“Encontrando-se com as Fortunas,” Yakamo respondeu.

Ela piscou, confusa. Eles… o mataram? Assim?

“Então,” Yakamo grunhiu. “Você é a mahô-tsukai que sabotou o laboratório de Kuni-ue?”

As palavras dele a acertaram como adagas congeladas. “Você está errado! Kuni Yori é o
mahô-tsukai! Pergunte a seus guardas! Eles estão com o diário dele! Ele usava restos
humanos para…”

Ele olhou para ela de cima como alguém olharia para uma barata. “Mentiras.”

Um terror gélido tomou conta dela, a compreensão finalmente chegando a Tsuki. Evidências
da corrupção de Yori manchariam para sempre o nome Kuni e a honra do Caranguejo.
Yakamo não permitiria aquilo.

Ela falou, mesmo com a boca secando rapidamente. “Eu… eu exijo uma audiência com…”

Yakamo bateu com a tetsubô no chão. “Você não exige nada!” Ele se aproximou. Tsuki sentiu
seu hálito quente. “Você incendiou um templo Kuni e sabotou o trabalho do daimyô Kuni!
Achou que queimar os relatórios dele enterraria seus crimes?”

“Você não está ouvindo,” ela protestou. Mas a cabeça dela divagava. Estaria ele sendo mesmo
enganado por Yori? Ou estava acobertando os crimes do daimyô Kuni? Ela não tinha certeza.

“Só as Fortunas sabem o quanto você o fez regredir, quantos Caranguejos pagarão pelo
conhecimento perdido.” Ele se endireitou novamente. “Felizmente, o trabalho dele pode
continuar em outro lugar.”

Outro lugar? Quantos laboratórios ele possuía? O estômago dela afundou nos joelhos. É
claro, um daimyô possuiria mais de um laboratório Talvez houvesse artefatos mahô
espalhados pelas províncias do Caranguejo.

Os olhos dela piscaram na direção da tetsubô, suas afiadas pontas de jade. Se ele queria
matá-la, porque não acabava logo com aquilo?

Yakamo seguiu o olhar dela, então olhou de volta. “Não ainda,” ele disse. “Primeiro, quero
dar a você um conselho, passarinho.” Ele ajoelhou, assemelhando-se a uma montanha. “Os
Kuni chegarão em breve para fazer suas perguntas. Quem são seus cúmplices. Para quem
você trabalha. Onde se escondem. Esse tipo de coisa. Meu conselho é: conte a eles. Não
esconda nada. Será mais fácil para você assim.”

As palavras dele congelaram os ossos dela. Iriam torturá-la. Queriam informação e queriam
puni-la. Fariam ambos.

Ela não era mahô-tsukai, mas isso importava? Ou ela desistiria e mentiria, admitindo a
corrupção e desgraçando toda sua linhagem, ou diria uma verdade direta e seria torturada
até a morte. E aqueles que morriam para a tortura jamais chegavam ao Yomi, o reino dos
Ancestrais Abençoados. A dor, a raiva, e a futilidade faziam ser impossível. Tôshigoku era o
destino deles, o Reino da Matança. Não era apenas a vida dela em perigo. Se ela morresse
daquela forma, lhe custaria a própria alma.

Que escolha ela teria?

Enquanto ele seguia para a porta, Tsuki só conseguia pensar em sua coleção de notas, a
oitava versão de Os Festejados Casos do Magistrado Yuzo. Poderia já ter sido publicado, se
ela tivesse aceitado suas imperfeições. Mas agora ela jamais terminaria o livro. Jamais
terminaria qualquer coisa.

Jamais sentaria novamente em sua pequena mesa observando o mar. Jamais sentiria o odor
do papel envelhecendo. Jamais trocaria contos inventados sobre heróis do povo com seus
amigos, inventaria romances fantasiosos entre figuras históricas, perderia um momento para
absorver para si as histórias que transcrevia. Ontem, parecia que ela tinha todo tempo do
mundo. Que tolice. Ela nunca devia ter esperado. Ela devia ter vivido…

A adaga. Ela lembrou do item, pressionado contra sua lateral. O osso poderia ser uma
oferenda. O kami viria em seu auxílio. E daí que ela estava perto das Terras Sombrias? Ela
resistiria a seu chamado! Agora era o momento, enquanto o bruto estava de costas, antes que
os guardas soubessem o que estava acontecendo. Tudo que ela precisava fazer era sacar a
adaga, sussurrar suas orações e…

Não. Ela deixou a tentação sumir. Nunca. Aqueles destinos eram melhores que se corromper.
Sou da Fênix. Confiarei nas Fortunas, e me curvarei a…

Um vento frio soprou contra sua bochecha


e apagou a lamparina. A única luz agora
vinha do sol se pondo do lado de fora.

Fora da janela aberta.

A janela aberta.

Em reflexo, os olhos dela passaram pelo


portal circular, então de volta para
Yakamo. Mas ele se virou uma última vez
diante da porta, e os olhos dele seguiram
os dela. Compreensão tomou o rosto dele,
então um vislumbre de urgência. Ele calculava, tentando lembrar se haviam removido todas
as oferendas dela.

“Aquele caminho leva à morte,” ele disse.

Ele estava certo. Uma queda de tal altura na água da baía seria como bater em pedra.
Nenhuma pessoa sã tentaria. Ela não sobreviveria.

Ela não se importava.

Ela correu. Ele passou pela sala como um relâmpago. Ela usou o momento para se
arremessar pela janela.

Ele agarrou a hakama dela e segurou. A roupa se desenrolou. Ela escorregou pelo tecido.

E caiu como uma flecha.

Ela fechou os olhos. Por favor.


A água, como pedra contra suas costas.

Os pulmões esvaziaram.

E então, a escuridão.

==========
Tsuki tremia na seda molhada enquanto abraçava os joelhos sob a ponte de madeira,
afundando em folhagens mofadas. Cara respiração era como fogo. Ela tinha certeza de que as
costelas estavam quebradas, ou ao menos rachadas. Mas o kami da água a havia poupado do
pior, sem oferendas. Seus aliados invisíveis - eles não a haviam abandonado. Ela agradeceria
da forma apropriada, caso sobrevivesse.

Acima dela, ela pôde ouvir o pisotear dos guardas Caranguejo, os gritos deles. Eles
encontraram a adaga que ela deixou cair na queda. Eles sabiam que ela estava perto. Viva ou
morta, seria questão de tempo até a encontrarem.

Ela apertou os dentes, para resistir a um espirro. O coração batia, os olhos queimavam. Ela
tentou não pensar nas coisas que lera sobre as águas próximas das Terras Sombrias, se
também se aplicava às águas da baía. respirou ar quente para sua pele enrugada.

Ela ainda tinha uma mensagem para a Fênix. Mas como? Não tinha nada para oferecer aos
kami, e mesmo uma evocação menor poderia atrair kansen.

Eles a encontrariam se ficasse ali. Mas para onde mais ela iria? Não para o castelo. Ela jamais
entraria. Nem a baía. Estavam procurando lá.

Não as Terras Sombrias. Por favor. Lá não.

Ela pensou e pensou. Não as Terras Sombrias. Não posso. Não posso.

As vozes ficaram mais altas. Acima dela, o pisotear ficou mais intenso, bem como as sombras
entre as rachaduras. Ela tentou pensar em alguma coisa, qualquer coisa. Mas tudo que ela
conseguia pensar era na sua mesinha que observava o mar.

Eu nem queria vir para cá, ela pensou, os olhos marejados. Eu não queria fazer isso. Eu só
quero ir para casa.

Jesse Iuris Iuris e outras 4 pessoas


5 2 comentários

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Winston Spencer Pobre Tsuki, só estava tentando cumprir seu dever.


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Thiago Avelar Chaves O Yakamo come pedras no almoço achando que ê carne dura. Não é possível ser
idiota daquele jeito huehuehuehue
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