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Philippe Lacoue-Labarthe Jean-Luc Nancy O absoluto literario Teoria da literatura do romantismo alemao Coordenacio da tradugio Marcelo Jacques de Moraes Mauricio Mendonca Cardozo oge nB ee Sur array Coordenagiio de produgiio editorial: tari Assisténcia editorial ! Lara Perpétue d Preparacao e revisio : Ana Alethéa Osério Diagramagao : Wladimir de Andrade Oliveira Coordenagao da tradugao : Marcelo Jacques de Moraes } Mauricio Mendonca Cardozo Tradugéo | Marcelo Jacques de Moraes Mauricio Mendonca Cardozo Rodrigo lelpo imone Christina Petry Carolina de Moraes Florindo. ttulo original: L'absolu littéraire: thecrie de la littérature du romantisme allemand © Editions du Seuil, 1978 © 2018 Editora Universidade de Brasilia £ Direitos exclusivos para esta edigiio: : Editora Universidade de Brasilia Centro de Vivéncia, Bloco A - 22 etapa, 1° andar Campus Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasilia/DF ‘CEP: 70910-3900 Telefone: (61) 3035-4200 Site: www.editora.unb.br E-mail: contatoeditora@unb.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta Publicacdo poderd ser armazenada ou reproduzida por F qualquer meio sem a autorizagao por escrito da Editora Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Bibliotecario responsdvel: Fernando Silva — CRB 1/2001 L145 Lacoue-Labarthe, Philippe, Oabsoluto literario : teoria da literatura do romantismo Ora, trata-se, com o “primeiro romantismo” — isto é, com 0 roman- tismo de lena, para dar-lhe esta denominagio toponimica cuja moti- vacio retornaremos —, do que podemos também designar, ao menos numa primeira aproximagio, como o romantismo teérico e, mais preci- samente, do que teremos que examinar como a inauguragao do projeto ieérico na literatura. Dizendo de outro modo, trata-se da inauguragio de um projeto que assumiu, como bem sabemos hoje, quase duzentos anos depois, um lugar fundamental no trabalho teérico moderno — e nao apenas no campo da literatura, longe disso. Nao precisaremos buscar muito longe as marcas da heranca ~ de fato, bem mais que uma “heranca” — de-que estamos falando aqui; podemos encontré-la na capa deste livro: usar 0 termo poétique® para dar nome a uma colecio (ec uma revista) nao é outra coisa senao recolocar em jogo, para além de Valéry e alguns outros, o termo e uma parte do conceito que resu- miam, em 1802, o programa das Ligdes sobre a bela literatura e a arte, de August Wilhelm Schlegel’ — lig6es que, elas proprias, nao faziam mais do que expor uma pottica geral surgida, alguns anos antes, no circulo de Iena. Se, nesse sentido, a lacuna francesa é ainda mais estranha, no surpreende que pareca desejavel comecar, aqui, a preenché-la. De fato, no faremos sendio comecar, na medida em que passare- mos diretamente a discussao dos textos e dos temas que nao é abusivo ‘© contexto brasileiro atual de recepcdo (via traducio) desses textos é bem diferente do contexto francés do final da década de 1970, a que se referem Jean-Luc Nancy € Philippe Lacoue-Labarthe. Isso se deve, especialmente, ao trabalho de tradugo de homes como Marcio Suzuki, Rubens Rodrigues Torres Filho, Marcio Seligmann-Silva, Constantino Luz de Medeiros, entre outros (cf. Bibliografia, mais adiante). § Hem De ’Allemagne [Da Alemanhal], de que ainda voltaremos a falar, Madame de Stuél abria a segunda parte de sua obra, sobre “A literatura e as artes", com o capitulo: Por que os franceses ndo fazem justiga @ literatura alema? ° NT. ~ A primeira edigdo do original francés foi publicada come um titulo da collec tion Poétique, da editora Seuil, informago que aparece na capa do volume. A editora também é responsdvel pela publicagao da revista intitulada Poétique. ‘Ottitulo em alemio: Vorlesungen iber schiine Literatur und Kunst. Ct, seco HIl deste liveo. vi 18 considerar como essenciais — ¢ somente a estes. Nio esgotaremos 4 investigagio, mas talvez seja possivel ao menos discernir aquilo que ela implica. £ preciso entender, portanto, quais seriam as intengdes de um trabalho como este. Nao se trata para nds, digamos isso de imediato, de um empreendimento de arquivistas: pouco nos importa a reconstituigdo de um episédio antigo com o qual teriamos apenas, para evocar Nietzsche (que no deixava, quanto a esse aspecto também, de prolongar o romantismo), as relagGes de uma histéria monumental ou antiquaria. Nosso propésito no é sequer 0 de uma historia do roman- tismo, qualquer que seja ela. Quando muito, seria, em certa medida, 0 de uma histéria no romantismo — e voltaremos a isso. Mas tampouco temos 0 intuito de exibir e de preconizar um modelo romantico qual- quer — 4 maneira do que, grosso modo, pdde ocorrer no surrealismo (e, em menor medida, na obra de Albert Béguin e de alguns outros).* _ O romantismo no nos leva a nada que nos enseje a imitar ou em que devames nos “inspirar”, ¢ isso porque — como veremos ~ ele nos “leva” Primeiramente a nds mesmos. Isso no quer dizer, enfim, que propo- mos aqui uma pura ¢ simples identificacdo ao romantismo e no roman- tismo, tampouco que pretendemos nos colocar a nés proprios en abyme no romantismo. Aprendemos muito bem com os Romanticos 0 quanto eles foram os primeiros a romantizar 0 romantismo ¢ o quanto em geral eles especularam — conferindo-lhe toda a sua modernidade — sobre 2 figura e sobre o funcionamento do abismo literdrio, que thes fora transmitido pelo romance inglés do século XVIII, entre outros. Consequentemente, s6 deveriamos tentar “preencher” essa lacuna sob a condicao de nao querer saturé-la de modo algum: mas de maneira a perinitir decifrar 0 equivoco macigo que o termo “romantismo” por si s6 recobre ~ na medida em que seja possivel livrar-se dele. * Alls, sempre se tratou, em tas cusos, da questio do romantismo fantistico, que, como veremos, é essenciaimente exterior e, sobretudo, posteriot ao romantismio de Tena, * Nel. O pardgrafo seguinte foi suprimido nesta edig&o brasileira, uma ver que se Tefere as particularidades da proposta da edligfo francesa diante da especificidade do contexto precério de recepcdo do romantismo tedrico na Franga no final da década de 1970 (1978). Embora uma edigao brasileira que também reunisse, num 86 volume, os textos alemaes antologizados pela edigGo francesa fosse um proieto BANE, Nina e SeeR aC, ct ‘sion Net a Do que se trata entao quando falamos do romantismo teérico — do que deveremos caracterizar como a instituicio tedrica do génere lite- rério (ou, se quisermos, da prépria literatura, da literatura como abso- luto)? Colocar essa questao equivale a perguntar: do que se trata entdo no famoso fragmento 116 da revista Athenaeum, que contém todo o “conceito” da “poesia romantica”, ou na Conversa sobre a poesia,” que contém a definic¢do do romance como “livro romantico”? E preciso, portanto, ir aos textos. Mas no se deve ira eles sem ter comegado a dissipar, j4 do exte- rior, 0 equivoco ow a ilusdo que esses textos, tais quais, alimentam —e que, como veremos, alimentam até certo ponto de maneira delibe- rada. Isto 6, ndo se deve comecar a Ié-los imaginando que se saiba previamente o que significa, se ndo a palavra “romantico”, ao menos sua posigdo nesses textos. Pode-se, de fato, imaginar sabé-lo de duas maneiras, elas prOprias bem diferentes: conferindo-Ihe a posigio ou de uma heranga transmitida e amadurecida ao longo de todo 0 século XVIIL, ou, ao contrario, de uma inovagio absolutamente original. Mas a erdade” nao est4 entre as duas: esta em outra parte. Tanto a palavra “romantico” quanto o seu conceito foram transmitidos aos “Roman- ticos”, de modo que a originalidade deles nao consiste em inventar 0 “romantismo”; ao contrario, consiste, por um lado, em recobrir com esse termo sua propria impoténcia em nomear e conceber o que estdo inventando e, por outro, em dissimular um “projeto” que, de todos 0s pontos de vista, excede 0 que esse termo hes transmite (é 0 que podemos suspeitar, ao menos, em relagao a Friedrich Schlegel).1* de valor inestimavel, a presente proposta leva em consideragio a diferenga do con- texto brasileiro atual, em que, como ja mencionado em nota anterior, cireulam em traducdo boa parte dos textos aqui referidos. © N.T, ~ 14 variagdes do titulo em alemio (Gespriich tiber die Poesie, Das Gesprach liber die Poesie, Gespriich tiber Poesie), que reproduzem apenas diferengas nas varias edigdes do texto, Essa variagio se transfere também para suas tradugdes, mas, até onde pudemos verificar, sem maiores consequéncias. “ Cf, Benjamin, Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik [O conceito de Critics da arta na Bamanticma sleminl n 09 Portanto, recordemus aqui, bastante sumariamente, certo ntimery st dle dacos conhectdas sobre a histéria daquito a que esteve ligada « oe ee sorte da palavia romdntico, Sabe-se que as linguas roménicas foram as linguas vulgares, pensadas como derivadas do vulgar romanico oposto a0 latim dos clérigos. Que as literaturas roménicas foram as litera. turas dessas linguas, e que suas formas e géneras desde cedo foram batizados de remant, Tomanze, romancero. Quando o termo romantico aparece, primeiramente na Inglaterra e na Alemanha (romanti ‘ romantisch) ~ ¢ essencialmente no século XVII ~, ele comporta no i, mais das vezes a depreciacao, ¢ até mesmo a condenacio moral, Romintica a paisagem — sobretucl se proveniente da Inglaterra — diante daquilo que se acreditava dever relegar, com esse tipo de literatura, as trevas da pré-histéria dos 'Tempos modernos: og prodigios maravi- Thosos, a cavalaria inverossimil, os sentimentos exaltados, Para dizéto aqui de novo, depois de tantos Outros, o romance de Dom Quixote gniico.? © romantico enquanto género procura tomar conjunta- aes s dos “classicos'" : mo modelos — em oposic&o aos modelos dos “classicos", mas ‘on . fo paren ms (nde encontramos de novo Wieland, com seu Oberio,” por exemplo), = (onde . 7 ee ~ “guanio a“cortesia” dos trovadores. Mas é também para esse géncro, ou Gt 1a nirito, que o drama shakespeariano comega a se tormar modelar — em — “espirito. Ee cack de uma filosofia do entusiasmo (Shaftesbury), de um lado, e de uma ay ica”, primeira forma de critica literaria (especialmente entre os suigos: Bodmer, Breitinger), de outro, que o termo vai comegar a adquirir uma acep¢ao ora descritiva, ora francamente positiva. A historia desse termo € assim inseparavel do que representam respectivamente, em toda a historia tedrica dos séculos XVII e XVI, tanto a filosofia em sua contestagda ou em sua assuncdo da “raziio” moderna quanto a proble- ene ee aoe a iteréria, ora mais vara “ sca”, ora mais difunde a condigéo primeva do “romantico”. £ com 0 nascimento __ evoca, Essa sensibilidade literdria, ora mais para “romanesca”, o 4 mais, de “literatura pop”. Sobre isso, portanto, no ha a mitica de uma critica do gosto ~ ou, mais ampiamente, de uma estética Madi. dizer ~e nao é no prolongamento dessa moda que se constituird.o No decorrer do século XVIII, a palavra se investe a0 mesmo tempo P& Primeiro romantismo, que, como veremos na Carta sobre o mame vai de um valor estético e de um valor historico: os dados primitives que ee _Propor, antes de mais nada, a leitura irOnica das obras 7 que padarizmnos acabamos de invocar (c é a essas mesmas origens que alude, em Conversa _ chamar, explorando wma quase-tautologia, de “romantismo romanesco’ sobre a poesia, a Carta sobre o romance) simplesmente se retinem, em torno dessa palavra, para conectarem-se, na Alemanha, ao conceito do . gotico como oposto histérico e Seografico do antigo ~ ¢ assim se consti- da qual o romantismo romanesco, sem decerto deixar i tui 0 conceito histérico do “poema romAntico” (romantisches Gedicht), “ibir alguns de seus sintomas, teria constituido antes a eculta: aus comegava entéo a qualificar um genero de poesia. Por exemplo, © £88. Nos excessos da “romantizagao", mas também no uso sobria- i Guando Wieland (um autor em todos os aspectos bern distante dos |) BEPC eategorial do “romantica” como forma ou como tema literdio : Rominticos) compe, em 1784, a obra Idris e Zenide, como um poema em alemdo: Idris und Zenide: Bin romantisches Ged ul em alamans Ohavan 20 oa 22 pecn. ~ © & possivel encontrar ambos no movimento dos anos de 1770 € 1780, chamado de “tempestade ¢ impeto” (Sturm und Drang) &, Consequentemente, em Herder, no primeiro Goethe e no primeiro Schiller -, tudo podia Parecer ter ocorrido, ao fim e ao cabo, como a atualizagdo simples e natural de uma nova literatura — isto é, também como uma simples progresso ou maturaco (ainda que em reacio 8 Aufklérung), cujas inovacées, no fundo, nio punham em questo a consciéncia geral do progresso econdmico, social, politico e moral, Em varios aspectos, 0 primeiro romantismo corresponde, ao contrario, a crise profunda - econémica, social, politica e moral — dos tiltimos anos do século XVII.* Nao é aqui o caso de estuda-la, mas nao deixa de ser indispensével lembrar que a Alemanha desse perfodo, que conhece, com a crise econémica, perturbacdes sociais profundas que culminam em incessantes revoltas, encontra-se — para esquematizar a situacao do ponto de vista que deve ser 0 nosso — mer- gulhada numa crise tripla: a crise social e moral de uma burguesia que tem acesso a cultura (que consome o romantismo romanesco, como aqueles intendentes que leem Jean Paul, de que fala F. Schlegel), mas que comega a nao mais encontrar empregos para aqueles de seus filhos que ela costumava destinar 4 toga ou ao pillpito (a menos que os ditos filhos ndo quisessem mais esses empregos, em particular o de pastor);5 a crise politica da Revolugdo francesa, modelo inquietante para uns, fas- Cinante para outros, e cuja ambiguidade se tornara ainda mais sensfvel com a ocupacao dos franceses; e, enfim, a ctitica kantiana, inteligivel Para uns, libertadora, mas destrutiva, para outros, e que parece con- vocar com urgéncia sua propria retomada critica, Os personagens que * Para um estudo hist6rico dessa crise posta diretamente em relagdo com o romantismo de lena, cf. H. Brunschwig, Société et Romantisme en Prusse au XVilfe siécle [Sociedade © Romantismo na Prissia do século XVI], reedicio ampliada (Paris, fammmarion, 1973) de La Crise de Etat prussien a ta fin dit X VIF siecle et la Génése de ia mentalité Tomantique [A Crise do Bstado prussiano no fim to sécula KVIIL €a Génese da men. ‘alidade romantica] (Paris: PUF, 1947) — ena particular p. 28 ¢ P. 239. As andlises desse livro so tteis, mesmo que no concordemos com todas 26 interpretacdes. ** Por uma ou por outra dessas razées, quase todas os Roménticas de tena tiveram de passar or periodos dificeis ~ e, precisamente, nos anos da Athenaeu, Isso nao impedird os lideres, e F Schicgel em primeizo lugar, de acabar farendo uma carrera brilhante. veremos reunirem-se em Iena participam da maneira mais direta pos- sivel dessa crise tripla. Assim, seu projeto nio séré um projeto literério, endo abrira uma crise na literatura, mas uma crise e uma critica gerais (social, moral, religiosa, politica: encontraremos todos esses aspectos nos Fragmentos), que terdo a literatura ou a teoria literaria como lugar privilegiado de expressio. As razdes de tal privilégio ~ que inaugura toda a histéria, até os dias de hoje, das relacées que a literatura entende ter coma sociedade ¢ com o politico ~ aparecerdo nas discusses que se seguem ¢, especialmente, na leitura dos préprios textos. Mas leri- amos mal esses textos se nos esquecéssemos, logo de partida, de que © romantismo teérico de Jena se caracteriza como a questao critica da literatura em toda a amplitude da sobredeterminac&o histérica e conceitual que acaba de ser evocada — ou, talvez, até mesmo como a formula¢do mais propriamente critica (com todos os valores e limites do termo) da crise da histéria moderna. E é exatamente por essa razio que os “Roménticos” no terdo dado esse nome a si proprios, que nio terdo preconizado nem o retorno nem a invengao de um género a mais, e que nfo terZo alcado 4 con- digdo de doutrina uma preferéncia estética a mais, A ambigio literd- ria, neles, qualquer que seja a forma que assuma, sempre provém da ambiedo de uma fungdo social inédita do escritor — daquele escritor que ainda é, para eles, um personagem por vir, ¢ no sentido mais concreto de um oficio, como se pode ler no fragmento 20 da revista Athenaeum ~e, consequentemente, da aspiracdo por uma sociedade diferente. A “poesia romantica” de que incessantemente trataremos Heste livro sempre quis significar 0 que cla significa - nfo sem iro- nia, mas tampouco sem ambiguidade — nesta afirmac3o de Dorothea Schlegel: “74 que é decididamente contrario 4 ordem burguesa e é absolutamente proibido introduzir a poesia romantica na vid, , que ada um leve sua vida para a poesia roméantica; nenhuma policia e Peabuma instituicdo de educagdo podem se opor a isso." © Carta aoe seg hos citada em Ullsanna e Gotthard, Geschichte des Begriffes “romantisch” #2 Peatsehiond [istéria do concelto“romdntico" na lemanha] (ef. p.8, 2.1), p. 61. Os Rominticos de Tena nao se referiram a cles mesmos como roménticos. Novalis, quando muito, tera sido um dos primeiros a se valer da expressiio der Romantiker, que um fragmento péstumo define assim: ‘A vida é algo como as cores, 0s sons ¢ a forga. O romantico estuda a ‘vida como o pintor, 0 misico e o mec4nico estudam cores, sons e for- cas.” Em varios outros fragmentos postumos, a palavra Romantik surge como rubrica de uma ciéncia andloga 4 Poetik, a Physik ou A Mystik; mas acabaremos constatando, em diversas ocasiGes, que este € precisamente um dos tracos que afasta Novalis do romantismo de ena. Sao primeiramente os seus adversarios (desde 1798 publicam-se panfletos contra eles) e, em seguida, os seus primeiros historiadores e eriticos (a comegar por Jean Paul, j4 em 1804) que Ihes darfio seu nome, que fixarao uma “escola romintica” — sem, alias, jamais deixar de distinguir cuidadosamente os diferentes momentos da “escola”, pos- teriores a 1805, do momento inicial, que designamos como o da crise. No que diz respeito ao romantismo — ou, mais exatamente, a0 termo romdntico, pois nunca encontramos seu ismo —, os atores dessa crise terio feito dois usos dele. O primeiro, mais frequente, é 0 seu uso cléssico na época (veremos que isso est longe de ser um paradoxo), 0 de Wieland, de Goethe ou de Schiller: é uma categoria literaria entre outras, e nem sequer é a categoria suprema, como mostra por exemplo © fragmento 119 da revista Liceu," que situa 0 lirico em lugar mais alto que 0 romantico. Quanto ao uso “proprio” que eles fazem do termo, romdntico cons- titui o programa propriamente indefinido dos textos que leremos aqui, sempre acompanhados da ironia daquela carta de Friedrich escrita ao seu irmao August, em que ele dizi : “ff dificil para mim enviar-Ihe minha explicagao da palavra Romiantico, pois ela tem — 125 paginas.” » Fragmento 1073 do “Rascunho geral” (Brouillon général) da edi¢2o eritica; nfo figura nas Euvres complétes em franeés (ef. mais adiante nossa bibliogratia. 18 NT. — O titulo em alemio: Lyceum. Trata-se do primeiro conjunto de fragmentos (Lyceum-Fragmente) dos Fragmentos Criticos (Kritische Fragmente), publicado na 2 Aha Ptante Cal \ am 1707 § : £ ‘ = : i 18 ‘Uma definicao irénica como esta — ou a ironia de uma tal auséncia de definigéo ~ mereceria, no fundo, ser algada a condigio de simbolo, Todo 0 “projeto” romantico esta ai: todo o “projeto” romantico, isto ¢, aquele breve, intenso ¢ fulgurante momento de escrita (nem sequer dois anos, € centenas de paginas), que inaugura sozinho toda uma época, mas s¢ consome na impossibilidade de apreender sua esséncia e sua destinagio ~ ¢ que, por fim, ndo encontrara outra defini¢ao que nao um lugar (Iena) e uma revista (a Athenaeum). Chamemos, a esse romantismo, de Athenaeum, Sous iniciadores, como se sabe, so os irmios Schlegel: August Wilhelm ¢ Friedrich. S4o filélogos. E figuras ilustres nas pesquisas classicas. ‘Atestam-no tanto 0s textos que publicaram (Cartas sobre a poesia, amétrica eallingua, do primeiro; Estudo sobre a poesia grega, do segundo) quanto as revistas com as quais colaboravam (As Horas, de Goethe e Schiller, ou Liceu das belas-artes, de Reichardt)” Ambos sao ainda muito jovens, mas, desde 1795, 1796, ji se anunciava para eles uma carreira universitaria promissora, Sob muitos aspectos, porém, eles ndo séo nem apenas “futuros académicos”, nem puros filélogos. Tanto um quanto 0 outro tema ambicio confessa de se tornarem escritores (e Friedrich, certamente, mais do que August). Nao é por acaso que frequentam Weimar. Além disso, acompanham, muito de perto, o movimento que, jano “pos-Kant”, comega a tomar conta da filosofia alemd ¢ vai dar origem ao idealismo especulativo: eles ouvem as aulas de Fichte, leem Ritter, tentam travar contato com Schelling, discutem Jacobi. Em Berlim, Friedrich torna-se amigo de Schleiermacher. Os irmaos acabam dando a impressio, enfim, de serem. politicamente “avangados” (o que, na época, significa “revolucionarios”, “republicanos” ou “jacobinos”): © NT, ~ O titulo em alemio: Briefe Uber Poesie, Silbenmaf und Sprache, de August ‘Wilhelm Schlegel; Ober das Studium der griechischen Poesie, de Friedrich Schlegel * NT. — O titulo em alemio: Die Horen, de Goethe e Schiller; Lyceum der schénen Kiinste, de Reichardt. O absolute titerario: teoria da literatura do romantismo alemo | aamante do mais velho — e também egéria de Friedrich —, Caroline Michaélis, casa-se com Bohmer e é presa, em Mainz, por conduta subversiva ou, no minima, por sua simpatia pelas tropas (francesas) de ocupacdo. Mas, acima de tudo, eles esto ligados a todo um meio “literdrio” ¢ mundano de Berlim (os salées “judeus” de Rahel Levin ou de Dorothea Mendelssohn-Veit, a futura esposa de Friedrich), 0 que faz deles, segundo 0 modelo francés em vigor na época, verdadeiros ‘intelectuai: — se é que é verdade que esse personagem realmente nasceu na Paris dos enciclopedistas, na segunda metade do século XVIII, espalhando-se desde ento por toda a Europa. E no proprio interior desse meio que vai se constituir 07" Athenaeum.” De inicio, isso quer dizer o grupo — um circulo estreito e relativamente fechado em si mesmo, fundado, ao menos original- mente, em torno da fraternizacio intelectual e da amizade, bem como do desejo de uma atividade coletiva e de uma certa vida “comunitaria”. Nao se trata, de modo algum, de um “comité” de revista (alids, como vamos ver daqui a pouco, a propria revista permaneceré sob a diregao praticamente exclusiva dos dois irmdos); tampouco é meramente um circulo de amigos (as mulheres também fazem parte do grupo, hd rela- Ges amorosas ou erdticas, bem como um sentido bastante acentuado de “experimentagao” moral, que os fard sonhar, por exemplo, com a ideia de “casamento a quatro”)* ou um “cenaculo” de intelectuais. Trata-se, antes, de uma espécie de “célula”, marginal (se ndo completamente clan- destina), instada a se desenvolver como o nicleo de uma organizaco em “rede” e 0 modelo de uma nova prat de vida, Friedrich, que é quem mais se ater a essa forma de comunidade e sera seu estimulador mais verdadeiro, acabar se sentindo tentado a falar dela em termos de uma UT ~ Os autores vio grafar “Athenaeum” ora em caracteres itdlicos ora em romanos, a primeira opgio designando explicitamente a revista e a segunda, mais generica- mente, o “grupo” dos romnticos. Como em portuguds faz-se necessaria a explicita 0 do género, optamos pelo masculino quando se tratar do grupo e pelo feminino quando se tratar da revista, » Para uma hist6ria detalhada da formagao do grupo e da fundacao da revista, of. Roger Ayrault, [10] Genése du romantisme allemand, volume IIT, primeira parte, 1969, p. 11.95. em/Berlim quanto em Jena -, o grupo serd relativamente maiot: as pes- | Preambuto: o ausotuto urerarvo sociedade secreta. Ao menos acalentard a utopia de uma “alianga” ou de uma “liga” dos artistas cujo embriao seria constituido pelo Athenaeum e que se organizaria 4 maneira das seitas mais ou menos “magdnicas”, cuja importancia é not6ria tanto na divulgaco das ideias quanto no combate politico na Alemanha contemporanea da Revolucdo Francesa. Sob muitos aspectos, o Athenacum permanecer4 firmemente prisio- neiro de modelos herdados da Aufkldrung; no entanto, ele antecipa, de snaneira inteiramente evidente, as estruturas coletivas que intelectuais e artistas passariam a adotar, no século que entéo se abria e até os dias de hoje. Nao é absolutamente exagerado dizer que se trata, de fato, do primeiro grupo de “vanguarda” da historia. Seja como for, nao possivel constatar 0 menor desvio entre o que se intitula em nossa época “van- guarda” (e que, assim como o Athenaeum, tampouco recobre o antigo conceito de “escola”) e essa forma inaugurada ha cerca de duzentos anos. O Athenaeum é o lugar onde nascemos. Dito isso, por uma questao de precisao, faz-se necessario intro- duzir, no interior do proprio grupo, algumas distingdes. No sentido estrito, 0 grupo é formado no maximo por uma dezena de pessoas: 0 trio inicial (August, Friedrich, Caroline), transformado em quarteto com a entrada de Dorothea, e depois Schleiermacher, Novalis (que eles conheceram no inicio de 1792), Tieck, Schelling A rigor, deveriamos considerar ainda Hiilsen como parte do grupo. E é preciso também mencionar que a participagdo de Schelling sera relativamente tardia, que ele nunca chegard a escrever na revista e que uma de suas prin- cipais “motivacées” sera Caroline (com quem se casara muito pouco tempo depois da dissolucao do grupo, em 1803). Contando, porém, de imaneira mais ampla, ¢ levando-se em consideracdo também 0 que 0 Athenaeum representou — isto é, uma espécie de polo de atragao, tanto 27 28 dos irmaos. A irmi de Tieck, Sophie, apresentara ao grupo seu marido, o linguista Bernhardi; Wackenroder também faré parte desse convivio, em seus tiltimos dias de vida; a poeta Sophie Mereau manter4 estreitas relagées com Friedrich antes de se casar com Brentano — que, por sua vez, compartilhara da vida do grupo até as vésperas de sua dissolucao; sua irma Bettina (futura esposa de Achim von Arnim) também sera vista entre eles; Steffens vai compor o grupo em Dresden e Jean Paul vird sempre de Berlim; além disso, haver4 cartas, muitas cartas, entre os membros do grupo, entre Berlim, Weimar e lena, cartas trocadas com Fichte assim como com Baader ou Ritter — uma correspondéncia enorme ¢ na qual, a0 menos alguns deles, como Caroline, por exemplo, consignario o melhor do romantismo. O que permanece essencial, no entanto, é a revista. Apenas seis mimeros e dois anos de existéncia (é verdade que, depois, muitas outras vieram), um “nivel” que nem sempre é igual, uma certa arrogancia no tom (sabe-se que, a partir de entio, ela se tornaria obrigatéria), a pequena insoléncia das “vanguardas”.** Mas, também, um “modo de funcionamento” que rompe deliberadamente com tudo o que Ihe pudesse ser comparado ou contraposto e que é decisivo, em relacaio ao futuro, quanto a sua poténcia de modelo. A revista se funda na “fra- termizacio” — diz.a nota liminar: “a fraternizagdo dos conhecimentos das aptidées”. E essa fraternizacdo significa, no limite, a escrita coletiva: “Nao somos simplesmente os editores, mas os autores desta revista [...]. $6 aceitamos contribuicdes de estranhos quando acreditamos poder assumi-as como nossas [...]". E, como diz Ayrault depois de ter essa afirmacdo ganha outro peso quando abre um mtimero que contém, sob o nome de Novalis, a sequéncia de aforismos. de Pélen**”’ A coisa nao funciona, é evidente, sem um certo “mono: citado essas tinh: litismo” € uma espécie de pratica ditatorial — 0 que se deve, princi- palmente, a Friedrich (ele sonha que ele e o irméo possam se tornar * Ou, quando a coisa da certo, 0 verdadeiro escdndalo. O que foi o caso, por exemplo, com a publicagdo do romance Lucinde. * NT. — O titulo em alemio: Bliitenstaub. ” Cf. Avrault, [Lal Genése. TIL p. 42. os “criticos-ditadores da Alemanha”): jd se pode identificar, ai, o bem conhecido fendmeno “papal”, que no tardaremos a ver se fixar como o roteiro desde entao “classico” (se ousamos dizé-Io) das anexacdes, rupturas escandalosas, exchusdes ou excomunhées, brigas e reconci- liagdes espetaculares, etc. — em suma, tudo o que faz, em miniatura, a politica desse género de organismo (pois trata-se evidentemente de uma politica, ¢ de uma politica bastante precisa). Incluindo, ainda, a fraqueza que lhe é inerente — um “arrivismo” incgavel e as palinddias: apenas seis anos para se converter ao catolicismo, um pouco mais de dez para um dos irmios jantar com Metternich. Contudo, a verdade é que nada disso é to simples (nem mesmo no que diz respeito a politica dos roménticos, tio alardeada na Franga como reaciondria — certamente em razao de sua hostilidade em rela¢’o a Napoledo -, mas com a qual, ainda hoje, hé muito 0 que aprender). Nao é assim tio simples, pois & precisamente esse modo de funcionamento que move toda a “experi- éncia” da escrita romantica (a utilizagdo de todos os géneros, 0 recurso a0 “fragmento”, a problematizagio da propriedade literdria e da “autori dade” — e até mesmo a experimentagao do anonimato); é esse modo de funcionamento que funda essa “pratica te6rica” de grupo (discussdes incessantes, instituigdo de sessdes reguladas de trabalho, leitura coletiva, viagens “culturais”, etc.) e que é capaz de explicar 0 prodigioso trabalho realizado nesses dois breves anos, a invenc’o constante, a rapidez com que o trajeto foi percorrido, a radicalidade do “avango teérico” alean- cado — que no tem, de fato, qualquer precedente. £ claro que isso nao dura muito: o Athenaeum ndo resiste a tama- nho “dispéndio” (nada, nem ninguém, resistiria a tanto). Nao que ele se esgote, mas ele se desloca de si mesmo. As dissensdes internas, os citimes, os desacordos teéricos (veremos os rastros de tudo isso diretamente nos textos) contribuiram muito para isso, ndo se pode negar. O mais importante, porém, € que tudo foi dito e experimentado muito rapidamente, de maneira febril, “selvagemente”, como se diz hoje — um pouco como se cada um deles (até mesmo Schelling, embora ja fosse um académico) tivesse se dado conta de que no havia futuro ‘ou de que o mundo (e no apenas as Letras) estava mudando de época ou girando sobre si mesmo, certamente abrindo uma perspectiva 29 ilimitada, mas sem oferecer nada de imediato que estivesse a altura do acontecimento pressentido e acolhido sem reserva (por mais que fosse ainda inominavel, sem resto, pura “coisa” nascendo e se esfor- cando para vir a luz). £ por isso que o Athenaeum, embora ja demonstrasse todos os tra- gos de uma formacdo moderna de “grupo”, ndo pode ser considerado um verdadeiro “movimento”. Pois 0 Athenaeum nao acontece como ruptura; ele nao aspira absolutamente 4 tabula rasa nem a instauragao do novo. Muito pelo contrario, ele se distingue como uma vontade de “retomada” critica daquilo que é (dai sua relagdo com Goethe, por exemplo). Nao é por acaso que sua origem esta na filologia e na critica. Sua grande questio, no inicio, ¢a Antiguidade, a poesia da Antigui- dade — em torno da qual, em 1794, tudo vai girar e se desdobrar. O que se busca ainda obscuramente, no primeiro trabalho dos irmaos Schlegel (e que, consequentemente, constituird o proprio eixo do Athenaeum), éuma nova visio da Antiguidade. Veremos a que ponto Winckelmann serd para eles uma referéncia constante — nao que se trate simplesmente de se manter em sua esteira ou de se aproveitar dele, mas porque s6 se poderia empreender um trabalho teérico profundo sobre os gregos a partir daquilo que Winckelmann conseguiu estabelecer. E sabemos bem © que ai se descobre de repente: um hiato ainda despercebido no “classi- cismo” grego, os rastros de uma pré-historia selvagem e de uma religiao aterradora —a face oculta, noturna, misteriosa e mistica da “serenidade” grega, uma arte equivoca ainda muito proxima da loucura e do furor “orgiacos” (uma palavra muito apreciada pelos Schlegel). Em sintese, a Grécia tragica. Como Hélderlin na mesma época — mas diferentemente, embora Schelling assegure a passagem (e de um modo “dialetizante”) que, de Hegel ao jovem Nietzsche, terA a fortuna que conhecemos —, 0 que os irmAos Schlegel acabam inventando (pouco importa aqui com que nome) é a oposicdo entre o apolineo eo dionisiaco. E 0 que eles ins- tauram nesse mesmo movimento ¢, precisamente, como Heidegger tem razio.em sublinhar, a filosofia da hist6ria, porque dela possuem desde entdo a “matriz” (ainda que confusamente). Na verdade, na obra dos i ine at de Set nmin rentable propriamente dito, Mais simples sob muitos aspectos e proxima do modelo “rousseauista” (perda da origem, mediacio necesséria da racio- nalidade, reconciliagSo futura da humanidade dividida), sua filosofia da historia ganha complexidade, contudo, em raz4o de uma certa ateng4o (eum certo gosto) pelos fenémenos de decadéncia (0 alexandrinismo), bem como de uma grande preciso na andlise dos movimentos de disso- lucdo e de passagem — mecéinica, quimica ou orginica - de uma épocaa outra. Roma, por exemplo, seré um grande modelo. E 0 que estar em foco nisso tudo, trago distintivo do que chamaremos entao de roman- tismo, nao é outra coisa senao 0 cléssico — as chances ¢ a possibilidade do classico na modernidade. Na verdade, essa retomada critica caminha junto com uma moti- vacSo de ordem construtiva: trata-se, este é o horizonte constante do projeto, de fazer (ou de refazer, como moderno) a grande obra classica que falta a época ~ a despcito de Goethe. E como a problematica critica da imitagéo (como em todo o fim do século) tera sido precisamente 0 lugar de emergéncia da filosofia da historia, trata-se de fazer melhor ou de fazer mais do que a Antiguidade: a um s6 tempo superar e completar a Antiguidade no que ela tem de inacabado ou de irrealizado, no que ela no conseguiu efetuar do ideal clissico que entrevia. Isso equivale, em suma, a operar a “sintese” entre 0 Antigo eo Moderno — ou, se preferir- mos, ¢ para antecipar aqui a palavra hegeliana (mas nfo necessariamente seu conccito), isso equivale a suspender (relever, aufheben)”* a oposicao % N/T. ~ Aqui, como em outras passagens 20 longo deste livro, os autores franceses se valem do termo relever, em frances, para remeterem 3 nogio de Aufhebung, acompa- nhando, assim, a proposta singular de tradugio de Jacques Derrida para esse conceito hegeliano, jé em “Le puits et la pyrainide: introduction & la sémiologie de Hegel”, 1972. Diante do intrincado problema de tradugo desse conceito, algumas tradugdes brasilei ras tém sido propostas para 0 termo hegeliano, entre as quais “superar”, “suprassumiz”. “render’, etc. Optamos, nesta traugio, por “suspender”, que reproduz parte da equi- vocidade produtiva do termo alemio, remetendo tanto ao movimento (fisico) andlogo evocado por relever ¢ aufheben quanto ao seu sentido de efeito suspensivo ~ embora niio evoque, entre outros, 0 sentida de conclimentar, do terme francés. Agraclecemos a Joiio Camillo Penna pela nota critics a sia tradugo do termo releve, no texto “A exigéncia fraginentéria” (erceiru Margem, n. 10, 2004, p. 67-94), de que esta nota, bem como a 32 entre 0 Antigo ¢ 0 Moderno.” K 0 fato de que tal Logica anime o projeto roméntico ndo significa absolutamente que os Romanticos se limitem a “aplicar” um esquema derivado da filosofia pés-kantiana. & muito mais em conjuncdo com o idealismo nascente (no idealismo e fora dele ao mesmo tempo) que 0 romantismo, no interior de seu proprio campo (a filologia, a critica, a historia da arte), atribui a si uma tarefa andloga — que éa de um acabamento, no sentido mais forte do termo. Trata-se de abolir a particéo e a divisio, a separacdo constitutiva da hist6ria; trata-se de construir, de produzir, de efetuar aquilo mesmo que, na origem da histéria, j4 se pensava como uma “idade de ouro” perdida e para sempre inacessivel. E se a dialética é inventada tanto na filosofia da arte do romantismo quanto na fisica especulativa, talvez seja porque a tarefa de reconciliar Kant e Plata, no fim das contas, se distingue bem pouco do empreendimento que visa a conjugar Homero e Goethe. E por isso que o romantismo implica algo inédito — a produgao de algo inédito. Mas, para dizer a verdade, os RomAnticos ignoram 0 nome desse algo: falam ora de poesia, ora de obra, ora de romance, ora de... romantismo. Mais cedo ou mais tarde, eles acabarao por cha- mia-lo de literatura. E esse termo — que eles ndo inventam — lhes sera tomado de empréstimo pela posteridade (a posteridade deles, inclu- sive a mais imediata) para recobrir um conceito ~ ainda hoje, talvez, indefinivel, mas que eles terdo se obstinado em delimitar. Seja como for, um conceito que eles terao pretendido enxergar explicitamente sob a forma de um género novo, para além das parti¢des da poética cldssica (ou moderna) e capaz de resolver as divis6es mais primordiais (“genéricas”) da coisa escrita. Para além das partigdes ¢ de qualquer de-finicao, esse género foi, portanto, programado no romantismo como o género da literatura: a genericidade, se ousamos dizé-lo, ¢ a geratividade da literatura, apreendendo-se e produzindo-se elas pro- prias numa Obra inédita, infinitamente inédita. Trata-se, consequen- temente, do absoluto da literatura. Mas também de seu ab-soluto, de seu por-se a parte no mais perfeito fechamento (cléture) em si (em sua Essa antecipacdo dle Hegel pelos Romanticos foi bem caracterizada por Peter Szondi, em Poésie et Poétique de Uidéalisre allemand. Paris, 1975. propria organicidade), segundo a célebre imagem do porco-espinho que encontramos no fragmento 206 da Athenaeum. ‘Ao mesmo tempo, entretanto, a questio se revela ainda mais ampla. O absoluto da literatura nao é tanto a poesia (que também inventa seu conceito moderno no fragmento 116 da Athenaeum) quanto a poiesia ~ segundo um recurso a etimologia que os Romanti- cos nao param de fazer. A poiesia, isto é, a produgao. O pensamento do “género literario” diz respeito, portanto, menos 4 produgio da coisa literdria do que 4 producio, absolutamente falando. A poesia yomantica pretende penetrar a esséncia da poiesia; a coisa literaria produza verdade da produgdo em si e, portanto, como verificaremos incessantemente aqui, da produgio de si, da autopoiesia. E se é verdade (como Hegel demonstraria em seguida, e inteiramente contra 0 roman- tismo) que a autoprodugao forma a instincia tiltima ¢ 0 fechamento do absoluto especulativo, é preciso reconhecer no pensamento romantic nao apenas 0 absoluto da literatura, mas também a literatura como absoluto. 0 romantismo é a inauguracio do absolute literdrio. Nao se trata aqui, portanto, digamos isso mais uma vez, do roman- ismo que figuramos normalmente. Madame de Staél, a sua maneira, ja o havia pressentido. Apesar de sua resisténcia um tanto curta (e bem “francesa”) ao tedrico, ela tinha compreendido que 0 novo, na Alemanha de 1800, nfo era a “literatura”, mas a critica ou, como ela também diz, a “teoria literaria”. Existia, é claro, uma “literatura romantica” — e Madame de Staél seria a tiltima a ignoré-o —, assim como cxistia uma “sensibilidade romAntica” de que toda a Europa, ou quase, j4 estava impregnada. Havia até mesmo, em torno do Athenaeum (ou no proprio Athenaeum), escritores ou poetas, ¢ 0s Schlegel, por exemplo, sabiam reconhecer, nos romances de Tieck ou de Jean Paul, nos contos de Wackenroder e nos poemas de Sophie Mereau as obras modernas (ou romanticas) que eles podiam tratar no mesmo plano que Diderot ow o romance inglés. Mas eles também sabiam que ainda nfo era “isso”. Isso era o fantastico, ou 0 sentimental; mas nao era ainda a fantasia ® Cf. De Allemagne. Paris: Garnier-Flammarion, 1968, v. II, 3° parte, cap. IX, p. 162. 33 nem a reflexio. Essas obras eram capazes de “jogar consigo mesmas”, mas no eram obras que comportassem sua prdpria teoria. Goethe nao estava longe de encarnar o grande ideal (como, historicamente, podiam fazé-lo Dante, Shakespeare e Cervantes — a “trindade” do Athenaeum), mas faltava-lhe uma boa dose de filosofia, ele ainda ndo estava — intei- ramenie ~ A altura da época. Em suma, havia apenas sinais daquilo que eles esperavam como 0 romantismo — ou que eles tentavam forjar como 0 romantismo. Dai a posi¢io critica deles tanto em relacio a Weimar quanto a Berlim, tanto em relacio ao ideal classicista quanto a literatura fantastica. lena queria ser a bola da vez [s’en voulait la reléve]. Isso,equivale a dizer — e é também exatamente o que Madame de Staél nao consegue compreender (destinando, praticamente até os dias de hoje, a Universidade francesa, ¢ com ela todo 0 resto, a ignorncia que bem conhecemos) — que 0 romantismo ndo é nem “literatura” (cujo conceito eles inventam) nem simplesmente uma “teoria da lite- ratura” (antiga e moderna), mas a prépria teoria como literatura ou, 0 que di no mesmo, a literatura que se produz ao produzir sua propria teoria. O absoluto literario é também, c talvez antes de tudo, essa operagdo literdria absoluta. Tena, no fundo, continuard sendo lembrada como o lugar em que se disse: a teoria do romance deve ser ela propria um romance. Demanda — quanto a qual nossa “modernidade” ainda engatinha — que s¢ expressa, um ano antes da fundagao da revista, no fragmento 115 da revista Liceu, ¢ que constituird todo o programa do Athenaeum: A histéria inteira da poesia moderna é um comentério continuo do breve texto da filosofia; toda a arte deve tornar-se ciéncia, e toda a ciéncia deve tornar-se arte; poesia ¢ filosofia devem ser reunidas. Quando menos por essa raz4o, pareceu-nos indispensével (isto é, ainda urgente) empreender sobre 0 romantismo um trabalho pro- priamente filoséfico. Nao por gosto, vagamente atual, pela tecnicidade tedrica, tampouco por um tipo qualquer de “deformacio profissional”, snes Hi mi deeteitgcome mas, como agora ja deve estar claro, por forga de uma necessidade ine- rente A propria coisa. Queremos dizer, também, incrente literatura. Pois ndo é de ontem, nem somente desde Jena — ainda que justamente Jena tenha nos ensinado a pensi-Io — que a literatura vé seu destino ligado a esse “breve texto da filosofia”, em que, 20 menos desde Plato ¢ Aristoteles, postula-se e exige-se a unio entre a poesia ¢ a filosofia. Madame de Staél, para cité-la uma tiltima vez (embora tenhamos de reconhecer que se trata, aqui, da apoteose da ininteligéncia critica), per- guntava-se, completamente perplexa diante do trabalho dos Schlegel, se Homero, Dante ou Shakespeare tinham “necessitado daquela metafi- sica para serem grandes escritores”. E era essa pobre questao — pois se isso pode valer para Homero, com 0 qual alids os Schlegel (como todo mundo) no sabiam muito bem o que fazer, nao é 0 caso dos outros dois... - que a autorizava a refrear seu entusiasmo em relagio Aque- les “sistemas filos6ficos aplicados 4 literatura”. Apesar de tudo ¢ em. muitos aspectos, ainda estamos nesse mesmo ponto. F a prova disso, poderfamos dizer que é a seguinte: quantos nao esto, entre os mais bem-intencionados hoje, repetindo Tena — que eles nao puderam ler? Mas a decis%o por uma abordagem filoséfica desses textos (hd uma justificativa mais precisa em nossa “Abertura”) nao significa de modo algum que nos tenhamos ocupado da “filosofia dos Romanti- cos”. Fla existe, como se sabe muito bem, e é até mesmo — de modo geral ~ mais bem conhecida na Franca do que a “teoria literévi: Foi preciso também, é evidente, que a pressupuséssemos em cada uma de nossas tentativas de analise. Mas 0 objeto de nosso trabalho exclusivamente a quesido da literatura — e uma leitura integral do conjunto dos fragmentos, quando menos, poderd revelar a quantidade ea variedade de motivos (cientificos e politicos principalmente, mas também estéticos — pensamos na misica em particular) que tivemos que abandonar ou nos resignar a ndo levar em conta. Isso explica a escolha dos textos com que operamos, bem como nosso plano de obra. No que diz respeito aos textos® — 4 parte “O mais antigo pro- grama sistematico do idealismo alemio”* cuja publicagio nos pareccu impor-se, como abertura, para circunscrever 0 ab anteriori da ques- tao da literatura ~, precisivamos nos dirigir aos textos tedricos mais marcantes do periodo da revista Athenaeum. & por isso, alias, que as datas-limites da revista ~ 1797/1798 até 1800 — praticamente nao 840 excedidas. Na realidade, regulamos nossa escolha a partir do itinera- rio particular de Friedrich, que acompanhamos desde seus primeiros ensaios em fragmento (os Fragmentos criticos publicados na revista Liceu) até o estabelecimento de seu préprio conceito de “critica” (Da esséncia da critica), isto 6, de 1797 a 1804. Sao, portanto, 12 os textos a que nos referimos aqui - sendo um deles, é bem verdade, bastante curto (o soneto de Friedrich intitulado “Athenaeum”, que figurava, com dois ou trés outros, no dltimo nimero da revista). Desses 12 textos, dez so publicados integralmente [na edigio francesa]; a excegio fica por conta de dois cursos publicados postumamente a partir de notas manuscritas, datados de 1801 ¢ 1802: as Lig6es sobre « bela literatura ¢ a arte, de August Schlegel, ¢ a Filosofia da arte, de Schelling.®* O volume dessas duas obras impedia que se procedesse de outra maneira. Para as outras, contudo, pareceu-nos indispensavel manter o princfpio da publicagio integral, e em parti- cular ~ no 0 dizemos por gosto pelo paradoxo — no que diz respeito aos fragmentos, em rela¢o aos quais tomou-se por habito publicar selegdes” mais ou menos felizes e coerentes, mas que fizemos questo de restituir em sua integralidade de origem. Entre esses textos, cinco s4o extraidos da propria Athenaeum: os Fragmentos, naturalmente, mas também as Idetas, o Sobre a filosofia 3 NP. — Daqui até o final da parte II deste predmbulo, os autores se referem ao conjunto de textos dos romanticos, que, em tradugo, integram a edido francesa. Embora esta edigio brasileira nio englobe a tradusio desses textos, o comentirio dos autores Franceses, nessa passagem, é importante para a compreensio de seu plano de obra 1. -O titulo em alemio: Das diteste Systemprogrami des deutschen Idealismus. 35 NT. — O titulo em alemio: Vom Wesen der Kritik. +6 N-T. = Os titulos em alemao, respectivamente: Vorlesungen iiber schdne Literatur und olen (mais conhecido como Carta a Dorothea),.” a célebre Conversa sobre a poesia €, por fim, o soneto que mencionamos ha pouco. Com exce- cio deste tiltimo, trata-se, de fato, dos textos mais importantes que a revista tera publicado;* alias, nao é por acaso que sejam todos, parcial- mente ou nao, de Friedrich Schlegel. Parcialmente ou nio, porque os ‘Fragmentos — essa ponta extrema da escrita romantica a que Friedrich era tio apegado — sio um todo coletivo e anénimo, produzido conjun- tamente pelos irmaos Schlegel, por suas esposas, Caroline e Dorothea, por Novalis e Schleiermacher. E ainda que porte inegavelmente a marca de Friedrich, os Fragmentos sao a tal ponto a obra de todos eles, que até hoje a critica histérica enfrenta, quanto a uma centena de fragmentos, inextricaveis problemas de atribuigao. Para além desses cinco textos recolhidos da Athenaeum, tere- mos em vista ainda ~ a parte 0 Programa sistemdatico, de 1795, de um anonimato igualmente complexo — dois outros textos de Friedrich jA mencionados anteriormente (os Fragmentos publicados na revista Liceu e Da esséncia da critica, o que elevaa seis o nimere de textos de Friedrich), um texto de August (trechos de seu curso de 1801), dois textos de Schelling (um poema satirico € especulativo, a Confissao de fé epicuriana de Heinz Widerporst® ¢ a introducao 2 seu curso de 1802) — ou até trés, conforme se atribua a ele ou nfo a redagao do Programa sistemdtico — e, pot fim, um texto de Novalis — isto ¢, os dois primeiros dos cinco Didlogos que ele destinava 8 Athenaeum, mas que jamais apareceram na revista. Em relacio a Schelling ¢ a Novalis colocava-se um duplo pro- blema; existem em francés inémeras tradugGes, entre as quais uma quase completa de Novalis. E verdade que essas traducGes so por vezes discutiveis e que ainda estamos 4 espera de uma edicao séria de Schelling. {sso nfo impede que ambos estejam hoje acessiveis € Girculem amplamente na Franga — aliés, na maior parte do tempo, sob 5 NT. 0 titulo em alemio: Uber die Philopsophie, mats conhecido como Brief an Dorothea. S Conferir mais adiante os Sumdrios da Athenaeum. = tL nakatonntnée Heinz Widerporstens. © titulo de “romantismo alemio”. Ora, ¢ este ¢ o segundo problema com que nos deparamos: pareceu-nos que ambos, sob muitos aspectos, ainda que cada um a seu modo, permaneceram numa posicao relali- vamente marginal em relacZo ao que constituia para nds o préprio do romantismo. Portanto, como explicaremos no devido momento, ndo foram apenas as “contingéncias” da edigio francesa que nos determi- naram a reduzir, desigualmente, a parte que poderiamos pensar que cabe a esses dois autores de direito O plano adotado é bastante simples. Tomamos como objetivo yeconstruir, na medida do possivel, a evolucio interna do romantismo e retragar os seus “anos de aprendizagem” (o que de modo algum faz deste livro um “romance”). £ por essa razo que, com alguns desvios aiinimos, gostariamos de fazer coincidir aqui uma certa progressao do pensamento com a cronologia da revista Athenaeum. Assim, partindo da questo do fragmento como género (ou como “género”), isto 6, do primeixo momento da questo da literatura (seco 1:“O Fragmento: a exigéncia fragmentaria”), demos 0 “passo” especula- tivo necessariamente solicitado pela propria questo (segao TL: “A Ideia: a religifio nos limites da arte”), antes de abordar por si mesma e em si mesma a questo (se¢do TIT: “O Poema: uma arte sem nome”) e de atingir, assim, 0 taomento propriamente romantico da reflexio ou da “literatura a0 quadrado” (segio IV: “A Critica: a formagao do caréter”). sat & perfeitamente cabivel suspeitar, contudo, que nossas raz6es para empreender ¢ apresentar este trabalho niio apenas nfo sejam de ordem “arqueoldgica” —nem sequer, como jf o dissemos, histérica ~, mas que elas tenham wma relacdo bem precisa com nossos interesscs e nossa situagio atuais. Nao que tenhamos em vista qualquer modo de “atualidade do yomantismo”. Sabe-se muito bem o que costuma resultar desse tipo de c ctentne ds hinthete 9 nernatiantin duvidosa daquilo que se presume “atualizar”, a ocultacao (sem ino- céncia) dos tragos especificos do presente. Ao contrario, o que nos interessa no romantismo é que pertengamos ainda 4 época inaugu- rada por ele € que esse pertencimento, que nos define (mediante a inevitavel defasagem da repeti¢do), seja precisamente o que nao cessa de ser denegado por nosso tempo. Ha hoje um verdadeiro incons- ciente romantico, discernivei na maioria dos grandes motivos de nossa “modernidade”. E foi, alias, um dos efeitos significativos do carater indefinivel do romantismo ter permitido 4 chamada modernidade servir-se dele como de um elemento de contraste, sem ver — ou para niio ver ~ que ela quase nao era capaz. de outra coisa a ndo ser raminar as descobertas dele. Foi preciso toda a lucidez de um Benjamin para suspeitar uma armadilha na imprecisao dos Schlegel — ¢ para compre- ender que a armadilha tinha perfeitamente funcionado. F que, de resto, continua funcionando sempre que nosso tempo. decide verificar a “atualidade do romantismo”. Essa verificacao se paseia (nos termos da Ultima moda) no motivo de um “romantismo” essencialmente rebelde ao imperialisme da Razdo e do Estado, 20 totalitarismo do Cogito e do Sistema - de um romantismo de revoita, libertario e literdrio, literdrio porque libertario, ¢ cuja insurreicao a arte encarnaria, Decerto que esse motivo nao é simplesmente falso. Mas nio estd longe disso se negligenciarmos seu reverso (ou sew anverso...): pois o Absoluto literario agrava e radicaliza o pensamente da totalidade e do Sujeito, ele infinitiza esse pensamento, ¢ é precisa- mente assim que mantém seu equivaco. Nao que 0 proprio romantismo no tenha encetado 0 abalo desse Absoluto, ¢ nao tenhia trabalhado, a sua prépria revelia, para minar-Ihe a Obra. Importa, porém, discernir com precisio os sinais dessa fina & complexa fissura €, consequente- mente, saber ler esses sinais antes de qualquer outra coisa — com uma leitura rom{ntica, ¢ nJo romanesca, do romantismo. Do romantismo, de fato, sé se conhece hoje ~ ous6 se quer conhe cer ~ aquilo que se transmitiu indiretamente, seja pela tradi¢ao inglesa (de Coleridge, que os tinka tido muito bem, a Joyce, que sabia tudo ~¢ semnre mais do aue se acha), seia por Schopenhauer ¢ Nietzsche (que 39 nao disseram 0 que dele retinham), seja, enfim — mas o caminho é ainda mais indireto — por Hegel ¢ Mallarmé (ou até mesmo pelo que, na Franga, ornou-se com 0 titulo especificamente romantico de “sim. bolismo"). Ora, em todos os casos (ou quase), quando no hi ocultacio deliberada ou deformagiio, pode-se muito bem dizer que o essencial néo ¢ percebido ou que, se aparece, é repetido de modo equivocado e no mais completo desconhecimento de causa. Ora, em todos os casos (ou quase), quando nao houver ocultagao deliberada ou deformaciio, Pode-se muito bem dizer que o essencial nio foi percebido ou que, se ele ainda assim aparecer, é repetido no mal-entendido e em toda ignordncia de causa, Esse essencial, contudo, nos diz respeito. Ele é inclusive 0 que determina a era em que estamos como a era critica por exceléncia — isto é,a “era” (a situacdo continua a mesma em seus dois séculos) em que a literatura, ou qualquer nome que se dé a ela, se dedica 4 busca exclusiva de sua propria identidade, a ponto de levar consigo tudo ou Parte da filosofia e de algumas ciéncias (aquelas que diremos humanas, cutlosamente), abrindo 0 espaco do que chamamos hoje, com uma Palavra que agradava particularmente aos Romanticos, de “teoria”. Dai nfo ser muito dificil, de fato, derivar, dos textos que se seguem, aquilo que poderemos reconhecer, de passagem, como nos- S08 locais de nascimento e que delimita ainda hoje nosso horizonte: da ideia de uma possivel formalizacdo da literatura (ou de todas as pro- dugées culturais em geral) a utilizagao do modelo linguistico (e de um. modelo que repousa no ptine{pio da autoestruturacdo da linguagem); da analitica das obras fundadas na hipétese do autoengendramento a ‘agravacdio de uma problemétiea do sujeito que se apoia num abandono definitive de todo subjetivismo (da inspiragao, por exemplo, ou do inefavel, ou da funcdo do autor, etc.); dessa problematica do sujeito (que fala, que escreve) a uma teoria geral do sujeito histérico e social; da crenga na inscrigdo, na obra, de suas condicées de producio ou de fabricagao a tese de uma dissoluc%o, no abismo do sujeito, de todo Processo de produgdo. Em suma, em tudo 0 que comanda a0 mesmo tempo a literatura como autocritica e a critica como literatura, somos do absoluto literario — que nos é refletida. B esta é a verdade massiva que nos é desferida: ndo saimas da época do Sujeito. £ evidente que no fazemos essa constatacio pelo prazer de nos reconhecermos no romantismo, mas, ao contrario, para tomar cién- cia do que funciona, de fate, como uma auténtica denegacio —¢ para nos proteger a um s6 tempo de uma fascinagiio e de uma tentacao. Pois somos todos, na medida em que somos, assombrados pela frag- mentagio, pelo romance absoluto, pelo anonimato, pela pratica cole- tiva, pela revista e pelo manifesto; estamos todos ameacados - coro- lario obrigatério — pelas autoridades indiscutiveis, pelas pequenas ditaduras, pelas discussGes simples e brutais que so capazcs de inter- romper 0 questionamento por décadas; temos todos, ainda 7 sempre, consciéncia da Crise e estamos todos persuadidos de que é preciso intervir” e que o menor dos textos é imediatamente operate A pensamos todos, come se isso fosse evidente, que 0 politico passa pelo literario (ou pelo teérico): o romantismo é nossa ingenuidade, Isso nao quer dizer que cle seja nosso erro; mas que é neces: 0 discernir a necessidade da compulsio repetitiva. & por isso que ha, neste livro, uma exigéncia. Essa exigéncia, nao gostariamos de dizé-la critica’, justamente. No maximo gostarfamos de dizé-la “vigilante”. Sabemos muito bem que, em termos praticos, no se pode abandonar © romantismo (no se dispensa uma ingenuidade). De todo modo, dar prova de um minimo de lucidez nao é uma tarefa sobre-humana. E, Nos tempos que correm, jA seria muito. 4

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