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A ternura não nos torna mais produtivos; ela não é

orientada por tarefas, administrável ou manipuladora; ela


não nos torna mais eficientes e não funciona como uma
ferramenta de autoajuda para obtenção de o na esfera
financeira e A ternura afeta nosso modo o de amor
próprio,conforme revelado no mandamento de Jesus ‘ame o
seu próximo como a si mesmo’ (Mateus 22.39), más é mais
que isso. Ela inclui autoaceitação, mas também é que isso.
Ela é« sentimento de que, embora não tenha que gostar de
mim mesmo, eu gosto; e de que, embora não tenha que
aceitar a mim mesmo, eu aceito.”
Brennan Manning

A Sabedoria da Ternura
O que acontece quando compreendemos e
aceitamos o amor de Deus que transforma nossas
vidas

ePub r1.0
Editor 23.10.14
Título original: The wisdom of tenderness
Brennan Manning, 2002
Tradução: Jorge Camargo
Sumário

Agradecimentos

Uma palavra antes...

A ternura de Deus

A chancela da verdade

Cristo em outros

O sonho impossível

Pecado: O inimigo da ternura

Dor e ternura

Misericórdia resoluta

Uma palavra depois...


Para pecadores notórios que têm abençoado minha
vida com sua amizade:

John Peter, Paul, Butch, Mike, Fil, Ed, Lou, Alan,


Mickey, Bob, John, Devlin, Gene, e o outro Paul.
Agradecimentos
Quero expressar minha mais profunda admiração pelo
pensamento seminal de Kevin 0’Shea e Walter Burghardt,
cujas impressões contribuíram imensuravelmente ;para a
elaboração deste livro.
A Steve Hanselman, editor da HarperSanFrancisco, que
encontra “sermões em histórias, línguas em árvores, livros
em riachos” e bem em tudo o que rabisco.
A Kathy Reigstad, cuja edição hábil tornou este livro mais
convincente e coerente que o rascunho desajeitado que
entreguei.
A meu amigo Ed Moise, Chefe de Cozinha do Restaurante
Toulose 8271/2 no Quarteirão Francês e guru de computador
cuja genialidade transformou a remota possibilidade de
cumprir o prazo final de entrega em realidade.
Prólogo

Uma palavra antes...

No ano passado, fiquei ainda mais incomodado com o


estado da espiritualidade contemporânea no mundo
ocidental. Ela tem, falando de modo bem leve, sabor de
sorvete velho e o gosto insípido de uma salsicha sem graça.
Recentemente, vários líderes cristãos proeminentes
opinaram que estamos no meio de um grande avivamento
espiritual, semelhante aos dos séculos XVIII e XIX. Quem
seria capaz de ter um otimismo assim tão empolgante? Ao
menos este tanto pode ser dito: quando os livros cristãos
mais vendidos do ano passado celebraram a oração
autocentrada, a agitação dos fins dos tempos, e as
conversas fictícias com Deus no salão verde do Armagedom,
podemos com certeza afirmar que um avivamento espiritual
não é iminente, que silencio e solidão são as primeiras
consequências da espiritualidade melodramática e que o
excedente de tanta informação e conhecimento inúteis tem
recebido lugar de destaque, cm detrimento da sabedoria e
da autenticidade pessoal.
A sabedoria bíblica é assunto completamente diferente.
Nas cartas do apóstolo Paulo, a mais poderosa voz profética
para a igreja de nossa era, a sabedoria é personificada na
pessoa de Jesus Cristo, que é “o poder de Deus e a
sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1.24). Esta voz profética de
liberdade ainda proclama à igreja contemporânea, “ora, o
Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, ali há
liberdade” (2 Coríntios ,3-17). Estas palavras são puro eco
do ensino de Jesus: j“se vocês permanecerem firmes na
minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E
conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (João
8.31,32). Por que então há tanta falta de liberdade nos
círculos religiosos atuais? A triste verdade é que muitos
cristãos temem a responsabilidade de ser livres. Quase
sempre é mais fácil deixar que outros tomem as decisões ou
fiar-se exclusivamente na letra da lei. Alguns homens e
mulheres querem ser escravos.
A sabedoria ensina que o alvo de nossas vidas é
vivermos com Deus para sempre. Somos peregrinos que
estão de passagem, e Jesus nos aconselha a contarmos os
poucos dias que temos a fim de alcançarmos corações
sábios. Quando aceito no fundo de meu ser que a conquista
suprema de minha vida sou eu - a pessoa que me tornei e
quem outras pessoas são por causa de mim - então, viver
na sabedoria que aceita a ternura não é uma técnica, nem
uma arte, nem a estratégia carnegiana[1] de como ganhar
amigos e influenciar pessoas, mas um modo de vida, uma
presença distinta e engajada de Deus, outros maltrapilhos,
e eu.
Aceitando-me como alguém amado por Deus com infinita
ternura, sou liberto das manias e bobagens penduradas a
uma combinação pitoresca de artefatos e atitudes: a
descendência, a nação, a igreja, dinheiro, ego, titulações,
desempenho sexual, segurança, violência e os deuses
mesquinhos da vida moderna. E por isso que rejeito a
“prudência” de igrejas sábias de Nova Iorque à Califórnia
que me dizem: “o amor de Deus é um tema maravilhoso;
não o force demais”, e me apego ao Deus de minha
experiência, cujo amor excede os limites da crença.
As distorções e caricaturas de Deus que emporcalham o
cenário cristão da atualidade - desde a deidade enfurecida
que determina a matança de policiais e bombeiros
inocentes (11/09/2001) porque considera o aborto e a
homossexualidade intoleráveis; ao patriarca afável,
permissivo, que faz vista grossa ao adultério, apoia a
intolerância e permanece insensível quando milhares de
cristãos enganados finalmente saem da igreja para
preservar sua fé e sanidade - são obra de vendedores bem-
sucedidos posando de líderes espirituais.
Por outro lado, Jesus, “ao ver as multidões, teve
compaixão delas” (Mateus 9.36). O processo de
mergulharmos nos comentários e léxicos, de habitarmos as
profundezas dos estudiosos e reverenciarmos os pregadores
pode ter nos cegado para a luminosidade desta passagem
de Mateus. Ela fala da ternura essencial de Jesus, de seu
modo de olhar para o mundo, de seus mais profundos
sentimentos para conosco, maltrapilhos marcados pelo
pecado.
Se nos sentirmos assediados pelo ativismo, desanimados
com nossas necessidades de afeto não atendidas, e
preocupados de que nossas vidas sejam uma enorme
decepção para Deus, nossa dignidade própria poderá
aumentar ou diminuir como velas reagindo ao vento,
conforme a aprovação ou desaprovação de outros. Se nos
apegarmos a determinada medida de respeito próprio, ela
poderá ser que aquilo que H. L. Mencken descreve como o
sentimento seguro do qual ninguém ainda desconfiou.
No imperfeito embora poderoso filme Apocalypse Now, o
capitão Willard (Martin Sheen) recebe ordens para
“eliminar” o coronel Kurtz (Marlon Brando), um oficial
independente do exército norte-americano que lidera uma
comunidade de renegados no Camboja. Durante o primeiro
encontro entre eles, Kurtz pergunta ao jovem capitão, “você
sabe o que é liberdade?”.
“A verdadeira liberdade é estar livre das opiniões dos
outros”, responde Kurtz, com seus olhos ardendo com
intensidade. “Acima de tudo, estar livre de suas, próprias
opiniões sobre si mesmo”.
Todos aprendemos como é difícil dialogar com uma
pessoa que considera impensável estar errada acerca de
qualquer assunto. Em algum ponto de nossa jornada já nos
deparamos com pessoas assim. Será que sou uma delas?
Seriam minhas opiniões sobre mim tão irredutivelmente
corretas que não consigo considerar com mente aberta uma
percepção diferente de mim mesmo oferecida por um amigo
ou colega? Sim, às vezes sou intoleravelmente teimoso.
Você é assim? Muito mais do que já me dei conta, tenho
escutado alguém com auto-baixa estima dizer algo como
“eu simplesmente não posso aceitar que os sentimentos de
Jesus para comigo sejam diferentes daqueles que nutro por
mim”. Em outras palavras, a pessoa está dizendo, “não
permitirei que Jesus seja Jesus em minha vida”. Tamanha
intransigência não somente anula a possibilidade de se
viver cada dia na sabedoria da ternura; ela também
condena quem a possui a uma existência solitária e sem
amor, que impede Jesus de ser o Salvador que nos liberta
do medo do Pai e da aversão a nós mesmos.
Na experiência dos relacionamentos calorosos,
acolhedores e afetuosos, o coração vai amolecendo. A
ternura não nos torna mais produtivos; ela não é orientada
por tarefas, administrável ou manipuladora; ela não nos
torna mais eficientes e não funciona como uma ferramenta
de auto-ajuda para obtenção de sucesso na esfera
financeira e social. A ternura afeta nosso modo de ser e não
o nosso modo de fazer no mundo. Ela nos leva a uma
presença meiga para nós mesmos, para os outros e para
Deus. Ela inclui um elemento de amor próprio, conforme
revelado no mandamento de Jesus “ame o seu próximo
como a si mesmo” (Mateus 22.39), mas é mais que isso. Ela
inclui auto-aceitação, mas é mais que isso também. Ela é o
sentimento de que, embora não tenha que gostar de mim
mesmo, eu gosto; e de que, embora não tenha que aceitar a
mim mesmo, eu aceito.
A Bíblia de Jerusalém é a única tradução dentre as cinco
mais usadas nos Estados Unidos que emprega
consistentemente a palavra ternura (as outras são N VI,
NAB, NRSV e KJV). Em 1956, ela foi traduzida para o francês
a partir de fontes hebraicas, aramaicas e gregas; a tradução
inglesa foi feita a partir do francês. O substantivo francês la
tendresse é mais rico em significado que o inglês
tenderness que é normalmente a sua tradução. Usado cm
conjunto com les bras (“os braços”) o verbo a ele
relacionado, étendre, significa “estender os braços” num
gesto de amor que acolhe. Quando Jesus diz “Você está
cansado? Esgotado? Decepcionado com religião? Venha a
mim, saiamos disso juntos e você recobrará a sua vida”
(Mateus 11.28, The Message), a imagem pungente de seus
braços estendidos comunica anseio, desejo intenso e uma
compreensão profunda da condição humana. Jesus sabe que
enfrentaremos fadiga ao longo do Caminho e que seremos
incompreendidos, espancados, consumidos pela igreja,
pelos relacionamentos, pelas muitas tarefas como pais,
ministério, pela carreira, pelos apetites, cios e por nossas
neuroses recorrentes.
A ternura de Jesus nos liberta do constrangimento
conosco mesmos. Ele nos deixa saber que podemos arriscar
ser conhecidos, que nossas emoções, sexualidade e
fantasias são purificadas e restauradas por seu toque
curador e que não temos que temer nossos temores com
relação a nós mesmos. A sabedoria que emana da ternura
é, como maltrapilhos comissionados por Deus, podermos
confiar em nós mesmos e com isso aprendermos a confiar
nos outros. Quando a ternura que cura se apossa de nossos
corações, o falso eu, sempre vigilante em se proteger contra
a dor e buscar somente reconhecimento e admiração, se
dissolve na terna presença do mistério.
Philip Yancey, que se autodescreve como uma “alma
sobrevivente”, cuja fé sobreviveu à igreja, escreve, “embora
eu ouvisse que ‘Deus é amor’, a imagem que obtinha a
partir dos sermões mais se assemelhava à de um tirano
raivoso e vingativo”. E continua,

Cantávamos "vermelho e amarelo, preto e branco,


eles são preciosos aos olhos de Deus...”, mas ai de
algum daqueles filhos vermelhos, amarelos ou pretos
se tentasse entrar em nossa igreja. Mestres da Bíblia
insistiam, "vivemos não debaixo da lei, mas debaixo
da graça”, mas, a partir de minha própria vida, eu não
conseguia observar muita diferença entre os dois
estados.

Um sacerdote casado amigo meu da Califórnia solicitou a


exclusão de sua condição sacerdotal da Igreja Católica
Romana que permitiria a seus três filhos adotivos frequentar
uma escola católica. Ele se apresentou humildemente às
pessoas sem princípios dos escritórios romanos apenas para
ser humilhado, e descreveu o processo como “a experiência
mais ultrajante de minha vida”. As humilhações
premeditadas das interrogações orais e escritas dirigidas a
um homem que havia dado vinte anos de serviço abnegado
ao sacerdócio e que havia violado, não o evangelho de Jesus
Cristo, mas uma lei disciplinar da Igreja Católica, não
poderiam e não abalariam a sua fé em Cristo e seu
compromisso com a comunidade eucarística.
Quando a resposta da carta chegou, trouxe consigo um
sabor amargo de desligamento desonroso. Ela comunicou a
meu amigo que ele não pode ria mais ler trechos das
Escrituras na missa, dar a comunhão aos fiéis ou ensinar em
uma instituição católica de ensino superior. Além disso,
tinha que se mudar geograficamente do local onde havia
exercido seu ministério para evitar “escandalizar” os leigos
(embora oitenta por cento dos católicos norte-americanos
apoiem um sacerdote casado).
Como escreve Eugene Kennedy, professor emérito de
psicologia da Loyola University, em Chicago, “o desrespeito
ao outro... é, frequentemente, a agenda invisível, quando
um inquisidor denigre o sujeito da investigação por meio do
próprio processo investigativo... Isto é poder grotescamente
mascarado de autoridade, aviltando as pretensões desta
última como sistematicamente avilta aqueles que o
questionam”.
Um clérigo proeminente que também havia sido
rebaixado à condição de leigo (com a suposição implícita de
que o estado de celibatário é superior) observou: “Católicos
condenados ao corredor da morte têm mais direitos na
igreja do que eu”.
Orientado por amigos no passado a enviar o mesmo tipo
de carta, recusei-me a fazê-lo. Simplesmente não posso, em
sã consciência, me tornar um delator — um conspirador
silencioso — neste processo corrupto e corruptor. Como
cristão, estou decepcionado, enfurecido e entristecido
diante desse disfarce de ternura. Esse é um exemplo da
razão pela qual a igreja institucional, que existe para servir
ao povo de Deus, não deve jamais ser confundida com a
igreja enquanto mistério - a nuvem de testemunhas
centrada em Cristo, biblicamente fiel, terna e compassiva,
que vive o que prega.
E claro que o abuso da igreja não está limitado a uma
denominação. Em horas incontáveis de aconselhamento
com cristãos de um amplo espectro de comunidades de fé,
tenho ouvido muitas histórias de pessoas despojadas de sua
dignidade, publicamente humilhadas, e até mesmo
“ignoradas” por sua congregação. No entanto, em quase
todos os casos, sua lealdade a Jesus Cristo não diminuiu,
mas se fortaleceu no compartilhar de seu sofrimento. Esses
cristãos não se alegraram com a dor, mas foram
enriquecidos por ela.
Em contraste com a brutalidade cotidiana da igreja
institucional, Jesus sequer perguntou à mulher adúltera
trazida diante dele se ela se arrependera (João 8.1-11).
Sentindo sua vergonha extrema - vergonha que havia sido
suscitada pelo interrogatório impiedoso dos líderes
religiosos - Jesus a perdoou antes mesmo que ela lhe
pedisse perdão!
Quando pregadores e pastores, querendo justificar sua
própria fúria com a Nova Era, os liberais, roupas
provocativas, gays, Hollywood, homens que usam brincos e
rock pesado, invocam a ira de Jesus quando limpou o
templo, e menosprezam o fato de que a ira de Cristo é a
reação impetuosa inicial de seu amor.
A imensa ternura do coração de Jesus é
emocionadamente expressa quando ele visita a cidade de
Naim (Lucas 7.11-17). O filho único de uma viúva morrera e
seu corpo estava sendo carregado por parentes, passando
pelo portão de entrada da cidade, rumo ao cemitério. Vendo
a face da mãe marcada pela dor, Jesus se entristece, é
movido de piedade e sente compaixão por ela; Seu coração
se identifica com o dela. Jesus toma seu rosto em suas mãos
e sussurra, “shhh, eu sei”. Ele enxuga as lágrimas dos olhos
dela com seus dedos polegares, e então diz, “não chore”.
Jesus é a face humana de Deus e nesse momento (como em
todos os outros), você e eu estamos sendo observados pelo
mesmo olhar de infinita ternura.
Ser formado e informado pela sabedoria da ternura tem
conexão direta com nossos relacionamentos interpessoais.
Ilustração:
“Você é um tremendo ingrato!” A irritação na voz dela é
palpável.
O que teria provocado esta reação abrupta e inesperada?
Estou apenas enxaguando seis tigelas de cereais que nunca
tinham sido usadas. E esfrego com força porque, como
minha mãe costumava dizer, se vai fazer alguma coisa, faça
direito. Imediatamente tomei consciência de duas opções.
A primeira é dar uma resposta seca que cortará sua
psique frágil em pedacinhos: “Se, como dizem as grandes
mentes, a limpeza está próxima da piedade, sua alma rala,
estúpida e insignificante está deslizando rumo ao Sheol
[inferno].” A segunda é dizer, "Deus me ajude, sou
obsessivo/compulsivo em se tratando de limpeza. Um
neurótico! Preciso colocá-la sobre um pedestal. Você tem
sido paciente demais comigo, e há muito tempo”.
Segurando meus dedos ensaboados atrás de minhas costas,
me inclino e a beijo no rosto, colocando minha cabeça sobre
seu ombro.
O coração envolvido pela ternura de Deus passa essa
ternura adiante indiscriminadamente, sem distinção entre o
que a merece e o que não a merece.
Em minhas viagens nos últimos vinte anos, tenho
cruzado linhas denominacionais por várias vezes, e tido o
privilégio de compartilhar as Boas Novas com batistas do
sul e católicos, metodistas e morávios, episcopais e
presbiterianos, evangélicos e fundamentalistas, luteranos,
quacres, anglicanos e assembleianos. Estou ansioso e feliz
por registrar que não somente encontrei incontáveis
indivíduos que estão preservando as Boas Novas do
cristianismo das armadilhas da religião organizada e das
garras da piedade convencional, como também tenho
visitado vários bastiões evangélicos - comunidades de fé,
grandes e pequenas - fazendo a mesma coisa.
Esses companheiros vivem absortos em oração e
centrados em Jesus. Falhos como todos nós, eles riem muito
e com facilidade de si mesmos e de suas pretensões de
santidade. Voltam seus rostos na direção de nosso mundo
quebrado com olhos para os desamparados e uma
preocupação preferencial pelos pobres. No culto de
domingo, não medem o sucesso pelo número de vozes
erguidas em louvor ou dos ritmos variados do ministério de
música. A adoração é sincera e alegre, o louvor banhado em
gratidão. O ministro ou sacerdote pode não ter muita
eloquência, um vocabulário rebuscado ou uma
personalidade carismática, mas o fogo silencioso cm suas
entranhas é inconfundível, e a pregação vem do coração.
Palavras sem poesia carecem de paixão; palavras sem
paixão carecem de persuasão; palavras sem persuasão
carecem de poder. Quando a linguagem do deveria ou do
teria que predomina, a palavra pregada e escrita se
transforma em terra seca, vazia de paixão, persuasão e
poder. No encerramento de muitos sermões, a exortação,
“agora façamos...” não carrega convicção nem poder. Sem o
compartilhar da experiência pessoal, a pregação profética é
impossível. A Palavra de Deus deve estar encarnada na vida
do pregador.
A solidão é a fornalha da transformação, e acender o
fogo interior é a sabedoria do silêncio. Esta sabedoria torna
o discurso pessoal; sem ela, o diálogo é impossível. Palavras
sobre Jesus que não vêm de dentro são inúteis, enquanto
palavras nascidas do silêncio comunicam conhecimento
íntimo, afetuoso e amoroso do Senhor Jesus. No profeta
Oséias, Deus fala do modo como um jovem apaixonado
poderia convencer sua amada a casar-se com ele: “agora
vou atraí-la; vou levá-la para o deserto e falar-lhe com
carinho” (2.14).
Rejeite o silêncio e a solidão como troféus reservados a
monges e freiras enclausurados, e as consequências para o
discipulado serão previsíveis. O critério único para admissão
no “Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo”
(Mateus 25.34) é a confissão de Jesus como Senhor, não o
modo como “algum dos meus menores irmãos” foi
alimentado, vestido, recepcionado e visitado. E, no entanto,
quando a discriminação contra mulheres continua sem ser
combatida; quando as minorias são consideradas cidadãos
de segunda classe; quando a liderança é perita nos
princípios de mega-igrejas e não no culto humilde; quando
os pobres e os párias não são bem-vindos à mesa; quando a
obediência ao Pai, o serviço amoroso pelos outros e a
simplicidade de vida são considerados esfera de ação
exclusiva da elite dos que crêem; quando a grandeza
evangélica é medida pela conquista e não pela pequenez; e
quando a rejeição e o sofrimento inerentes ao testemunho
ousado da verdade são racionalizados, minimizados e
finalmente pulverizados em estudos bíblicos impertinentes,
então Jesus é transformado em um anacronismo, seus
ensinos são transformados em algo irrelevante e seus
seguidores transformados em uma multidão anônima -
entretanto, seus investimentos permanecem intactos, seus
cartões de crédito e suas quinquilharias assegurados; uma
manada constrangida, se movendo em passo de marcha
com os bajuladores, absorvida em seus próprios interesses,
que se mantém ocupada “expandindo seus territórios para a
glória de Deus”.
Se conhecessemos o Novo Testamento de cor, se
ouvíssemos seus trovões soando em nossos ouvidos,
distinguindo-os dos sons tolos e das sirenes persuasivas do
mundo, se soubéssemos de cor ao menos uma sílaba de
uma palavra dentro de uma sentença do Sermão do Monte,
se déssemos ouvidos à voz da águia de Patmos, se
cressemos que nos deixarmos ser amados por Deus é mais
importante que amar a Deus, nunca mais toleraríamos as
maquinações de religiosos manipuladores que distorcem a
face de Deus. Nunca mais os que caíram seriam humilhados
publicamente diante da congregação. Nunca mais
pregadores destemperados teriam autorização para
aterrorizar pessoas nos bancos das igrejas. Nunca mais nos
colocaríamos ao lado de celebridades clericais e nos
curvaríamos aos ricos e poderosos. Nunca mais a primazia
de amar estaria subordinada a uma suposta ortodoxia.
Nunca mais a barra do salto com vara seria rebaixada.
Nunca mais nenhuma igreja ousaria fazer mal a outra, e
nunca mais a voz profética de um Martin Luther King Jr. ou
de um Daniel Berrigan seria silenciada.
O cerne deste pequeno livro pode ser definido rápida e
sucintamente. Em um momento de honestidade extrema,
pergunte a si mesmo, “eu confio de coração em que Deus
gosta de mim?” (não me ama, porque teologicamente Deus
não pode agir de outro modo). “E eu confio que Deus gosta
de mim, neste momento, agora mesmo, com todas as
minhas falhas e fraquezas, antes de eu ter me purificado e
eliminado todo e qualquer vestígio de pecado, egoísmo,
desonestidade e amor degradado; de desenvolver uma vida
de oração disciplinada e passar dez anos em Calcutá com as
missionárias de Madre Teresa?”. Se você responder, sem
pestanejar, “Oh, sim, Deus gosta; na verdade, é apaixonado
por mim,” você está vivendo na sabedoria que aceita a
ternura.
Ofereço A sabedoria da ternura como uma bússola, mais
que um manual; um farol, mais que um livro de instruções;
uma visão, mais que sessenta e seis passos para a
maturidade espiritual.

E assim, fazendo o melhor que posso com o que tenho,


tentarei nestas páginas compartilhar com você minha
compreensão limitada do maravilhoso mistério que os
maltrapilhos chamam “Abba”.
Uma pequena palavra, mas que carrega a sabedoria
transformadora que está além de todo entendimento.

Brennan Manning
New Orleans

Leitura Recomendada:
Kennedy, Eugene. The Unhealed Wound: The Church and
Human Sexuality. New York: St. Martins Press, 2001.
Yancey, Philip. Alma sobrevivente: Sou cristão, apesar da
Igreja. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2004.
Capítulo I

A ternura de Deus

Toda mudança na qualidade da vida de uma pessoa deve


ser resultado de uma mudança em sua visão da realidade. O
cristão aceita a Palavra de Jesus Cristo como a visão original
da realidade. A Pessoa e o ensino de Jesus moldam a nossa
compreensão de Deus, do mundo, das outras pessoas e de
nós mesmos. Este molde exerce uma influência decisiva no
estilo de vida do cristão.
Um exemplo simples: se aceitarmos a revelação de Jesus
de que Deus é Pai, que há “um só Deus e Pai de todos, que
é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Efésios 4.6),
então estamos fazendo uma declaração, não somente
acerca de Deus, mas de nós mesmos. Dizer, “Abba, Pai”, no
Espírito é dizer que somos filhos. E reconhecer que outras
pessoas são nossos irmãos e irmãs na família humana. Esta
compreensão afeta nosso estilo de vida porque implica
aceitação de outros e responsabilidade por outros: fazermos
o melhor para prover aos membros da família todas as
coisas de que necessitam. Este relacionamento familiar
deve ser interpretado literalmente, pois é coisa de carne e
sangue, no vínculo do Espírito Santo. A verdadeira
comunidade cristã é a realização e a autenticação da
oração, “Pai Nosso, que estás no céu”.
O autor clássico A. W. Tozer observa a ligação entre a
nossa percepção de Deus e a nossa compreensão da
humanidade como crucial. Ele escreve,

O que vem à nossa mente quando pensamos sobre


Deus é a coisa mais importante a nosso respeito... se
fôssemos capazes de extrair de algum homem uma
resposta completa à pergunta: “O que vem à sua
mente quando você pensa sobre Deus?”, poderíamos
predizer com certeza o futuro espiritual desse homem.
Se soubéssemos exatamente aquilo que nossos
líderes religiosos mais influentes pensam de Deus
hoje, seríamos capazes de, com a mesma precisão,
prever onde a igreja estará amanhã.

Formados e informados pela Palavra de Deus, santos e


místicos, através dos séculos, têm entoado o mesmo refrão:
Deus não consegue não nos amar. Sem a geração eterna e
interior do amor, Deus deixaria de ser Deus. Embora
repletos de egoísmo, indiferentes aos pobres, atormentados
pela luxúria, enredados em autocomiseração e paralisados
pela depressão, o amor de Deus continua a nos carregar.
Segundo João, a essência de nossa fé repousa na confiança
que temos no amor de Deus (1 João 4.16). A salvação
acontece no momento em que aceitamos sem reservas
aquilo que G. K. Chesterton chamou de amor “furioso” de
Deus. A vida de pregação, ensino e cura de Jesus e sua
morte e ressurreição são as supremas manifestações de um
amor que desafia a compreensão humana.
Quer sua infância tenha sido tranquila quer sofrida, o
desafio permanece: você se aceita como alguém
extremamente amado por Deus? O amor humano,
experimentado em um lar feliz, embora rico e
recompensador, não se compara nem de longe ao amor
divino, e a absoluta privação de afeto não é nenhum
impedimento insuperável ao “ser tomado pelo poder de
uma grande afeição”. Tanto os que foram bem amados
quanto os que não conheceram outra coisa senão
desrespeito no lar necessitam da graça obstinada para dar
um salto de fé, na direção dos braços do amor. Assim,
ninguém está isento.
Mas e a justiça de Deus? As Escrituras declaram de
maneira inequívoca que Deus é amor e justiça. Os dois
conceitos não estariam em posições diametralmente
opostas? Um não deveria obrigatoriamente ter prioridade
sobre o outro? Teresa de Lisieux, reconhecida como doutora
da igreja por causa da veracidade e da profundidade de sua
análise da vida espiritual, registrou as seguintes palavras:
“Espero da justiça de Deus o mesmo que de sua
misericórdia. E é por ser justo que Ele é compassivo e
misericordioso". E ela continua, “pois ele conhece as nossas
fraquezas e se lembra de que somos pó. Como um pai tem
ternura por seus filhos, assim o Senhor tem compaixão de
nós. Não compreendo almas que têm medo de um Amigo
assim tão terno... que alegria pensar que Deus é justo, que
leva em conta as nossas fraquezas, que conhece
perfeitamente a fragilidade de nossa natureza”.
A origem deste livro pode ser atribuída a um longo
período de silêncio e solidão que passei nas montanhas
Allegheny, no oeste da Pensilvânia. Meu retiro começou
irregularmente, com vários dias de fadiga física, sequidão
espiritual, enfado e sentimentos vagos de culpa existencial
sob a perspectiva de que eu pudesse estar usando o
ministério para saciar meu apetite por aprovação e
reconhecimento. No fim da tarde do quinto dia, me arrastei
até a capela para suportar mais uma hora de Grande
Contemplação: meditação. Ao me ajeitar em uma cadeira de
costado reto, os sinos badalaram quatro vezes.
Treze horas depois, levantei-me da cadeira e saí da
capela com urna frase soando em minha mente e pulsando
em meu coração: “viva na sabedoria da aceitação da
ternura!”.
Mais uma vez, toda mudança na qualidade da vida de um
cristão deve ser resultado de uma mudança em sua visão
da realidade. Treze horas de silêncio e solidão alteraram
radicalmente minha percepção de tudo.
Se receber a graça de compreender com minha mente e
de aceitar com meu coração que a essência da natureza
divina é a compaixão, Deus então será mais bem definido
como o coração de ternura. A igreja diariamente clama no
louvor matinal, “na terna compaixão do nosso Deus, a
aurora do alto irromperá sobre nós para brilhar sobre
aqueles que habitam na escuridão e para guiar nossos pés
no caminho da paz” (Lucas 1.78-79, itálicos meus).
Identificar Deus como o coração da ternura é identificar o
Espírito Santo como o vínculo da ternura entre o Pai e o
Filho. Assim, o doce Espírito habitando em nós é a mais
profunda expressão da ternura - de fato, o cristão cheio do
Espírito é aquele cujo coração está transbordante de ternura
- que representa a cura plena de nossa dor através de sua
vinda a nós.
Qual é o verdadeiro significado de ternura? É preciso ter
cuidado aqui: corrompemos nosso senso de realidade ao
sentimentalizar o conceito. Quando esse tipo de excesso se
manifesta, a alma é envenenada por emoções românticas e
a ternura degenera em melodrama.
Noah Webster define ternura como sensibilidade às
emoções, aos sentimentos de outros. Kahlil Gibran, em Sua
obra Jesus: o Filho do Homem, diz: “a tristeza [de Jesus] foi
ternura para aqueles que estavam feridos e solidariedade
para com os solitários.” Biblicamente, ternura é o
sentimento que vem quando alguém lhe revela a sua beleza
interior, quando você descobre sua capacidade de amar,
quando experimenta o fato de que é profunda e
sinceramente querido por alguém. Se você me comunica
que real mente gosta de mim, não me ama apenas como
um irmão em Cristo, que tem prazer em mim (e teria,
mesmo que eu não tivesse escrito uma linha sequer), então
você me abre a possibilidade de que eu goste de mim
mesmo. O olhar de respeito amigável em seus olhos lança
fora meus temores, e meus mecanismos de defesa (tais
como o isolamento, o contar vantagem e o dar a impressão
de que os tenho todos juntos) desaparecem no vazio de
minha desatenção para com eles. Sua receptividade
enfraquece meu desprezo próprio e permite a possibilidade
da auto-estima. Deixo cair minha máscara de pretensa
piedade, paro de me personificar como um “santo”, de dar
tom de espiritualidade à minha voz, começo a sorrir diante
de minha própria fragilidade, e ouso me tornar mais aberto,
sincero, vulnerável e carinhoso com você do que jamais
sonharia ser se pensasse que você não gosta de mim. Em
resumo, o que acontece é que me torno cada vez mais
terno.
Anos atrás, Edward Farrell, de Detroit, aproveitou suas
férias de duas semanas na Irlanda para comemorar o
aniversário de oitenta anos de seu tio predileto. Na manhã
do grande dia, Ed e seu tio levantaram antes do amanhecer,
se vestiram silenciosamente e foram caminhar às margens
do Lago Killarney. Quando o sol nasceu, seu tio se virou e
olhou fixamente para o horizonte já iluminado pela luz solar.
Ed ficou ao seu lado por vinte minutos sem que trocassem
nenhuma palavra. O tio idoso então começou a caminhar
adiante, ao longo da praia, com um sorriso radiante em seu
rosto.
Depois de alcançá-lo, Ed comentou, “Tio Seamus, você
aparenta estar muito feliz. Quer me contar por quê?”
“Sim, meu jovem”, disse o velho homem, com lágrimas
rolando em seu rosto. “Veja bem, o Pai é apaixonado por
mim. Ah, meu Pai é muito apaixonado por mim.[2]
Seamus respondeu afirmativamente e de maneira clara a
pergunta feita na introdução. “Será que confio inteiramente
no fato de que Deus gosta de mim?” (Não me ama, porque,
como você deve se lembrar, Deus ama porque isto é parte
de sua natureza). Se você também pode responder com
honestidade corajosa, “Oh, sim, o Pai é muito apaixonado
por mim,” segue-se à resposta uma tranquilidade e uma
serenidade, uma atitude compassiva para consigo mesmo
em seu quebrantamento, que esclarece o significado de
ternura.
Isto então descreveria aquilo que aconteceu a Jesus no
início de seu ministério? Como Lucas nos conta, “Quando
todo o povo estava sendo batizado, também Jesus o foi. E,
enquanto ele estava orando, o céu se abriu e o Espírito
Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba.
Então veio do céu uma voz: ‘Tu és o meu Filho amado; em ti
me agrado’” (Lucas 3.21,22).
Em um dos mais dramáticos momentos na história da
salvação, Abba confirmou a condição única de seu Filho
unigênito como o Amado. Para Jesus, a voz do céu ratificou
trinta anos de crescimento e busca em Nazaré.
Proporcionou uma experiência clara de identidade central:
Filho, Servo e Amado. Com aquelas palavras, o favor de
Abba repousou sobre Jesus como cm nenhum outro,
delineando de modo irrevogável sua pessoa e missão.
Seriamos ousados em dizer que Jesus experimentou na
profundidade de sua alma humana o quanto o Pai gostava
dele? Que Abba revelou sua beleza interior a ele? Teria o
Homem que foi semelhante a nós em todas as coisas,
exceto a ingratidão, descoberto sua própria verdade à luz
do olhar amoroso que repousou sobre ele? Por ter Jesus
crescido em sabedoria, idade e graça, seu batismo no rio
Jordão marcou um momento decisivo em sua
autocompreensão.
E não desconsideremos a origem étnica de Jesus. Jesus
de Nazaré foi um judeu: criado e educado na cultura
judaica. Suas raízes foram davídicas. Como todo judeu
devoto, ele orava o Shema Israel de manhã e ao fim do dia:
“Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor.
Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a
sua alma e de todas as suas forças” (Deuteronômio 6.4,5). A
Torá, o templo e a sinagoga moldaram a vida interior de
Jesus, juntamente com as grandes festas litúrgicas - a
Páscoa, a das Semanas, a dos tabernáculos, o Rosh
Hashanah, o Yom Kippur - e a plena atmosfera da oração
judaica.
Chegou, no entanto, um ponto na evolução do
desenvolvimento religioso de Jesus quando ele não mais se
dirigiu a Deus por meio das invocações hebraicas
tradicionais - Adonai, Elohim, El Shaddai, Iaweh - mas teve
de chamá-lo Abba, o nome verdadeiro que implica ternura.
Daquele momento em diante, para Jesus e para seus
seguidores, naquela época e através dos séculos, Deus
tinha um novo nome. Ele seria chamado de Abba porque
protege, cuida, compreende, perdoa e faz festa para seus
filhos. A adoração não mais consistiria de olhos e rosto
cobertos com as mãos, mas da auto-entrega, em confiança
ilimitada, nas mãos poderosas e ternas daquele que é para
sempre “Papai”.
Em sua obra de referência, Por que ainda ser cristão
hoje?, Hans Küng escreve:

Abba - como o nosso “Papai” - é originariamente


uma palavra de criança, usada, no entanto, no tempo
de Jesus, também como uma forma dos filhos e filhos
crescidos se dirigirem a seu pai e como uma
expressão de educação, geralmente para com uma
pessoa mais velha e digna de respeito. (Mas, para
usar esta expressão de ternura [itálicos meus], este
termo genérico de educação retirado do vocabulário
infantil, que não é particularmente predominante, e
usá-lo como uma forma de dirigir-se a Deus, deve ter
soado, para os contemporâneos de Jesus, algo
irreverente e ofensivamente familiar, do mesmo modo
como se nós nos dirigíssemos a Deus hoje como
“Papai”.

Para Jesus, este termo não é desrespeitoso quando usado


na forma familiar com que uma criança se dirige ao seu
papai. A familiaridade não exclui o respeito. A reverência
permanece a base da compreensão de Jesus sobre Deus,
embora não seja de todo suficiente. Segundo Jesus,
devemos nos dirigir ao nosso Pai celestial assim como uma
criança se dirige ao seu pai terreno: com reverência,
obediência, mas acima de tudo com segurança e confiança.
Dirigir-se a Deus como Pai é a expressão mais corajosa e
simples dessa confiança absoluta com a qual dependemos
dele para todo o bem, e com a qual nos entregamos a ele.
Viver na sabedoria da aceitação da ternura é reconhecer
humildemente as limitações da mente racional, científica e
finita e abraçar livremente o mistério. Na pérola das
parábolas, Jesus menciona indiretamente a ternura do pai
pródigo em sua resposta ao filho esbanjador. “Estando ainda
longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu
filho, e o abraçou e beijou” (Lucas 15.20). Na tradução
soberba do estudioso bíblico Frank Montalbano,
encontramos uma leve nuance: “Ele correu até ele,
encaixou-o com força em seus braços e não conseguia parar
de beijá-lo; ele simplesmente não conseguia parar de beijá-
lo”.
Seja qual for a tradução da Bíblia utilizada, nenhuma
palavra pode expressar e nenhum pensamento pode conter
a realidade da compaixão do Pai. Quando os cientistas
falam em tons realistas de 100 trilhões de galáxias
enchendo o espaço sideral a velocidades incríveis, e sobre a
estrela Upsilon Andromeda alegremente posicionada a 246
trilhões de milhas do planeta terra, não nos surpreendemos
com o fato de que a ternura do Abba/Criador não pode ser
quantificada.
Viver na ternura nos conduz para fora da casa do medo.
Desde a carnificina e dor do 11 de setembro de 2001, nos
tornamos um povo cada vez mais temeroso. Sem nos
darmos conta, a agenda do mundo - as questões e pontos
preenchendo os noticiários e os jornais - se tornou a agenda
cristã. Perguntas envolvendo o temor pela sobrevivência
dominam nossas consciências de modo jamais conhecido. A
reticência quanto a voos comerciais, investimento no
mercado de capitais, a compra de uma casa ou de um carro,
e a fazer compromissos sociais de longo prazo transformou
um povo peregrino e alegre em uma tropa nômade e
desencantada de Hamlets pessimistas e videntes
trementes.
Em face do temor e da incerteza, os remanescentes fiéis
- anawin em hebraico, “maltrapilhos” na linguagem popular
- permanecem agentes de esperança, naquilo que o teólogo
Oscar Cullman chama de “existência do será”. O piscar de
seus olhos sugere que eles possuem uma visão mais
elevada.
Tal visão é vista no conto de Peter Van Breeman, do
jornalista que queria escrever uma estória sobre um
determinado guru. Ele foi ver o guru e perguntou, “você é
um gênio como algumas pessoas dizem?”
“Você poderia dizer que sim,” respondeu o guru com um
sorriso.
“E o que o torna um gênio?” perguntou o intrépido
repórter.
“A habilidade de ver”.
O jornalista ficou confuso. Coçando seu cabelo com uma
mão e apertando sua barriga com a outra, ele murmurou,
“ver o quê?”
O guru respondeu silenciosamente: “A borboleta em um
casulo, a águia em um ovo, o santo em uma pessoa egoísta,
vida na morte, unidade na separação, Deus no humano e o
humano em Deus, e sofrimento como forma na qual a
incompreensibilidade do próprio Deus aparece”.[3]
A sabedoria para enxergar a ternura de Deus atuando na
tribulação e na consolação liberta o maltrapilho da casa do
medo, das preocupações, tensões e pressões do nosso
mundo confuso e fragmentado e faz das palavras de Jesus
seu grito de libertação: “Não tenham medo, pequeno
rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (Lucas
12.32).
Viver na sabedoria da ternura é abrir mão de cuidados e
preocupações, parar de organizar meios para os fins, e
simplesmente ser em cada momento de consciência como
um fim em si mesmo. E ouvir com o coração a palavra de
Paulo a Tito: “A ternura e o amor de Deus nosso Salvador se
manifestou em nossas vidas; ele nos salvou não por causa
de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua
misericórdia” (Tito 3.4,5 - tradução livre).
A sabedoria da ternura nos permite amar nossa história
de vida como um todo e saber que temos sido agraciados e
embelezados pela providência de nosso passado. “Mesmo
de meus pecados”, escreveu Agostinho de Hipona, “Deus
retirou algum bem”. Todas as conversões erradas no
passado, os desvios, os enganos, os lapsos morais - tudo
que é irrevogavelmente feio ou doloroso derrete e se
dissolve à luz da aceitação da ternura. Como destaca o
teólogo australiano Kevin 0’Shea: “Alegre-se por não sentir
medo de estar aberto à presença que cura, não importa
aquilo que você possa ser ou possa ter feito”.
Talvez não estejamos totalmente excluídos da
experiência de Paulo: “Esquecendo o que ficou para trás e
avançando para o que está adiante...” (Filipenses 3.13 -
tradução livre). Se Paulo se detivesse na gravidade dei sua
culpa por causa das perseguições que fez aos cristãos e
pelo apedrejamento de Estevão (durante o qual Paulo
aparentemente segurou os mantos dos assassinos - Atos
8.58), teria morrido enfeitiçado. Se Paulo não tivesse
passado pela experiência humilhante porém renovadora da
ternura divina, poderia muito bem ter se tornado um ser
patológico. As catorze epístolas jamais teriam sido escritas,
o reino de Deus não teria se estendido ao mundo gentílico
(ao menos por meio dele), e crentes incontáveis não teriam
acesso ao conhecimento que ele nos deu acerca do mistério
da salvação. Paulo teria morrido um homem profundamente
entristecido e culpado. Mas, nas profundezas de sua
melancolia, o Jesus ressurreto o guiou ternamente à paz
banhada em graça.
O ódio a si mesmo devido a fracassos verdadeiros ou
imaginários gera uma culpa enfraquecedora e é produzido
pelo pai da mentira. Ele compromete o plano de Deus para
a nossa existência, a nossa reputação pessoal no mundo.
Quando ridicularizamos a nós mesmos e dizemos “eu nasci
perdedor, uma fraude, um hipócrita”, então ridicularizamos
o plano divino - ridicularizamos todos os sonhos que Deus
realizaria através de nós, toda a alegria que Ele antevê em
nós e toda a esperança que ele plantou em nós.
A compreensão do Espírito de Deus como sendo a
ternura entre o Pai e o Filho sugere uma espiritualidade
descomplicada, afinada com o momento presente na total
simplicidade do aqui e do agora (“não penso no que virá a
seguir...”). Abrir mão dos cuidados com o ontem e
desdenhar das preocupações do amanhã é um forte
imperativo evangélico. “Portanto, não se preocupem com o
amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias
preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal” (Mateus
6.34).
O significado do aqui e agora é ilustrado de maneira
muito bela por uma estória, sobre um monge perseguido
por um tigre feroz. Ao aproximar-se de um precipício, o
monge olhou para trás e viu o tigre preparado para o bote.
No último instante, localizou uma corda pendurada na
extremidade do abismo e começou a curvar-se tentando
alcançá-la, e ficar fora do alcance do tigre. Ops! Ele olhou
pra baixo e viu o buraco, enorme, cheio de pedras afiadas
ao fundo. Não foi um bom sinal. Recuar, talvez? Não, o tigre
estava posicionado com as garras à mostra. Enquanto
pensava em suas opções, dois ratinhos começaram a roer a
corda.
O que fazer? O monge viu um morango ao alcance de
sua mão brotando à beira do abismo. Ele o apanhou, comeu
e declarou que aquele havia sido o melhor morango que
comera na vida. Se estivesse preocupado com as rochas
abaixo (o futuro) ou com o tigre acima (o passado), poderia
ter perdido o morango que Deus estava lhe dando no
momento presente.[4]
Embora estivesse a poucos instantes de morrer, o monge
celebrou o aqui e agora. A vida no Espírito continuamente
nos envia tigres, rochas pontiagudas - e morangos. Será que
nos permitimos desfrutar dos morangos? Ou será que
desperdiçamos nossa consciência difusa, preocupando-nos
com os perigos do passado e do futuro?
Viver na sabedoria da aceitação da ternura significa
receber cada momento como um fim em si mesmo.
Este modo de vida não requer que tentemos ter a
memória sempre ativa a despeito das distrações no trabalho
e na vida. O esforço extenuante para permanecer centrado
tem sido em vão na minha experiência pessoal: meu
trabalho tem sido descuidado e tenho me esgotado. Ele
tampouco justifica o empenho na obtenção de um estado
especial de consciência que poderia ser chamado de
“contemplativo”. Em meu caso, isso tem levado à
sonolência e eventual torpor. Ele não tenta se concentrar
cm Deus “lá no alto e lá fora”, independente de nosso
contato com Ele, ou distanciar-nos do ambiente normal e
saudável das amizades, projetos e relacionamentos. Ele
simplesmente permite que vivamos em confiança,
transparência e compaixão.
Vislumbrei a experiência do Espírito de Deus como
ternura de modo bem imperceptível durante uma festa de
aniversário de quarenta e cinco anos de casamento. O
marido e a esposa haviam se retirado por algum tempo da
festa, e eu os encontrei casualmente. Eu não estava
olhando para eles enquanto passava por uma varanda
coberta, nem escutando sem ser notado - mas fiquei
hipnotizado com o que vi. Ali estavam eles, sentados sobre
um banco romântico, com uma luz difusa brilhando
indiretamente sobre o rosto do homem. Ele olhava com
intensidade para sua companheira - aquela mulher sobre
quem ele sabia tudo que havia para saber: suas qualidades
e fraquezas, suas eventuais alterações de humor, seu
temperamento e reações infantis, seu senso de amor e sua
insegurança, as ocasiões em que discretamente recusou
favores sexuais, os momentos em que os aceitou, suas
chatices e sua magnanimidade. Nada permaneceu oculto.
A expressão nos olhos do homem comunicava afeto,
ternura, e a mesma compaixão que ela lhe havia
demonstrado durante suas lutas com John Barleycorn.
Nenhuma palavra foi trocada. Ela suspirava, enquanto
lágrimas rolavam pela sua face. Eles se abraçaram.
A espiritualidade da aceitação da ternura produz uma
percepção acumulada do olhar amoroso do Abba de Jesus
com todas as qualidades acima mencionadas infinitamente
amplificadas, e nos capacita assim a estarmos a sós com
Deus em meio às mais diversas atividades. Permite uma
presença despretensiosa no presente momento sem
manuais ou espelhos, alvos ou planos de jogo, tensão ou
angústia. Ela simplesmente se alegra no dom. E esta
espiritualidade é toda a obra do Espírito definida como
“ternura concedida”.
Essa ternura também inclui uma certeza não verbal de
que Jesus suprirá a graça para o próximo passo na jornada
espiritual. Charles de Foucauld, um ermitão do deserto e
uma inspiração para uma comunidade conhecida como
Irmãozinhos de Jesus, escreveu: “A única coisa que
absolutamente devemos a Deus é jamais ter medo de coisa
alguma”. Sua confiança destemida no amor de Deus
transformou-se em confiança humilde de que a graça para o
próximo passo na dança da vida já estava ali, concedida.
Sem ansiedade, os filhos de Abba seguem adiante, sabendo
que o próximo, o próximo e o próximo passos cuidarão de si
mesmos. Os filhos de Abba não se preocupam com o
amanhã ou mesmo com o fim desta tarde.
Fico impressionado com o tempo que foi necessário para
que eu aprendesse isso e chocado com a rapidez (e a
frequência) com que o esqueço. Na tenra idade de vinte e
um anos, me apaixonei por uma garota do Brooklyn. Eu ia à
missa todos os domingos, resistia ao sexto mandamento
(pura bravura) e entrei em rota de colisão com um Deus
desconhecido. Sc alguém tivesse ousado prever que seis
meses depois eu estaria em um monastério franciscano
estudando para ser padre, eu teria me tornado catatônico,
me escondido debaixo da cama ou apanhado um táxi para
Timbuktu.
Durante aqueles anos de transição, eu não compreendia
que a graça de Deus sempre precede o seu chamado. Anos
mais tarde, olhei pra trás e fiquei maravilhado com a
relativa facilidade com que Bárbara e eu havíamos
terminado o relacionamento, e o entusiasmo com o qual eu
havia me encaminhado a um monastério longínquo,
encravado no sopé das Montanhas Allegheny. Viver na
sabedoria da aceitação da ternura é uma aventura
interminável de confiança e dependência.
O evangelista Robert Frost, falando em uma conferência
nacional em Notre Dame, Indiana, relatou o
desenvolvimento de sua vocação. Aos vinte e poucos anos
ele se sentiu chamado por Deus para o ministério. No
entanto, por causa do temor de ser enviado à África como
missionário (algo que o enchia de pavor), resistiu
bravamente ao chamado. Por fim, a exaustão espiritual, o
tédio e a frustração o conduziram ao seminário. Anos depois
da ordenação, ele se permitiu relaxar. Havia agora sido
efetivado como pastor. Por certo a nova safra de jovens
clérigos poderia muito bem evangelizar a África.
Certa noite, ele assistia a um especial na TV sobre o
terceiro mundo. Ficou cativado. No dia seguinte, apanhou
quatro livros na biblioteca pública sobre a África e os
devorou. Se o seu bispo o tivesse chamado semanas depois
e dito “gostaríamos que você fosse um missionário
africano”, ele teria respondido: “minhas malas estão
prontas”.
Qual é a mensagem? Deus não o envia à África sem
primeiro plantar o amor pela África em seu coração. A graça
sempre precede o chamado.
“Não tema, pequeno rebanho”.
Assim como no relacionamento humano, a ternura
envolve uma dependência contínua e cada vez mais
profunda de Deus. Se o reconhecimento da contingência
humana for meramente teórico, minha ilusão de controle
permanecerá; se ele, no entanto, for operante, não tenho de
me preocupar mais com os meios para o crescimento
espiritual. Tudo o que tenho de fazer é expor minha
fragilidade, minha pobreza e minha inutilidade àquilo que G.
K. Chesterton chamou de “o furioso amor de Deus”. A
ternura é o senso impecável de se sentir a salvo: ele vem
com a consciência de que sou totalmente querido e
completamente amado. Se um amigo dissesse, “eu o amo,
mas não gosto de você”, você não sentiria um forte
sentimento de rejeição? Deus, no entanto, não faz tais
distinções; Ele declarou sobre si, sem reservas: “haverá
mãe que possa esquecer seu bebê que ainda mama e não
ter compaixão do filho que gerou? Embora ela possa
esquecê-lo, eu não me esquecerei de você!” (Isaías 49.15,
itálicos meus).
Paradoxalmente, o senso de segurança que a aceitação
da ternura gera é acompanhado por uma crescente perda
de controle. Quanto mais nos tornamos confortáveis na
ternura de , mais sentimos as rédeas de nossa vida se
soltando e o controle rígido de nossa autonomia pessoal
escapando. O complexo napoleônico (melhor Santa Helena
que o segundo lugar) não ruge mais tão ferozmente,
clamando pela satisfação de suas exigências absurdas de
perfeição. Há menos necessidade de proclamar nossas
verdades estabelecidas ou de impô-las sobre outros como
absolutas. Nosso apego extremo ao guidão de nossa moto
Yamaha não é mais o mesmo. Não é mais importante dotar
pessoas de quem gostamos, possessões que acumulamos e
instituições que valorizamos de qualidades superlativas; não
precisamos glorificar nem o passado nem o futuro. No doce
controle da ternura não nos envolvemos em nenhuma
dessas coisas mais que o necessário e o apropriado ao
nosso modo de ser. Podemos até mesmo nos dar uma boa
nota de aprovação ocasionalmente. Este é o sinal de que a
auto-aceitação está lentamente amadurecendo na
sabedoria da aceitação da ternura.
Além disso, uma pergunta sutil, mas persistente, invade
nossas consciências: Sou eu na verdade o principal agente
de minhas próprias obras? Uma mudança significativa na
identidade funcional se agita lentamente dentro de nós.
Somos menos o professor, o programador de computador, a
enfermeira, o médico - e mais o celebrante da ternura. Ao
invés de reagir às pessoas e às coisas ao nosso redor,
respondemos à terna Presença que as sustenta, como
sustenta a nós.
Em seu clássico eterno Celebração da disciplina, Richard
Foster nota: “Louvai ao Senhor! É o grito que reverbera de
uma extremidade à outra do Saltério. Canto, brado, dança,
regozijo, adoração - todas são linguagens do louvor”. A
coisa natural a fazer quando admiramos ou apreciamos algo
é elogiar. “Que pôr-do-sol mais lindo!” “Uau! Foi um jantar
delicioso!” “Que dançarino dinâmico!”“A música de Mozart
não é celestial?” “Encantamento, surpresa, deleite,
admiração, reverência, apreciação - tudo isso se traduz em
louvor”.
O louvor é um brado festivo de uma reunião de oração
empolgante desenvolvido através de um estilo de vida.
Viver na sabedoria da aceitação da ternura é aceitar a mim
mesmo e a tudo que acontece comigo como uma dádiva
que é boa; é entender que a minha verdadeira existência é
uma expressão de louvor e gratidão a Deus. A vida se torna
um roteiro divinamente escrito de gratidão. “Falando entre
si com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e
louvando de coração ao Senhor, dando graças
constantemente a Deus Pai por todas as coisas, em nome
de nosso Senhor Jesus Cristo” (Efésios 5.19,20). Ação de
graças e louvor se tornam um modo de vida quando
aceitamos a ternura de Deus. Então é no viver que damos
graças, e nenhum outro agradecimento é mais adequado.
Louvor como uma resposta à vida é maravilhosamente
expresso por Francisco de Assis em seu luminoso “Cântico
do Irmão Sol”:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,


A Ti somente pertencem o louvor e a glória,
A honra e a bênção.
Homem algum é digno de mencionar Teu nome.
Louvado sejas, meu Senhor, por todas as Tuas
criaturas.
Em primeiro lugar pela bênção do Irmão Sol,
Que nos dá o dia e nos alumia através de Ti.
Ele é belo e radiante com seu grande esplendor,
dando testemunho a Ti, Deus onipotente.
Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Lua e pelas
estrelas formadas por ti, tão brilhantes, preciosas e
belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo Irmão Vento
E pelos ares, tão cheios de nuvens e serenos;
por todas as condições climáticas, sejas louvado,
pois elas são
doadoras de vida.
Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Agua,
Tão necessária e, no entanto, tão humilde, preciosa
e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo Irmão Fogo,
Que ilumina a noite.
Ele é belo e despreocupado, robusto e poderoso.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, Mãe
Terra, Que nos sustenta e governa Produzindo
abundância de frutos, com flores coloridas e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que
perdoam por teu amor
E suportam fraquezas e provas.
Benditos são a queles que sofrem em paz,
Pois serão coroados por Ti, Altíssimo.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, Morte
Física, da qual nenhum homem vivo pode escapar.
Ai daqueles que morrem, em pecado.
Benditos são os que conhecem Tua santa vontade.
A segunda morte não lhes fará nenhum mal.
Louvem e bendigam ao meu Senhor.
Rendam -Lhe graças.
Sirvam-no com grande humildade.
Amém.

Paulo escreve: “pois desde a criação do mundo os


atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua
natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo
compreendidos por meio das coisas criadas” (Romanos
1.20). Assim como São Francisco, Paulo fala da consagração
de toda a vida através do louvor cristão, e da invasão do
mundo dos reconciliados pelo Espírito de Abba, a ternura de
Deus, fluindo, de coração aberto, a partir do Filho
ressurreto.
Um efeito adicional da compreensão de Deus como
sendo o cerne da ternura é a reconciliação. Vista de uma
perspectiva bíblica, a reconciliação não é primariamente
fazer as pazes com outra pessoa, mas nos apaziguarmos
conosco mesmos naquela dimensão de nossas vidas onde
anteriormente não fomos capazes de encontrar paz.
A reconciliação é a cura interior de nossos corações pela
ternura de Jesus. Como experiência, ela é raramente uma
catarse repentina, obtida pelo toque de dedos na testa; não
é uma liberação imediata da dor, nem é simplesmente
aprender a nos resignarmos com aquilo que sabemos que
jamais pode ser mudado. Ela, na verdade, é um crescimento
suave numa unidade que não é obra nossa. E uma alegria
serena que flui de um encontro engajado e participativo
com o Filho da compaixão, o único que pode curar no novo
Israel de Deus.
Certa ocasião, tarde da noite, quando eu dirigia um retiro
espiritual, uma freira de setenta e oito anos bateu em
minha porta. Convidei-a para entrar e perguntei: “Como
posso ajudá-la?”
Ela começou a chorar. Pequenina e frágil, ela tremia ao
soluçar. Quando as lágrimas cessaram, ela disse: “Nunca
falei com ninguém sobre isto. Tudo começou quando eu
tinha cinco anos. Meu pai subia rastejando a minha cama,
sem roupa. Tocava em minhas partes íntimas e pedia para
que eu tocasse nas suas [os dedos dela, estendidos, não
deixavam dúvidas]. Ele dizia que o médico de nossa família
havia sugerido o toque, para que pudéssemos conhecer
melhor um ao outro. Quando tinha nove anos, meu pai me
desvirginou, e, aos doze, conhecia todo tipo de perversão
sexual descrita nos piores livros sobre o assunto”.
“Não tenho palavras para dizer o quanto me sinto
imunda. Tenho vivido com tanto ódio de meu pai e de mim
mesma que só participo da mesa da comunhão quando
minha ausência ali fica evidente”.
Orei com ela por alguns minutos, pedindo por sua cura
interior. Perguntei-lhe, então: “Irmã, você estaria disposta a
procurar um lugar silencioso todas as manhãs durante o
próximo mês, sentar-se em uma cadeira, fechar seus olhos,
virar as palmas de suas mãos para cima, e orar esta frase
repetidas vezes: Abba, eu pertenço a Ti’?”
Ela me olhou com um olhar cético, e eu então me
expliquei melhor: “E uma frase com sete sílabas poéticas, e
sete sílabas correspondem perfeitamente ao ritmo de nossa
respiração. Inspire em Abba, expire em eu pertenço a Ti"
“No princípio, você a pronunciará somente com seus
lábios, mas quando sua mente ficar consciente de seu
significado, você irá começar a empurrar sua mente para
dentro de seu coração de modo figurativo, para que Abba,
eu pertenço ti’ se torne aquilo que, em francês, é un cri de
coeur, um clamor de coração do profundo do seu ser,
estabelecendo quem você é, por que você está aqui e para
onde está indo.”
“E uma oração que você pode fazer enquanto trabalha
no jardim, ouve música, dirige o carro, atravessa a rua,
assiste TV, lê um livro, prepara um bolo, deita na cama.
Quando você a fizer dezenas e dezenas de vezes ao dia e
ela se harmonizar ao ritmo da batida de seu coração, você
poderá, como disse Jesus em Lucas 18, orar por todo o dia e
nunca desanimar”.
Eu perguntei à freira: “Você tentará?”
Ela respondeu: “Sim”.
Duas semanas depois, recebi a carta mais emocionante e
poética que me foi escrita. Aquela velha senhora descreveu
a cura interior de seu coração, o perdão completo de seu
pai, uma paz interior que ela nunca havia experimentado
antes. Ela terminou sua carta deste modo: “Um ano antes,
eu teria assinado esta carta com meu nome religioso, irmã
Mary Genevieve, mas, de agora em diante, sou apenas a
filhinha do Papai”.
O suave crescimento na unidade, a reconciliação com
aquela dolorosa dimensão de seu passado, na qual não
conseguia encontrar paz, aconteceu por causa do afago
meigo à sua memória e do massagear de seu coração pelo
Espírito de Abba, derramado do coração de Jesus Cristo.
Como o exemplo dela nos mostra, a aceitação da ternura
nos livra de sermos tiranos com nós próprios, darmos vazão
à vingança e escravizarmos a nós mesmos, dentro das
barreiras de nossos temores. Os cristãos que têm
interiorizado a ternura de Deus se tornam menos
defensivos, mais simples e diretos, mais aptos a se
comprometerem, mais cientes, porém menos temerosos das
forças que neles habitam, que os cercam e insistem em
impor sobre eles mediocridade e insignificância.

Um dos maiores paradoxos da vida é que é na dor e no


sofrimento da provação que somos enternecidos. E certo
que isso não se aplica a toda dor e sofrimento. Se esse
fosse o caso, o mundo inteiro estaria enternecido, uma vez
que ninguém escapa da dor e do sofrimento. A esses
elementos acrescente-se o luto, a compreensão, a
paciência, o amor e a disposição de se permanecer
vulnerável. Juntos eles conduzem à sabedoria e à ternura.
Instintivamente, o coração entende que aquele que cura
tem de ter conhecimento de causa em relação à dor que
cura. Este instinto é confirmado por Francis Mac-Nutt, um
doutor em teologia, preeminente no ministério de cura.
Dirigindo-se aos envolvidos nesse tipo de ministério, ele
escreve: “A experiência indica que certas pessoas têm um
poder especial de orar por certas enfermidades, mas que
são apenas de razoáveis a regulares em se tratando da
oração por outras doenças”. Ele cita o caso de Michael
Gaydos, que, depois de ter sido curado de sua visão
deteriorada, tem sido eficaz na oração de cura por aqueles
que possuem uma aflição semelhante. “Sua experiência nos
leva a outra conclusão interessante: pessoas que foram
curadas de uma enfermidade específica parecem ter um
dom especial, a partir do momento em que foram curadas,
de ministrar a pessoas com o mesmo problema. Talvez isto
se dê porque elas agora têm uma fé maior na área na qual
elas mesmas experimentaram diretamente o poder de
Deus”.
Uma explicação mais detalhada pode ser a de que o grau
de compaixão pela pessoa que sofre se aprofunda. Ao orar
por alcoólicos crônicos, sou coberto por uma onda de
compaixão que normalmente não experimento na oração
pelos enfermos, talvez por causa de minha própria luta
contra o alcoolismo (que foi mais bem descrita em outro
livro). O aprisionamento amaldiçoador de não conseguir
parar, a obsessão da mente e a compulsão do corpo que
paralisam a liberdade de escolher, o terror do cativeiro
humano, o recorrente sentimento de hipocrisia, culpa,
vergonha, solidão e o temor angustiante de que perdi Deus
para sempre são rapidamente revividos quando oro por um
alcoólico. Através do sofrimento vicário, uma profunda
conexão é estabelecida, e a verdade inescapável, “eu sou o
outro”, põe por terra qualquer sentimento de separação. O
ministério de cura é uma atividade desconcertante, e eu
não me atrevo a afirmar que entendo por que alguns são
curados e outros não. Com minha experiência limitada
nessa área, arrisco uma conjectura: quanto maior a nossa
empatia, quanto mais proximamente nos identificamos
através da compaixão com a pessoa por quem oramos,
mais perfeita é a comunhão com a terna misericórdia do
Cristo que cura.

Em sua obra definitiva Wounded Healer [Médico ferido],


Henri Nouwen indica que a graça e a cura são comunicadas
através da vulnerabilidade de homens e mulheres que têm
sido partidos pela engrenagem da vida. O anjo na peça de
um ato de Thornton Wilder, The Angel That Troubled the
Waters [O anjo que agitava as águas], tem uma mensagem
semelhante, ao dizer ao médico ferido: “Sem suas feridas,
onde estaria o seu poder?... No serviço do Amor, somente
soldados feridos podem servir”.
Se seguirmos o instinto de que um agente de cura tem
de conhecer por experiência própria a dor que cura, é
melhor entendermos por que só há um capaz de curar no
novo Israel de Deus - Jesus, o Senhor. Somente alguém que
tenha conhecido nossa agonia e sofrimento poderia, por
meio de sua vinda, transformar essa agonia em paz. Aquele
que vem para curar se fez presente e partilhou de cada
mágoa conhecida pela humanidade.
Intuitivamente, na fé, compreendemos o símbolo do
amor terno, redentor, curador e integrador de Deus
conforme corporificado no Salvador crucificado. “Deus
tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para
que nele nos tornássemos justiça de Deus” (2 Coríntios
5.21). Toda forma de pecado e suas consequências,
enfermidades e doenças de todo tipo, vícios,
relacionamentos rompidos, inseguranças, sensualidade
distorcida, ódio, cobiça, orgulho, inveja, ciúmes - tudo isso,
e muito mais, foi experimentado e carregado por “(alguém)
desprezado e rejeitado pelos homens” (Isaías 53.3) que
conheceu aquele ponto mais baixo de uma agonia que
homem algum jamais sonhou conhecer. Cristo na cruz: é
inconcebível o que ele passou enquanto pendurado nu e
pregado ao madeiro.
Ninguém jamais morreu como Jesus, porque ele era a
própria vida; ninguém jamais foi punido pelo pecado como
ele foi - aquele que não tinha pecado. Ninguém jamais
experimentou o mergulho no vácuo do mal como Jesus de
Nazaré. A ser humano algum será dado conhecer a dor por
trás das palavras “Meu Pai, porque me abandonaste?” ou a
agonia daquela morte, não apenas aceita com paciência,
mas suportada com gritos a Deus. E, no entanto, “ele tomou
sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas
doenças” (Isaías 53.4).
Não pode haver outro agente curador na confusão e na
loucura do nosso mundo pós-moderno, porque nenhum
outro tem estado presente. Somente Jesus Cristo, “um
homem de dores e experimentado no sofrimento”, carregou
a dor na paz da graça. Ele promoveu a paz através do
sangue da Sua cruz.
Mas o Pai livrou Jesus do pecado e da morte,
ressuscitando-o, exaltando-o “e dando-lhe um nome que
está acima de todo nome” (Filipenses 2.9). Para Jesus, a
experiência da ternura que cura foi uma experiência de
Abba. E assim é conosco.
Através do Espírito Santo da ternura concedida nos
identificamos com o Cristo humano e passamos a conhecer
o Deus de Jesus como nosso Abba. Cada libertação da
escuridão e cada cura interior e física deveria evocar o grito
‘Abba, Pai”. Localizamos a origem do dom da ternura que
cura e que vem a nós, e nossa fé se torna aquilo que o
escritor espiritual francês Blaise Arminjon chama de
“estremecedora certeza do amor”.
Depois de haver compartilhado minha experiência de
trinta e uma horas de oração com meu diretor espiritual, ele
fechou seus olhos e permaneceu mudo por alguns minutos.
Depois, disse: “Agora está muito claro em minha mente por
que nada realmente acontece na vida de uma pessoa até
que ela tenha experimentado e aceito a ternura de Deus.
Somente então ela pode ser terna com os filhos de Deus”.

Leitura Recomendada:
Farrell, Edward. The Father Is Fond of Me. Starruga, PA:
Dimension Books, 1978.
Foster, Richard. Celebração da disciplina. São Paulo, SP:
Editora Vida, 1983.
Keyes, Ken, Handbook of Higher Consciousness.
Berkeley, CA: Living Love Center, 1972.
Küng, Hans. Porque ainda ser cristão hoje?. Campinas,
SP: Verus Editora, 2004.
Nelson, John. The Little Way of Thérèse of Lisieux. St
Louis, MO: Liguori Press, 2000.
Tozer, A. W. The Knowledge of the Holy. San Francisco,
CA: HarperSanFrancisco, 1961.
Van Breemen, Peter. The God Who WontLet Go. Notre
Dame, IN: Ave Maria Press, 2001.
Capítulo II

A chancela da verdade

O perdão irreversível de Deus, sua paciência infinita e seu


terno amor nos embelezam e enchem de graça. O doce
Espírito que habita em nós nos cura e nos torna íntegros.
Somos capacitados a viver vidas de alegria e admiração,
cativados pela promessa imerecida do Reino. Tudo que
temos e somos como humanos e cristãos deriva da bondade
e generosidade de Deus.
Que resposta o Pai busca como retorno à sua ternura
incansável? A experiência pessoal nos tem ensinado que a
ilusão e o auto-engano não são incomuns na vida espiritual.
O que dá chancela à verdade e o selo de autenticidade à
resposta do cristão ao amor de Abba, a firme certeza de que
não está enganando a si mesmo?
A resposta não é vaga, nem ambígua. Falando primeiro
através da voz de seu Filho amado, Abba diz:

“Venham, benditos de meu Pai"! Recebam como


herança o Reino que Lhes foi preparado desde a
criação do mundo”. Por que os declaro benditos c
beneficiários do Reino? Porque o único Filho que tive
teve fome, e vocês lhe deram de comer; teve sede, c
vocês lhe deram de beber; foi estrangeiro, e vocês o
acolheram; necessitou de roupas, e vocês o vestiram;
esteve enfermo, e vocês cuidaram dele; esteve preso,
e vocês o visitaram. Então os justos lhe responderão;
“Abba, quando vimos teu Filho amado com fome e lhe
demos de comer, ou com sede e lhe demos de beber?
Quando o vimos como estrangeiro e o acolhemos, ou
necessitado de roupas e o vestimos? Quando o
visitamos, quando ele estava enfermo ou preso?” Eu
responderei: “Digo-lhes a verdade:
O que vocês fizeram a algum dos meus menores
irmãos, fizeram a meu Filho único” [Tomei as palavras
de Jesus em Mateus 25.34-40 e as adaptei como se
tivessem sido ditas pelo Pai. O significado essencial
da passagem permanece o mesmo].

Orar Abba no Espírito é fazer nossa vida interior refletir a


de Jesus e se tomar um filho ou filha no Filho (filii in Filio).
“Porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho
ao coração de vocês, e ele clama: ‘Abba, Pai’ (Gálatas 4.6).
Com o Espírito em nossos corações, temos uma experiência
de fé viva; e a fé viva, de acordo com Paulo, “se expressa
em amor” (Gálatas 5.6 - tradução livre).
Exagero e supervalorização, aqui, não são os perigos. O
amor é o eixo da revolução moral cristã e o único sinal por
meio do qual o discípulo deve ser reconhecido (João 13.35).
O perigo espreita nossas tentativas sutis de minimizar,
racionalizar ou justificar nossa moderação a respeito deste
assunto.
A resposta que o Pai busca à sua singular generosidade,
e o sinal de que estamos vivendo na sabedoria da ternura, é
que amemos, honremos, sirvamos e reverenciemos Seu
único Filho quando ele se manifesta no menor dos irmãos.
“Estas palavras que vocês estão ouvindo não são minhas;
são de meu Pai que me enviou”, disse Jesus (João 14.24). A
disposição para viver em prol dos outros é uma medida
mais exata de nosso amor por Jesus do que o êxtase em
oração. Como afirma Thomas Merton: “Sem amor e
compaixão pelos outros, nosso aparente amor por Cristo é
uma ficção”.
Quando não vivo mais para mim mesmo, posso abrir-me
para Deus e para o meu próximo, a quem Deus aceita,
como aceita a mim.
A questão sobre quem é meu próximo é tratada por Jesus
na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10.29-37). É
interessante notar que a percepção consciente da presença
de Jesus “no menor dos irmãos” não é esperada nem
exigida. O Samaritano auxilia o homem atacado sem se
deter em preocupações religiosas. Ele se concentra na
necessidade do homem sem questionar a situação de sua
vida de oração.
“Senhor, quando te vimos com fome e te demos de
comer?” Os declarados benditos no Juízo Final não se
lembrarão de ter encontrado Jesus naqueles que
alimentaram, abrigaram e consolaram. Não se lembrarão
porque, naqueles momentos, quando a necessidade urgente
se manifestou, eles se esqueceram de si mesmos. Em
liberdade consciente, reagiram à necessidade humana sem
buscar serem notados, sem a preocupação de impressionar
ninguém nem de obterem condecorações por seu
comportamento. No Juízo Final, ficarão confusos ao saber
que o velho homem desorientado, sem papas na língua,
movimentando-se de um lado para o outro de seu
apartamento mal conservado, resmungando da receita que
precisava da farmácia, era o Mestre. É libertador saber que
não temos que reconhecer Jesus no menor dos irmãos ou
irmãs ou conceder alguma qualidade atribuída a Cristo a um
mendigo à porta. Isso, no entanto, requer muito tempo,
atenção e energia. Os horizontes do interesse cristão se
ampliam para além da retidão moral, do convertido em
potencial e daquele que é grosseiro, mas tem boa índole.
A resposta à pergunta quem é meu próximo nos faz
mergulhar no escândalo de Jesus. O caminho da ternura não
é o da bondade crônica, da sentimentalidade descuidada ou
de uma espiritualidade enfadonha para idiotas. A vida
espiritual não é uma teoria. Vivê-la, trilhando o caminho da
ternura, demanda uma conversão radical, a renúncia a um
código moral limitado e uma vida de serviço humilde.
Este, no entanto, não é um retrato típico da vida
espiritual. Em seu livro de referência Por que ainda ser um
cristão hoje?, Hans Küng escreve:

A coisa absolutamente imperdoável [em Jesus] não


era a preocupação com os enfermos, os aleijados, os
leprosos, os possessos... nem mesmo sua opção pelas
pessoas pobres e humildes. O verdadeiro problema é
que ele se envolveu com fracassados morais, com
pessoas obviamente incrédulas e imorais: pessoas
moral e politicamente suspeitas, muitas delas tipos
dúbios, obscuros, abandonados, sem esperança, à
margem de toda a sociedade. Este era o verdadeiro
escândalo. Será que ele tinha mesmo de ir tão longe?
Esta atitude, na prática, é notadamente distinta do
comportamento geral das pessoas religiosas.

Os fundamentos da religião tradicional foram claramente


abalados. Traidores, estelionatários e adúlteros entram no
Reino adiante dos religiosamente respeitáveis. O filho
depravado é amado tanto quanto seu irmão que trabalhou
duro e que nunca frequentou a noite. O samaritano herético
é apresentado como um modelo ao sacerdócio Levítico. Ao
fim, ambos recebem a mesma recompensa. A justiça parece
ter virado de cabeça para baixo.
" Que tipo de justiça lunática é esta que abole todos os
padrões sagrados e reverte todas as ordens de pontuação,
tornando os últimos primeiros, e os primeiros últimos? Que
tipo de amor ingênuo é este que não faz nenhuma distinção
entre profissões honrosas e não-honrosas?
Ensino perigoso, que reduz o evangelho a fragmentos de
verdade em um mar de delírio! Se a suposição básica do
cristianismo é a de que Deus é um ser estranho, então,
como escreveu E. E. Cummings: “Dane-se tudo, menos o
circo!” Se o Deus de Jesus escolhe comportar-se de maneira
tão tola, quem pode levá-lo a sério? Se Jesus perdoa tão
indiscriminadamente, e nos encarrega de fazer o mesmo, a
vida é uma fábula contada por um idiota e qualquer um
pode acreditar nela. Se o Reino é acessível a todos, a justiça
então está falida, a retidão humana está enfraquecida, e as
verdadeiras raízes da religião estão arrancadas.
Estes eram alguns dos protestos dirigidos de forma
violenta a Jesus de Nazaré por muitos judeus palestinos.
Gritando acusações de “herético” e “blasfemo”, os cínicos,
céticos e pessimistas - sensíveis todos eles - prevaleceram
(Quão benditos são os sensíveis, ontem e agora: eles verão
bem a ponta de seus narizes).
Contra todas as regras da prudência e da discrição, Jesus
anunciou a aurora de uma nova era, o início de uma justiça
mais elevada, o manifesto convincente de que havia vindo
chamar pecadores. Ainda mais alarmante era afirmar que o
pecador seria aceito antes de qualquer declaração de
arrependimento. Primeiro vem a graça, (ternura concedida);
e, então, vem a decisão de seguir uma nova direção.
A poderosa misericórdia de Jesus está em ação,
protegendo fracassados morais da humilhação intensa e da
desvalorização moral dos burocratas religiosos que
separaram a espiritualidade da religião, o coração da
cabeça e a graça da natureza. Verdadeiros pecadores que
merecem real punição são graciosamente perdoados;
necessitam tão somente aceitar a ternura já presente. O
perdão foi concedido; eles precisam somente da sabedoria
para aceitá-lo e se arrepender. Estes são os maltrapilhos, os
pobres de espírito que Jesus declarou benditos. Eles sabem
como aceitar um presente. “Venham a mim todos os que
estão esgotados, confusos, transtornados, perdidos,
abatidos, marcados, assustados, ameaçados e deprimidos, e
eu aliviarei suas mentes com sabedoria e encherei seus
corações com a ternura que tenho recebido do Pai”. Trata-se
de um perdão incondicional. O pecador necessita apenas
viver confiadamente, na sabedoria da ternura.
“A graça, portanto, vem antes da lei”, escreve Küng, “ou
melhor, a lei da graça é o que realmente vale. Somente
deste modo é uma justiça nova e a mais elevada possível. E
ela começa com perdão incondicional: a única condição é a
confiança inspirada pela fé ou fé que confia; a única
consequência a ser observada é a concessão generosa do
perdão a outros. Qualquer um que se permita viver
perdoado de grandes coisas, não deve recusar o perdão nas
pequenas coisas”.
A razão principal pela qual devemos perdoar ao invés de
condenar é a de que o próprio Deus não condena, mas
perdoa. Por ele ter livremente escolhido colocar a ternura
adiante da lei, somos autorizados a fazer o mesmo. No
imaginário das parábolas, Deus é apresentado como o pai
que corre para encontrar seu filho, o fazendeiro
absurdamente generoso que dá aos que chegam atrasados
a mesma paga dos que trabalharam o dia todo, o juiz que
ouve a oração insistente da viúva. No homem Jesus, o Deus
invisível se toma visível e audível, e é visto como um Deus
de "ternas misericórdias pelas quais do alto nos visitará o
sol nascente, para brilhar sobre aqueles que estão vivendo
nas trevas e na sombra da morte, e guiar nossos pés no
caminho da paz” (Lucas 1.78,79). O profeta Jesus ensinou,
no poder do Espírito, que o perdão e a doação do cristão
devem imitar o perdão e a doação de Deus. A aceitação é
absoluta - sem questionar o passado, sem condições
especiais - para que o pecador libertado possa viver
novamente, aceitar, perdoar e amar a si próprio.
Como cristãos, vivendo no Espírito, somos chamados a
compartilhar a ternura de Deus. Os parâmetros de nossa
compaixão se estendem para além daqueles que optam
pelo nosso estilo de vida, favorecem a nossa existência, ou
nos dão sensação de bem-estar. Acusações de elitismo são
retiradas por falta de provas. Paz e reconciliação para todos,
sem exceção - até mesmo para os fracassados moralmente
- é o estilo de vida radical dos cristãos que vivem na
sabedoria que aceita a ternura. Podemos ser chamados de
amigos de cobradores de impostos e pecadores - mas
somente por que somos (ou deveríamos ser).
Compreendemos que estamos na companhia de pessoas
bem honradas, esses pecadores; na verdade, estamos na
companhia do próprio Jesus. De acordo com o evangelho, é
a ternura irrestrita e a compaixão ilimitada que chancelam
nosso relacionamento com o Pai de Jesus, como
pertencentes à ordem do Verdadeiramente Real.
Essa afirmação tem a chancela da verdade. Como Jesus,
ela nos leva a uma experiência mais profunda com Abba.
Capítulo III

Cristo em outros

Que mudança de frase estranha no capítulo treze do


evangelho de João: Jesus disse, “como eu os amei, vocês
devem amar-se uns aos outros” (13.34). Por certo, teria sido
mais razoável dizer “amem a mim como eu tenho amado
vocês.” Mas ele não disse isso.
Novamente, na primeira carta de João, lemos: “Visto que
Deus assim nos amou, nós também devemos amar uns aos
outros” (4.11). Teria sido muito mais lógico para devemos
amá-lo”. Mas ele também não disse isso.
Ainda assim, aquilo que não foi dito teria uma lógica
humana, boa e sã, e seria a que seguiríamos, se o Novo
Testamento não insistisse tanto em ter a sua própria lógica,
que funciona do seguinte modo: na ordem prática do Reino,
o amor a Deus e o amor ao próximo são inseparáveis. “Se
alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é
mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não
pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4.20).
No inverno de 1947, o Padre Pierre, conhecido como o
apóstolo moderno da misericórdia aos pobres de Paris,
encontrou uma jovem família quase morta de frio nas ruas.
Ele a retirou de onde estava e levou-a até a sua própria
habitação, também pobre e já repleta de desabrigados.
Onde ele conseguiria alojá-la? Depois de pensar por um
tempo, foi à capela, removeu o Santíssimo Sacramento e o
colocou no andar de cima, em um sótão sem aquecimento e
instalou a família na capela para passar a noite. Quando
seus confrades dominicanos mostraram-se chocados diante
de tamanha irreverência ao Santíssimo Sacramento, o Padre
Pierre respondeu: “Jesus Cristo não está com frio na
Eucaristia, mas está com frio no corpo de uma criancinha”.
Nós, cristãos, professamos com ousadia que Jesus Cristo
está presente dentro de nós e citamos João 15.4 como um
texto que comprova essa afirmação. Mas Jesus também
disse que está presente naqueles que estão ao nosso redor
(Mateus 25.40). Por que não cremos nisso?
Temos a mesma razão para aceitar ou rejeitar ambas as
presenças - a Palavra do Senhor Jesus Cristo.
A visão do evangelho é precisa neste ponto: não
podemos adorar a alguma deidade vaga acima das nuvens;
não podemos reconhecer Jesus Cristo vivendo dentro de nós
e ignorá-lo naqueles que estão ao nosso redor. Dois fatos
centrais do cristianismo emergem - Cristo está em você e
Cristo está em mim - e, no final, como disse Santo
Agostinho, “haverá o Cristo uno amando a si mesmo”.
O Senhor está nas pessoas com quem encontramos e
gastamos tempo todos os dias, as pessoas a quem
pensamos poder ler como um livro aberto. Algumas vezes
ele está escondido, outras vezes tem as mãos e os pés
amarrados, mas, de qualquer modo, está ali. Recebemos o
dom da fé para detectar sua presença, e o Espírito Santo foi
derramado em nossos corações para que possamos amá-lo
ali, nas pessoas, pois o significado de nossa religião é o
amor. A essência do cristianismo é o amor, e nós o
recebemos assim, ou o rejeitamos. Ele não tem a ver com
adoração e moralidade, a menos que essas coisas sejam
expressões do amor, que faz com que elas existam. “E
típico de Jesus”, nota Küng, “que o amor assim se tome o
critério de piedade e a conduta, como um todo, de uma
pessoa”.
Uma vez que o chamado Grande Mandamento combina o
amor a Deus e o amor ao próximo - “Ame o Senhor, o seu
Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo
o seu entendimento. Este é o primeiro e maior
mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Ame o seu
próximo como a si mesmo. Destes dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus 22.37-40) - em
uma unidade indissolúvel, é impossível colocar Deus e o
homem um contra o outro. Antes de nos aproximarmos da
mesa do Senhor, dizem as Escrituras, deveríamos primeiro
nos reconciliar com nosso irmão ou irmã e então voltarmos
e fazermos a nossa oferta (Mateus 5.23,24). A causa de
Deus não é o culto, mas a humanidade.
Por causa da misteriosa substituição de Cristo pelo
cristão, cada encontro com um irmão ou irmã é um encontro
real com o Senhor ressurreto, uma oportunidade para
responder criativamente ao evangelho e amadurecer na
sabedoria da ternura. A nós tem sido dado tempo para fazer
o amor crescer e o sucesso de nossas vidas será medido por
quão delicada e sensivelmente temos amado. Não há como
escapar da lógica do evangelho de que todos os nossos
pensamentos, palavras e ações endereçados a outros estão
de modo inquestionável endereçados ao próprio Cristo.
Não é verdade que cada um de nós vive em um mundo
todo seu - o mundo de nossa mente? Que mundo mais
populoso ele pode ser! E quão cruel! Quão frequentemente
somos intransigentes, frios, superiores, incapazes de
perdoar e julgadores. Quão prontamente empurramos Jesus
Cristo de seu trono de juízo e nos sentamos nele para
julgarmos os outros (embora não tenhamos nem
conhecimento, nem autoridade para julgar ninguém).
Nenhum de nós jamais tem visto um motivo. Portanto,
não sabemos, não podemos fazer nada além de suspeitar
daquilo que inspira a ação do outro. Por esta boa e válida
razão, somos exortados a não julgar. “Não julguem, para
que vocês não sejam julgados” (Mateus 7.1). Se, no
entanto, somos imprudentes o suficiente para julgarmos os
outros, fazemos bem em lembrar a ordem de que “da
mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a
medida que usarem, também será usada para medir vocês”
(Mateus 7.2).
No entanto, julgar não é a nossa segunda natureza?
Talvez seja. Mas não há nada que pareça mais com a
verdade que a falsidade. É por isso que acreditamos tão
prontamente nas aparências, nas fofocas e nas mentiras.
Assim, embora tenhamos o impulso natural de julgar, não
estamos preparados para fazê-lo de modo justo.

Você não acha que a Virgem Maria foi julgada? Não é


provável que o povo do vilarejo de Nazaré pensasse saber a
verdadeira natureza do relacionamento entre José e Maria?
Uma garota de quinze anos namorando um homem mais
velho, solteira e grávida: não seria algo muito óbvio?
Alguém poderia ver o propósito misterioso de Deus? Alguém
poderia reconhecer como Maria havia consentido em trazer
Jesus Cristo ao mundo por meio da cobertura do Espírito
Santo?
Há muitas evidências no evangelho de Lucas de que a
mulher penitente que lavou os pés de Jesus na casa de
Simão, o fariseu, foi julgada. Os homens à mesa disseram:
“Se este homem fosse profeta, saberia quem nele está
tocando e que tipo de mulher ela é: uma ‘pecadora’” (Lucas
7.39). Por aquilo que ouviram falar ou por experiência
própria, eles a conheciam como uma mulher de reputação
questionável. Como a língua solta dos religiosos a
condenou! Mas será que alguém foi capaz de enxergar o
seu vazio interior - um vazio esperando ser preenchido pelo
amor de Jesus Cristo? As pessoas que julgaram essa mulher
impenitente estavam julgando uma das amigas mais
queridas que o Senhor teve.
Na tradição franciscana, a história de Margaret de
Cortona se assemelha à da mulher penitente das Escrituras.
Margaret corresponde à mulher da atualidade. Por anos,
viveu com um homem sem estar casada com ele e teve um
filho ilegítimo. As mulheres de Cortona cuspiram na rua
quando Margaret se mudou para a cidade. No entanto,
quando encontrou o amor misericordioso do Senhor que
redime, ela se tornou o que nunca irei me tomar - uma
santa reconhecida por todos, uma das mulheres mais
apaixonadas e extravagantes em seu amor por Deus na
história do cristianismo.
O argumento é bem simples: na maioria das vezes
(porque não conseguimos enxergar as razões), estamos
bem errados em nossos julgamentos com relação aos
outros. A tragédia é que a nossa atenção se concentra
naquilo que as pessoas não são, e não naquilo que elas são
e em que podem se tornar. Como observa Peter van
Breemen em The God Who Worit Let Go [O Deus que não irá
abrir mão], “Precisamos de enorme disciplina para abrir
mão de nossos estereótipos, nossas vantagens próprias e
nossas expectativas para contemplar o outro como ele
realmente é”. O julgamento precipitado é inimigo da ternura
e da compaixão e foi veementemente denunciado pelo
Senhor Jesus como prejudicial ao estilo de vida do Reino.
Deus deu a seus filhos um extraordinário poder através
do dom da palavra. Que poder possuímos com nossas
palavras para abençoar ou amaldiçoar, para acolher ou
rejeitar, para reverenciar ou blasfemar contra Deus!
A conhecida história de Zacharias Werner, que encontrei
na obra de Dorothy Gies McGuigan, Metternich and the
Duchess [Metternich e a duquesa], oferece uma vivida
ilustração do tremendo poder da palavra falada. Poeta
romântico que se tornou sacerdote, Werner lotava as igrejas
de Viena em 1809 com seus sermões inflamados sobre o
pecado carnal. Certo domingo, ele pregou a uma enorme
congregação um sermão sobre “aquele pequeno pedaço de
carne, o mais perigoso apetrecho do corpo do homem”.
Cavalheiros empalideceram e damas ficaram vermelhas,
enquanto ele descrevia as horrendas consequências de seu
uso indevido. Seus olhos penetrantes disparavam fagulhas
enquanto continuava ilustrando seus argumentos
graficamente.
Perto do fim do sermão, Werner inclinou-se sobre o
púlpito para gritar com seus ouvintes: “Devo dizer o nome
desse pequeno pedaço de carne?” Houve um silêncio
paralisante. Sais aromatizantes exalavam seu cheiro das
sacolas das senhoras. Ele inclinou-se ainda mais e sua voz
se ergueu até tornar-se num grito rouco: “devo mostrar a
vocês esse pequeno pedaço de carne?” Silêncio assustador!
Nenhum sussurro ou ruído de livros de oração sendo
manuseados podia ser ouvido. A voz de Werner baixou de
volume, e um sorriso se estampou em seu rosto. “Senhoras
e senhores, eis a fonte de nossos pecados!” E mostrou a sua
língua.[5]
Talvez Jesus, habitando no menor dos irmãos, seja
cortado por nossas palavras mais dolorosamente do que foi
pelos soldados romanos no Gólgota. Como fazemos com
que ele ande atordoado de um lado a outro com as coisas
que dizemos, usando-o como alvo de nossas piadas e
agindo mal, com nossas palavras e ações, para com aqueles
a quem ele ama.
Quando Jesus disse que estava com fome, com sede e nu
naqueles que nos cercam, estava se referindo a mais que
meras necessidades físicas. Estamos cercados por pessoas
que estão com fome, sede e nuas em suas almas, e elas se
dirigem a nós famintas por compreensão, sedentas por
afirmação, nuas com sua solidão, querendo ser cobertas
pelo manto de nossa genuína ternura. Eu tremo diante das
vezes, numerosas demais para contar, em que recusei
prestar-lhes auxílio. Entretido por minha auto-absorção,
quase sempre estou indisponível às suas esperanças,
temores, sonhos, alegrias, aspirações e decepções.
Com o passar dos anos, me vejo cada vez mais
impaciente e me movimentando num ritmo cada vez mais
apressado. O impostor, o sinistro despersonalizador do meu
verdadeiro eu, reapareceu disfarçado de uma personalidade
importante que tem uma missão urgente para realizar e um
império a construir. Outros podem ter tempo livre para
conversas irrelevantes à boca pequena. Entretanto, estou
organizando estrategicamente o time principal com o único
propósito de atingir o objetivo tão eficazmente quanto
possível. A intolerância para com os erros dos outros é não
somente justa como salutar. “Por quê?”, você pode
perguntar. Porque a incompetência dos outros reflete minha
própria credibilidade!
Embora não tenha nenhuma realidade ontológica, o
impostor quase sempre tem sucesso em fazer morada em
minha consciência. Ele é apaixonado por seu doutorado,
obtido com louvor, ele personifica a admiração das pessoas
que pensam bem de mim; ele é o resumo de todas as
conquistas ministeriais que me dão identidade. Quando
apresento este falso eu em oração, Deus não abençoa
aquilo que não existe. Se tiver a coragem de me aquietar,
meu verdadeiro eu sussurra: “Tudo que importa hoje é
paciência, bondade, ternura e compaixão”.
Dietrich Bonhoeffer, escrevendo em Life Together [Vida
em comunhão] sobre a vida comunitária durante os anos de
nazismo, não poupou palavras:

Ninguém é bom demais para o melhor dos


serviços. Alguém que se preocupe com a perda de
tempo que atos insignificantes e externos de ajuda
envolvem está, normalmente, levando muito a sério a
importância de sua própria carreira. Devemos estar
prontos para permitir-nos ser interrompidos por
Deus... é estranho que cristãos e até mesmo ministros
frequentemente considerem seu trabalho tão
importante e urgente que não permitem que nada os
perturbe.
Eles pensam que estão prestando um serviço a
Deus com isto, mas, na verdade, estão desdenhando
“os passos tortuosos, porém retos” de Deus (Gottfried
Arnold). É parte da disciplina da humildade não
pouparmos nossas mãos de executar um serviço, não
supormos que nossa agenda seja nossa para
administrar, mas permitirmos que ela seja arranjada
por Deus.

Humildade e amor fraternal são nossos aliados


espirituais. Quando somos sensíveis ao nosso próprio
quebrantamento e ministramos às nossas feridas com
ternura e compaixão, o “outro” não é mais um intruso, mas
um sofredor amigo.
É virtualmente impossível não perceber a intensidade na
voz de Jesus quando Ele diz: “Nem todo aquele que me diz:
'Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus, mas apenas
aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus”
(Mateus 7.21). Uma vez que temos poucas evidências de
que Jesus gastou muito tempo na igreja e muitas de que ele
andou por toda parte fazendo o bem, e, uma vez que a
compaixão não tem a ver com sentir pena das pessoas ou
acenar com a cabeça “sim, sim” por detrás das folhas do
jornal diário enquanto alguém fica bem à nossa frente
tentando ter seu coração “ouvido” (para usar o exemplo da
freira beneditina e autora Joan Chittister), parece ser seguro
dizer que a vontade do Pai é passar todos os dias amando
de fato, como Jesus amou.
Eu gasto meus dias amando? Fiz esta difícil pergunta a
mim mesmo durante um recente e solitário retiro. Viajar por
todo o país pregando o evangelho e escrever livros sobre
vida espiritual é um ministério de destaque, com seus riscos
inerentes. Há acolhimento em um gesto de reconhecimento,
uma onda de aplausos. E, no entanto, enquanto encarava
esta questão durante meu retiro, tive de perguntar a mim
mesmo - ou, como meus parentes irlandeses diriam, a si
mesmo - a retórica que emprego para descrever a vida no
Espírito combina com a realidade de meu discipulado diário?
Tenho sido cada vez mais complacente com aquilo que dou
porque ele oculta aquilo que retenho? Tenho me enganado
ao pensar que escrever sobre ternura automaticamente
transforma meu coração cm um coração valoroso? Sendo
honesto comigo mesmo, eu gasto os meus dias amando?
Depois de alguma busca de alma e de um tempo honesto
com meu diretor espiritual, conclui que a resposta é ‘sim’.
Eu passo todos os meus dias amando.
No entanto, existe um problema de proporções bíblicas
épicas: eu dividi a comunidade humana em certas
categorias. Há algumas poucas pessoas que amo, certo
número de pessoas de quem gosto e uma multidão cm
quem raramente penso, a quem me dirijo de maneira
proativa ou por quem não manifesto qualquer interesse. No
entanto, o testemunho evangélico descrito em Mateus e
Lucas invalida a discriminação de qualquer tipo. “Se tudo o
que vocês fazem é amar os que são amáveis, esperam um
bônus?”, pergunta Jesus, “Qualquer um pode fazer isso. Se
vocês simplesmente dizem ‘olá’ a quem os cumprimenta,
esperam receber uma medalha? Qualquer pecador básico
pode fazer isso” (Mateus 5:46,47, The Message). Qualquer
um de nós pode amar alguém com os mesmos interesses ou
atrações. Acho tranquilo voltar-me para pessoas que
favorecem minha existência e me fazem sentir bem. Assim
faziam os cobradores de impostos desrespeitosos, traidores
da causa judaica.
Certa noite de Natal, eu estava trabalhando com um
grupo de resgate nos subúrbios de Nova Iorque, recolhendo
bêbados das ruas. Diante de uma porta imunda, o cheiro de
um alcoólico em particular era tão ruim que perguntei ao
meu companheiro, um assistente social agnóstico, se ele o
conseguira pegar. “Sem problema”, ele respondeu.
Sussurrando palavras de ternura e consolo, ele
delicadamente ergueu o bêbado e o colocou na van. Decidi
esperar um tempo antes de falar ao meu parceiro sobre o
poder do Espírito Santo em minha vida, sobre ver Cristo nos
menores e mais insignificantes.
O assunto de que estamos tratando aqui não é
irrelevante. O amor ao semelhante é o cerne da revolução
moral cristã. A contraprova do nosso amor por Deus é o
nosso amor pelo próximo. Em A conspiração divina, um livro
que Richard Foster disse haver procurado por toda a sua
vida, Dallas Willard escreve: “A caracterização positiva da
atitude do reino é o amor ágape... Jesus não nos chama
para fazer aquilo que ele fez, mas para sermos quem ele foi,
permeados por amor. A prática daquilo que ele disse e fez,
portanto, se torna a expressão natural de quem somos
nele".
Durante seu último discurso no Livro da Glória, Jesus diz:
“Eu lhes dou um novo mandamento: amem uns aos outros.
Da mesma maneira que eu amei vocês, amem uns aos
outros. E assim que todos reconhecerão que vocês são
meus discípulos - quando virem o amor que vocês têm um
pelo outro” (João 13.34,35, The Message).
O teste mais verdadeiro de nossa fé é o modo como
agimos uns com os outros todos os dias. Quando a
supremacia do amor está subordinada à correção
doutrinária e à exegese ortodoxa, a cordialidade fria e a
indiferença polida mascaram-se de amor entre teólogos,
estudiosos bíblicos e professores por todo o país. Quando o
controle absoluto e a obediência rígida se fazem passar por
amor dentro da família e da comunidade local da fé,
produzimos covardes treinados em lugar de pessoas cristãs.
Durante a Segunda Guerra Mundial, um fuzileiro naval
norte-americano, gravemente ferido na ilha de Saipan,
estava estendido no chão, sangrando. Outro membro da
corporação correu em seu auxílio. Arriscando sua própria
vida, ele fez o papel de bom samaritano, passando óleo e
vinho nas feridas de seu irmão que sangrava.
Seria pouco registrar que o soldado não foi nem grato,
nem gracioso. Ele exigiu saber o que fizera com que o
companheiro demorasse tanto para chegar. Quando a
batalha cessou, o comandante do regimento, que havia
assistido à cena de um lugar seguro, aproximou-se do
soldado que socorrera o colega e disse: “Garoto, eu não
teria feito isso nem por um milhão de dólares!”.
A resposta gloriosa do soldado foi: “Nem eu”.
Ele havia aprendido bem sua lição. Talvez ele não
soubesse que aquilo que estava fazendo pelo companheiro
anônimo estava na verdade fazendo por Jesus Cristo. O
importante é que ele agiu. A obra foi realizada. “De que
adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem
obras?”, pergunta Tiago. “Acaso a fé pode salvá-lo? Se um
irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento
de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-
se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada,
de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não
for acompanhada de obras, está morta” (Tiago 2.14-17).
Se fôssemos tão sérios como Francisco de Assis sobre
crescermos na sabedoria da ternura, faríamos bem em tirar
sua oração de paz da parede e pendurá-la em nosso
coração, tornando-a em sabedoria pela qual vivessemos:

Senhor, faze de mim um instrumento


de tua paz. Onde houver injustiça, que eu
leve o perdão;
Onde houver ódio, amor;
Onde houver dúvida, fé,
Onde houver desespero, esperança,
Onde houver trevas, luz,
Onde houver tristeza, alegria.
0 Mestre Divino, faze com que eu não
busque mais
ser consolado do que consolar,
ser compreendido do que
compreender,
ser amado do que amar;
pois é dando que recebemos,
é perdoando que somos perdoados,
e é morrendo que nascemos para a
vida eterna.

Leitura Recomendada:
Bonhoeffer, Dietrich. Vida em comunhão. São Leopoldo,
RS: Editora Sinodal, 1982.
McGuigan, Dorothy Gies. Metternich and Duch-ess. New
York: Doubleday, 1966.
Willard, Dallas. A conspiração divina. São Paulo, SP:
Mundo Cristão, 2001.
Capítulo IV

O sonho impossível

Quando teólogos falam da Trindade, eles normalmente


atribuem a obra da criação ao Pai, a obra da redenção ao
Filho e a obra de santificação, que é a obra de formar Cristo
em nós, ao Espírito Santo.
O papel criativo do Pai como fonte da vida, autor de tudo
o que há, é enfatizado na oração litúrgica com invocações
como “Pai, tu és verdadeiramente santo, a fonte de toda a
santidade” e “Abba, tu és a plenitude da compaixão, e toda
a criação te louva. Toda vida e santidade vêm de ti através
de teu Filho, Jesus Cristo”. Tanto o Credo Apostólico quanto
o Credo Niceno começam com uma referência ao poder
criativo do Pai. Neste ultimo, os adoradores dizem: “Cremos
em um só Deus, o Pai, Todo-poderoso, criador dos céus e da
terra, de tudo o que neles há, as coisas visíveis e
invisíveis...”. Não há necessidade de multiplicar exemplos
daquilo que é, de forma patente, parte integral de nossa fé
cristã: o Abba de Jesus é o Criador do universo e a fonte de
toda vida e santidade no mundo.
A fonte de toda vida: toda vez que enxergamos uma
planta pequena e delicada brotando na primavera ou
testemunhamos o milagre do nascimento de uma nova vida,
vemos a mão amorosa do Pai em ação. E relativamente fácil
para os cristãos cheios de fé reconhecer a presença e a
atividade do Pai celestial quando o assunto é a vida física e
visível. Quando o assunto e a vida espiritual e invisível, o
assunto é mais sutil, mas não menos verdadeiro. Voltemos
nossa atenção para o exemplo dramático e poderoso da
atividade geradora de vida do Pai no mundo invisível do
espírito humano.
Quando vi pela primeira vez a peça O Homem de La
Mancha, baseada na obra Don Quixote de La Mancha, de
Miguel de Cervantes, fiquei impressionado. Nesta linda
história, Don Quixote conhece Aldonza, uma garota
maltrapilha, menina da vida, cheia de vergonha e desgosto
por causa de seu passado promíscuo. Depois de ter perdido
todos os traços de dignidade e todos os vestígios de
respeito próprio, Aldonza é consumida pela vergonha e pelo
remorso. Don Quixote entra em sua vida e, por razões
extremamente nobres, tenta ganhar sua amizade e
despertar nela um senso de dignidade, valor e propósito.
Todos os seus esforços, no entanto, são inúteis. Ela rejeita
cada uma de suas tentativas.
Don Quixote cria um apelido carinhoso para Aldonza,
chamando-a de “Dulcinéia” - sua pequenina e doce donzela.
Outras vezes ele a chama de “minha senhora”, a fim de lhe
dar um sentimento de que faz parte de um ambiente
aristocrático. Um dia ele menciona ambos os nomes com
um gesto espalhafatoso.
Quando Aldonza o escuta, entra com muita raiva no
quarto e lhe diz, com todas as letras, como está longe de
ser uma senhora. Ao descrever um passado que inclui uma
mãe que a abandonou, um pai cuja identidade é
desconhecida e homens que lhe pagaram por um contato
breve, ela revela o quanto seu pensamento é pequeno
sobre si mesma.
Ela então repreende Don Quixote por seus esforços em
tentar melhorá-la. Afinal, não seriam os sonhos bons demais
para serem verdade em se tratando de alguém sem
esperanças de alcançá-los? Ela se enxerga indigna de ser
qualquer coisa, a não ser o nada que é.
Mas não é assim que o Pai vê esta criatura ferida e
assustada que é sua própria criação, e não é assim que ele
quer que ela se veja. O poder vital que nasce do Pai, criativo
e gerador de vida em Don Quixote, a ele concedido através
de Jesus Cristo, por meio da ação do Espírito Santo, é que
faz Aldonza reviver, restaura seu senso de dignidade
pessoal e a faz ressuscitar em novidade de vida.
Mas, em uma daquelas trágicas ironias da vida, Don
Quixote adoece mortalmente - com sua mente cansada por
causa de seus muitos pensamentos, e seu corpo ferido por
ter lutado demais, seu coração partido por ter amado
demais.
Aldonza corre até seu leito de enfermidade a fim de
oferecer-lhe consolo (Será que ela teria se lembrado das
palavras de Jesus no Cenáculo? “Se alguém me ama,
obedecerá à minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a
ele e faremos morada nele” - João 14.23). O Abba/Criador,
habitando na alma agraciada de Aldonza (e ali
transformando-a indiscutivelmente em Dulcinéia) está com
ela, ajudando-a a reanimar Don Quixote.
Ela se ajoelha e implora a Don Quixote que se lembre de
seu sonho em relação a ela, seu sonho para Dulcinéia. Na
expectativa de que se puder reacender esse sonho nele seu
calor irá trazê-lo de volta à vida, ela o relembra
repetidamente da graça e da glória que ele viu e que tentou
suscitar nela.
Don Quixote se agita ao lembrar. Então, recebendo suas
palavras e gestos, ele ousa esperar que aquilo que anteviu
em relação a ela tenha sido mais que um sonho.
Aldonza o estimula a ir além, lembrando-o da busca
sobre a qual ele muitas vezes falou - uma busca de bravura,
honra e aventura. Finalmente, o sonho é reacendido em Don
Quixote e ele fala mais uma vez da busca gloriosa. Mais
forte agora, e pronto para novas aventuras, chama seu fiel
escudeiro Sancho e solicita sua espada e sua armadura. Ele
então se ergue, renascido.
O poder criativo do amor do Pai que habita em Aldonza
através do Espírito de Jesus Cristo reacendeu a chama
quase extinta no coração do Homem de La Mancha, e ele
reinicia sua busca. Até a morte, ele perseguirá seu sonho
impossível.
No evangelho de João, Jesus diz: "Eu sou o caminho, a
verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”
(João 14.6). Jesus é o caminho para o Pai; Ele é a verdade do
Pai, pois, como disse: “Estas palavras que vocês estão
ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou”
(João 14.24). Jesus é a vida do Pai porque toda a vida e toda
a santidade vêm da mão criativa de Abba. Jesus veio para
compartilhar sua vida conosco. “Eu vim para que tenham
vida, e a tenham plenamente” (João 10.10).
Jesus viveu, morreu e ressuscitou a fim de que
pudéssemos ser cheios do Espírito da vida - sua própria vida
- a vida de seu Abba. Paulo escreve em 1 Co-ríntios: “Assim
está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-se um ser
vivente; o último Adão, espírito vivificante” (15.45). O
Espírito é a própria vida. Quando Paulo escreve, em 1
Tessalonicenses, “não apaguem o Espírito” (5.19), está
dizendo, “não apaguem a vida”. A reverência à vida é
sinônimo de reverência ao Pai, a fonte da vida. A vida
humana é incomparavelmente sagrada porque espelha a
vida divina como nenhuma outra forma de vida é capaz de
refletir.
O dom da vida é um compartilhar nele, que é a Vida, com
Deus, cuja deidade é resumida na frase “Ele é”. Vivemos
porque ele vive. Assim, toda a criação de Deus clama:
“Cuidem de mim com reverência”. Por esta razão, os
cristãos que vivem na sabedoria da ternura são
particularmente sensíveis à vida em seu alvorecer e em seu
entardecer, nos direitos dos não-nascidos e na dignidade
dos idosos. Porque são sensíveis ao Espírito doador da vida
(a ternura de Deus), porque reverenciam o Abba de Jesus,
estão cheios de sensibilidade e de reverência a toda vida.
Eu sugiro que esta visão seja fundamental para uma
definição apropriada do cristão cheio do Espírito.
Dada esta definição, o que devemos fazer em relação ao
problema sério da pena pró-vida em oposição à pena pró-
morte? O que devemos pensar quando, por exemplo, a
prisão perpétua sem direito a condicional é oferecida como
uma alternativa à injeção letal, e a última é preferida por
cristãos que assumem a posição pró-vida em se tratando
dos não-nascidos? Fica muito claro que a postura pró-vida
da comunidade cristã é, com muita frequência, seletiva,
inconsistente e vulnerável à crítica tendenciosa. O estudioso
de ética, Richard B. Hays escreve: “Uma razão pela qual o
mundo acha o Novo Testamento dos pacificadores e dos que
amam seus inimigos impossível de crer é que a igreja é
massivamente infiel. Sobre a questão da violência, a igreja
está profundamente comprometida e compromissada com o
nacionalismo, a violência e a idolatria”. Citando a carta de
Paulo aos Romanos, Hays comenta: “aqueles que são
membros do corpo de Cristo (12.5) nunca devem se vingar
(12.19)... Não há sequer uma sílaba nas cartas paulinas que
possa ser citada em apoio ao uso da violência por parte de
cristãos”.
A postura antiaborto da comunidade cristã flui de uma
reverência cheia do Espírito pelo Pai de Jesus. Nenhum
homem ou mulher pode reclamar para si o direito de
determinar a duração da vida de uma criança não nascida
ou de um pai em idade avançada. A decisão de reaver o
dom da vida repousa no domínio soberano do Pai. No
entanto, é ingênuo e simplista ao extremo igualar uma
reverência cheia do Espírito pela vida a uma postura
antiaborto. A oposição ao aborto é, certamente, um aspecto
integral da reverência pela vida, mas os dois termos não
são nem sinônimos, nem complementares. Aquilo que torna
a postura pró-vida de muitos cristãos inacreditável aos
olhos de milhões é que ela é assustadoramente seletiva.
Quando dizemos que consideramos a vida sagrada, que a
reverenciamos, que somos pró-vida, que nos colocamos ao
lado do Pai, o mundo em grande parte questiona a nossa
credibilidade. Por quê? Porque a nossa consciência cristã
não é católica, no sentido original de ser apropriadamente
universal. A vida embrionária, fetal, ah sim: trate com
cuidado, não toque e defenda com todas as armas do
arsenal cristão! Outra vida? Bem, depende.
Há três áreas onde a nossa reverência pela vida não é
convincente. Equivalentes cristãos do Watergate, essas
áreas desfiguram a nossa imagem como filhos e filhas do
Pai e desautorizam nossos protestos pró-vida. E é
precisamente nessas três áreas que a espiritualidade da
ternura conclama os cristãos a testemunhar
indiscriminadamente no debate pró-vida.

A primeira área é a da vida judaica. Devemos ser


honestos e sensíveis aqui. A comunidade judaica hoje ainda
lembra que nos primeiros três séculos de nossa era cristã,
houve uma convicção generalizada de que os judeus
haviam matado Cristo, e que por terem os judeus rejeitado
o Messias, foram eles mesmos rejeitados por Deus,
tornando-se um povo amaldiçoado. O povo judeu lembra a
tradição de hostilidade e desrespeito cristão expressa nas
homilias de um dos mais extraordinários pregadores e
santos, João Crisóstomo. No ano 387 d.C., ele esbravejou de
um púlpito em Antioquia:

Sei que um grande número de fiéis tem pelos


judeus certo respeito e guarda suas cerimônias com
reverência. Isto me instiga a erradicar por completo
opinião tão desastrosa. Já explicitei que a sinagoga
não passa de um teatro;... ela é um lugar de
prostituição. E um covil de ladrões e um abrigo de
animais selvagens;... não simplesmente de animais,
mas de feras impuras... Deus os abandonou. Que
esperança de salvação lhes resta?
Eles dizem que também adoram a Deus, mas isto
não é verdade. Nenhum dos judeus, nenhum deles, é
um adorador de Deus... Uma vez que desonraram o
Pai, crucificaram o Filho e rejeitaram o auxílio do
Espírito, quem ousaria afirmar que a sinagoga não
seja um lar de demônios? Deus não é adorado ali. Ela
é simplesmente uma casa de idolatria. Os judeus
vivem para satisfazer seus apetites, anseiam pelos
bens deste mundo. Em ausência de vergonha e
avareza, superam até mesmo porcos e bodes... Os
judeus são possuídos por demônios, estão entregues a
espíritos malignos... Ao invés de cumprimentá-los, e
de dirigir-lhes uma só palavra, vocês deveriam
afastar-se deles como se fossem uma peste e uma
praga da raça humana.

O judeu sensível se lembra da Idade Média, de cada


gueto judaico montado por cristãos, cada batismo forçado,
cada cruzada para libertar os Lugares Sagrados, cada ato
público de violência nas Sextas-feiras Santas, cada êxodo
forçado (como o de 1492), cada retrato de Shylock*
especificando sua porção de carne, cada acusação de
deicídio, cada vestido, chapéu ou tarja de identificação,
cada morte em nome da consciência, cada dar de costas ou
de ombros em sinal de desdém, cada careta de desrespeito,
insulto ou maldição. E o judeu sensível
* NT: Shylock é o personagem central da obra de
Shakespeare, O mercador de Veneza. Trata-se de um judeu
da cidade que enriqueceu emprestando dinheiro a juros,
lembra aquilo que o brilhante estudioso rabino Marc
Tannembaum declarou tão vigorosamente:

E preciso que se confronte até as últimas


consequências como foi possível que um país, ao
exaltar exageradamente seus grandes valores e suas
grandes tradições morais e falar acerca de si mesmo
como uma cultura cristã antiga, que foi de fato o
centro do Santo Império Romano por quase todo um
milênio iniciado com Carlos Magno, tivesse milhões de
cristãos sentados como expectadores, enquanto
milhões de seres humanos que eram seus irmãos e
irmãs, filhos de Abraão conforme a carne, eram
arrastados para a morte do modo mais brutal,
desumano e selvagem.
E preciso que se encare como um dos mais
terríveis fatos da história deste período a conversa
que ocorreu entre Adolph Hitler e dois bispos em abril
de 1933, quando estes começaram a levantar
questões sobre a política alemã em relação aos judeus
e Hitler lhes disse, conforme relatado no livro Hitler's
Table Talk [A mesa de conversa de Hitler], que estava
apenas e tão-somente completando aquilo que o
ensino e a pregação cristãos haviam dito sobre os
judeus durante boa parte de 1.900 anos. “Vocês
deveriam afastar-se deles como se fossem uma peste
e uma praga da raça humana”, disse João Crisóstomo,
e 1.500 anos depois, milhares de seus discípulos
implementaram literalmente seu ensino.

Com esta história trágica como pano de fundo, você fica


surpreso que números incontáveis de judeus não se
impressionem com a nossa postura antiaborto, com nossos
argumentos em prol da santidade e da sacralidade da vida
humana? Você poderia culpá-los por sugerirem certa
hipocrisia - ainda mais desanimadora porque não é ainda
percebida nem sentida? Alguém estaria escutando? Alguém
se importa? Os judeus estão de fato escutando, mas ouvem
mais que a nossa retórica contemporânea. Eles ouvem os
gritos de “assassino de Cristo”, sentem as chicotadas em
suas costas, vêem sabão feito de gente, provam da fome,
cheiram gás. Os judeus se importam - sua história inteira é
uma história de cuidado - mas eles não estão mesmo certos
de que nós nos importamos, ou que nos importamos com
eles.
O que fazer? A resposta a esta pergunta não é simples. O
teólogo Walter Burghardt[6],* certa vez descrito como “o
grande senhor da homilética norte-americana”, tem
sugerido que a comunidade cristã necessita de uma
teologia arejada do judaísmo e seu destino; precisamos de
um profundo senso de tristeza por nosso passado
anticristão; precisamos de muito mais contato, mais diálogo
com os judeus do que os que já estabelecemos; precisamos
compreender que o antissemitismo é como cuspirmos no
rosto de nosso Salvador Judeu; mas, talvez, acima de tudo,
precisamos viver aquilo que William Shakespeare disse de
modo tão realista em O mercador de Veneza:
Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos,
órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Um
judeu não é alimentado com a mesma comida, ferido
com as mesmas armas, sujeito às mesmas
enfermidades, curado pelos mesmos instrumentos,
aquecido e resfriado pelo mesmo inverno e o mesmo
verão, como um cristão? Se você o perfura, ele não
sangra? Se você faz cócegas nele ele não ri? Se você
o envenena, ele não morre?

A segunda área na qual nossa reverência cristã pela vida


não é nada convincente é em nossas relações com “o
inimigo”. Aqui de novo a história nos chama a uma análise
que não temos encarado com a honestidade suficiente. Não
quero chutar cachorro morto ao ressuscitar a questão da
moralidade da guerra no Vietnã ou do envolvimento dos
Estados Unidos no Camboja. Estou mais preocupado com a
imagem estranha que temos projetado nos últimos quarenta
anos - uma imagem antivida. Nem todos os cristãos, é claro.
Uma acusação como esta seria calúnia. Afinal, ouvimos o
grito emocionado nas Nações Unidas: “Chega de guerra!
Guerra, nunca mais!” Cristãos por todo o mundo têm
condenado o massacre impiedoso de inocentes. E a
população cristã como um todo tem erguido seus braços
incessantemente aos céus em oração intensa pela paz. No
entanto, a despeito de nossas orações por paz, temos feito
muito pouco para alcançá-la.
Oh, é certo, temos há muito sido convencidos de que
guerra é inferno. Sentimos que há algo de tragicamente
errado quando governos do mundo gastam centenas de
bilhões de dólares por ano para matar a vida dada pelo Pai,
ameaçar, deter, manter a paz; quando muçulmanos
palestinos dançam de alegria nas ruas depois de um ataque
terrorista devastador; quando norte-americanos inocentes,
seguidores do islamismo, são abatidos de maneira
selvagem por cidadãos enlouquecidos em busca de
vingança; quando três milhões de refugiados lavam as ruas
e os campos de arroz com suas lágrimas; quando seres
humanos são torturados por outros seres humanos.
Choramos quando ouvimos que uma em cada cinco crianças
norte-americanas vai para sua cama faminta.
Onde então falhamos? Simplesmente ao limitar a nossa
compaixão. A compaixão é um dom que oferecemos a
nossos amigos. A sabedoria da ternura é dispensada como
inapropriada ou irrelevante quando o inimigo está no
portão. Quando a guerra se avizinha, o filho de Abba se
sente compelido a abandonar a infância, desprezar qualquer
senso de dependência radical na providência divina, e
assumir o controle. Ele está convencido de que nada de
bom irá acontecer, a menos que ele mesmo faça com que
aconteça. Como afirma o poeta e pacifista Daniel Berrigan:

Deixamos a infância para entrar na guerra.


Deixamos o Deus da infância para prestarmos tributo
aos deuses da guerra. Os deuses de nossa maturidade
são diplomáticos, o que significa dizer egoístas, falsos,
insípidos, cheios de tédio, covardes. Ou são belicosos
- truculentos, presunçosos, desagradáveis, infiéis,
cruéis, ferozes. Quer de um tipo, quer de outro, esses
deuses nos levam na direção da insensibilidade moral.

Nesta confusão ética, o papel do cristianismo é visto


como o de meramente abençoar e encorajar a vontade
nacional. A insensibilidade moral gerada pelo ajuste ao
mundo e sua linguagem desonesta de “resposta
premeditada e ação sensível” mal pode ser percebida em
meio ao burburinho do patriotismo tumultuado. Durante a
Guerra da Coréia, meu treinamento na marinha foi dedicado
a alcançar a glória matando “gooks”[7] - e nem a tarefa,
nem o rótulo eram repugnantes para mim ou para meus
companheiros de farda.
Certa manhã, não faz muito tempo, passei por um
momento ruim, muito ruim. Perguntei a mim mesmo com
que frequência, entre 1950 e 1999, eu havia chorado pelos
norte-coreanos ou norte-vietnamitas, por um cabeça
raspada neonazista ou por um fanático religioso em um
condomínio fortificado. Não consegui me lembrar de um
único momento. Foi então que chorei, não por eles, mas por
mim.
Quando exaltamos a vida, quando fazemos severas
críticas ao aborto, será que alguém ouve, alguém se
importa? Não entre aquelas pessoas sobre quem nosso
poder repousa mais pesadamente que a nossa compaixão,
não em Nagasaki ou Hiroshima. Para elas, nós somos uma
contradição. Por um lado, proclamamos o amor e a
angústia, a dor e a alegria que envolve a concepção de uma
única criança; proclamamos quão preciosa cada vida é para
Deus e deve ser para nós. Por outro lado, quando os
soldados do inimigo clamam a Alá com sua carne em
chamas, não choramos nem ficamos envergonhados; ao
contrário, pedimos mais.
A terceira área na qual nós, cristãos, fracassamos é em
nossos esforços para melhorar a qualidade da vida. Aqui, de
novo, nosso evangelho, nossas Boas Novas soam em
ouvidos surdos porque a imagem do cristão é pobre. Cada
vez mais, nos últimos cinco anos, quando discussões sobre
o aborto têm degenerado em conflitos cheios de ódio sem
fronteiras, meus amigos não-cristãos - especialmente
aqueles que trabalham com os pobres, aleijados e viciados -
têm lançado em minha cara o tema recorrente:
Vocês, cristãos, continuam falando da imoralidade
do aborto, mas quantos de vocês estão envolvidos
com as consequências de seus absolutos morais? A
garota de treze anos estuprada no beco, os
adolescentes totalmente despreparados para educar
filhos, as milhares de crianças indesejadas, as
crianças espancadas com cintos e queimadas em
fornos, as crianças
cujas barrigas estão para sempre inchadas por
causa da fome. Vocês jogam conversa fora sobre
renovar os recursos do mundo, enquanto a Índia
acrescenta trinta milhões de novos seres humanos
por ano à sua população e 139 de suas crianças
morrem a cada mil nascimentos. Vocês estão
escutando? Vocês se importam?
Se se importam, por que tantos de vocês
continuam se afastando do problema, para fora da
cidade e em direção aos subúrbios, para fora das
escolas públicas e rumo às particulares, para fora da
arena onde a mortalidade é tão produtiva? Para
muitos de nós, a ternura se tornou um clichê e a
misericórdia uma abstração. Para citar um de nossos
heróis, Mohandas Gandhi: “Nós gostamos do seu
Cristo, mas não de seus cristãos, porque eles são
muito diferentes do Cristo deles”.

E óbvio que esta retórica obscurece o fato de que a igreja


está intimamente envolvida em todas estas questões.
Insistimos em que uma criança nasça dignamente e então,
deliberadamente, permitimos que ela cresça ou morra
desumanamente. O testemunho multiforme dos cristãos
norte-americanos nos bolsões de pobreza da cidade, a
dedicação anônima aos física e mentalmente desabilitados,
a ajuda oferecida às mães solteiras e às crianças ilegítimas,
a compaixão sem paralelo demonstrada às viúvas e aos
filhos dos bombeiros e policiais de Nova York - todos estes e
outros inúmeros gestos compassivos revelam o coração
cristão. No entanto, nosso retrospecto impressionante
realça o fato trágico e difícil de ser negado: nós, cristãos,
não temos dado à qualidade da vida, nem de perto, a
mesma atenção, a prioridade, que temos dado à vida nua e
crua.
Estou convencido de que esta deficiência se explica
através dos limites que temos colocado ao nosso amor e à
nossa reverência à vida. Jesus nos disse que nosso amor
pelos seres humanos seria o sacramento, o sinal visível de
que ele está em nosso meio. E assim que o mundo o
reconhecerá. E o mundo não pode vê-lo porque não vê o
nosso amor. Cidades inteiras poderiam viver do lixo que
geramos, das roupas que vestimos e logo descartamos, dos
luxos que transformamos em necessidades. Negros e
brancos coexistem graças a tréguas desconfortáveis porque
nós, cristãos, temos sido tão preconceituosos em relação à
cor quanto nossos vizinhos incrédulos. Para muitos de nós,
uma corte de justiça é mais eficaz que o Sermão do Monte.
Não há evidência de que nós, cristãos, comamos menos,
bebamos menos, cobicemos menos, odiemos menos que os
homens e as mulheres que não têm compromisso com Jesus
e seu radical modo de vida. E gritamos de modo mais
estridente quando uma lei pró-aborto é apreciada pelo
congresso do que quando, como aconteceu num fim de
semana no Arkansas, uma família de negros foi assassinada
a tiros em um bairro de brancos.
Aqui, de novo, nossas reuniões de oração são
comprometidas pelo contexto cristão mais abrangente. A
ênfase inevitável, a valorização da vida no Espírito, que é
tão palpável em nossos encontros, se torna menos factível
no minuto em que saímos deles. Não estou preparado para
exigir uma nova prioridade: nenhuma vida sem qualidade
pode ter sua sobrevivência assegurada por antecipação.
Mas peço, e creio que o Espírito de Jesus pede o mesmo, um
compromisso renovado com a qualidade da vida. Devemos
verdadeiramente continuar a erguer nossas vozes em
protesto contra aquilo que enxergamos como destruição
injustificada de crianças não nascidas; mas se o protesto
dos cristãos convictos parar aí, se esses forem o resumo e a
substância de nossa reverência pelo Pai e por seu dom da
vida, então a nossa consciência deve nos importunar para
sempre.
Duas sugestões poderosas, mas não-práticas: primeira,
reflita o tempo todo sobre quão perto de Deus está a vida
do homem que sofre - tão perto que o rabino Abraham
Heschel pôde dizer, pouco antes de sua morte, “Há uma
velha ideia no judaísmo de que Deus sofre quando o homem
sofre. Há um texto famoso que diz que, mesmo quando um
criminoso é pendurado no cadafalso, Deus chora. Deus se
identifica com a miséria do homem”. O Pai se importa com a
vida que criou. Podemos ajudar Deus reduzindo o
sofrimento, a angústia e a miséria do homem.
Permita-me compartilhar rapidamente a história de um
homem que não apenas diminuiu meus sofrimentos, como
salvou minha vida. Eu o chamo de meu Homem de La
Mancha.
Em abril de 1975, eu estava deitado, doente e
desenganado no chão de um apartamento em Fort
Lauderdale, Florida. Mais tarde eu soube que em poucas
horas, se não tivesse sido socorrido, eu teria tido convulsões
alcoólicas e poderia ter morrido. Por incrível que possa
parecer, até aquela altura eu não havia percebido que era
um alcoólico. Eu supunha que todos os alcoólicos eram
baderneiros, falavam com eles mesmos em diálogos
desconexos e carregavam uma garrafa de vinho barato
embrulhada em uma sacola de papel (Somente tempos
depois fiquei sabendo que companheiros assim constituíam
míseros três por cento dos alcoólicos ativos).
Rastejei até o telefone, mas estava tremendo tão
violentamente que não conseguia digitar os números no
aparelho telefônico. Finalmente, disquei apenas uma tecla e
falei com a operadora. “Por favor, me ajude”, implorei.
“Ligue para os Alcoólicos Anônimos”. Ela anotou meu nome
e endereço e prometeu fazer conforme eu havia lhe pedido.
Em vinte minutos, um homem entrou pela porta. Eu
nunca o havia visto antes, e ele não tinha ideia de quem eu
era. Mas tinha a expressão do Pai em sua face e uma
enorme reverência pela minha vida. Ele me ergueu com
seus braços e correu comigo para o centro de
desintoxicação de um hospital próximo. Ali se iniciaram os
longos dias de internação médica supervisionada. O
alcoólico crônico que tenta parar de beber de uma vez está
altamente susceptível a um ataque do coração ou um
derrame. Quem quer que tenha estado em ambos os lados
da rua lhe dirá que a internação não-supervisionada por
causa do álcool não é menos severa que a internação não-
supervisionada por causa da heroína.
Pouparei o leitor dos detalhes daquela odisseia de
vergonha e dor, de culpa insuportável, remorso e
humilhação. Aquele estranho, no entanto, devolveu-me a
vida. Suas palavras podem soar monótonas aos não-
iniciados, mas elas foram palavras de vida para mim.
Aquele cristão afastado, que já não ia à igreja há muito,
muito tempo, me disse que o Pai me amava, que ele não me
havia abandonado, que com aquilo que acontecerá ele faria
algo de bom. Ele me disse que a palavra mais importante
daquele momento em diante não seria culpa, medo ou
vergonha, mas sobrevivência e me pediu que esquecesse
aquilo que havia perdido e me concentrasse naquilo que
havia deixado.
Ele me deu um artigo do Journal of the American Medicai
Association [Boletim da Associação Médica Norte-
Americana], de junho de 1957, que explicava que o
alcoolismo é uma doença biopsicológica e que alcoólicos
são biologicamente diferentes de outras pessoas. Quando
tomam o primeiro gole, o fenômeno do desejo incontrolável
se desenvolve e eles se tornam impotentes para parar.
Aquele sensível desconhecido me disse que eu não deveria
sentir-me culpado, assim como não me sentiria se estivesse
me recuperando de qualquer outra doença como o câncer
ou o diabetes. Acima de tudo o mais, ele me apoiou em meu
vazio, me amou em minha solidão e me ensinou - um
bêbado alquebrado - a sabedoria da ternura.
Repetidamente ele me falou do amor do Pai - que quando
seus filhos tropeçam e caem, ele não os repreende, mas os
ergue e consola. Mais tarde, fiquei sabendo que meu
benfeitor era um trabalhador itinerante que aparava
gramados para sobreviver. Quase sem condição de se
manter, ele colocava papelão em seus sapatos de trabalho
para tapar os buracos. No entanto, quando fui capaz de
comer novamente, ele pagou meu primeiro jantar no
McDonald’s. Por cinco dias e cinco noites ele promoveu vida
em mim física e espiritualmente sem nada pedir em troca.
Aquele homem que me deu tanto havia perdido sua
família e sua fortuna por causa da bebida. Anos depois de
ter saído do poço, ele ainda estava só, como atesta sua
rotina noturna: ligava a TV em busca de companhia,
conversando com John Wayne na esperança de que ele lhe
respondesse. Antes de se deitar, passava quinze minutos
lendo um livro de meditações, louvava a Deus por sua
misericórdia, agradecia por aquilo que havia abandonado e
pedia pelos alcoólicos. Como ato final de seu dia, ele ia até
a janela, levantava o vidro e abençoava o mundo.
Dois anos mais tarde, depois do tratamento no Centro de
Reabilitação de Alcoólicos e Drogados Hazel-den, em
Minnesota, no Centro de Reabilitação de Álcool e Drogas, fui
para Clearwater Beach, Flórida, para trabalhar em meu
segundo livro, The Gentle Revolutionaries [Os
revolucionários gentis]. Alguns amigos haviam me oferecido
uma casa em uma parte remota da praia onde eu poderia
ficar sozinho para escrever. De volta à vida, tentei fazer
contato com meu Homem de La Mancha.
Através de meus amigos dos Alcoólicos Anônimos, fiquei
sabendo que esse companheiro salvador de vidas, a quem
chamarei de Mefisto, havia se mudado do sul para o centro
da Flórida, mas eu não tinha seu endereço, nem seu
telefone. Liguei para o escritório central dos AAs em
Clearwater e consegui localizá-lo. Fui informado de que,
numa dessas tristes ironias da vida, Mefisto estava a uns
quarenta e poucos quilômetros de mim, em Skid Row,
Tampa. A voz no escritório central explicou que Mefisto
havia percorrido muitas vezes o caminho dos doze passos -
um termo baseado no programa dos AAs que envolve levar
a mensagem de recuperação aos alcoólicos ativos; em
outras palavras, Mefisto havia se importado tanto com os
outros que esquecera de cuidar de si mesmo. Há uma
palavra que faz sucesso na comunidade dos AAs: ALTO.
Trata-se de um lembrete para que você não fique por
demais faminto, irado, solitário ou cansado, pois ficará
especialmente vulnerável àquele primeiro gole. Meu amigo
havia se esgotado no auxílio a outros e retornado ao velho
vício.
Fui até Tampa e estacionei meu carro na área suja onde
esperava encontrar Mefisto. Ao caminhar em Skid Row,
deparei-me com um homem do outro lado da rua que
parecia Mefisto - o mesmo porte físico, os mesmos cabelos
brancos, uns dez anos mais velho que eu. Corri no meio das
pessoas para cumprimentá-lo. Não era ele, no entanto;
pude perceber quando me aproximei. Um outro homem de
ma - nem sóbrio, nem bêbado, apenas “seco”. Não havia
bebido por vinte e quatro horas, e suas mãos se moviam
desordenadamente e tremiam (sintomas que, por
experiência própria, eu chamava de arrepios e rastejos). Ele
agarrou meu braço e implorou: “Senhor, pode me dar um
dólar? Eu tenho que comprar um vinho”.
Ajoelhei-me diante dele e peguei em suas mãos. Olhei
dentro de seus olhos, que se encheram de lágrimas por
causa do contato humano inesperado. Inclinei-me então em
sua direção e beijei-as. Ele começou a chorar. Ele não queria
vinho, na verdade; queria aquilo que eu quisera dois anos
antes deitado no chão - ser aceito em seu quebrantamento,
ser encorajado em sua indignidade, ser amado em sua
solidão. Queria ser aliviado daquele que Madre Teresa de
Calcutá, com sua vasta experiência com a miséria humana,
disse ser o pior de todos os sofrimentos: o sentimento de
não ser aceito ou desejado. Eu não encontrei Mefisto
naquele dia, mas fui o instrumento que Deus usou para
levar aquele homem de rua a um centro de desintoxicação.
Duas semanas depois, eu liderava um encontro em meu
lar provisório para um grupo de alcoólicos em recuperação
no décimo primeiro passo, que diz: “Busquemos através da
oração e da meditação melhorar nosso contato consciente
com Deus como o compreendemos, orando apenas pelo
entendimento de Sua vontade e pelo poder para cumpri-la".
Ao descobrirmos que seis de nós eram episcopais ou
católicos, decidimos celebrar a eucaristia. No meio da
reunião, Mefisto subiu as escadas da casa. Sabe quando seu
coração salta de prazer ao ver alguém de quem você
realmente gosta? Meu coração desandou a bater
descompassado. Ele sinalizou para que não parássemos e
continuássemos a adoração, e nós assim fizemos, com um
sorriso de boas vindas. Poucos minutos mais tarde, ao dar
minhas costas a ele durante a eucaristia, ouvi a porta
debaixo fechar suavemente. Mefisto se fora. Meu coração
quase parou.
Na manhã seguinte, encontrei uma carta dele, colocada
debaixo da porta. Parte dela dizia o seguinte:

Ontem à noite, com meu jeito estabanado, vim à


sua casa e pedi a Deus pelo direito de estar entre
vocês, gente boa.... Você nunca saberá o quanto fez
por mim duas semanas atrás em Tampa. Você não me
viu, mas eu vi você. Eu estava ali, a alguns metros,
escondido atrás de um poste.
Brennan, quando vi você se ajoelhar e beijar as
mãos daquele homem, você varreu de meus olhos o
olhar fixo e frio dos mortos que ainda respiram.
Quando vi que você realmente se importou, meu
coração começou a criar asas - pequenas, frágeis,
mas asas. Eu tinha uma garrafa de vinho nas mãos, e
a joguei na lata de lixo. Você suscitou vida em mim, e
quero que saiba disso. Você me libertou do meu
mundo sombrio de pânico, medo e ódio de mim
mesmo.
Se você alguma vez se perguntar quem é Mefisto,
lembre-se de que sou alguém que você conhece
muito bem: sou cada homem e cada mulher que você
encontra...
Será que sou também você?

Ele então concluiu sua carta com uma frase que nunca
havia usado antes em nossa amizade, “Aonde quer que eu
vá, sóbrio por meio da graça de Deus, um dia por vez, irei
agradecer-lhe por você, Dulcinéia”.
E assim que, novamente, faço esta primeira sugestão:
dedique tempo a ponderar o quanto esses filhos sofridos
estão perto do Pai e são queridos por ele.
Minha segunda sugestão é mais específica: um exame de
consciência. Meu respeito pessoal pela vida faz jus à minha
reverência ao Pai? Reajo aos hábitos estranhos e aos
fracassos de outros, ou respondo à terna Presença que os
sustenta como sustenta a mim? Costumávamos falar, sem
misericórdia, mas com exatidão, de certo monge que “na
rua era um anjo; em casa, um demônio". Ele era
maravilhoso fora do monastério com os outros, mas em
casa era o capeta. E possível se consagrar completamente a
uma causa pró-vida em um encontro e então ser antivida a
partir do encontro; orar no Espírito doador de vida de Jesus
durante a liturgia e agir no espírito que lida com a morte, da
Besta, com o judeu que mora ao lado.
Como trato um irmão no cotidiano, como reajo com o
homem de rua marcado pelo pecado, como respondo às
interrupções de pessoas de quem não gosto, como lido com
pessoas normais em sua descrença normal em um dia
normal - tudo isso pode revelar de modo mais contundente
minha reverência ou irreverência ao Abba de Jesus do que o
adesivo antiaborto no vidro do meu carro.
Não somos favoráveis à vida simplesmente porque
estamos evitando a morte. Somos a favor da vida porque
estamos com Abba, a essência da vida. E amadurecemos na
sabedoria que aceita a ternura a ponto de nos
posicionarmos ao lado dos menos afortunados; a ponto de
nenhum ser humano nos ser estranho; a ponto de podermos
tocar a mão do outro com amor; a ponto de, para nós,
verdadeiramente, não haver “outros”.
E isso que o mundo espera de nossa retórica. E isso que
o mundo anseia ver: homens e mulheres que honrem o Pai
através de sua reverência à vida, profetas e amantes
resplandecendo com a ternura concedida do próprio Espírito
de Jesus, pessoas que vivem somente para amar e para
revelar amor a outras. O mundo anseia pela evidência de
que o sonho impossível é possível, que o amor existe, que
ele tem um nome, que ele é a única opção de felicidade
neste mundo e de eterna alegria no mundo por vir.
Se você tem um sonho, ele é apenas um sonho; se eu
tenho um sonho, ele permanece somente um sonho. Mas se
nós todos temos o mesmo sonho, mesmo se for um sonho
impossível, ele se tornará realidade.
Esse sonho compartilhado é a realização da vida, morte e
ressurreição de Jesus - o brilho flamejante de um novo
Pentecostes tomando o mundo de assalto por causa da
ternura cheia do Espírito das Dulcinéias e dos Homens de La
Mancha que sonham o sonho impossível e correm onde os
valentes não ousam correr.

Leitura Recomendada:
Berrigan, Daniel. Isaiah: Spirit of Courage, Gift of Tears.
Philadelphia: Fortress Press, 1996.
Burghardt, Walter. Tell the Next Generation, Still
Procaiming Your Wonders, Grace on Crutches, Lovely in Eyes
Not His, When Christ Meets Christ. New York: Paulist Press,
1980, 1984, 1986, 1988, 1993. O falecido David H. C. Read,
pastor da Igreja Presbiteriana da Madison Avenue, em Nova
York, certa vez ofereceu este endosso: “Em minha opinião,
ninguém hoje se iguala a Walter Burghardt, da Georgetown
University, na exposição do Evangelho com clareza,
perspicácia e rigor acadêmico cuidadosamente escondidos”.
Cervantes, Miguel. Don Quixote de La Mancha. Edições
Múltiplas.
Hays, Richard B. The Moral Vision of the New Testament.
San Francisco: HarperSanFrancisco, 1996.
Shakeaspeare, William. O mercador de Veneza. Edições
Múltiplas.
Capítulo V

Pecado: O inimigo da ternura

“O traço fundamental da personalidade madura em relação


aos outros”, escreve Adrian Van Kaam, “é a abertura”. A
abertura serve como uma ponte para o mundo dos outros.
Ela nos capacita a nos envolver com os outros, a
compreender seus pensamentos, a sentir o que estão
sentindo. Em outras palavras, se estamos abertos, somos
capazes de entrar no mundo existencial dos outros, mesmo
se algumas vezes não conseguimos nos identificar com o
mundo particular de alguém. A abertura nos torna sensíveis
a qualquer parte do mundo dos outros que podemos aceitar
e assimilar em nosso universo pessoal de fé e pensamento.
A personalidade madura, portanto, se expande nessa
comunicação aberta com uma variedade de pessoas e seus
diferentes pensamentos, sentimentos e atitudes.
Um filme antigo de Federico Fellini, La Dolce Vita,
explorou a incapacidade de pecadores endurecidos se
abrirem para os outros, sua impossibilidade de se comunicar
enquanto pessoas e sua crescente crueldade em meio ao
desaparecimento da ternura.
O tema do filme é a decadência da sociedade romana, a
prevalência do pecado, e o tédio e a destruição extrema que
ele produz. Esse tema é encarnado na deterioração
progressiva de Marcello, o talentoso e influente repórter
social que vive distante das pessoas que despreza e que, ao
final, se torna uma delas.
Os membros da alta sociedade de Roma que
encontramos no filme tentam se comunicar, mas, para
muitos deles, a comunicação nunca consegue penetrar
abaixo do nível corpo-sexo. Uma pessoa não se revela a
outra pessoa. Perto do fim do filme, o espectador sente que
a tela está povoada não por pessoas, mas por conchas
falantes dentro das quais personalidades um dia viveram. O
fracasso na comunicação despoja os caracteres de tudo,
exceto de seus últimos vestígios de humanidade.
A primeira cena do filme é a do encontro, em uma casa
noturna, entre Marcello e Maddalena, uma herdeira bela,
misteriosa e intrigante. No Cadillac conversível dela, eles
passeiam pelas ruas escuras de Roma, e, por um momento,
é como se Maddalena estivesse verdadeiramente tentando
entender o homem atraente ao seu lado - aquela que tem
muito dinheiro encorajando aquele que não tem dinheiro
suficiente. Será que ela consegue enxergar o que está por
detrás de seu exterior frio e desconectado? Estaria ela
finalmente penetrando em seu verdadeiro eu? A intimidade
nova e inexperiente de mentes é repentinamente
interrompida quando ela o leva para uma cama no porão.
Sylvia, uma estrela de Hollywood em visita à cidade que
ilumina o filme, repete fielmente à imprensa as frases
orientadas por seu agente publicitário. Ela, no entanto,
parece ser mais que apenas uma voz e um corpo. Impulsiva,
alegre, cheia de um espírito impetuoso, ela adora subir e
descer correndo as escadas que circundam a cúpula de São
Pedro, deixando para trás delicada e facilmente os
fotógrafos sem fôlego. Quando chega ao topo e contempla a
piazza, ela se dá conta de algo em seu interior que
responde à experiência. “Não posso acreditar, não posso
acreditar,” ela diz, voltando-se ao seu acompanhante. Este,
no entanto, não tem olhos para a magnificência; está
olhando para ela, um símbolo sexual internacional.
Se alguém pudesse ter estado ali para receber e
compreender esta comunicação do eu interior de Sylvia,
alguém que pudesse entrar em seu mundo único de
pensamento e de sentimento e compartilhar sua visão de
Roma - e por meio desse gesto estimular as emoções de seu
eu mais profundo. Mas não; espiritualmente, ela está só.
A cena final do filme é poderosa. Uma jovem,
personificação da pureza, (que parece, como disse um
crítico, um dos anjos de Giotto), acena do lado oposto de
Marcello que havia acabado de retornar da orgia da doce
vida em uma casa de praia. É possível ver os lábios dela se
movendo: “ Vieni qua, vieni qua" - Venha cá, venha cá. Ele
não consegue entender muito bem por causa do ruído das
ondas, do ruído interior produzido por sua enxaqueca. Ele
faz uma tentativa tímida de ouvir e então dá de ombros -
“Non posso sentire” - não consigo ouvir (e mais ainda, não
consigo sentir). E, com isso, retorna à sua doce vida como
um prisioneiro retorna à sua cela.
Fellini não sugere nenhum antídoto à degeneração na
qual vivem seus personagens. Nas palavras de um dos
críticos, "não há saída para o inferno em que se
encontram”. Pessoas isoladas de seus semelhantes não
conseguem sobreviver. Um homem cercado por não-amigos,
se toma um não-homem.

Pecar, diz Fellini, é se destruir. O pecado se toma a sua


própria punição. Pelo fato de a natureza humana ser
espiritual e livre, o homem se realiza em ações através das
quais emerge do egoísmo para se abrir ao outro. O ego, no
entanto, luta para quebrar a ponte, trancafiando o homem,
ao invés de abri-lo. Assim, o pecado sempre envolve alguma
forma de autodestruição, pois sufoca o homem dentro de
seu próprio egoísmo e solidão.
A vontade não mais guia as ações do pecador por meio
da ternura; o egoísmo enche e obscurece seu coração. O
pecado separa o homem e o isola. Em sua comunicação
com outros, ele não tem mais qualquer interesse além de
seu próprio benefício ou prazer.
Ao perceber que estou insistindo no uso exclusivo do
pronome masculino neste capítulo, sei intuitivamente que
isso se deve ao fato de estar descrevendo a mim mesmo. O
sofrimento causado pelo pecado através dos anos, o
limitado crescimento emocional gerado pelas constantes
recaídas no álcool, a insensibilidade aos sentimentos dos
outros, os padrões de comportamento antiéticos e imorais
de desonestidade e engano, o enfraquecimento dos
relacionamentos mais próximos, os anos de indiferença
espiritual e descontrole da vontade - tudo isso moldou uma
alma que o ateu existencialista Jean-Paul Sartre descreveu
como “en soi et pour soi - em mim mesma e por mim
mesma.
Nesta altura da jornada, tudo se desenvolve a partir da
graça. Não posso livrar-me da autodestruição. Tenho de ser
liberto. Somente a misericórdia poderosa de Jesus Cristo,
que doma os lobos da dúvida, da vergonha e do desespero,
pode produzir a minha liberação.
Ironicamente, a liberdade traz consigo um apreço pelas
lições do cativeiro: como observou o mestre espiritual
Anthony de Mello com impressionante clareza, o
arrependimento atinge sua plenitude quando somos levados
a agradecer por nossos pecados (falo mais sobre isso no
capítulo 7).
O pecado é o ponto de partida de todo conflito social.
Cada pecado, mesmo cada pecado de pensamento, deixa
sua marca na estrutura psíquica da alma humana. Todo
pecado sem arrependimento tem um efeito sinistro e
maléfico sobre a verdadeira abertura.
“Homem algum é uma ilha”. Precisamos dos outros,
todos nós. A existência humana é relativa; ela é aquilo que
o filósofo Martin Heidegger chamou de “mit-sein”, um
ser/estar com. Somos seres sociais por natureza. O pecado,
no entanto, é antissocial; ele nos tranca na prisão do nosso
próprio egoísmo, e esse aprisionamento gera graves
consequências: ao estarmos fechados e incomunicáveis,
nossa própria personalidade empobrece; quando não
conseguimos alcançar os outros num gesto significativo de
amor, nossa própria humanidade é diminuída. A crueldade
seduz a ternura, e a insensibilidade se torna um estilo de
vida.
Depois de cada pecado grave, uma parte do poder para
o bem é enfraquecida em nós. Após vários atos
subsequentes de maldade, uma parte de nossa verdadeira
liberdade é destruída. A liberdade de nos doarmos aos
outros generosa e bondosamente e a prontidão para
receber são diminuídas. A concentração diária no próprio eu
paralisa nossas trocas interpessoais e se constitui num tipo
de ruptura na evolução da personalidade autêntica. O
pecado é um circuito fechado. A despeito dos diferentes
tipos, todo pecado lembra (ao menos em caráter) o pecado
original de Adão e Eva, que foi um fechar-se para Deus e
para o outro.
Da próxima vez que você parar para rever sua vida e
examinar a sua consciência, talvez possa achar benéfico
para o seu crescimento espiritual ir além dos Dez
Mandamentos e fazer as seguintes perguntas:

• Tenho fracassado em tomar a iniciativa de aliviar o


medo, a ansiedade e a tristeza em meu lar, minha
vizinhança e na comunidade local?
• Tenho tido desprezo por outros: os menos educados,
talvez, ou pessoas étnica ou economicamente
diferentes, ou grupos religiosos?
• Tenho dispensado cidadãos mais idosos,
considerando-os ultrapassados, sem tentar fazê-los
sentir seu valor e dignidade?
• Tenho de algum modo impedido o desenvolvimento
pessoal de outra pessoa?
• Tenho buscado ser respeitado, sem respeitar os
outros?
• Tenho com frequência deixado os outros me
esperando?
• Tenho esquecido com desleixo (ou simplesmente
não tenho mantido) um compromisso ou um encontro
com alguém?
• Tenho sido de difícil acesso para os outros, me
sentido ocupado demais para colocar-me à disposição
deles?
• Não tenho prestado atenção quando alguém está
falando comigo?
• Tenho ficado em silêncio quando deveria ter falado?
• Tenho respondido apenas àqueles cuja amizade se
mostra proveitosa para mim?
• Tenho denegrido o caráter de alguém por meio de
observações danosas, falsas ou verdadeiras?
• Tenho traído a confiança, violado o segredo, ou me
envolvido na vida dos outros através de palavras ou
ações indiscretas?
• Tenho me concentrado naquilo que me beneficia ao
invés de concentrar-me em como posso beneficiar
outros?
• Tenho deixado de apreciar as coisas como são por
causa de expressões como “teria sido”, “deveria ter
sido” e “poderia ter sido”?
Depois de tratar dessas questões com franqueza, faça a
si mesmo esta última e crucial indagação:

• Tendo dado uma resposta desanimadora a estas


perguntas, será que serei dócil comigo mesmo, como
o Mestre é, e reconhecerei humildemente que a
Palavra não tomou posse soberana de minha vida,
aceitarei minha própria necessidade de uma
conversão complementar, me arrependerei
rapidamente, pedirei perdão, não perderei tempo com
auto-recriminação e sorrirei de minha própria
fragilidade?

A tendência progressiva do pecado é suprimir, cegar e


endurecer. As palavras a seguir, da obra de Robert Traver,
Anatomia of a Murder (Anatomia de um assassinato),
descrevem de maneira vivida aquilo que estou tentando
comunicar acerca dos efeitos do pecado na personalidade.
Elas são proferidas por um velho advogado, próximo do fim
de sua vida:

A falta de conhecimento das pessoas, nossa falta


de interesse humano uns para com os outros, talvez
seja o grande problema deste mundo. Por falta disso,
nosso mundo parece estar se desfazendo e morrendo.
Parecemos estar fatalmente inclinados a nos
comunicar uns com os outros através de mísseis
inteligentes carregados de ódio e de ruína, ao invés
de corações humanos com sua carga inexprimível de
amor. E agora é como se Deus tivesse finalmente
desafiado a humanidade a abrir seu coração ou
perecer.
Uma palavra final sobre um assunto tão importante, que
a carta de Tiago elogia: “Confessem os seus pecados uns
aos outros e orem uns pelos outros para serem curados”
(5.16). Se situarmos o pecado em sua perspectiva
essencialmente social, entenderemos melhor o carisma
específico dessa experiência. A confissão se torna mais que
uma “lavagem rápida”, mais que um suspiro de alívio por se
ter reunido a coragem e a humildade necessárias para uma
auto exposição honesta, mais que a mera satisfação de ter
dado ouvidos ao conselho de Tiago. Ela se torna um alegre
retorno à casa do Pai, uma reconciliação com a comunidade
cristã em um espírito de reparação e gratidão, uma
reconstrução do relacionamento de amor com Deus e com
nossos companheiros humanos atacados pelo pecado, uma
reabertura do coração humano e uma possibilidade
renovada de florescimento da plena e definitiva
personalidade cristã na sabedoria da ternura.

Leitura Recomendada:
Lewis, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo, SP:
Martins Fontes, 2005.
Lewis, C. S. Cartas de um diabo ao seu aprendiz. São
Paulo SP: Martins Fontes, 2005.
Manning, Brennan. Lion and Lamb. Grand Rapids, MI:
Baker Book House, 1986.
Monden, Louis. Sin, Liberty and Lavo. St. Louis, MO:
Herder and Herder, 1962.
Nouwen, Henri J. M. Compaixão: Reflexões sobre a vida
cristã. São Paulo, SP: Paulus, 1998.
Wallis, Jim. The Call to Conversion. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1981.
Capítulo VI

Dor e ternura

Naquela noite Jacó levantou-se, tomou suas duas mulheres,


suas duas servas e seus onze fihos para atravessar o lugar
de passagem do Jaboque. Depois de havê-los feito
atravessar o ribeiro, fez passar também tudo o que possuía.
E Jacó ficou sozinho. Então veio um homem que se pôs a
lutar com ele até o amanhecer. Quando o homem viu que
não poderia dominá-lo, tocou na articulação da coxa de
Jacó, de forma que lhe deslocou a coxa, enquanto lutavam.
Então o homem disse: “Deixe-me ir, pois o dia já desponta”.
Mas Jacó lhe respondeu: “Não te deixarei ir, a não ser que
me abençoes”. O homem lhe perguntou: “Qual é o seu
nome?” “Jacó”, respondeu ele. Então disse o homem:

“Seu nome não será mais Jacó, mas sim Israel,


porque você lutou com Deus e com homens e
venceu”. Prosseguiu Jacó: “Peço-te que digas o teu
nome”. Mas ele respondeu: “Por que pergunta o meu
nome?” E o abençoou ali. Jacó chamou àquele lugar
Peniel, pois disse: “Vi a Deus face a face e, todavia,
minha vida foi poupada”.
Gênesis 32.22-30
Não há caminho suave para a ternura, como sugere esta
passagem. Aprende-se a ternura em um local de provas,
onde o homem que ousa lutar com o Absoluto sai da luta
manco e recebe uma bênção. A dor é o caldeirão onde
somos amolecidos. E possível que aquilo que é verdade
para o homem seja verdade para Deus? A passagem do
rabino Heschel, citada no capítulo 4, sugere isso: “Há uma
velha ideia no judaísmo de que Deus sofre quando o homem
sofre. Há um texto famoso que diz que, quando um
criminoso é pendurado no cadafalso, Deus chora. Deus se
identifica com a miséria do homem”.
O próprio Deus amaria verdadeiramente assim? Ele entra
em nossa miséria e a experimenta, a ponto de chegar à
terna paz? Ou será que se distancia da angústia e da
agonia, do quebrantamento e da dor da condição humana?
Betty Fusco, uma dona de casa de Hollywood, Flórida,
escreveu-me o seguinte em uma carta:

Certa noite, uma mãe jovem que havia


recentemente perdido seu filho de sete anos veio à
nossa reunião de oração. Sua dor era enorme. Sua
mágoa e sua ira eram imensas.
Pergunto-me acerca dessa grande mágoa. Poderia
ter sido meu filho. Não seria ele também meu filho?
Se não, por que estou chorando?
Por que, Deus? Será que você é capaz de sentir a
nossa dor? Será que sabe mesmo o quanto estamos
feridos?
Quando José morreu, o que Maria e Jesus fizeram?
Não teria sido a dor deles tão grande que cobriram
seus rostos com cinzas, clamaram bem alto, chorando
e lamentando, rasgaram suas vestes e contrataram
carpideiras para seguir o cortejo do corpo conforme o
costume hebreu de prantear os mortos?
E não foi deste mesmo modo hebreu que, na
Sexta-feira Santa, o Pai cobriu seu rosto com cinzas:
daí a escuridão do meio-dia, o eclipse do sol?
Sua terra gritou e gemeu na agonia do terremoto
inesperado, tremeu e chacoalhou - rochas se
fenderam e montanhas desabaram - e ele clamou em
alta voz.
Ele chorou - fontes brotaram das fendas na terra;
rios jorraram descontroladamente porque seus cursos
naturais foram alterados.
Ele rasgou suas vestes: a cortina do santuário
- o Santo dos Santos, o lugar onde ninguém
entrava, a habitação de Deus segundo a tradição
hebraica - rasgou-se de alto a baixo.
Ele enviou carpideiras para acompanhar o corpo.
“Os sepulcros se abriram, e os corpos de muitos
santos que tinham morrido foram ressuscitados.
E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de
Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a
muitos” (Mateus 27.52,53).

O consolo chegou e chega na manhã da Páscoa. Se você


um dia visitar a catedral de Fribourg, na Suíça, note o
terceiro vitral à direita, ao entrar na igreja. Ele descreve o
Abba de Jesus de pé no Calvário, aos pés da cruz, com o
corpo de seu Filho coberto de saliva e com o sangue
ressecado embalado em seus braços.
O olhar na face do Pai parece dizer: “Se eu soubesse o
quanto isto custaria, nunca teria permitido que
acontecesse”.
Teologia ruim? Sim. Exegese pobre? Com certeza. Mas o
artista não estava ali para fazer teologia ou exegese. Seu
propósito foi o de descrever de forma dramática o amor no
coração de Abba, enquanto seu Filho amado era executado
naquele monte fora dos muros da velha Jerusalém. Podemos
encontrar verdade na poesia, na música, no afresco de
Betty Fusco e em milhares de outras formas de arte, sem
nos determos na metafísica da divindade.
Agostinho declarou: “Deus é mais íntimo de mim do que
eu mesmo”. Se Deus é o Chão pessoal do Ser,
engenhosamente conectado com tudo que há, e se está
tanto além quanto dentro de nossa experiência de vida,
amor, alegria e dor, como sabemos que está, ousamos
então fazer a pergunta: onde estava Deus no genocídio de
Ruanda, no holocausto na Alemanha Nazista e no
sofrimento horrível do 11 Setembro de 2001? A teologia
tradicional tem defendido a imutabilidade de Deus,
sustentando que o sofrimento demanda mudança. E, uma
vez que a mudança implica progresso em relação a um bem
maior, qualquer mutação na natureza divina indicaria uma
imperfeição anterior, e assim, tornaria impossível a noção
de um Deus sofredor. Conquanto uma teologia com base
filosófica possa endossar tal especulação, um Deus sofredor
está implícito em uma teologia baseada biblicamente. Nas
palavras contundentes de Bonhoeffer, “somente um Deus
sofredor pode salvar".
Kevin 0’Shea escreve:

Há um profundo instinto humano de que Deus tem


um coração, de que seu amor restaurador exigiu que
ele encarnasse, “passasse a ter coração”, como nós.
Talvez a verdadeira “dimensão-coração” de nossa
existência, se podemos chamá-la assim, não seja algo
que chamemos propriamente nossa em um sentido
independente. Talvez seja uma parte de seu coração,
uma comunhão em Sua habilidade de sofrer [itálicos
adicionados]. Talvez seja esta uma razão pela qual o
símbolo de amor do Deus terno, redentor, restaurador
e integrador, gratuitamente dado na graça, tenha de
ser o Crucificado. Ele promoveu a paz por meio do
sangue de sua cruz. O coração aberto no Calvário é o
símbolo do pathos [paixão] de um Deus restaurador.
Carregarmos em nosso coração a abertura desse
coração é desabrochar como pessoa na ternura da
graça que nos é concedida.

Na carta aos Filipenses, Paulo declara enfaticamente:


“Quero conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a
participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele
em sua morte” (3.10). O sofrimento físico em nossas vidas,
junto com várias formas de angústia mental - solidão,
tensão, crítica injusta, medo, contradição e confusão, a
inabilidade de relacionar-se amigavelmente com outros -
estão entre as circunstâncias da vida real através das quais
somos formados à semelhança da morte de Cristo. Do
mesmo modo, a frustração, em suas variadas formas, como
por exemplo nos homens e mulheres que anseiam pela vida
de casados, mas nunca a viveram; naqueles que têm um
profundo desejo de se tornar isso ou aquilo, realizar isso ou
aquilo, mas que no fim têm de admitir que carecem dos
dons necessários; naqueles que anseiam por amigos e
companhia, mas estão condenados à solidão; naqueles que
nunca parecem ser capazes de fazer sucesso nas coisas
sobre as quais colocam as mãos. Nestas e em outras
incontáveis situações de vida, nossa semelhança com a
ternura de Deus é percebida.
Em que sentido podemos dizer isso? Todos têm uma
vocação para alguma forma de trabalho para a vida. No
entanto, por trás desse chamado (e mais profundo que
qualquer outro), todos têm a vocação de ser uma pessoa,
ser plena e profundamente humano em Cristo Jesus. E a
segunda é mais importante que a primeira.
É mais importante ser um cristão maduro que um grande
açougueiro, padeiro ou artesão; e se a única chance de
realizarmos a primeira for fracassarmos em relação à
segunda, o fracasso terá se mostrado inútil. Será que o
fracasso não valeria a pena se nos ensinasse a ser
pacientes e condescendentes com o fracasso dos outros,
viver na sabedoria que aceita a ternura e passar adiante
essa ternura a outros? Se formos sempre bem-sucedidos,
poderemos ficar tão dependentes de nossas vitórias que nos
tornaremos insensíveis à angústia de outros; poderemos
fracassar em compreender (ou mesmo tentar compreender)
o coração humano; poderemos pensar no sucesso como
algo que nos é devido. Mais adiante, portanto, se o nosso
pequeno mundo entrar em colapso por conta de uma morte
ou de um desastre, não teremos nenhum recurso interior.
É importante e útil lembrar que o valor do sofrimento de
Jesus repousa não na dor em si mesma (pois, em si mesma,
a dor não tem nenhum valor), mas no amor que o inspirou,
como Cirilo, de Jerusalém, destacou muitos séculos atrás.
Ele escreveu: “Nunca esqueça que aquilo que dá valor a um
sacrifício não é a renúncia que exige, mas a qualidade do
amor que inspirou a renúncia”. E exatamente assim que
devemos nos aproximar do Calvário. A alma humana de
Jesus alegrou o coração de seu Pai celestial com a
generosidade incontrolável e a obediência inabalável de seu
amor.
Felizmente, a cruz não foi a palavra final de Deus a seu
povo. Nossa vida cristã contempla, além do Calvário, a
ressurreição. E a natureza humana do Cristo ressuscitado,
filtrada por inteiro pelo brilho da divindade, que mostra
como um espelho reflete tudo aquilo para que somos
convocados. O destino de nosso irmão Cristo é o nosso
próprio destino. Se sofrermos com ele, com ele seremos
glorificados.
O padrão é sempre o mesmo. Todos os caminhos levam
ao Calvário. Só alcançamos a vida através da morte; só
aprendemos a ternura através da dor; só chegamos à luz
através da escuridão; Jonas deve ser sepultado no ventre da
baleia; o grão de trigo deve morrer; devemos ser formados
à semelhança de Sua morte se queremos nos tornar
homens e mulheres da Páscoa.

Leitura Recomendada:
Bonhoeffer, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo, RS:
Editora Sinodal
0’Shea, Kevin. The Way of Tenderness. New York: Paulist
Press, 1978.
Stella, Tom. The God Instinct. Notre Dame, IN: Sorin
Books, 2001.
Capítulo VII

Misericórdia resoluta

As três parábolas da misericórdia divina em Lucas 15,


chamadas de “o Evangelho dentro do Evangelho", carregam
a mensagem central de Jesus Cristo. As histórias da ovelha
perdida, da moeda perdida e do filho perdido encurralam a
nossa consciência, induzindo-a à submissão à verdade de
que Deus é amor (1 João 4.16). O estudioso da Bíblia William
Shannon argumenta que esse trecho da Bíblia é
hermeneuticamente decisivo, sugerindo que ele é a chave
para a compreensão de toda a Escritura.
Meditemos na primeira dessas três parábolas e peçamos
ao Espírito que nos guie no mistério da misericórdia divina.
Impulsivamente, o pastor deixa noventa e nove ovelhas
de seu rebanho no deserto, onde o perigo está à espreita e
bestas feras rugem, para buscar nossa pequena ovelhinha
perdida. Quando a encontra, ele a coloca sobre os ombros e
volta para casa alegre. O escritor Eddie Ensley, em seu livro
Prayer That Heals Our Emotions [A oração que cura nossas
emoções] nos encoraja a visualizar esta cena:

Imagine que você é o pastor. Você deixa o rebanho


para buscar o cordeiro solitário e assustado que
perdeu seu caminho e está agora sobre um penhasco
no alto de um monte, com medo de descer sozinho. O
cordeiro grita como se estivesse gritando para a sua
mãe. Você pode ouvir o desespero em seu grito. Você
o acalma e o afaga. Fala palavras doces e sente seus
músculos relaxarem e a calma retornar. O cordeiro o
acaricia com seu focinho. Você o apanha e põe em
seus ombros. O que você sente? Uma cena como esta
sugere ternura, amizade, compaixão e alegria.
Permita-se sentir a ternura do cordeiro sobre seu
pescoço, enquanto a traz de volta.

Ternura, amizade, compaixão. Com elementos assim,


esta e as outras duas parábolas são decididamente “não-
americanas”. Como consequência trágica disto, estão
praticamente ignoradas pela psique cristã contemporânea.
Como sei disso? Durante quase quarenta anos de
experiência pastoral, tenho observado discípulos de Jesus
que insistem em persistir, intimidar e coagir a si mesmos
para merecer a misericórdia de Deus. As memórias
perturbadoras de relacionamentos fracassados, o
desrespeito cruel de crianças, os pecados sexuais de
estimação, as imprudências financeiras, as palavras de
amor não proferidas, o apoio não oferecido, a compaixão
não estendida e a indiferença abissal à necessidade
humana que reaparece de repente, às vezes décadas
depois. Essas reminiscências indesejadas paralisam a fé,
atropelam a mensagem de Jesus e quase sempre levam a
estados de consciência induzidos por drogas que fornecem
escape temporário da vergonha e responsabilidade.
Uma tendência virulenta de teologia pelagiana tem se
disseminado na consciência espiritual dos Estados Unidos.
Pelágio ensinava que as pessoas são basicamente boas -
incontaminadas pelo pecado original e no controle de seu
próprio destino. Hoje, essa teologia corrompida é
alimentada pelos esforços enlouquecidos e diligentes no
mercado de trabalho, que é programado para colher as
recompensas prescritas pela força avassaladora do poder
tecnológico. Recentemente, durante um jantar num sábado
à noite em Kirkland, Washington, uma pequena cidade perto
do escritório central da Microsoft, seis jovens casais, depois
de devorarem sua comida, saíram abruptamente do
restaurante às nove horas. Eu disse ao meu convidado:
“Que estranho! E sábado à noite”. Ele respondeu: “Na
verdade, isso é bem comum aqui. Eles provavelmente estão
voltando para o trabalho no Mundo Gates. Todos estarão
bilionários antes de completar trinta anos”.
Uma cultura que premia o esforço e a recompensa
simplesmente transfere a lenda do homem vencedor, de
Horatio Alger, da esfera econômica para o nosso
relacionamento com Deus. A noção de misericórdia
imerecida é curiosa, porém ininteligível para a maioria de
nós, uma vez que não possui precedentes em nossa
experiência humana. A surpresa dramática gerada por
histórias como a do pastor, da mulher e do pai que buscam
é a de que ser encontrado por um Deus que busca é mais
importante que qualquer coisa que façamos. Se a
mensagem não consegue ressoar em nós, não podemos
culpar o mensageiro.
Em minha própria vida, a transição da ternura para a
misericórdia se desenvolveu através de um implacável
exame de consciência - ou, como dizem alcoólicos em
recuperação, através de um inventário minucioso e
destemido de mim mesmo. Os resultados não foram
encorajadores.
Todos os sucessos ministeriais de anos anteriores foram
pesados e deixaram a desejar. Motivações basilares, mas
bem disfarçadas, contaminaram quase todos os atos de
bondade que pratiquei. À luz dessa descoberta
desagradável, o sentimento de estar confortavelmente junto
do Abba de Jesus desapareceu, como o sonho da noite
anterior. Não mais abrigado na percepção amorosa da
presença de Deus, senti um vasto abismo se abrir de
repente, separando-me, em minha desonestidade calculada,
da pura verdade de Deus. Um sentimento vago e
penetrante de culpa existencial se instalou em minha alma.
O remorso acerca do passado se apossou de meu ser
com tamanha crueldade que temi por mim mesmo. Fiquei
na cama até o meio-dia, caminhei tropegamente até o
escritório e não abri suas venezianas de jeito nenhum. A luz
me era insuportável. Em uma visão extremamente
perturbadora, vi minhas supostas virtudes como vícios
espirituais encantadores, tudo contaminado pelo egoísmo.
Eu havia brincado com a emoção das pessoas, me entregue
ao sarcasmo quando poderia ter encorajado a um irmão ou
irmã, deixado cicatrizes quando poderia ter curado através
de uma palavra de consolo, batido quando poderia ter
beijado. Minha vida inteira parecia uma mentira. Eu havia
usado meus dons dados por Deus para construir uma
carreira fora da religião, forjar um império, conquistar a
lealdade das multidões. As palavras mortais engano, fraude
e hipócrita soaram e ressoaram em meu coração oco,
seguidas por momentos de náusea diante de minha vaidade
e falsidade. A autenticidade do projeto de minha vida como
um todo parecia condenada.
Um ex-professor que tive na Universidade de Columbia,
Quentin Anderson, certa vez disse: “Devemos nos reunir ao
redor do fogo sagrado da vida comunitária”. Essas palavras
agora me atingiam como um cruel machado. A comunidade
não tinha nada a me oferecer, ninguém tinha nenhuma
palavra que pudesse preencher o meu vazio. Seria fútil
buscar desenfreadamente uma chave, uma fórmula, um
conjunto de coisas a fazer a fim de encontrar meu caminho
de volta ao paraíso perdido da proximidade com Deus. Na
fragilidade dessa minha situação, eu estava longe de
qualquer possibilidade de cura. Ninguém poderia me
apresentar um remédio. A ternura se fora.
Naquela hora de perda, me senti tão longe de Deus que
duvidei se uma vida inteira seria longa o suficiente para
encontrá-lo. Suspeitei que minha vida havia sido uma
grande decepção para Deus, uma decepção que não tinha
forças para reverter. Eu havia perdido o Senhor em meio ao
orgulho que me cegara e a uma rispidez que havia
endurecido meu coração. Completamente desesperado, me
convenci de que a repreensão de juízo no Livro do
Apocalipse havia sido endereçada a mim: “Você está
ultrapassado. Está estagnado. Você me faz querer vomitar.
Você se gaba, ‘sou rico, venci na vida, não preciso de nada
de ninguém’, sem notar que de fato é digno de pena, um
mendigo cego, esgotado e desabrigado” (Apocalipse
3.16,17, The Message).
No passado vividamente relembrado, minha vida e
ministério haviam inspirado hinos de louvor. Eu tinha
deixado minha marca; havia produzido um bom trabalho;
havia sido respeitado e estimado por meus pares. Parecia
que a minha integridade havia me dado um direito
duradouro a uma segurança medíocre. Agora, no entanto, o
sucesso dos primeiros anos estava comprometido pela
ambiguidade e arrogância. As amizades e a popularidade
estavam em declínio, do mesmo modo que as recaídas com
o álcool eram apagadas e ignoradas. Histórias pessoais que
me colocavam em destaque eram exageradas de maneira
deslavada. Percebi a desconfiança por parte de outros e as
diferenças radicais de opinião acerca de liturgia, renovação
espiritual e vida comunitária. Doença, esgotamento e
inatividade aumentavam a vergonha de memórias
enterradas, e que se recusavam a permanecer em silêncio.
Em um estado emocional deplorável, tomei consciência
também de uma crescente hostilidade para comigo mesmo.
Olhando no espelho, eu via apenas a casca dentro da qual
alguém de carne e ossos viveu e cresceu. Eis que, então,
tenho uma imagem recuperada do passado: anos antes, eu
havia sido convidado para trabalhar como ministro no
campus de uma renomada universidade. Sem nenhuma
hesitação, respondi: “Isso não será possível. O ministério de
evangelização é minha prioridade e exige um compromisso
de tempo integral”. Quem disse isso? Quem foi o eu leviano
que decidiu que meu dom da palavra inspirada era tão
indispensável à vida da igreja? Em que momento, do qual
não me lembro, eu teria começado a me levar assim tão a
sério?
Kevin 0’Shea, citado na obra The Thorn and the Rose [O
espinho e a rosa] compilada por Anthony Williams, descreve
com tristeza profunda a insensibilidade induzida pelo
hostilidade ao eu:

Não é um inferno, é apenas um limbo eterno...


Condenado a uma espera eterna no chão estrangeiro
do eu que ninguém consegue reconhecer nem pisar, a
não ser o eu nele capturado. Ele é o ponto impossível
entre qualquer esperança e todo o desespero,
intocável por não se tratar de nenhum dos dois. E um
torpor instalado nas raízes do ser. Um verdadeiro
dizer: “Eu não sou”... O sentimento é amargo, mas o
senso de amargura morreu... E a existência é
conhecida em algo que nunca se poderia chamar de
uma “experiência”.

A ansiedade acompanhada de tremor esvaziou meu


coração de qualquer desejo de uma experiência na
presença de Deus. Sua santidade era insuportável. O mero
pensar em Cristo era doloroso e assustador; Ele era o
oposto de meu próprio ser, o inimigo de minha infidelidade.
Solitário, incomunicável, perdido, eu vi Deus como o
mysterium tremendum - frase de Rudolph Otto para aquele
sentimento de tremendo mistério que é o elemento mais
profundo e fundamental em toda experiência espiritual.
Deus era totalmente Outro, majestoso, que inspirava medo,
tudo que eu não era. Eu sabia que a passagem, “terrível
coisa é cair nas mãos do Deus vivo”, apontava diretamente
para mim; a perspectiva do juízo divino me enchia de terror.
O contraste entre minha pecaminosidade e a santidade de
Deus permitia apenas a oração desesperada do publicano,
“O Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. Repeti essas
palavras em oração por vezes incontáveis.
A aceitação da misericórdia não era mais somente uma
opção entre muitas outras. A exaustão espiritual extrema
havia comprometido todo o meu mecanismo de defesa,
assim como a depressão clínica exaure cada unidade de
energia na pessoa por ela abatida. Nas profundezas de
minha dor, eu sabia que teria de haver um momento
quando eu simplesmente abriria mão de tudo. Meu coração
sangrava, e eu não conseguia deter a hemorragia.
Quando a misericórdia se instalou silenciosamente em
minha alma, o tremor cessou e as lágrimas, que em minha
hostilidade para comigo mesmo haviam secado, começaram
a rolar novamente. O toque de bondade infinita no nada em
que eu me tornara não foi mera ternura; ele se espalhou
com uma doçura que transcendeu a ternura. E embora a
experiência fosse muito sutil, essa misericórdia entrou
despercebidamente em meu coração.
As ruas surradas de minha alma ainda estavam sujas
com os destroços da vaidade, da desonestidade e do amor
corrompido. Não foi como se um lixeiro tivesse
repentinamente aparecido para limpar a vizinhança de cada
monte de lixo que não estava à vista. Quando a misericórdia
chegou à minha porta dos fundos, meus defeitos de caráter
não foram jogados pela porta da frente; eles foram para o
subsolo, porém não saíram (e ainda não se foram). O que
aconteceu é virtualmente impossível explicar - e é melhor
que seja assim. Aquilo que intuitivamente apreendo agora,
em retrospecto, é que a misericórdia beijou meu
quebrantamento, Amor-Excedente (João 3.16) embalou uma
criança ferida, e por uma razão biblicamente válida, porém
inexplicável, não houve problema algum em inclinar-me
para ser beijado.
Mais tarde e muito chão de estrada depois, o primeiro
ato de amor misericordioso de Deus em mim foi o de acabar
com as ilusões e desilusões que me haviam levado a negar
minha própria dignidade e tentar eliminar a vida do Espírito
de Deus dentro de mim. Minha mente errática havia
liberado uma série de símbolos e imagens interiores em
tempos irracionais e incontroláveis, que alimentavam uma
culpa irremediável que eu não tinha poder para expiar. Foi
somente quando o pensamento terrível de que a fé ruim iria
inevitavelmente tornar a desfigurar minha vida de novo,
que a misericórdia resoluta invadiu minha consciência com
um senso selvagem de proteção: “Você me pertence, e
ninguém jamais irá arrebatá-lo de minha mão. Eu mudei seu
nome. Você não mais será chamado de envergonhado, ou
se sentirá culpado, solitário e temeroso. Seu novo nome é
‘filho meu, quebrantado e amado, que está sempre
brincando e é a alegria do meu coração’.
Quando a misericórdia resoluta transforma nossas vidas,
as palavras perturbadoras de Julian de Norwich, “o pecado
não será vergonha, mas honra”, se tornam claras como a
luz do dia, assim como a observação desconcertante do
mestre espiritual Anthony de Mello, “o arrependimento
alcança sua plenitude quando você é levado a agradecer
por seus pecados”.
A glória de Deus é perdoar. Como exclama o profeta
Miquéias a Javé: “Quem é comparável a ti, ó Deus, que
perdoas o pecado e esqueces a transgressão do
remanescente da sua herança? Tu, que não permaneces
irado para sempre, mas tens prazer em mostrar amor”
(7.18). E fácil para Deus perdoar. Deus se alegra em perdoar
porque o seu perdão gera nova vida em nós. A alegria
incomparável do pai do pródigo na “pérola das parábolas”
teria sido negada se seu filho mais novo tivesse sempre sido
um hipócrita.
Nossos pecados são condutores da graça quando levam
ao arrependimento e à contrição autêntica. Assim como o
filho pródigo, passamos a conhecer uma intimidade com o
Pai que o irmão sem pecado, cheio de justiça própria, nunca
conheceu. Para os pecados que nos levaram a esta
intimidade sagrada, somos de fato gratos. Eles oferecem a
Deus a oportunidade de mostrar misericórdia, que as
Escrituras hebraicas e cristãs testificam ser Seu maior
prazer. O teólogo alemão Werner Bergengruen declara isso
precisamente: “O amor prova a sua autenticidade na
fidelidade, mas alcança a sua plenitude no perdão”. Não é
de admirar que o Amor-Excedente encontre imensa alegria
na misericórdia.
Em resposta à pergunta frívola “então por que não
continuar pecando?”, pergunte ao filho pródigo, depois dele
haver experimentado as profundezas do amor de seu pai:
“Você planeja outro safári à depravação?”. Pergunte ao
marido cuja esposa lhe disse: “Eu te amo tanto que nada,
absolutamente nada, poderia destruir o amor que tenho por
você; nada poderia jamais me fazer parar de te amar”, se
ele se sente à vontade para embarcar em um caso. Amor
suscita amor!
A tentação onipresente da alma superficial é fingir que
somos pecadores e que somos perdoados - ela é de todo
pretensiosa porque os pecados que reconhecemos não são
aqueles que nos matam, e o perdão que reivindicamos é
falso por causa de nossa desonestidade flagrante para com
Deus e com os outros. A vida espiritual se torna um
pequeno carnaval de pseudo-arrependimento e pseudo-paz.
No entanto, quando o flagelo do pecado rasga nossa vida ao
meio e a ferida aberta em nosso espírito anseia pelo doce
unguento do alívio, podemos ficar paralisados entre a
escolha de sofrer a vergonha ou confiar na misericórdia e
internalizar as palavras de Julian, “Nosso Senhor gentil não
quer que Seus servos se desesperem porque caíram séria e
tristemente; porque a nossa queda não o impede de nos
amar”. A graça para a segunda escolha não é negada a
ninguém que “clama a ele dia e noite”, mesmo quando ele
demora em ajudar (Lucas 18.7).
A Palavra que pode nos salvar não é a nossa própria
palavra; a salvação não depende de nenhuma capacidade
em nós para praticar o bem. O que nos salva é a Palavra
viva da Misericórdia-Excessiva (Lucas 1.77,78), que tira vida
da morte, perfeição do desastre e perdão a si mesmo de
autocondenação.
“Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão
misericórdia”, promete Jesus (Mateus 5.7). Se atentarmos
com perseverança à nossa triste história, não somente
seremos desencorajados de julgar outros peremptoriamente
como também ficaremos mais dispostos a demonstrar, sem
acepção, misericórdia a vagabundos e maltrapilhos que
Deus coloca em nosso caminho. Note a observação severa
de Simon Tugwell: “Só podemos receber misericórdia se
estivermos preparados para aceitar a companhia que a
Misericórdia nos oferece. Não é bom querer ser alvo de
misericórdia e ao mesmo tempo reservar-se o direito de
olhar com desaprovação para todos os outros
companheiros”.
Uma vez que receber misericórdia é inseparável de
mostrar misericórdia, a oração incessante deve incluir o
clamor para transformar meu coração de pedra em um
coração de carne. Todos nós nos encontramos
urgentemente necessitados da mesma misericórdia, mas
mostrá-la ao outros não é uma opção fácil, especialmente
quando ela representa benevolência abundante para com
ingratos que não têm qualquer intenção de mudar. No
entanto, é isso que Abba faz. “Ele é bondoso para com os
ingratos e maus” (Lucas 6.35). Além disso, minha própria
cumplicidade em relação ao mal é manifesta em minha
resistência autojustificadora para expressar qualquer
amizade genuína a alguém que tenha me magoado; estou
preso à mesma rede deplorável em que o transgressor está.
O coração terno, claramente, não é feito de betume.

Todas as grandes experiências da vida - a liberdade para


ser, nossos encontros com a verdade, amar e ser amado,
diariamente morrer para o eu, e assim por diante - são
exercitadas na turbulência silenciosa de um espírito
empobrecido. Uma doçura que transcende a ternura nos
envolve quando confrontamos momentos decisivos
relacionados a essas experiências e somos silenciosa mas
profundamente tocados por esse indescritível encontro com
a misericórdia. Ao sermos tomados pela força envolvente do
mistério, de repente nos tornamos pequenos. Não podemos
mais chegar até Deus com o nosso profissionalismo
injustificado ou com a nossa familiaridade ofensiva, e
sabemos disso. Não ficaríamos surpresos nem chocados se
Deus entrasse e desse um fim a toda a nossa meditação
superficial.
Ao nos achegarmos à nossa fonte, nossos pensamentos
vão se concentrando, nosso entendimento se suaviza,
nossas palavras se intensificam, nosso julgamento se torna
reservado e a nossa objetividade ganha reverência. Como
lidamos com essa colisão indizível, vazia, mas
despedaçadora com o Chão do Ser - do nosso ser? Por que
esse afastamento conveniente da lareira dos colóquios
amenos e das liturgias animadas por aplausos cm direção à
pobreza de uma calma profunda e fria que invade o
santuário interior do nosso ser?
De acordo com Rudolph Otto, a razão é o mysteriurn
tremendum, aquele sentimento de tremendo mistério que
cerca todo o nosso pensamento acerca de Deus, toda a
nossa oração a Ele dirigida. Além de fé, confiança, amor,
paz e alegria, sentimos um elemento de força desorientador
- uma força tão grande que seria humanamente impossível
para nós criarmos, inventarmos ou fabricarmos uma
experiência assim. Para determinada pessoa, ela pode vir
larga como uma suave, porém implacável maré, saturando
a mente e o coração, em um auto-abandonado espírito de
profunda adoração. Para outra, ela pode perdurar e
estabelecer-se num ritmo constante que ressoe com
encantamento e espanto, até que, por fim, se desvaneça e
o crente retorne à rotina normal, da existência diária. Como
disse um místico contemplativo de maneira bem-humorada,
“Após o êxtase, o tanque!”.
Em outras ocasiões, a força do mysterium tremendum
pode surgir como um vulcão, brotando das profundezas da
alma em espasmos e convulsões. Ela pode levar ao frenesi
inebriante, tal como aquele experimentado pelo místico do
século XVI Philip Neri, que pressionava as mãos com todas
as suas forças contra a parede para impedir embriaguez
espiritual, levitação ou êxtase. Ainda em outras ocasiões, a
força do mysterium tremendum pode manifestar-se através
do tremor silencioso e da humilhação sem palavras de C. S.
Lewis, que foi “surpreendido pela alegria”. Qualquer que
seja a natureza da experiência, nos encontramos na
presença do mistério inexprimível, acima de todas as
criaturas e além de toda descrição.
Ela é a entrada decisiva de Deus em nossa história
pessoal, o momento transformador quando a ternura não
mais corresponde à nossa percepção da realidade; a
intimidade experimentada por uma fé passada é
inapropriada para os parâmetros presentes de experiência
espiritual; “Abba”, “Pai amado”, “irmão Jesus”, e “doce
Espírito” se tomaram palavras secas, imagens vagas que
não mais ressoam no santuário interior do coração. Essas
palavras e imagens serviram ao seu propósito de
indicadores antropomórficos da realidade do Amor-
Excedente que está além de nós, e a ternura é redefinida
como misericórdia.
Quando essa hora da verdade chega, não temos mais
recursos para resistir à convocação imperiosa do mistério,
sem credenciais de independência para agir. O momento da
verdade chegou.
Como escreve o teólogo alemão Johannes Metz: “Ao
adorarmos em espírito e em verdade (João 4.23), não mais
nos sustentamos com a pose do executivo que sabe o que
se passa e tem tudo sob controle... Estamos enganados, no
entanto, se esperamos encontrar na oração um abrigo para
a força avassaladora do mistério”.
Embora a oração seja a nossa resposta natural a
qualquer encontro com o mistério supremo, James
Mulholland nos lembra que nem toda oração serve a esse
propósito. Se esquecermos a quem estamos nos dirigindo
em oração - esquecermos o poder com o qual estamos
lidando - nos aproximaremos daquele que é Santo como se
fosse Papai Noel, oferecendo-lhe uma lista de coisas a fazer,
sepultando o encantamento e o espanto sob uma lufada de
petições, e obtendo de nossos dízimos, do nosso jejum e da
vida devocional um sentido de autorização para receber
uma resposta divina imediata. O mais curioso é que Jesus
está claramente ausente da oração pré-cristã de Jabes e de
invocações semelhantes.
Quando negamos nossa pobreza espiritual intrínseca,
quando ficamos por demais envolvidos com nós mesmos, o
perigo está à espreita. Podemos começar a fazer exigências
a Deus por coisas que pensamos merecer, e que, na maioria
das vezes, nos levam à ira e à frustração. Um caso típico: o
homem no restaurante pede uma salada de caranguejo e o
garçom traz salada de camarão. Lívido, o homem irado
ruge: “Onde diabos está o meu caranguejo?”. Se
presumirmos que a vida nos deve o melhor - e nada menos
que o melhor - a realidade, então, raramente corresponderá
às nossas expectativas.
Como consequência lógica disso, nós alegremente
desconsideramos tudo que cruza o nosso caminho. O
espiritualmente pobre - assim como o pobre
economicamente - experimenta a genuína gratidão e
aprecia o presente mais simples. Ironicamente, quanto mais
crescemos no Espírito de Jesus Cristo, mais pobres nos
tornamos. Quanto mais percebemos que tudo é dom, mais o
curso contínuo de nossa vida se torna uma ação de graças
humilde e alegre.
Os ricos de espírito dedicam um tempo considerável para
pensar sobre aquilo que não têm; os pobres desfrutam de
imediato e celebram aquilo que têm. No século XIX, o
filósofo ateu Friedrich Nietzsche repreendeu um grupo de
cristãos: “Vocês me dão enjoo!” foi o resumo de sua
reclamação. Quando seus interlocutores perguntaram por
quê, Nietzsche respondeu, “Porque vocês, redimidos, não
parecem que são redimidos!”.
Os ricos de espírito estão, na maioria das vezes,
abatidos, sentindo-se culpados, ansiosos, e insatisfeitos
como seus semelhantes incrédulos, enquanto os pobres de
espírito clamam: “Convém dar a Deus gratidão e louvor!”.
Assim, como migrarmos da pobreza da riqueza espiritual
para a riqueza da pobreza espiritual? A oração do silêncio
respeitoso, da liberação do egoísmo sem limites e a atenção
à sensibilidade de Jesus revelam as profundezas ilimitadas
de nossa pobreza. Na percepção de nossa dependência
radical, a ilusão da auto-suficiência se dissipa como a névoa
da manhã.
Somos tão pobres que nem mesmo a nossa pobreza nos
pertence; ela pertence ao mysterium tremendum de Deus.
Em oração, bebemos as porções menos desejadas de nossa
pobreza, professando a plenitude e a majestade de Outro
Alguém. A máxima do pobre de espírito é: “Não eu, não Tu,
não um, e não dois”, mas o cantor e a canção, a chama e o
fogo. O maltrapilho empobrecido bebe todo o cálice, quando
desaparece naquilo que Thomas Merton chamou de “a
enorme pobreza que é a adoração a Deus”. Ele se apresenta
diante de Deus de mãos abertas, sem se agarrar a coisa
alguma.
Não mais escravo da tirania das experiências religiosas
arrebatadoras do passado, o pobre de espírito abandona a
procura desesperada por recapturar a intimidade piedosa e
inspiradora da ternura. Tom Stella conta a história de uma
de suas visitas à Abadia Genesee, no lado norte de Nova
York. Ele perguntou a um monge que estava ali há trinta
anos se ele experimentara mais o sentimento da
proximidade de Deus naquele momento do que quando
chegou ao monastério. “Esperando uma resposta
afirmativa”, disse Stella, “fiquei ao mesmo tempo surpreso
e confortado quando ele disse: ‘Não, mas agora isso não
importa”. Graças à misericórdia divina, a certeza da fé na
Presença que em nós habita não depende da instabilidade
de nossos sentimentos volúveis.
Deus é Deus. Aquele que é Santo não se deixa
comandar, controlar, manipular, explorar.
O apóstolo Paulo pergunta: “Mas quem é você, ó homem,
para questionar a Deus? Acaso aquilo que é formado pode
dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’”
(Romanos 9.20). Quando aceitamos essa verdade,
percebemos que tempos de adoração não podem mais ser
avaliados pelos efeitos emocionais que produzem em nós; a
qualidade da refeição eucarística não pode ser medida pelo
número de cadeiras à mesa, pela natureza dos aperitivos ou
pelos resultados tangíveis e visíveis na psique de um
comensal. Os pobres se impressionam de que a misericórdia
tenha sequer se incomodado em aparecer, isso sem falar
que Deus e o homem estão sentados à mesa.
Quando somos levados a estar face a face com a
inevitável pobreza da morte, o movimento gradual de viver
na sabedoria da ternura para viver na presença da
misericórdia se torna decisivo e completo, A perturbadora
realidade do mysterium tremendum estabelece sua
afirmação soberana. “Neste ponto”, nota Johannes Metz, “a
pobreza alcança seu ápice. A submissão às forças de uma
natureza vinculada à morte se torna entrega total e
obediente ao Pai”.
Vinte cinco anos atrás, uma amiga minha na Flórida
soube que estava morrendo. Como último desejo e
testamento, Edith Dinan escreveu o seguinte:

Quando este meu corpo terreno silenciar e não


mais respirar, celebrem com júbilo ao Senhor, meus
amigos. Não chorem, a menos que chorem por vocês
mesmos; não chorem por mim. Ao contrário, dancem,
cantem e gritem as Boas Novas - outra filha partiu
para o lar do Pai, Abba.
Entoem canções de alegria até tarde da noite e, se
houver um valente entre vocês, cantem, louvem,
toquem e riam até o amanhecer; e então deixem que
o culto seja uma celebração de verdadeira felicidade e
alegria. Louvem a Deus, pois ele é misericórdia! Ele
me chamou para o lar.
Não se entristeçam, queridos amigos, com minha
partida, mas se alegrem. Pensem com carinho em
mim e muito, se assim o desejarem, mas somente
com prazer e alegria.
Não permitam que a celebração de meu verdadeiro
nascimento no Senhor seja uma coisa monótona, mas
que nos salões ressoem alegria e divertimento!
Louvado seja nosso Senhor, pois ele é bom! Ele me
chamou para o lar e eu vou com amor, expectativa e
louvor em meus lábios, e alegria em meu coração...
Na plena certeza de que sou uma Amada do Pai, uma
noiva de Cristo e um templo do Espírito Santo.
Escrevo isto como meu último desejo e testamento.
Se vocês me amam, por favor, encham-se de alegria e
façam o que estou pedindo.

Edith já está no Reino, é claro, pois, como escreve Leon


Bloy, “você não entra no paraíso amanhã ou dez anos a
partir de amanhã; você entra no paraíso hoje, quando está
pobre e crucificado”.
A morte é o último ato de entrega do eu, o repúdio final
ao eu, o ato supremo de maltrapilhos empobrecidos diante
da misericórdia resoluta de Deus. Em confiança inabalável,
esperança resoluta e em pura doação de amor, entregamos
nosso próprio reino ao Pai. E o Abba de Jesus, postado nas
margens eternas com braços abertos e estendidos,
docemente nos convida a entrar em casa, dizendo:
Levante-se, minha querida, minha bela, e venha comigo.

Veja! O inverno passou; acabaram-se as chuvas e


já se foram.
Aparecem flores na terra,
e chegou o tempo de cantar
já se ouve em nossa terra o arrulhar dos pombos...
Levante-se, venha, minha querida; minha bela,
venha
comigo...
mostre-me seu rosto, deixe-me ouvir sua voz; pois
a sua voz é suave e o seu rosto é lindo.
Levante-se, minha querida, minha bela, e venha
comigo.
Cântico dos Cânticos 2.10-14

Leitura Recomendada:
Bergengruen, Werner. Citado em The God Who WontLet
Go. Cincinnati, OH: Ave Maria Press, 2001.
Ensley, Eddie. Prayer That Heals Our Emotions. San
Francisco: HarperSanFrancisco, 1988.
Julian of Norwich. Showings. New York: Paulist Press,
1980.

Metz, Johannes. Poverty of Spirit. New York: Paulist Press,


1968.
Mulholland James. Praying Like Jesus. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 2001.
0'Shea, Kevin. The Thorn and the Rose. New York: Paulist
Press, 1978.
Otto, Rudolph. The Idea of the Holy. New York: Scribner,
1927.
Shannon, William. Silence on Fire. New York: Crossroad,
1991.
Tugwell, Simon. The Beatitudes: Soundings in Christian
Tradition. Springfield, IL: Templegate, 1980.
Epílogo

Uma palavra depois...

Pastores leais e bondosos correspondem à terna Presença


que sustém seus irmãos e irmãs na família humana. No
entanto, quando a dignidade de outros é ultrajada por
maquinações de líderes políticos ou religiosos, eles não
temem tomar posição em prol da verdade e sustentar sua
desaprovação aos poderosos. Eles são incapazes de
permanecer em silêncio em face da flagrante injustiça. Eles
dão ouvidos às palavras inscritas no tabernáculo de uma
igreja em uma pequena vila, “a maior de todas as coisas
sobre a terra é o respeito, porque ele é o cerne do amor”.
Se falar e agir em favor dos marginalizados for a única
alternativa, cristãos sensíveis se tornam confrontadores,
irados e inquietos; se as circunstâncias exigirem, eles serão
adversários ferozes e resistentes.
Estas observações servem como um curto prefácio a esta
última palavra.
Se a imaginação cristã, há muito mumificada pelos
legalismos e barbaridades de uma igreja sem alma, de
repente despertasse, como o estalo de um canivete ao se
abrir, poderia criar uma imagem do inimaginável: uma
comunidade cristã unificada na América!
A imaginação concentrada em Jesus e ancorada em sua
Palavra nos liberta da tirania dos arranjos existentes; nos
descola da prisão do status que abre portas trancadas para
que possamos olhar com novos olhos a Torá, Cristo, a igreja
e o cosmos; significa que posso ser mais do que sou a
qualquer momento; e promete que o epitáfio em meu
túmulo será mais que, “ele balbuciou suas orações, cortou
sua grama e perdeu mil bolas de golfe”.
Um exercício: imaginemos que o apóstolo Paulo, que
viveu as palavras que escreveu na Segunda Carta aos
Coríntios, “ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito
do Senhor, ali há liberdade” (3.17), fez um curso intensivo
de inglês e foi transportado numa máquina do tempo até o
presente. E tarde de domingo em Nova Orleans, e Paulo
está com fome. Ele compra um lanche de camarão de um
vendedor da Chartres Street e, dando ouvidos ao seu
conselho a Timóteo, bebe um refrigerante, passa pela
Moonwalk em direção à Decatur Street, chega ao alto e tem
sua primeira visão do Rio Mississipi. Senta-se, então, em um
banco de madeira, ao lado de um cavalheiro de cabelos
brancos.
“Bom dia, senhor,” Paulo diz, tirando o lanche da sacola.
“Talvez o senhor pudesse compartilhar comigo sua
perspectiva acerca da situação espiritual da comunidade
cristã na América hoje”.
O homem se vira e, friamente, observa o estranho. Ele vê
um homem de baixa estatura com um nariz grande,
escassos cabelos ruivos, uma bochecha redonda, olhos
acinzentados sob sobrancelhas grossas e unidas, e uma
barba densa. Quem é esse sujeito? O homem se pergunta.
Um espião da imprensa em busca de sujeira, um diletante
divagando sobre coisas espirituais, o inimigo disfarçado de
anjo de luz?
“Por que o senhor pergunta?” ele diz com ceticismo.
Paulo toma um gole de sua bebida, pensando em uma
resposta, e então diz, “um discípulo de sua época escreveu:
‘muitos cristãos se juntaram como corvos ao redor da
carcaça da graça barata e beberam o veneno que matou o
discipulado de Cristo’. Se aqueles que buscam quiserem
encontrar Jesus hoje, devem encontrá-lo em seu corpo, a
comunidade cristã. Eu faço esta pergunta, senhor, porque
quero encontrar Jesus em sua área”.
O homem mais velho, trajando jeans, blusa com gola alta
e tênis de marca, ouve com atenção. Seus olhos se fixam no
rosto de Paulo. Ele nota que daquele pequeno companheiro
imperceptível emana uma força espiritual inquestionável.
Sua aparência, gestos e voz, no entanto, não combinam
com o estereótipo convencional de piedade. Ele não parece
mundano nem místico. Ele não tem o olhar fascinante,
inflexível da multidão dos ‘nascidos de novo” - um olhar que
quase sempre sugere uma condição neurótica disfarçada de
sinceridade. E ele não me abordou citando um texto da
Bíblia após outro. E óbvio, contudo, que leu Bo-nhoeffer,
pois o citou.
E a honestidade em seus olhos é inconfundível. Já ouvi
muitos pregadores, o homem do tênis de marca pensou,
que me hipnotizaram com uma oratória cativante
entremeada por um humor autodepreciativo usado para dar
a impressão de que são humildes, mas algo em seus olhos
os denuncia. Um movimento quase imperceptível da íris me
diz que muitos pregadores habitam uma parte vaga de suas
mentes. Eles têm, com o passar dos anos, aprimorado e
revisto seus estilos, mas esqueceram a essência de sua
mensagem, sacrificando-a em prol da pregação. Paixão
preconcebida, fogo artificial. Os olhos traem a retórica. Eu
me lembro de ter conhecido um fazendeiro que ficou tão
empolgado com sua plantação de batatas que era mais
crente que o pregador típico. Estava tudo em seus olhos! O
mesmo é verdade com relação a este estranho sentado ao
meu lado. Sou forçado a levá-lo a sério por causa do seu
olhar.
O homem do tênis de marca decide permanecer ali e
estende sua mão. “Meu nome é Daniel”, ele diz, “vamos dar
uma volta”.
Paulo aperta sua mão calorosamente e diz seu primeiro
nome em resposta à apresentação do amigo. Coloca sua
garrafa vazia dentro da sacola, junto com o lanche, e joga
tudo na lata de lixo próxima. Os dois então começam a
andar.
“Meu irmão”, Daniel começa, “não posso me lembrar de
um tempo em que o nome de Jesus Cristo tivesse sido mais
invocado e com mais frequência do que hoje, ou que o
conteúdo de seu ensino tenha mais sistematicamente sido
ignorado. Suas palavras têm sido distorcidas, expandidas e
mutiladas para que signifiquem algo, tudo ou nada. A
sedução da graça barata criou o mercado de massas, o
discipulado a custo zero. Em sua grande maioria, os
americanos estão mais que alimentados no pasto da religião
popular”.
“Academicamente, muitos professores de religião
transformaram o cristianismo em uma religião de
professores. Eles falam uns com os outros, usando
linguagem pedante, sobre o valor soteriológico do
sofrimento e da morte de Jesus, escrevem artigos
sofisticados em prosa pesada, exegeses detalhadas de
passagens bíblicas, dividem opiniões sobre princípios
hermenêuticos, anunciam com autoridade que ‘Jesus disse
isso, mas não disse aquilo’ e raramente relacionam a
Palavra de Deus às necessidades da comunidade cristã. A
linguagem esotérica de muitos estudiosos da religião torna
sua obra inacessível ao leigo. No entanto, comentários
bíblicos proliferam, na maioria das vezes à custa da conduta
cristã autêntica.”
“Aquilo que Martinho Lutero e outros reformadores
aprenderam com o apóstolo Paulo, que nos aconselhou a
‘não conhecer nada, senão a Cristo e este crucificado’, tem
sido usurpado pelos dons do Espírito Santo, incluindo a
oração em línguas e as revelações particulares de
autenticidade questionável. O ponto principal do típico
sermão dominical tem pesadas cores moralistas, de apelo
emocional grosseiro, que lançam culpa sobre as pessoas e
geram medo, vergonha e imagens distorcidas de Deus. Para
muitas pessoas dedicadas, que ouvem sermões assim, as
Boas Novas não são novas, nem boas.”
“Paulo, outro assunto que hipnotiza o povo de Deus na
atualidade é a tendência a dar o monopólio do mal a uma
única pessoa (como Osama bin Laden), uma única nação
(como o Afeganistão) ou uma única instituição (seja ela o
islamismo, o judaísmo, a igreja Mórmon, ou a igreja
Católica)."
“Quando uma pessoa, nação ou instituição é declarada
de Satanás, a lógica predomina: elimine esta fonte de todo
o mal e tudo ficará bem; quando Satanás está localizado em
uma realidade finita, o fim da maldade está próximo.”
“E, no entanto, como você sabe, irmão, uma lição que a
história da humanidade civilizada nos ensina é que, quando
matamos nosso ‘Satanás’ particular, o mal não desaparece
da face da terra. Na verdade, ele pode reaparecer no lugar
de que menos suspeitamos: em nós mesmos. Lembra-se do
filme Ben Hur? Quando Judá finalmente mata Massala, seu
‘Satanás’, sua amante se volta para ele e diz, ‘é como se
você tivesse se tornado Massala’.
“Rotular alguém de Satanás isenta o rotulador de
qualquer responsabilidade. A fonte do mal tem uma face e
forma específicas (e por certo não sou eu!).”
“Eis o problema, Paulo. Muitos cristãos hoje enxergam o
cisco no olho do outro, e pensam que não precisam olhar
mais adiante. Todo o mundo tem uma fonte de irritação, um
alvo preferido, um discurso personalizado que explica ‘o que
está errado no mundo’.
Os vilões podem ser os tele evangelistas, o racismo, o
sistema de saúde, o sistema de imigração, o
comprometimento da igreja com o mundo - qualquer coisa.
Nenhum de nós está imune a espalhar o mal, incluindo-se
os que falam sem ter autoridade sobre qual é o verdadeiro
problema.”
“Irmão Paulo, os cristãos americanos têm prazer nesse
tipo de discurso. A tragédia é que as palavras pesadas de
Jesus em Mateus 23, ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas!’, estão agora dirigidas a outras igrejas,
autoridades tais como o papa, o arcebispo, políticos da
oposição e assim por diante. Você e eu sabemos que
desvalorizamos por completo a mensagem de Jesus quando
usamos suas palavras contundentes contra qualquer outra
pessoa que não nós mesmos. Essas palavras devem ser
entendidas como dirigidas ao eu; caso contrário, estarão
pervertidas.”
“E essa, Paulo, é a forma, o molde e a essência do
farisaísmo cristão hoje. A hipocrisia não é prerrogativa das
pessoas em altas posições. Ela é a expressão natural
daquilo que é mais mesquinho em todos nós”.
Daniel olha para Paulo e nota a intensidade com que ele
está ouvindo. Não se trata da concentração resultante de
interesse demonstrada nas sobrancelhas unidas, mas do
silêncio fruto de pura atenção. “O assunto está ficando
pesado, irmão,” ele diz, “continuo, ou você gostaria de fazer
um intervalo?”
“Continue, por favor”, Paulo diz em tom encorajador,
“mas vamos nos sentar”.
Eles se sentam confortavelmente sobre a grama, e vinte
minutos de silêncio se passam. Daniel tem mais a dizer,
mas não tem certeza sobre como proceder, e Paulo está
imerso em seus pensamentos.
Finalmente, Paulo diz, “a fé vem pelo ouvir. As pessoas
não estão ouvindo a Palavra de Deus hoje?”
“Bem, sim e não”, Daniel responde. “Como você pode se
lembrar, eu disse anteriormente que professores da religião
transformaram o cristianismo numa religião de professores.
A suprema ironia é que ministros do evangelho têm torcido
a Palavra para que ela se torne o evangelho dos ministros.
Nem todos os ministros é claro, ou todos os professores. Há
muitos que pregam aquilo que Jesus pregou e ensinam o
que ele ensinou. Seus sermões estão repletos de pureza e
poder. Infelizmente, no entanto, a maioria deles ignora o
Grande Mandamento e liberam sua ira sobre aqueles que
desafiam sua doutrina ou falham em interpretar as
Escrituras como eles as interpretam.”
“Um caso clássico é o seguinte: o ensino de Jesus sobre a
indissolubilidade do casamento é inegociável e inatacável.
No entanto, o apóstolo Paulo, que inquestionavelmente
compreendia a mente de Cristo melhor que qualquer um de
seu tempo, não hesitou em interferir no casamento infeliz
de um cristão com um incrédulo. Invocando sua própria
autoridade apostólica, Paulo ampliou o ensino de Jesus e
autorizou a dissolução desse casamento em especial, (1
Coríntios 7.15-17) porque ‘Deus nos chamou para vivermos
em paz’ (v. 15). E em outro lugar disse, ‘nós, porém, temos
a mente de Cristo’ (1 Coríntios 2.16).” “Paulo, o único
fundamento eficaz para a renovação cristã nacional se
encontra na obtenção da consciência de Cristo, no ir além
da letra da Bíblia, em direção à consciência de Deus que
encontramos em Jesus. A grande causa das divisões e da
irrelevância da igreja na América é o nosso fracasso em
alcançarmos a mente de Cristo. A rigidez dita normas, e a
liberdade em Cristo tem sido obscurecida. A ternura tem
desaparecido. Um código moral escrupuloso substitui um
encontro engajado e participativo com o Mestre. O resultado
disso é uma religião sobre Jesus e não uma religião de
Jesus.” “A violência com a qual alguns cristãos expõem suas
convicções me faz pensar que eles estão tentando
convencer a si mesmos. O espectro de sua incredulidade
oculta com habilidade me assusta à medida que eles se
tornam mais militantes e barulhentos. Quando esse mesmo
medo passa a controlar as igrejas, elas se desintegram,
tornando-se propagadoras de rituais formais ou agentes
intolerantes de repressão. Sem um conhecimento íntimo e
sincero de Jesus, os pregadores que lideram essas igrejas se
assemelham a agentes de viagem distribuindo panfletos de
lugares que nunca visitaram.”
“As consequências dessa ignorância têm sido
desastrosas, Paulo. O legalismo crescente tem exercido
controle sobre uma parte significativa da ala evangélica da
igreja americana. O medo tem obtido tamanha influência
que, presume-se, seja parte integrante da vida cristã”.
Daniel dá um suspiro intenso e emocionado. “Você já
ouviu falar de um grupo chamado Associação Nacional de
Terapeutas Cristãos?”, pergunta.
“Não”, diz Paulo, movendo a cabeça. “Meu foco tem sido
em outro lugar. Eles são confiáveis?”
“Mais que isso, eles têm ótima reputação e são
comprometidos. Em seu último relatório, eles narram o
fenômeno recorrente de clientes atormentados por fortes
sentimentos de culpa, vergonha, remorso e autopunição.
Concluíram que essas coisas são sintomas dominantes de
uma doença psicoespiritual que aflige os cristãos norte-
americanos na atualidade: os frutos amargos do legalismo,
do perfeccionismo e da viagem da culpa não dão em árvore.
Muitos clérigos e leigos andam em círculos ao tentar
consertar a si mesmos, melhorar sua vida de oração,
tornarem-se aceitáveis a Deus e louváveis aos demais. Mais
cedo do que nunca, ficam chocados com a sua própria
inconsistência, decepcionados com sua mediocridade e
deprimidos porque não corresponderam às suas próprias e
elevadas expectativas. No pântano da auto-ajuda espiritual,
não há sobreviventes.”
“Uma última observação, se puder me aguardar, Paulo. A
maior necessidade da igreja hoje é conhecer Jesus Cristo
através de um encontro engajado e participativo. Quando a
religião substitui a experiência do Jesus vivo, quando
perdemos a autoridade do relacionamento pessoal e nos
apoiamos na autoridade de livros, instituições e líderes,
quando permitimos que a religião se interponha entre nós e
a experiência elementar de Jesus como o Cristo, perdemos a
realidade que a própria religião descreve como suprema.
Nisso reside a origem de todas as guerras santas, dos
preconceitos, da intolerância e das divisões no corpo de
Cristo.”
“Irmão Paulo, falei demais. Ore para que eu tenha
coragem de ficar firme e de amar os irmãos em seu
quebrantamento”.
Paulo se levanta rapidamente. “Daniel, a extensão e a
profundidade de sua percepção da igreja contemporânea é
extraordinária”, ele diz. “Como você consegue estar tão
atualizado?”
“Eu sou um bispo”, diz Daniel, também se colocando em
pé. “Dois anos atrás fui indicado pelos presbíteros da
Assembleia Nacional de Igrejas Americanas para prestar um
serviço em todo o país como pastor/ teólogo independente.
Esta semana devo entregar minhas observações e fazer
recomendações de renovação e reforma. Francamente, me
sinto perdido. A tarefa é grande demais”.
Paulo coloca a mão sobre o ombro do ancião. “Seria
possível para você convocar um encontro de emergência
dos presbíteros para amanhã à noite?” pergunta. “Eu
gostaria de dar-lhes uma palavra”.
Daniel o encara com incredulidade. “Você o quê?”
“Eu gostaria de dar uma palavra profética à Assembleia
Nacional”.
“Quem é você?”
“Como disse antes, meu nome é Paulo. Estas são as
minhas credenciais”. Paulo tira sua camisa. “As marcas em
meu corpo são as de Jesus. Eu sou um apóstolo que não
deve sua autoridade ou seu compromisso a homem
nenhum. Eu fui indicado pelo Pai, que ergueu Jesus dentre
os mortos. Só me glorio na cruz de Cristo, que me libertou
da tirania de ter de agradar os outros e de me conformar
aos padrões ditados por eles. Como você pode ver, carrego
em meu corpo a assinatura de Jesus. Você vai organizar o
encontro?”
Daniel acena positivamente com a cabeça. “Amanhã à
noite no grande salão do Hotel Corinto,” diz.
Os dois se despedem em silêncio.
Na noite seguinte, mil e quinhentos líderes se reúnem, de
todas as partes do país - pastores, evangelistas,
superintendentes, bispos, cardeais, primazes, prelados,
provincianos e pastores não-titulados. Alguns vêm
paramentados e barbados, outros engravatados, muitos
com seus colares clericais e uma minoria com camiseta e
jeans. Saudações são trocadas, e então um silêncio extremo
enche o salão.
Daniel sobe na plataforma, volta-se para a plateia e
começa a falar pausadamente e em tom grave.
“Meus irmãos e irmãs, algo extraordinário aconteceu
comigo ontem. Por três horas estive com um homem cujo
nome é Paulo - o mesmo Paulo cujas cartas inspiradas estão
em nossa Bíblia. Vi com meus olhos as marcas de Jesus
encravadas em seu corpo. Não há dúvida em minha mente
de que ele seja quem diz ser. Em sua sabedoria soberana e
para cumprir seus propósitos amorosos, Deus escolheu
visitar esta nação e nos falar hoje através de seu servo,
Paulo de Tarso.

Meus amigos em Cristo, eu lhes apresento o Apóstolo às


Nações”.

Não houve aplauso. Nenhum sussurro. O grupo trafega


da incredulidade crescente à descrença total. Quando o
apóstolo sobe a plataforma, seus olhos se fixam em um
pastor de quarenta e cinco anos sentado em uma cadeira
de rodas na primeira fileira. Um ferimento na espinha
causado por um acidente automobilístico ocorrido há mais
de dez anos o deixou paraplégico. Ele não dera um passo
sequer nos últimos doze anos.
Paulo desce da escada, se dirige diretamente ao homem
paralítico e coloca a mão em seu rosto. “Em nome de Jesus
Cristo de Nazaré”, ordena Paulo, “levante e ande!”.
Embasbacado, o pastor apoia as palmas de ambas as
mãos nos braços de sua cadeira e, com um esforço enorme,
se coloca em pé. Quase casualmente, tenta um primeiro
passo e então um segundo - e então outro e outro. Começa
a se movimentar, de repente corre pelo corredor central,
circula por todo o auditório, volta ao centro, aperta a mão
de sua esposa em êxtase e pergunta “Vamos dançar?”
Em meio a suspiros emocionados e gritos contidos de “ó
meu Deus!”, Paulo retorna à plataforma. “Eu sou Paulo”, ele
anuncia, “um escravo de Jesus Cristo
enviado com uma missão especial para compartilhar a
Palavra do Deus vivo com vocês.”
Ontem, Daniel repartiu comigo um relatório incisivo da
situação espiritual entre os cristãos norte-americanos. Nesta
manhã, parei no McDonalds e à tarde fui ao Burger King. A
cultura fast-food deste país é uma ótima metáfora do
estado da igreja. Vocês estão alimentados demais e
malnutridos, tanto física quanto espiritualmente.
“No entanto, não há tempo a ser desperdiçado com
lamentações e profecias catastróficas. Nem é apropriado
criticar publicamente pastores que, assim como vocês, são
vasos terrenos, com pés de barro. Vocês devem esquecer
falhas passadas e prosseguir para o alvo que está diante de
vocês em Cristo Jesus. Vocês estão vivendo a
‘imponderabilidade do que será’ e neste ínterim da história
da salvação, há muito a ser feito.”
“Primeiro, o amor apaixonado e insistente de Deus deve
ser proclamado a tempo e fora de tempo. E uma grande
ênfase deve ser dada à ternura e a misericórdia de Deus,
que nos amou primeiro. Ao invés de uma leve rajada de luz
do amor divino, seguida de uma artilharia pesada de
obediência a regras, o amor de Jesus pelos que não são
amáveis deve penetrar o coração de cada cristão. A
cognição intelectual e a percepção vivencial de Deus são
inseparáveis. Portanto, a tarefa pastoral prioritária é a de
dar qualidade à fé na comunidade. Cada discípulo pode e
virá a conhecer Jesus através do batismo de fogo. Nenhuma
outra prioridade é mais importante; nada mais importa. A
maior parte do tempo, energia, talento e recursos
financeiros de cada igreja local deverá ser investida nesta
iniciativa. Outros ministérios e projetos surgirão como
consequência.”
“Além disso, o amor fraternal será o sinal por excelência
de que os cristãos de fato experimentaram o amor de Deus.
Descansando em segurança na terna compaixão do Senhor,
os cristãos não sentirão necessidade de ceder a fim de
obter aprovação e aceitação de outros. O amor cordial,
cheio de respeito pela sacralidade da vida humana deve ser
nossa marca de discipulado. Discussões, disputas e
retaliações sinalizam a perda do contato consciente com
Jesus. Todos vocês devem se arrepender rápido, pedir
perdão e não perder tempo com a auto-recriminação.”
“A religião autêntica requer moderação em todas as
coisas, exceto no amor. O evangelho não tolera um amor
moderado entre cristãos , assim como não tolera um amor
moderado entre Deus e vocês. Como escrevi aos Romanos,
aquele que ama seu semelhante tem cumprido toda a lei de
Cristo e também dos profetas.”
“Terceiro e último, quero que a igreja americana se torne
contracultura nas próximas décadas. Especificamente, rogo
que retornem à prática antiga da igreja apostólica - a
disciplina do secreto. Mantenham um silêncio cuidadoso na
presença dos incrédulos. O condicionamento cultural tem
tornado o linguajar cristão da igreja em algo
despropositado. Quando o perfume do momento tiver o
nome de Graça - bem... Vocês estão me entendendo, irmãos
e irmãs.”
“Ao assumir sua discrição, que a igreja local erga a
barreira da inclusão. Todo discípulo, não importa quão
maduro seja, deve ter um mentor. Um cristão está sempre
no processo de se tornar um. Pequenos grupos semanais
não são uma opção apenas para os comprometidos; são
uma necessidade universal. Aqueles que andam no
Caminho não podem sobreviver sem apoio. O solitário é um
mentiroso. O incrédulo Tomé não encontrou o Jesus
ressurreto na floresta, mas quando retornou à comunidade
da fé.”
“No início do século XXI ficou fácil demais ser um cristão.
Numericamente, suas igrejas irão encolher se vocês
seguirem minhas recomendações, porque quando os que
buscam, antigos e novos, avaliarem o custo do discipulado,
descobrirão que é muito alto. Não fiquem alarmados: o
crescimento acontecerá lentamente, de dentro para fora, à
medida que os corações dos que buscam forem tocados por
atos ocultos de misericórdia despretensiosa. A sua
fidelidade será medida por sua disposição de ir onde há
quebrantamento, solidão e necessidade humana. O que
você pode aprender com a vida do Mestre? O conhecimento
de que o amor e a misericórdia são as forças mais
poderosas na terra.”
“A disciplina do secreto desamarrará a igreja de todas os
acréscimos culturais, desvios devocionais e bagagens
religiosas do passado. A lealdade ferrenha a Jesus Cristo e o
testemunho da misericórdia furiosa a pecadores restaurarão
a credibilidade da proposta cristã. Somente aquele que crê
é obediente, e somente aquela que é obediente crê.
Sucesso ministerial, juntamente com o conhecimento das
Escrituras e o controle sobre os princípios bíblicos, não deve
ser confundido com discipulado verdadeiro. Esses sinais
superficiais de fé podem se tornar a corrupção do
discipulado, se a sua vida não estiver oculta com Cristo em
Deus.”
“Queridos irmãos e irmãs, revivifiquem os espíritos
humildes de seu povo. Deixem de lado toda ansiedade e
medo. Lembrem aos santos que o Crucificado, reinando em
glória, prevaleceu sobre todo principado, potestade e
domínio. Ele os desarmou, os expôs ao ridículo, os
descartou como vestes e os levou cativos em seu desfile
vitorioso.”
“Com a assinatura de Jesus em meu corpo, eu, Paulo,
servo do Messias, me ponho de joelhos diante do Pai, e oro
para que, de sua infinita glória, ele lhes dê o poder para
ajudar seu eu oculto a se fortalecer, para que Cristo possa
viver em seus corações através da fé. E peço a ele que, com
ambos os pés firmados sobre o amor, vocês possam
conhecer com todos os cristãos as dimensões
extravagantes do amor de Cristo. Estendam as mãos e
experimentem a largura! Provem a sua extensão!
Mergulhem em suas profundezas! Ergam-se até as alturas!
Vivam vidas plenas - plenas da plenitude de Deus!”

Prezado Leitor

Talvez você descarte este exercício de imaginação cristã


por considerá-lo como a conversa confusa e perigosa de um
profeta por conta própria, ou talvez conclua que de tenha
representado imagens exatas de você mesmo ou da igreja
de sua experiência. No caso da primeira possibilidade, deixe
pra lá. No caso da segunda, que seja assim!

Leitura Recomendada:
Kelly, Geoffrey. Liberating Faith. Minneapolis: Augsburg,
1984. Este livro oferece um desenvolvimento mais
abrangente da disciplina do secreto.
Manning, Brennan. A assinatura de Jesus. São Paulo, SP:
Mundo Cristão, 2006.
Richard Francis Xavier, o escritor Brennan Manning,
nasceu e cresceu no Brooklyn, um bairro do subúrbio de
Nova Iorque, EUA. Pensador brilhante, especialista em
Escrituras e Liturgia, Filósofo, Teólogo e sacerdote
Franciscano construiu uma curiosa trajetória ministerial
permeada pelo trânsito entre a academia e as favelas, a
universidade e as vilas, povoados e cortiços; e pela prática
do tipo de cristianismo com o qual se comprometera desde
o início de sua vocação: o da compaixão e serviço
abnegado.

Autor de mais de vinte livros, entre eles o sucesso O


evangelho maltrapilho, ficou conhecido por sua
autenticidade ao abordar os dilemas do homem em
contraste ao amor e à graça de Deus. Sua luta contra o
alcoolismo, a saída do sacerdócio, casamento e divórcio
fazem de sua biografia um eloquente testemunho de
restauração e esperança. Durante sua vida, Brennan
conduziu retiros espirituais para pessoas de todas as idades
e empreendeu viagens pelos Estados Unidos e pelo exterior
com o objetivo de compartilhar a Boa Nova do Evangelho e
comunicar o amor incondicional de Deus por cada um de
seus filhos. Faleceu em 12 de abril de 2013.
Notas
[1]NT: O termo carnegiana diz respeito à Dale Carnegie,
autor do célebre best-seller Como fazer amigos e influenciar
pessoas, publicado no Brasil pela Companhia Editora
Nacional. <<
[2]
Farrell, Edward. The Father is Fond of Me. Starruga, PA:
Dimension Books, 1978.. <<
[3]Stella, Tom. The God Instinct. Notre Dame, IN: Sorin
Books, 2001 <<
[4]
Keyes, Ken. Handbook of Higher Consciousness. Berkeley,
CA: Living Love Center, 1972. <<
[5]
McGuigan, Dorothy Gies. Metternich and the Duchess.
New York: Doubleday, 1966. <<
[6]Em sua seção sobre a vida judaica, a vida inimiga, e a
qualidade da vida, estou citando as palavras de Burghardt
exatamente como foram escritas, ou quase exatamente. Li
seis de seus livros inteiros e não consigo encontrar a fonte.
Caso tivesse encontrado, reconheceria de bom grado que
esse homem maravilhoso na verdade escreveu a maioria
das palavras nesta seção. Por favor, me perdoe, Walter. Não
tive a intenção de plagiá-lo. <<
[7]NT: Termo pejorativo que descreve pessoas nascidas na
Ásia Oriental ou seus descendentes. <<

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